Quem dizem que foi o Cardeal do Povo  
Who says it was the Cardinal of The People 

Agenor Brighenti
*Doutor em Teologia pela Université du Louvain. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR). Contato: agenor.brighenti@pucpr.br 

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Resumo:

No centenário do nascimento de Dom Paulo Evaristo Arns, este artigo recolhe depoimentos de pessoas que com ele conviveram, expressados por ocasião de sua morte. Caracteriza “quem dizem que foi o Cardeal do povo” em cinco aspectos: a) depoimentos relativos à sua pessoa e personalidade, como filho de colonos alemães, religioso franciscano e professor de teologia; b) depoimentos que revelam alguns traços de seu perfil de pastor, enquanto presbítero, depois bispo auxiliar e arcebispo; c) as notas dominantes de seu pastoreio profético à frente da Arquidiocese de São Paulo; d) Dom Paulo como apóstolo dos direitos humanos no seio de uma sociedade, sob o jugo da ditadura militar que assolou o país por 30 anos; e) breves registros de depoimentos de pessoas dizendo o que aprenderam de Dom Paulo, depois de terem com ele convivido.           

Palavras chave: Bispo; Pastoral; Pobres; Profetismo; Direitos Humanos. 

Abstract

On the centenary of the birth of Dom Paulo Evaristo Arns, this article gathers testimonies from people who lived with him, expressed on the occasion of his death. It characterizes “who they say was the Cardinal of the people” in five aspects: a) testimonies relating to his person and personality, as the son of German colonists, a Franciscan religious and professor of theology; b) testimonies that reveal some traits of his profile as a pastor, as a priest, then auxiliary bishop and archbishop; c) the dominant notes of his prophetic shepherding at the head of the Archdiocese of São Paulo; d) Dom Paulo as an apostle of human rights within a society, under the yoke of the military dictatorship that devastated the country for 30 years; e) brief records of people’s testimonies saying what they learned from Dom Paulo, after having lived with him. 

Keywords: Bishop. Pastoral. Poor. Prophetism. Human rights 

Introdução 

Quem dizem que foi o Cardeal do povo? No centenário do nascimento de Dom Paulo Evaristo Arns, recolho depoimentos de pessoas que com ele conviveram, expressados por ocasião de sua morte. É nesses momentos que fala também o coração, no reconhecimento e na gratidão a quem muito deu e de quem muito se recebeu. Na ocasião, juntamente com o teólogo espanhol Juan José Tamayo, organizamos um livro que reúne, em mais de 300 páginas, manifestações de toda ordem e de diferentes procedências – Dom Paulo. Testemunhos e memórias sobre o Cardeal dos pobres, Ed. Paulinas, 2018. Há registro de depoimentos de seus bispos auxiliares, presbíteros da Arquidiocese de São Paulo, teólogos e pastoralistas, confrades, jornalistas, juristas e familiares. 

Revisitando o livro, vou recolher aqui apenas algumas daquelas manifestações, em torno a cinco aspectos que podem dar uma visão aproximada da grandeza deste homem, como diz Pedro del Picchia, de tantos epítetos – bispo dos pobres, apóstolo dos direitos humanos, cardeal da liberdade, bispo dos oprimidos, cardeal dos trabalhadores, bispo dos presos, bom pastor, cardeal da cidadania... e como gostaria de ser lembrado – “amigo do povo”. 

Em um primeiro momento, vamos recolher depoimentos relativos à pessoa de Dom Paulo, sua personalidade, caráter, estilo de vida, filho de colonos alemães, religioso franciscano, professor de teologia. Num segundo momento, estão reunidas algumas manifestações que revelam alguns traços de seu perfil de pastor, enquanto presbítero, depois bispo auxiliar de São Paulo e Arcebispo. É um olhar sobre sua pessoa, mas agora pelo viés do exercício do ministério pastoral na Igreja e na sociedade. Em seguida, sempre a partir do olhar de pessoas que conviveram com Dom Paulo, registramos as notas dominantes de seu pastoreio profético à frente da Arquidiocese de São Paulo, por décadas e de maneira muito fecunda. Em um quarto momento, traremos à tona Dom Paulo como apóstolo dos direitos humanos no seio de uma sociedade, sob o jugo de sangrenta e truculenta ditadura militar que assolou o país por 20 anos. É em meio às adversidades de toda sorte que o “cardeal do povo” iria revelar-se como “o bispo que não conheceu o medo”, seja descendo aos porões da ditadura, seja subindo às diferentes esferas do poder para cobrar humanidade das autoridades, incluídos generais na presidência da república usurpada. Terminaremos com breves registros de depoimentos de pessoas dizendo o que aprenderam de Dom Paulo, em que e de que modo ele influenciou ou mesmo deu nova direção à vida, depois de terem com ele convivido. 

1. A personalidade de um bispo “que não conheceu o medo”

Com muita propriedade, dois dos bispos auxiliares de Dom Paulo registram aspectos muito peculiares da personalidade do bispo “que não conheceu o medo”, na expressão de Frei Betto. Um deles é Dom Mauro Morelli, nomeado bispo auxiliar de São Paulo pelo papa Paulo VI em 12 de dezembro de 1974, recebendo a ordenação episcopal de Dom Paulo Evaristo Arns, em 25 de janeiro de 1975. Trabalhou com Dom Paulo até 1981. Para Dom Mauro, Dom Paulo foi um “franciscano enamorado da Senhora Pobreza e irmão de toda a criatura, historiador e profundo conhecedor da Teologia dos Padres da Igreja dos primeiros séculos” (MORELLI, 2018, p. 22). Um “padre da Igreja” na América Latina, no dizer do Pe. José Marins, especialista nos Santos Padres e como discípulo de Francisco de Assis, amante da pobreza e dos pobres. 

Outro bispo auxiliar de Dom Paulo foi Dom Angélico Sândalo Bernardino, nomeado bispo-auxiliar de São Paulo pelo Papa Paulo VI, em 12 de dezembro de 1974. Recebeu a ordenação episcopal, pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e pastoreou na Arquidiocese até à sua divisão em várias dioceses em 1989. Dom Angélico destaca que Dom Paulo foi um homem que “amou profundamente a Igreja”. Apesar de tudo o que sofreu, “viveu em intensa comunhão com o Papa”. Testemunha que ele “guardou serenidade, paz, diante de incompreensões, perseguições, advindas de setores da Igreja, inclusive, em determinadas ocasiões, da própria Cúria Romana” (SÂNDALO BERNARDINO, 2018, p. 26-27). 

