Por uma nova hermenêutica da eucaristia1  
For a new hermeneutics of the Eucharist    

Isidoro Mazzarolo* 
Jaime Lorandi**
*Doutor em Ciências Bíblicas e professor do PPG da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato:jaime.lorandi@edu.pucrs.br 
** Mestrando em teologia bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: 
jaime@plasticositalia.com.br 

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Resumo:

Este artigo apresenta um percurso de uma nova reflexão em torno da Eucaristia, conforme o pensamento de Ghislain Lafont. Trata-se de uma síntese que tematiza a exigência de uma suposta ‘nova’ teologia eucarística. O autor identifica o espaço para uma nova teologia eucarística, resgatando o Concílio Vaticano II e suas três constituições, em uma ‘desconstrução’ da teologia clássica, para libertá-la de uma leitura muito marcada por uma interpretação do sacramento do altar como ‘remédio para o pecado’. Uma ‘Eucaristia no Paraíso’ torna-se a provocação e desafio teológico para uma ressistematização do saber clássico sobre a comunhão, sobre o sacramento e sobre o sacrifício. Isso não deve ser perdido, mas só pode ser conservado às custas de um profundo e iluminador repensamento. Ghislain Lafont também utilizou o texto de Massimo Recalcati sobre o sacrifício e recuperou deste a definição de “sacrifício simbólico” como noção capaz de esclarecer a verdade da comunhão eucarística, outra passagem na “tradução da tradição”. Finalmente ele retoma a intuição de uma “Eucaristia no Paraíso” e a interpreta como “chave hermenêutica” de toda a história da salvação, até a plenitude de Cristo e a missão da Igreja. Antes de abordar o estudo da proposta de G. Lafont, este artigo traz o significado semântico da eucaristia e também das exigências eucarísticas de Jesus com seus discípulos como a Nova Aliança e o seu Memorial. A partir de então realiza-se uma análise da “desconstrução” de Lafont e de seus conceitos de Eucaristia como sacrifício, sacramento, comunhão e louvor espiritual. A partir do conceito de que a Eucaristia é uma aliança de amor e comunhão, conclui-se com uma análise crítica sobre esta nova proposta hermenêutica de Ghislain Lafont. 

Palavras chave: Teologia; Eucaristia; Paraíso; Sacrifício; Sacramento; Comunhão  

Abstract

This article presets a new reflection around the Eucharist, according to the thought of Ghislain Lafont. It is a synthesis that precisely thematizes precisely the requirement of a ‘new’ Eucharistic theology. The author identifies the space for a new Eucharistic theology, rescuing the Second Vatican Council and its three constitutions, in a ‘deconstruction’ of classical theology, to free it from a reading very marked by an interpretation of the sacrament of the altar as ‘remedy for sin’. A ‘Eucharist in Paradise’ becomes the provocation and theological challenge for a resystematization of classical knowledge about communion, the sacrament and sacrifice. This should not be lost but can only be preserved at the expense of a deep and enlightening rethought. Ghislain Lafont also used Massimo Recalcati’s text on sacrifice and recovered from it the definition of “symbolic sacrifice” as a notion capable of clarifying the truth of Eucharistic communion, another passage in the “translation of tradition”. Finally he resumes the intuition of a “Eucharist in Paradise” and interprets it as the “hermeneutic key” of the whole history of salvation, to the fullness of Christ and the mission of the Church. Before addressing the study of G. Lafont’s proposal, this article brings the semantic meaning of the Eucharist and also the Eucharistic demands of Jesus with his disciples as the New Covenant and its Memorial. From then on an analysis of Lafont’s “deconstruction” and of his concepts of the Eucharist such as sacrifice, sacrament, communion and spiritual praise are carried out. Based on the concept that the Eucharist is an alliance of love and communion, it concludes with a critical analysis of this new hermeneutic proposal by Ghislain Lafont. 

Keywords: Theology; Eucharist; Paradise; Sacrifice; Sacramento; Communion 

Introdução 

Ghislain Lafont, nascido em 1928, foi teólogo francês, monge beneditino da abadia de Pierre-Qui-Vire e professor emérito de teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana e do Pontifício Ateneu de Santo Anselmo em Roma. 

Em suas reflexões, o monge beneditino ‘percebe a exigência de uma ‘nova’ teologia eucarística. Desafio este que o autor desenvolve através da correlação entre ‘três ordens’ – evangélica, litúrgica e política – enquadrando-as na he-rança do Concílio Vaticano II e nas suas três constituições – Lumen Gentium, Sacrosanctum Concilium e Gaudium et Spes, à luz da Dei Verbum”. 2

Segundo Lafont, a eucaristia exige uma nova teologia porque a verdade da Revelação está sempre em antecipação em relação a nós. Há e sempre haverá experiências novas, conceitos novos, organizações inéditas de um conteúdo de fé que nenhum discurso pode esgotar.