O frade dominicano Frei Betto, que contou com a defesa de Dom Paulo, dele próprio e seus companheiros durante a ditadura, diz que “se a história da independência do Brasil não pode ignorar Tiradentes, nem o movimento ecológico a Chico Mendes, a resistência à ditadura que nos governou 21 anos deve muito à figura ímpar de Dom Paulo”. Segundo ele, “o mesmo cuidado amoroso que São Francisco dedicava aos pobres e à natureza, Dom Paulo estendeu às vítimas da repressão” (FREI BETTO, 2018, p. 32).

Na ocasião de sua morte, em um jornal de Curitiba publiquei um artigo, que Dom Paulo, “como bom franciscano, nunca se fez notar por seus mais de cinquenta livros escritos, os trinta prêmios internacionais de reconhecimento por seu trabalho e ou os vinte títulos de doutor honoris causa, conferido pelas mais prestigiosas universidades nacionais e internacionais”. Destacava que “também não ameaçou sua sincera humildade, o doutorado obtido na prestigiosa Sorbone de Paris, onde estudou o pensamento dos grandes pensadores e pastores da Igreja no período patrístico” (BRIGHENTI, 2018, p. 44). 

Fernando Altemeyer Junior, um dos colaboradores de Dom Paulo na década de 1980, frisa que ele “esteve à frente da arquidiocese da maior metrópole brasileira num dos períodos mais difíceis do país: a ditadura militar. O catarinense de estatura baixa se agigantava diante das atrocidades da repressão”. Lembra que “como o homem que levou a Igreja para a periferia, era duro na busca pela justiça social e pelos Direitos Humanos”. Ao mesmo tempo, “não perdia a leveza da vida”, pois “era divertido, jocoso, brincalhão, sagaz” (ALTEMEYER, 2018, p. 62).

João Décio Passos, por sua vez, a exemplo do modelo de pastor com cheiro da ovelha recomendado pelo Papa Francisco, Dom Paulo “foi impregnado pelo cheiro do povo da periferia, do suor dos pobres trabalhadores, do sangue dos torturados nas prisões da ditadura e dos miseráveis que dormiam nas ruas de megalópole”. Diante da preferência do Papa Francisco de uma Igreja enlameada por sair às ruas a uma Igreja limpa por ficar trancada na sacristia, “Dom Paulo nunca temeu sujar seu nome por causa da verdade”, tanto que “foi caluniado pelos donos do poder e do capital, fecharam a Rádio 9 de Julho, censuraram o Jornal da Arquidiocese, difamaram sua pessoa e distorceram suas palavras”. Diante disso, frisa João Décio que “o pastor continuou sempre com voz firme e jamais arredou o pé do caminho do Mestre da verdade e da vida, do caminho dos simples e dos pobres, longe das honras e das glórias; seguiu firme pela via crucis que conduziria sem desvio à ressurreição de esperança em esperança” (PASSOS, 2018, p. 97-98).

O jornalista Mauro Lopes, recolhe o que Dom Paulo escreveu sobre seu lema e sua vocação no livro Da esperança à utopia (São Paulo, Sextante, 2001): “Qualquer coisa que tenha feito em minha vida ou ainda chegue a realizar explica o fato de eu ser padre. Fui por longos anos professor, mas sempre padre--professor, ao ensinar literatura, teologia ou didática. Escrevi livros e milhares de artigos mesmo antes da ordenação sacerdotal. Trazem a marca de padre. Amei muito na vida e passei por situações humilhantes, por calúnias graves e muito difundidas, mas sempre como padre ou porque desejei cumprir a missão que Cristo me confiou. Meu lema de bispo, arcebispo e cardeal – ‘De esperança em esperança’ – foi escolhido na época em que eu era simples padre. Nem me custa acrescentar: gostaria de ver as angústias e promessas do mundo com o coração de padre. E quando, um dia, o coração deixar de bater, que o amor encontre na vida eterna a mesma forma de ser padre, assim como Cristo, o eterno sacerdote, o dispuser” (LOPES, 2018, p. 119-120).

Frei Clarêncio Neotti, um dos últimos alunos de Dom Paulo em Petrópolis, registra que “ninguém na Província até hoje teve vida tão tumultuada dentro do carisma da paz, que nos é próprio”. Mas, ao mesmo tempo, “ninguém na Província até hoje teve vida tão rica de fatos e atos dentro de um período históri-co como foi o pós-Concílio e os anos da ditadura militar no Brasil”. E continua: “ninguém foi modelo mais evidente de líder, quase diria de profeta, num tempo (que a história lamentará) de destruição das lideranças nascentes dentro da Igreja e dentro dos países latino-americanos”. Para ele, “a figura de Dom Paulo se torna ainda maior, gigantesca, num momento de escassez de balizas em todos os países do mundo e também no seio da mãe Igreja” (NEOTTI, 2018, p. 199-200). Frei Clarêncio recolhe também o depoimento de Fr. Patrício Sciandini, carmelita: “com seu coração grande e paterno soube acolher a todos sem distinção. Não foi só o pai dos católicos, mas de todos os homens e mulheres de boa vontade. Não amou só os que estavam ao seu lado, mas, à imitação de Cristo, amou a todos. Incompreendido, tentou compreender. Todos concordam em reconhecer seu amor para com os pobres, pequenos e marginalizados” (NEOTTI, 2018, p. 297-298).

2. Dom Paulo, modelo de pastor

Junto da pessoa de Dom Paulo está o pastor, também com suas características e peculiaridades conforme o registro de manifestações por ocasião de sua morte. Dom Mauro Morelli, um de seus bispos auxiliares, diz que “o bispo catarinense Paulo Evaristo fora providencialmente escolhido para um pastoreio que exigiria firmeza na Fé, capacidade de leitura da realidade e determinação” (MORELLI, 2018, p. 22). Por sua vez, Dom Angélico Sândalo Bernardino, outro de seus bispos auxiliares, frisa que Dom Paulo, “nos longos anos da ditadura civil-militar, levantou, com firmeza inabalável, a voz profética em defesa da vida, da liberdade e da verdade. Acolhia e visitava presos políticos, dando-lhes conforto e esperança. Foi perseguido por seu amor à justiça, sendo bem- -aventurado” (SÂNDALO BERNARDINO, 2018, p. 26). Destaca que “simples, acolhedor, bom pastor, marcou presença na Arquidiocese de São Paulo como o Arcebispo da comunhão e participação”. Formou com os Bispos auxiliares, verdadeiro ‘colégio episcopal’, em autêntica, edificante, comunhão de vida, pastoreio. Foi o pai acolhedor dos padres, religiosos, religiosas. Valorizou ao máximo a presença dos leigos, em especial, das mulheres na Igreja. Homem de amplo diálogo ecumênico, inter-religioso”. Conclui dizendo que “a exemplo do Mestre, se colocou a serviço de todos. Incentivou, com entusiasmo, a existência de Igreja missionária, começando pelas periferias, alargando-se para Itacoatiara, Igreja-irmã no Amazonas. Em testemunho de evangélica, franciscana, pobreza, vendeu o Palácio Arquiepiscopal, passando a residir em casa comum, despojando-se de condições principescas, fazendo-se irmãos de todos! (SÂNDALO BERNARDINO, 2018, p. 27). 

Com relação ao seu perfil de pastor, para Leonardo Boff, “fica a memória de um cardeal que sempre esteve do lado dos pobres e que jamais deixou que o grito do oprimido por seus direitos violados ficasse sem ser ouvido. Ele é uma referência perene do bom pastor que dá sua vida pelos pequenos e sofredores deste mundo” (BOFF, 2018, p. 37). O teólogo espanhol Juan José Tamayo diz que “cardeal Arns foi bispo e profeta, dimensões difíceis de compaginar em uma mesma pessoa”. Lembra que “o bispo costuma exercer o poder eclesiástico ao serviço da instituição religiosa que o elegeu e em aliança com o poder político”. Já “o profeta, ao contrário, é um visionário, que mostra ao hierarca a nudez que se esconde atrás de seus ornamentos sagrados, o vazio das pompas e vaidades sobre as que se assenta artificialmente, a falta de coerência entre o que prega e o que vive, a precariedade na qual está envolta sua suposta missão transcendente e, enfim, a falta de autoridade moral quando se distancia da ética das BemAventuranças”. E esta é uma característica marcante de Dom Paulo como pastor, diz ele. (TAMAYO, 2018, p. 50) 

Fernando Altemeyer Junior lembra que, pastoralmente, a grande marca de Dom Paulo foi “a chamada operação periferia, para a qual, decidiu que venderia o Palácio Episcopal, que era um museu totalmente obsoleto, mas que ao ser vendido possibilitou a compra de aproximadamente dois mil terrenos”, que “permitiu construir centros comunitários e, com isso, fazer uma verdadeira presença junto às milhares de pessoas migrantes – nordestinos, mineiros, paranaenses - que chegavam, durante os anos 1970, a São Paulo”. Segundo Fernando, “foi realmente uma ação pastoral, estratégica, pensada, lúcida e, sobretudo, firme de dom Paulo em inverter e colocar a periferia no centro, por assim dizer” (ALTEMEYER-LANCELOTTI, 2018, p. 63-64). Para acompanhar esta presença da Igreja nas periferias, Dom Paulo “realizou um governo colegiado com um conjunto de doze bispos regionais construindo uma Igreja sem fronteiras, aberta aos homens e mulheres cosmopolitas, a partir de um novo modo de pensar e agir inspirado na leitura libertadora da Bíblia, nos documentos do Ensino Social da Igreja e nas Assembleias Episcopais de Medellín e Puebla. Fez emergir a verdadeira Igreja Povo de Deus em marcha” (ALTEMEYER, 2018, p. 192). Como já foi mencionado, a “presença constante nas comunidades da periferia na defesa das mulheres, dos favelados, das crianças e moradores de rua lhe valeram campanhas difamatórias contínuas por parte de policiais e agentes da direita brasileira” (ALTEMEYER, 2018, p. 193-194). Além disso, “sempre atento às causas concretas do povo brasileiro é ardoroso defensor da Reforma Agrária e da participação efetiva do povo na escolha de candidatos que defendam em suas vidas os verdadeiros anseios populares. Sempre e de maneira independente valorizou a participação dos leigos na vida política, sindical e associativa em bairros, associações e agrupamentos sociais em favor da cidadania e da comunicação” (ALTEMEYER, 2018, p. 196). 

Para o padre Júlio Renato Lancellotti, o perfil de pastoral de Dom Paulo Evaristo Arns pode ser resumido “na opção preferencial pelos pobres”. Ele “foi o primeiro a defender os doentes de Aids, quando criou a Aliança para a Esperança. Eu lembro do dia em que estavam questionando na Justiça a atuação da Casa Vida, uma casa que abrimos para as crianças com HIV e Aids. Nessa ocasião, dom Paulo fez uma procissão pelas ruas do bairro e abriu as portas da Casa Vida”, recorda. (ALTEMEYER-LANCELOTTI, 2018, p. 62).

Para João Décio Passos, o perfil do “grande Pastor Paulo Evaristo Arns, para o povo simplesmente Dom Paulo e para a Igreja latina, Cardeal Arns, pode ser resumido em algumas palavras não quantificáveis: santidade, profecia, sabedoria”. Frisa que “soube como poucos conviver com os projetos diferentes de Igreja que fizeram parte do governo de seus sucessores, sem fazer sombras sobre os mesmos e sem manifestar qualquer crítica ou discrepância”. Mas, tinha consciência “das mudanças de rumo que aconteceram na Arquidiocese depois de seu longo governo que implantara na Igreja local um rosto nítido, expresso em todas as suas frentes pastorais, em suas instituições e em seus sujeitos” (PASSOS, 2018, p. 91-92).

Pedro del Picchia lembra que Dom Paulo, “ao longo da vida, recebeu muitos epítetos: foi chamado de cardeal da liberdade, bispo dos oprimidos, cardeal dos trabalhadores, bispo dos presos, bom pastor, cardeal da cidadania, guardião dos direitos humanos e tantos outros. Mas já ao final da vida, quando lhe perguntaram como gostaria de ser lembrado, deu uma resposta singela: amigo do povo” (DEL PICCHIA, 2018, p. 109).