A nova teologia eucarística poderia situar-se dentro de uma reaproximação inédita, nova, entre os três aspectos da comunidade humana: 

1-    comunidade evangélica - ordem da Caridade, animada pelo Espírito Santo;

2-    comunidade litúrgica - ordem do Mistério, recebido de Cristo;

3-    comunidade política - ordem da Liberdade, imagem de Deus criador.

As comunidades não são espaços estanques, podendo ser vistas como três momentos integrados da mesma comunidade de vida, de fé e de celebração. São comunidades que se correspondem. Como as circunstâncias da vida mudam constantemente e de formas diferentes, surge sempre, de novo, o problema de sua articulação, cada um tendo sua própria realidade, que não é nem idêntica aos outros, nem separada dos outros, enquanto a gestão de sua comunicação deve ser sempre de novo pensada e posta em prática. Nessa perspectiva, pode-se buscar uma “nova teologia eucarística”.

Para entender esta busca, G. Lafont apresenta a necessidade de uma provocação para uma ressistematização do saber clássico sobre a comunhão, sobre o sacramento e sobre o sacrifício. Tal saber não deve ser perdido, mas só pode ser conservado às custas de um profundo e iluminador repensamento. “Este novo pensar inicia pela compreensão da proposta de uma liturgia “eucarística”, sacramento e sacrifício, no mundo do Paraíso do Gênesis.”3 Isto parece bastante estranho à tradição teológica, pois nela a sacramentalidade parece ligada, em geral, à realidade do mundo pecador e redimido, pelo fato de que ela significa e realiza a redenção cumprida na dor por Cristo. Porém, neste repensar, pode-se compreender que todo alimento tomado pelo homem e pela mulher no paraíso pode ser chamado de “eucaristia”, ou seja, reconhecimento e ação de graças a Deus que dá e que veta, louvor da identidade divina e “sacrifício”, ou seja, aceitação e oferta de um limite posto pela Palavra de Deus. A obediência de não comer do fruto vetado é o sacrifício no Paraíso. A tentação era necessária para permitir que o homem e a mulher fizessem do limite da sua comida um “sacrifício espiritual”. Já o alimento tomado, enquanto nutre realmente, também expressa um reconhecimento no sentido profundo do termo “sacramento” para com Deus e para com sua palavra.

A tradição teológica se fundamenta na onipotência da palavra do Deus infinito; onde ela é absolutamente performativa: “ela diz e é feito”. Mas, para Ghislain, no relato do Gênesis, não parece ser assim: a palavra dirigida, mesmo sendo divina, não é onipotente de modo absoluto. Mesmo que tome a forma de um mandamento formal, ela precisa ser ouvida e compreendida por quem ouve, que é quem decide sobre sua própria resposta. Deus disse: Não comerás! E a mulher e homem comeram.

A decisão diante da tentação implica, então, aquilo que Ghislain chamou antes de “sacramento e sacrifício”: Comer ou não comer significa e realiza a relação entre as duas identidades, divina e humana; a verdade das duas identidades não é descoberta senão mediante a aceitação de um limite, portanto, de uma negação. E o resultado desse sacramento é a resposta à pergunta: Quem é Deus? Quem é o homem? E o estabelecimento da verdadeira relação entre homem e Deus (ordem e obediência).

Ghislain Lafont continua sua revisão da teologia eucarística,4 “partindo do texto de M. Recalcati5 sobre o sacrifício e recuperando deste a definição de “sacrifício simbólico” como noção capaz de esclarecer a verdade da comunhão eucarística.” Para o teólogo francês, “o sentido do sacrifício simbólico é aquele constitutivo da liberdade, da comunidade, da corporeidade e cujo evento ocorre mediante a linguagem.” Trata-se do “sacrifício de uma parcela de satisfação pul-sional, do preço que é preciso pagar para acessar a dimensão humana da vida. Para que seu corpo possa assumir a forma humana da vida, o homem é obrigado a sacrificar uma parte de seu gozo; sem essa perda preliminar e irreversível (sa-crifício de alguns gozos), não há possibilidade de constituição do sujeito (homem integral, livre e obediente). “Antropologicamente, entende-se que o ser humano apareceu quando teve a capacidade de fazer o gesto de um sacrifício simbólico”.