Frei Clarêncio Neotti, confrade de Dom Paulo, por ocasião de sua morte, resgatou “um depoimento de Dom Luciano Mendes de Almeida, que foi seu bispo auxiliar, depois Arcebispo de Mariana, secretário geral e presidente da CNBB: ‘sua vida, fortalecida pela fé em Jesus Cristo, crescia na esperança e deu-nos sempre exemplo de coragem. Seu olhar estava voltado para construir a justiça e a paz, marcas do Reino de Deus. Sua incansável ação pastoral organizou planos de evangelização, criou novas comunidades nas periferias, promoveu a formação do clero, religiosas e leigos. Desenvolveu o trabalho vocacional, fomentou o diálogo ecumênico e inter-religioso, incentivou as pastorais familiar, de juventude e do mundo operário. Voltou sua atenção para as favelas e cortiços, o menor desamparado, a mulher marginalizada, as prisões e o povo da rua. Temos a impressão de estarmos diante do Apóstolo Paulo, do qual recebeu o nome: ‘Fiz-me tudo para todos’ (1Cor 10,22)” (NEOTTI, 2018, p. 226-227). 

Frei Clarêncio recolheu também o depoimento de outro bispo auxiliar de Dom Paulo - Dom Antônio Celso de Queiroz. Na Missa exequial, que celebrou no dia 16 de dezembro disse: “a primeira impressão que a gente tinha era de homem sábio. Um homem que sabia de onde vinha e para onde ia. Não estava aqui simplesmente para representar um papel, mas estava aqui para cumprir uma missão. E como objetivo dessa missão estava sempre o povo de Deus. Sobretudo sua parte mais pobre. Não precisava falar de Deus para dizer que estava realizando sua missão de pastor. Frisa que “ele deixou para nós aquela comparação belíssima, ‘a Esperança é irmã da Fé e irmã da Caridade’. São as três irmãs moças. Uma mais idosa, com mais juízo, é a Fé; outra mais ardorosa, é a Caridade; e a terceira, Dom Paulo faz brotar em nós essa terceira irmã, mais difícil porque é menor... a menininha irrequieta que nasceu em cada último Natal’. Que bela comparação. A pequena luz então, essa Esperança é tudo aquilo que nós desejamos, é tudo aquilo que Dom Paulo hoje possui”. (NEOTTI, 2018, p. 228-229). 

De sua parte, Frei Clarêncio Neotti, olhando para Dom Paulo como pastor, destaca que ele “foi fiel discípulo de Jesus, centralizou no Senhor sua vida, fazendo-se servidor de todos. Homem de profunda vida de oração, servidor da verdade, da justiça, da liberdade. Pobre, filho de Francisco de Assis, governou a Arquidiocese levando-nos a intensa participação. Colocou seu ministério a serviço de todos, com evangélica predileção pelos pobres, presos, sofredores, fazendo ‘cara dura como pedra’ (Is 50,7) em sua defesa. Conheceu perseguições dos poderosos deste mundo, sentindo dor maior diante de incompreensões e pressões advindas de irmãos na família eclesial” (NEOTTI, 2018, p. 227). 

3. Marcas de um pastoreio profético

 A personalidade de Dom Paulo, forjada pelo franciscanismo e a renovação do Concilio Vaticano II, em especial como ele foi recebido pela Igreja na América Latina, levou-o a plasmar com seu povo uma caminhada ou um modelo de pastoral muito peculiar, com sua marca, a marca da opção pelos pobres. Dom Mauro Morelli recorda que desde a primeira hora da recepção da renovação conciliar, na Arquidiocese de São Paulo, “um processo de planejamento pastoral foi inaugurado e instalado como exercício da colegialidade pastoral e da sinodalidade eclesial, instrumento de resposta adequada da evangelização às exigências e provocações da realidade dominada pela ferocidade do poder econômico. (MORELLI, p. 22). Na mesma perspectiva, Dom Angélico frisa que “as escolhas das prioridades pastorais sempre foram decididas com ampla participação de todo Povo de Deus, congregado em memoráveis Assembleias Arquidiocesanas” (SÂNDALO BERNARDINO, 2018, p. 27). 

Leonardo Boff diz que “o que sempre me impressionou nele foram seu amor e seu afeto franciscano pelos pobres”. Lembra que “feito bispo auxiliar de São Paulo, ocupou-se logo com as periferias, fomentando as comunidades eclesiais de base e empenhando pessoalmente Paulo Freire” (Boff, p. 36). Em meu texto publicado na oportunidade, frisei que os centros comunitários construídos nas periferias, “rompendo toda barreira entre sagrado e profano, entre fé e vida, hora eram Igreja, hora escola de alfabetização, de capacitação de mão-de-obra ou espaço da educação política, da organização e do empoderamento dos excluídos” (BRIGHENTI, 2018, p. 42). 

O teólogo espanhol Juan José Tamayo diz que Dom Paulo “pertence à geração de bispos-profetas, que colocaram em prática o paradigma do cristianismo libertador da América Latina, na direção sinalizada pela Conferência do Episcopado Latino-Americano de Medellín”. Segundo ele, inauguraram um novo modelo episcopal, que inspirado-se José Comblin, resume nas seguintes características: “foram além da mera administração episcopal e consideraram que sua principal missão era testemunhar com a vida o Evangelho na sociedade; puseram sua atenção e dirigiram sua ação para além da Igreja local e exerceram sua influência libertadora fora dos limites diocesanos que tinham demarcados; viveram a colegialidade entre ‘bispos amigos’, assumindo as causas dos oprimidos, consolando-se e solidariazando-se em meio às perseguições e intimidações que vinham do Vaticano e dos poderes políticos, econômicos e militares; exerceram a liberdade pessoal como condição necessária para lutar pela libertação dos grupos humanos oprimidos, sem ceder às ameaças de punição; um ministério pastoral caracterizado e guiado pela opção radical ético-evangélica pelas pessoas e grupos empobrecidos; muitos deles foram objeto de perseguição dentro e fora da Igreja, sem com isso deixarem-se intimidar e alguns sofreram o martírio por amor à justiça. Essa foi a confirmação da verdade de sua mensagem e da autenticidade de sua vida; praticaram o ecumenismo, mas não de caráter doutrinal ou institucional, mas em suas atitudes evangélicas no seguimento de Jesus de Nazaré, o Cristo Libertador e na prática da justiça; provocaram divisões dentro do episcopado, do sacerdócio e dos fiéis por suas atitudes de solidariedade com o mundo da exclusão social, da marginalização étnico-cultural e da discriminação sexista”. (TAMAYO, 2018, p. 53-54). 

Nesta perspectiva, para Fernando Altemeyer Junior, no caso da proposta pastoral de Dom Paulo, “a receptividade se dava na contradição, porque esse tipo de figura profética, sempre recebe apoio e também ódio”. Lembra que “a periferia via dom Paulo como o novo Paulo de Tarso, andando como nos tempos apostólicos, animando a fé popular; ele tinha essa mesma atuação no centro da cidade, onde há também periferias de cortiços, moradores de ruas, e nas cadeias. Mas, diz ele, “ao mesmo tempo, a burguesia, os ricos e poderosos, nutriam um ódio figadal por ele, justamente por conta do fato de ele não ter meias palavras; ele denunciava, metia o dedo na ferida e dizia quem estava pisando em quem”. E mesmo assim, “seguia com seus textos fortes e com suas falas no rádio sobre as obras em São Paulo e o crescimento da pobreza na cidade, nos anos 1970”. Lembra que Dom Paulo, inclusive, “ficou proibido de falar por mais de 20 anos pela censura, porque o governo federal acabou roubando a Rádio Nove de Julho da Igreja Católica”. Mas dom Paulo “ficou fiel as suas causas e foi amado e odiado, amado pelos pobres e odiado pelos poderosos, o que lhe deu a marca de um bom pastor” (ALTEMEYER JUNIOR- LANCELLOTTI, 2018, p. 65-66). Júlio Lancellotti complementa que Dom Paulo “sempre quis uma Igreja aliada do povo, que estivesse junto do povo, não acima, nem separada”. O grande legado de dom Paulo foi “a opção preferencial pelos pobres; foi por isso que ele viveu, esse é seu legado e seu chamamento profético para todos (ALTEMEYER JUNIORLANCELLOTTI, 2018, p. 72). 

- As pautas do pontificado de Francisco foram antecipadas emblematicamente em suas ideias e ações. Pode-se dizer que colhemos hoje na igreja universal o que aqui na América Latina foi sendo plantado depois do Vaticano II e em nome dele. D. Paulo personifica de modo emblemático o pastor que tem cheiro de ovelhas e que exerce a profecia e a misericórdia. Sua Igreja foi às periferias sociais e existenciais, foi, de fato, a Igreja que se suja por sair na direção do outro, a Igreja que coloca a acolhida antes da norma objetiva e o amor antes e acima da regra. A era D. Paulo passou, mas ressurge, agora, de modo inequívoco nas palavras, nos gestos e nas programáticas de Francisco. Isso significa que o paradigma eclesial adotado por D. Paulo Evaristo deve ser resgatado com toda urgência, na fidelidade ao Evangelho, mas também na fidelidade ao Magistério de Francisco. A memória de sua era deverá alimentar os ideais e práticas de Igreja atuais, deverá deixar de ser memória e ser ação concreta. O caminho já foi feito e muitos ainda se lembram de como caminhar. (PASSOS, 2018, p. 94). 

Pedro del Picchia põe em relevo a “Operação Periferia”, com a qual, segundo ele, sobretudo com a vendo do palácio episcopal, Dom Paulo “jogou os costumes principescos de seus antecessores pela janela”. Como também “surpreendeu os religiosos que o serviram na Cúria paulista ao sentar-se com eles às refeições”. Estava inspirado “no que ouviu de seu pai ao contar-lhe que queria ser padre: [você] ‘sempre será filho de colono e de seu povo’. Por isso, “agindo como tal, investiu em trabalho comunitário, foi às periferias, voltou-se para os migrantes e espalhou Comunidades Eclesiais de Base pelos quatro cantos da cidade”. Ao mesmo tempo, “revitalizou o estudo doutrinário entre os religiosos e fez da evangelização um objetivo constante em todas as ações da Arquidiocese, até nos presídios” (DEL PICCHIA, 2018, p. 113). E lembra o fato doloroso quando “surpreendentemente, sofreu seu maior revés no período da restauração democrática do país. Numa iniciativa cujas motivações mais profundas são até hoje mal explicadas, o papa João Paulo II fracionou a arquidiocese em seções menores e, por consequência, com menos poderes. Antes que o fato fosse consumado, o cardeal se queixou pessoalmente ao Papa, que negou ter dado a ordem. Porém, “como Dom Paulo deixa claro em suas memórias, nada dessa magnitude acontece sem autorização expressa do pontífice” (DEL PICCHIA, 2018, p. 115). 

Camila Moraes, jornalista de El País, recolheu na ocasião da morte de Dom Paulo, um depoimento de João Pedro Stédile, coordenador nacional do Movimento Sem Terra. Segundo Stédile, sem Dom Paulo, “os movimentos sociais careceriam de guia”. Lembrou que “a maioria dos movimentos que hoje existe, MST, MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], Movimento dos Pequenos Agricultores, Comissão Pastoral da Terra, Cimi, nasceram orientados por sua sabedoria, que pregava: em tempos de ditadura, Deus só ajuda quem se organiza. Então fomos nos organizar” (MORAES, 2018, p. 122-123). Nesta mesma perspectiva, o jornalista Clovis Rossi lembrou que “a arquidiocese se tornou uma espécie de pátio dos milagres, pela quantidade de deserdados políticos que abrigou, como primeiro porto de arribação na fuga das ditaduras”. Nessa condição, “desfilaram por ela as histórias terríveis que só podem contar aqueles que são arrancados subitamente de suas casas, de suas famílias, de seus países, pelo único crime de pensarem de forma diferente dos donos de turno do poder” (ROSSI, 2018, p. 140). 

O confrade de Dom Paulo – Frei Clarêncio Neotti – afirma que é “impossível resumir o trabalho de Dom Paulo na Arquidiocese de São Paulo: seus programas pastorais e suas exigências, seu modo de pastorear uma cidade formigueiro, num tempo de ditadura militar e num tempo de novas balizas plantadas pelo Concílio Vaticano II, trabalhar harmoniosamente com dez bispos auxiliares é assunto para pesquisadores e muitas teses acadêmicas”. Frisa Frei Clarêncio que “bem disse o Papa Francisco ao saber da morte de Dom Paulo: “intrépido pastor, que no seu ministério eclesial se revelou autêntica testemunha do Evangelho no meio do seu povo, a todos apontando a senda da verdade, na caridade e do serviço à comunidade em permanente atenção pelos mais desfavorecidos”. E termina o Papa: “dou graças ao Senhor por ter dado à Igreja tão generoso pastor” (NEOTTI, 2018, p. 224). 