Na teologia clássica, segundo Lafont, vê-se o choque entre duas perfeições desiguais: a de Deus e a do homem. Assim a Eucaristia será o meio para reapresentar a Deus, dia após dia, o sacrifício expiatório. No sacrifício simbólico, encontra-se um Deus que dá e que fala, determinado a continuar o intercâmbio até um dom último e recíproco: a comunhão de todos os seres humanos no Cristo mediante o Espírito. Desde o instante da queda, esse Deus nunca renúncia, mas se empenha em uma longa história de aliança, em uma “educação do gênero humano”, onde o combate entre graça e pecado vai conhecer etapas, de vez em quando dolorosas ou felizes, até a vinda d’Aquele que devia vir. Após a vinda desse Messias esperado, cujo sacrifício simbólico tinha se inscrito na história da rejeição, a salvação continua mediante o jogo contínuo do sacrifício simbólico cumprido e tornado perfeito, em sintonia com a liberdade dos seres humanos, enquanto não se chegar ao “fim”, isto é, ao Símbolo cumprido, quando Deus será tudo em todos. Esse é, aos nossos olhos cristãos, o lugar da Eucaristia, como memória, presença e passagem. 

1. O sacrifício simbólico

As duas reflexões anteriores de G. Lafont tentaram evidenciar o lado essencial do sacrifício: ele é um agente de humanização, pois permite um ato de reconhecimento não só do Deus que é e que fala, mas também de si e dos outros. Ele estrutura uma sociedade de sujeitos, certamente desiguais, porque o Deus revelado é reconhecido e aceito por eles como Deus na medida em que o ser humano encontra a própria identidade e seu lugar na sua autenticidade e limitação. Mas a desigualdade aqui não impede, mas sim permite a comunhão verdadeira entre três temas: Deus, o eu e os outros. Trata-se, portanto, de um sacrifício simbólico, que também pode ser chamado de sacramental.

O livro do Gênesis fala do “início”, da constituição primitiva da humanidade. Lafont6 “convida a pensar por um instante o jogo desse início e imaginar sua sequência. O que teria acontecido naquele jardim em que o homem e a mulher teriam resistido à tentação e vivido pacificamente após a renúncia da serpente”? 

O autor responde que, na realidade, após a superação da tentação, o homem e a mulher não são mais os mesmos: eram inocentes e como tais permanecem, mas não são mais ingênuos, nem sobre Deus que, como benfeitor, fez-se interlocutor, nem sobre si mesmos, porque sua nudez natural tornou-se nudez consciente. Embora não tenham o conhecimento do bem e do mal, compreendem, no entanto, que estão sob a palavra de Deus: É precisamente isso que agora os define. Eles estão à escuta: Deus, que havia falado das árvores, daquelas doadas com largueza e daquela que ele havia reservado para si, talvez dirá outras coisas? Como manifestará novamente o dom que ele quer fazer a eles, como solicitará novamente sua liberdade? E será preciso esperar uma nova intervenção da serpente? Em termos de sacrifício, o que a palavra de Deus fará objeto de dom e o que fará objeto de proibição? Como o sacrifício simbólico entrará em jogo ao longo do tempo? Como chegará à sua plenitude?

Assim, explica o monge francês, parece legítimo imaginar que o Éden, como lugar eucarístico, também conhece o tempo de uma história sagrada, que pode colocar a humanidade, pouco a pouco, na órbita de uma comunhão perfeita. Em última análise, Deus não deixaria de falar antes de ter dito tudo, e esse “tudo”, como sabemos, é seu Filho.

O início da Carta aos Hebreus poderia ter dito sobre as pessoas inocentes aquilo que diz sobre as pessoas pecadoras: 

Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância; sustenta o universo com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se nas alturas à direita da Majestade (Hb 1,1-3).

Se é assim, continua o beneditino, o termo final da economia iniciada no Éden deveria ser um tríplice e perfeito reconhecimento de Deus como Pai, de si como filho no Filho e dos outros como irmãos e irmãs, em uma comunhão que tende ao infinito. E o resultado dessa economia teria sido o mesmo que no início: um amor suficiente para escutar a palavra em um movimento de acolhida da novidade e de consentimento com a perda de algumas aquisições, até que Deus fosse tudo em todos e que todos fossem tais em si mesmos. Em segundo plano, o fiel descobre a configuração da dinâmica divina em que cada pessoa está voltada ao outro, a partir do outro e com o outro, em uma circularidade infinita.