4. O apóstolo dos direitos humanos

Grande parte do ministério pastoral de Dom Paulo deu-se sob a ditadura militar, que se prolongou no país por mais de 20 anos. Países vizinhos, em especial Uruguai, Argentina e Chile passaram por situação ainda mais dura. Sua defesa corajosa de presos políticos, a liberdade de organização e o enfrentamento com as autoridades policiais e militares imprimiram uma marca importante na vida e na ação de Dom Paulo. Recorda Leonardo Boff, que “como era o tempo do regime militar, especialmente dura em São Paulo, logo ele assumiu a causa dos refugiados vindos do horror das ditaduras da Argentina, do Uruguai e do Chile”. Ao lado de sua lida pastoral nas comunidades eclesiais, “missão especial foi visitar as prisões, ver as chagas das torturas, denunciá-las com coragem e defender os direitos humanos violados barbaramente” (BOFF, p. 36). Para Frei Beto, “o livro - Brasil: Nunca mais - é uma radiografia irrespondível da ditadura, graças à iniciativa de dom Paulo e do pastor Jaime Wright, que promoveram uma devassa nos arquivos da Justiça Militar”. Um trabalho de envergadura, pois “analisaram o conteúdo de mais de um milhão de páginas de processos políticos”. Ressalta Frei Betto que apesar da “anistia ter evitado que torturadores paguem por seus crimes, graças a esses dois pastores, não se apagarão da memória brasileira o terror de Estado e o sofrimento de milhares de vítimas” (FREI BETTO, 2018, p. 32-33). 

Em meu artigo na ocasião, eu dizia que “deixou-nos a apóstolo dos direitos humanos, dos direitos sociais, dos sem direitos, das minorias invisibilizadas pelo mercado que prescinde dos que não produzem e nem consomem”. Que “partiu o defensor da liberdade de expressão, em pleno regime de exceção”. Liberdade também “para sua Rádio Nove de Julho, silenciada pela ditadura militar ou para seu jornal O São Paulo, costumeiramente editado com páginas em branco, registrando o protesto contra a censura do regime, que teimava em amordaçar a utopia dos libertos do medo que paralisa e acovarda (BRIGHENTI, 2018 p. 42). Frisei que “tal como dizia Santo Agostinho ao seu povo – “com vocês, sou cristão; para vocês, sou bispo” – Dom Paulo, com o povo brasileiro foi militante da causa dos excluídos e, com os cristãos, foi profeta de um mundo onde caibam todos, expressão na intra-história do Reino definitivo. (BRIGHENTI, 2018, p. 44). 

O jurista Fábio Konder Comparato foi um dos que colaboraram estreitamente com Dom Paulo neste campo. Ele lembra que Dom Paulo, “em 1972, criou a Comissão Justiça e Paz, da qual tive a honra de ser um dos membros fundadores”. Diz que “durante aqueles anos de regime de terror, nossa missão principal consistia em anotar pormenorizadamente todos os fatos relativos à prisão de opositores políticos ao regime. Periodicamente, tais fatos eram levados por Dom Paulo ao conhecimento do General Comandante do II Exército, de modo a desfazer a costumeira explicação oficial de que tais pessoas haviam desaparecido sem deixar vestígios, ou que haviam morrido em tiroteio com as forças policiais”. Registra que “documentos guardados pelo Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, mostram que Dom Paulo tomou a iniciativa de liderar um movimento internacional de denúncia dos crimes contra a humanidade, praticados pelos dirigentes militares em nosso país. Não foi, portanto, surpreendente que em pouco tempo Dom Paulo tenha se tornado o maior adversário do regime militar aqui instalado”. Conscientes disso, “os chefes militares buscaram fechar um cerco em torno dele, cerceando seus pronunciamentos através dos meios de comunicação social. Em represália, “fecharam a Rádio 9 de Julho e instalaram a censura na redação do jornal O São Paulo, ambos pertencentes à arquidiocese (COMPARATO, 2018, p. 86-87). 

Para João Décio Passos, “seu lema episcopal “de esperança em esperança” (ex spe in spem) norteou, de fato, sua vida como farol e como método”. Para ele, “nenhuma crise o fez recuar e perder o ânimo. Seu episcopado foi testado a fogo no crisol dos tempos de chumbo do Brasil. Sua voz denunciou os desmandos, as injustiças e as perseguições do regime ditatorial, agregou os dispersos e deu rumo aos que reconstruíram a democracia. Sofreu perseguições e calúnias, não somente da parte dos donos do poder e dos inimigos da liberdade e da justiça, mas também de pares de dentro da Igreja”. Assim, “de esperança em esperança caminhou cem cessar e jamais se furtou da verdade que devia ser dita”. Ressalta João Décio que “como todo profeta, não angariou consenso e unanimidade nem dentro e nem fora da Igreja. Viveu antes de tudo pela profecia, dispensou as honras e os privilégios que lhe pudessem render a posição de Cardeal, perante a sociedade e perante a Cúria romana” (PASSOS, 2018, p. 92-93). 

Pedro del Picchia registra que Dom Paulo “como padre, bispo e cardeal, lutou pela liberdade, ficou ao lado dos trabalhadores e dos oprimidos, combateu em defesa dos direitos humanos, mas foi, sobretudo, exatamente como gostaria de ser lembrado, um amigo do povo. Nesta condição, subiu morros, frequentou favelas, incursionou pelas periferias e enfrentou os generais da ditadura para dar proteção a perseguidos políticos —de religiosos a operários, de advogados a jornalistas. (DEL PICCHIA, 2018, p. 109-110). Lembra que “são dessa época seus grandes confrontos com os generais da ditadura. Enfrentou os sucessivos comandantes do II Exército (hoje Exército do Sudeste), sediado em São Paulo, e até presidentes da República”. Recorda que “num encontro com o presidente Emílio Garrastazu Médici, a conversa encerrou-se aos berros”. Frisa que “foi Médici quem decretou, depois, em 1973, a cassação da rádio Nove de Julho, tradicional emissora da Igreja em São Paulo”. Diante disso, Fernando Altemeyer diz que “mesmo assim dom Paulo falou pelas rádios comunitárias, pelos folhetos alternativos, pelo jornal arquidiocesano como protetor dos movimentos sociais e das comunidades eclesiais de base” (Altemeyer, p. 192). Do mesmo modo, desafiou as autoridades civis de São Paulo, de governadores afinados com a ditadura a secretários de Segurança e delegados de polícia, tentando preservar a vida e assegurar os direitos fundamentais dos presos políticos” (DEL PICCHIA, 2018, p. 113-114). 

Camila Moraes recolhe o depoimento do ex-presidente Lula na ocasião, que ressaltou a luta do cardeal contra a violência das várias ditaduras militares na América Latina: “nossa América perdeu a voz destemida que enfrentou ditaduras truculentas e o braço amigo que abrigou centenas de refugiados que eram perseguidos nos países vizinhos”. (MORAES, 2018, p. 124-125). 

5. O que aprendi com Dom Paulo

O pastoreio de Dom Paulo, se mudou a Igreja em sua Arquidiocese e também a sociedade, é porque também mudou a vida das pessoas. Em especial os que tiveram o privilégio de trabalhar com ele, de estar presentes em espaços de convivência, articulação, formação e celebrações. Dom Paulo influenciou muito o seu presbitério, apoiando-os nos processos pastorais em condições difíceis, assim como investindo em uma formação esmerada e pluralista dos mesmos, também em universidades europeias alternativas ao lugar comum das instituições acadêmicas de Roma. Pe. Antônio Manzatto, formado na Universidade de Louvain é um deles. Testemunha que “aprendi com ele como ser padre, como fazer a ligação entre o estudo acadêmico da teologia e a prática pastoral, como colocar a preocupação com os pobres, os amados de Deus, em primeiro lugar na atividade eclesial”. E continua: “aprendi o valor da Igreja local e a importância da formação do presbitério, e por isso não foi surpresa saber que, em seu testamento, ele ainda se lembra dos padres da Arquidiocese de São Paulo, para quem construiu a Casa São Paulo e a quem deixa seus bens pessoais. Aprendi a trabalhar em equipe, a confiar nas pessoas, a pensar uma igreja com efetivo protagonismo dos leigos, pois todos somos batizados”. E termina: “aprendi que o amor é compromisso, e que é preciso caminhar de esperança em esperança, com coragem sempre, mesmo quando os ventos se fazem contrários. Hoje sei que temos mais alguém que, junto de Deus, vela por nós” (MANZATTO, 2018, p. 48). 

Fábio Konder Comparato também dá um testemunho da influência de Dom Paulo, também em sua vida pessoal: “permito-me falar de minhas relações pessoais com Dom Paulo, pois ele transformou minha vida, operando aquilo que no linguajar cristão tradicional costuma ser denominado conversão”. Diz ele: “em 1972, eu atuava como professor de direito e advogado. A família de meus pais habitava uma casa em frente ao Palácio Pio XII, que era, à época, a residência episcopal. Surpreendentemente, lá fui chamado por D. Paulo, sendo convidado para integrar a Comissão Justiça de Paz da arquidiocese. Muito embaraçado, respondi que não me considerava um bom católico, no sentido de cumprir religiosamente os deveres eclesiásticos, para aceitar tal convite. Dom Paulo olhou- -me firme nos olhos para dizer serenamente: “Isso não tem a menor importância; quero apenas saber se o Sr. está disposto a atuar em defesa das vítimas do regime militar em vigor”. Graças a essa lição, passei a compreender que a essência da verdadeira vida cristã não está no cumprimento dos rituais religiosos, mas em servir o próximo, sem nada procurar ou esperar para si próprio. Ou, como ensina a sabedoria budista, nas palavras do Dalai Lama, “quanto mais nos importamos com a felicidade de nossos semelhantes, mais felizes nos sentimos”. Não creio que tenha cumprido fielmente essa lição, mas de qualquer modo mudei o rumo de minha vida” (COMPARATO, 2018 p. 88-89). 

O jornalista Clóvis Rossi diz que “desde moleque, imaginava um dia escrever um texto com o título – Dom Paulo Evaristo Arns, um tipo inesquecível. Cumpro hoje esse sonho, ao escrever sobre ele, o único personagem público realmente inesquecível, das centenas que conheci em mais de meio século de jornalismo. Acompanhei-o, à meia distância, nos diferentes momentos de sua luta contra a ditadura, mas tornei-me fã incondicional quando me pus a trabalhar sob o guarda-chuva da Arquidiocese de São Paulo na defesa dos perseguidos políticos do Cone Sul - uruguaios, argentinos, chilenos, paraguaios, bolivianos” (ROSSI, 2018, p. 139-140). 

Frei Clarêncio Neotti recolheu um depoimento de Fernando Altemeyer, que dá conta do impacto de Dom Paulo na vida das pessoas: “seu testemunho pessoal motiva novos testemunhos. Dom Paulo não deixa ninguém sossegado. O Evangelho que o incomoda, brilha e borbulha, nas suas palavras e em seu olhar perspicaz. Este Pastor sabe que somos filhos da memória perigosa da cruz. Este frei franciscano planta em cada coração a grandeza do amor e a audácia do visionário. Crê na esperança, pois bebe cada manhã de seu poço. Ele sabe, porque experimenta na fonte inesgotável do amor, que cada um de nós é outro Cristo para seus irmãos. Sabe que quanto mais água se tira do poço divino mais pura e cristalina a fonte se revela” (NEOTTI, 2018, p. 298). 

Finalmente, o próprio Frei Clarêncio, aluno e confrade de Dom Paulo, traz à memória fatos marcantes da vida de Dom Paulo que o impactaram, tal como também acontece na vida de Plínio Arruda Sampaio. Recorda que “na memorável Missa da Gratidão, de maio de 1998, em que Dom Paulo se despediu de seu povo que abarrotou a Catedral, ecoou a voz do leigo e grande líder católico Dr. Plínio de Arruda Sampaio, em emocionante discurso ao Pastor que deixava a cátedra. Ele listou a gratidão dos bispos, dos padres que Dom Paulo comandou e formou, dos religiosos e religiosas, das pessoas consagradas, do povo da periferia, do trabalhador, da dona de casa, dos jovens, dos aposentados, das pessoas humildes das Cebs, dos migrantes, dos sem casa, das crianças e adolescentes, dos injustiçados, dos presos políticos e dos comuns, dos intelectuais que ficaram sem cátedra, e dos teólogos que tiveram a coragem de explorar as fronteiras do conhecimento de Deus, chegando a sofrer incompreensões no interior da própria Igreja. Destacou que a Arquidiocese de São Paulo recebeu do Cardeal Arns tudo o que se pode esperar de um bispo: direção, exemplo, compreensão, coragem, dando graças ao Senhor por ele ter sido a porta que não ficou fechada, a voz que não ficou calada e o gesto que renovou a esperança”. E termina Frei Clarêncio: “a respeito desta lista tão extensa, o Cardeal Lorscheider escreveu: ‘O que nele mais impressiona é a sua simplicidade, modéstia, calma, serenidade, otimismo, esperança, lucidez, orientado por uma fé profunda e um amor pastoral imenso pelos que a Providência lhe confiou em sua qualidade de Pastor’” (NEOTTI, 2018, p 298-299). 