Porém o pecado aconteceu, e foi fonte de divisão, de isolamento, de morte, de ódio, de destruição e não cessa de se multiplicar, inscrevendo-se na terra e nas sociedades. Com efeito, o que chama a atenção na leitura do Gênesis é a imediaticidade do perdão. O homem não morre imediatamente, não desaparece. Deus continua falando com ele, mesmo que sob a forma de um juramento. O homem e a mulher geram e, se o pecado continua, Deus reage renovando sua aliança. Se o episódio dramático de Caim e Abel manifesta o fracasso da fraternidade, chega um terceiro filho, Set, início de uma nova estirpe. Se esta se esgotar, tudo recomeçará após o dilúvio com Noé.

Uma pedagogia construtiva se desenvolve dentro de uma multiplicação do pecado. Este não é negado, sua obstinação é reconhecida, os remédios imaginários são denunciados, mas uma reeducação moral e litúrgica é elaborada mediante uma Lei adaptada à fraqueza dos seres humanos; a revelação continua, mediante a Profecia. Sempre é renovada uma proposta da Palavra, por isso o convite ao sacrifício simbólico é sempre atual e permanente: este é o único lugar possível de encontro e de reconciliação. Tal convite, talvez, seja a chave hermenêutica fundamental de toda a Bíblia. Então, vem Jesus.

2. Os sacrifícios espirituais

A partir de então, Gislain Lafont descreve os sacrifícios espirituais do Filho e da Igreja.7 “No sacrifício espiritual do Filho, Jesus, que é inocente, é assimilado aos seres humanos em busca de reconciliação com Deus. É o sentido do batismo em que ele reconhece como todos os outros uma vocação divina. Ele é declarado Filho predileto e é investido da missão de salvação: estabelecer o Reino universal graças à conversão de Israel. Como Adão, na sua plenitude original, ele é submetido à prova. Escuta palavras que não vêm de Deus e que o desviariam do serviço que deve fazer, substituindo-o por um poder imaginário. Ele opõe a elas a palavra que veio de Deus. Assim, ele se manifesta em uma situação de sacrifício simbólico. Ele escuta e continuará escutando, modelando sua conduta sob a inspiração do Espírito”.

Ao redor de Jesus, Lafont, identifica quatro grupos: 

1 - As multidões, ávidas por uma salvação imediata para cada um e para todo o povo;

2 - Os discípulos chamados, que se revelam de boa vontade, mas de fraca inteligência sobre a pessoa de Jesus; 

3 - Os fariseus, talvez os mais próximos de Jesus em nível de conhecimento e de interpretação da Lei, no entanto, pouco dispostos a se deixarem convencer e que a hostilidade dos outros leva ao ódio; 

4 - Algum indivíduo tomado, em geral, entre os pobres capazes de compreendê-lo: o paralítico, o cego de nascença, outro cego (o mesmo?) Bartimeu, a idosa no templo, o centurião aos pés da cruz, Maria, mãe de Jesus.

Jesus acaba morrendo nas mãos daqueles que deveriam acolhê-lo, mas que permaneceram em seu imaginário religioso. Até o fim, ele permanece à escuta e, quando Deus permanece em silêncio, ele não abandona a invocação do Pai. A Cruz, assim, é a ação simbólica por excelência.

A ressurreição, sem dúvida, é a resposta do Pai: o “Tu és meu Filho”, pronunciada no batismo e na transfiguração, é somente na ressurreição que chega à sua plenitude. Para Gislain Lafont, no sacrifício espiritual da Igreja, seguindo o exemplo de São Paulo, no capítulo 12 da Carta aos Romanos, ela poderia ser definida como “sacrifício espiritual”, em uma espécie de atmosfera de humildade, de caridade recíproca, de gestão comedida do saber. É isso que a torna agradável a Deus.

A constituição Gaudium et Spes dá um retrato desse sacrifício espiritual no mundo contemporâneo. Em certo sentido, a Laudato Si é uma releitura parcial e atualizada dela no primeiro quarto do século XXI. “Nela, descreve-se uma situação da qual se propõe uma análise, tenta-se um discernimento e define-se uma ação”. 

A partir daí, vemos melhor em que consiste o sacrifício espiritual da Igreja. Trata-se, acima de tudo, de “escutar” a mensagem de salvação, adquirindo uma familiaridade com a Palavra, de acordo com o Salmo 119,105 (118,105): “Tua palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho”. Ela revela sem cessar o Cristo à Igreja.

Este sacrifício da Igreja é, sem dúvida, o lugar da oração comum e pessoal. Essa escuta implica também a vigilância de um espírito profético, pois, enquanto o fim não chega, há espaço para o aprofundamento criativo de que fala o texto citado pela Dei Verbum, 8: a escuta requer um discernimento espiritual.