Concluindo depoimentos    

Dom Paulo Evaristo Arns pertence a uma geração de bispos, “filhos” da renovação do Vaticano II e “pais” da tradição libertadora latino-americana, considerados nossos “Padres da Igreja” na América Latina. Eles assumiram com convicção e determinação as intuições básicas e eixos fundamentais do Concílio, no contexto de um subcontinente marcado pela exclusão e a injustiça institucionalizada, inaugurando um novo modo de ser Igreja, que tem nas CEBs “a célula inicial da estruturação eclesial” (Med 6,1). Inauguraram também um novo perfil de santidade, alicerçado no “Pacto das Catacumbas” e na memória dos mártires da tradição eclesial libertadora. Ricardo Antoncich designa-os - “mártires das causas sociais” - que têm em Dom Romero o primeiro deles, assim reconhecido e canonizado. Alguns foram mártires na morte, mas todos os mártires em vida, constituindo a herança mais preciosa que a Igreja na América Latina oferece ao mundo inteiro. 

Dom Paulo integra a lista de nossos “santos padres”, que transcendem a seu tempo e, certamente, continuarão inspirando os cristãos e os cidadãos comprometidos com um mundo inclusivo de todos, por séculos. Só em nosso país, junto com nosso “cardeal do povo”, como não mencionar bispos da grandeza e santidade de Dom Helder Câmara, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Antônio Fragoso, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Waldir Calheiros, Dom Tomás Balduíno, Dom José Gomes, Dom José Maria Pires, Dom Adriano Hipólito, dentre tantos outros. Na América Latina, esses nossos “santos padres” são faróis que apontam para a renovação do Vaticano II e a tradição eclesial libertadora. Entre eles, os bispos mártires - Mons. Oscar Romero (El Salvador), já mencionado, e também Mons. Enrique Angelelli (Argentina) y Mons. Juan Girardi (Guatemala). E bispos cujo testemunho transcende suas Igrejas Locais como Mons. Manoel Larraín (Chile), Mons. Eduardo Pironio (Argentina), Mons. Raúl Silva Henríquez (Chile), Mons. Luís Bambarén (Perú), Mons. Leonidas Proaño (Equador), Mons. Marcos McGrath (Panamá), Mons. Samuel Ruiz (México), Mons. Mendes Arceo (México), etc. Eles se inscrevem na tradição dos grandes bispos profetas do período colonial como Bartolomé de las Casas e Toribio de Mongrovejo. 

Na América Latina, nas décadas de 1960 e 1970, a Igreja teve a ventura de ver implementado um perfil de bispos, alinhados ao Vaticano II e à tradição eclesial libertadora, quase todos oriundos de engajamento na Ação Católica e em processos pastorais junto aos setores mais desfavorecidos da sociedade. Sobretudo os pontificados de João XXIII e de Paulo VI, impulsionaram no continente uma Igreja samaritana e profética, inserida no mundo em uma perspectiva de diálogo e serviço. Nomeava-se bispos, antes de tudo pastores, mas com outra característica que explica sua transcendência e referência para além de seu tempo: eram geralmente também teólogos, formados nas melhores universidades da Europa e do continente. Por isso, foram pastores de visão de futuro, que tinham uma leitura aguda da realidade de seu tempo, que sabiam falar e escrever, ouvir e tomar posição, contribuindo para a formação de uma opinião pública na Igreja e na sociedade em favor da causa dos pobres. Os presbíteros e o laicato formado neste tempo caminhavam na mesma perspectiva. A vida religiosa, em especial a vida consagrada feminina, destacava-se pela sua inserção nos meios populares. E tudo isso, apesar da oposição dos segmentos mais abastados da sociedade e inclusive da repressão por parte dos regimes de exceção, implantados pelas ditaduras militares que imperaram em nossos países por anos e anos. Nas décadas seguintes, com o final das ditaduras, quando se esperava que a Igreja pudesse avançar com liberdade de pensamento e de ação, em especial durante os dois pontificados que precederam o atual, entrou-se em um gradativo processo de involução eclesial em relação à renovação do Vaticano II, em especial à tradição libertadora. Décadas em que J. I. González Faus qualifica de “noite escura” e que redundaram em um novo perfil de bispos e de presbíteros, assim como de leigos e leigas, em uma postura apologética frente ao mundo e nostálgicos de um passado sem retorno, expressões típicas de um projeto de Igreja alinhado à neocristandade. 

Com a Conferência de Aparecida e o pontificado reformador de Francisco, há o resgate da renovação do Vaticano II e da tradição eclesial libertadora, ainda que não se perceba reflexos diretos nas orientações do episcopado, no perfil dos novos bispos e muito menos na linha de formação e no perfil dos novos presbíteros. Entretanto, processos esperançadores estão em curso na Igreja hoje. Na América Latina tivemos o Sínodo da Amazônia e a criação da CEAMA, que está elaborando um plano de implementação de suas decisões, assim como a realização Primeira Assembleia Eclesial, que se propõe retomar Aparecida. Em âmbito universal, está em curso o Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade da Igreja, por primeira vez realizado a partir das Igrejas Locais. Com ele, oxalá se redescubra a preciosa herança de bispos da envergadura de Dom Paulo Evaristo Arns e que fizeram do Vaticano II, no dizer de João Paulo II, um advento para o terceiro milênio. 

 

Referências

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Neotti, Frei Clarêncio. “Dom Paulo Evaristo Arns, ofm. *Forquilhinha, SC, 14.09.1921 +São Paulo, SP, 14.12.2016”. In: Dom Paulo. Testemunhos e memórias sobre o Cardeal dos Pobres. São Paulo: Ed. Paulinas, 2018, p. 199-306. 

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Sândalo Bernardino, Dom Angélico. “Paulo Evaristo, irmão e amigo!”. In: Dom Paulo. Testemunhos e memórias sobre o Cardeal dos Pobres. São Paulo: Ed. Paulinas, 2018, p. 25-28. 

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