Em segundo lugar, esse sacrifício consiste em viver de acordo com a norma evangélica da caridade, como viu bem o fariseu honesto que recolhia a última palavra profética de Jesus (Mc 12,28-34). No seu famoso texto sobre o sacrifí-cio, Santo Agostinho8 “compreendeu e expressou bem tudo isso. E correlacionou esse sacrifício espiritual com o sacrifício litúrgico da Igreja”.

O que é, então, a Eucaristia nessa perspectiva? Para Lafont, “ela poderia ser descrita assim: Na oração dirigida a Deus, a Eucaristia é celebração memorial 

Nas suas reflexões, Gislain Lafont, o monge francês, entende que existe espaço para uma nova teologia eucarística. Explica que há e sempre haverá experiências novas, conceitos novos, organizações inéditas de um conteúdo de fé que nenhum discurso pode esgotar. Para entender esta busca, é necessária uma provocação para uma ressistematização do saber clássico sobre a comunhão, sobre o sacramento e sobre o sacrifício. O termo final da economia iniciada no Éden deveria ser um tríplice e perfeito reconhecimento de Deus como Pai, de si como filho no Filho e dos outros como irmãos e irmãs, em uma comunhão que tende ao infinito.

Para Lafont, também, é absolutamente necessário conservar, em uma teologia eucarística, a reciprocidade constante entre a comunidade evangélica, que se empenha no sacrifício espiritual e a comunidade litúrgica, que faz memória do Cristo. Uma não existe sem a outra, em uma relação de reciprocidade, e aquilo que constitui o vínculo, em todo o caso, é a realidade do sacrifício simbólico, rejeitado por Adão e tornado perfeito por Jesus.

3. Uma compreensão semântica

Antes de entrar no estudo da proposta de Lafont, precisamos entender o significado semântico da eucaristia. É mister distinguir eucháris de eulógos. Eucaristia (do grego εὐχαριστία, “ação de graças”) é a renovação do sacrifício de Jesus Cristo no Calvário (Jo 6,53-58; 1Cor 11, 23-32).

É a ação de graças a Deus. “As palavras eucharistein (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24) e eulogein (Mt 26, 26; Mc 14, 22) lembram as bênçãos judaicas que proclamam – sobretudo durante a refeição – as obras de Deus: a criação, a redenção e a santificação” (CIC, 1999, n. 1328).

“Quer o verbo eulogien (louvar/bendizer), quer o verbo eucharistein (dar graças) são compostos com um advérbio eu (bem/bom), sinônimo de kalós (belo/bonito)’ (BLASS/DEBRUNNER, 1984, § 102,3). “A eulogia e a eucaristia são dois substantivos associados a um advérbio de modo: eu + logos (= boa palavra); eu + caris (graça). A eulogia (louvor) está no campo semântico da palavra e a eucaristia está no campo semântico da ação” (MAZZAROLO, 2006, 145).

A Eucaristia é um sacrifício de louvor em ação de graças pela obra da criação. “No sacrifício eucarístico, toda a criação, amada por Deus, é apresentada ao Pai, através da morte e ressurreição de Cristo. Por Cristo, a Igreja pode oferecer sacrifício de louvor em ação de graças por tudo o que Deus fez de bom, belo e justo, na criação e na humanidade” (CIC, 1999, § 1359).

4. A eucaristia de Jesus com seus discípulos

Jesus faz uma celebração de ação de graças com a sua vida e missão. Tendo amado os seus, amou-os até o fim (Jo 13,2). Depois de lhe lavar os pés, perguntou-lhes: Entendestes o que vos fiz? ... Pois bem, dei-vos o exemplo, para que, assim como eu vos fiz, também vós o façais (Jo 13,12.15). 

A Eucaristia é a ceia do Senhor, que comeu e bebeu com os discípulos na véspera da sua paixão e da antecipação do banquete nupcial do Cordeiro na Jerusalém celeste. É a fração do Pão e do Vinho, porque este rito, próprio da refeição dos judeus, foi utilizado por Jesus quando abençoava e distribuía o pão e o vinho como chefe de família, sobretudo aquando da última ceia. Será por este gesto que os discípulos O reconhecerão depois da sua ressurreição e é com esta expressão que os primeiros cristãos designarão as suas assembleias eucarísticas.

Toda a tradição cristã, na era apostólica, celebrava, no primeiro dia da semana, o memorial do Senhor, isto é, a missão, paixão e ressurreição. No relato de Lucas no livro dos Atos 2,42-47 e 4,32-35, a fração do pão e a oração eram características marcantes. Na explicitação de J. Jeremias, “a celebração tinha quatro partes distintas: a didachê, como ensino; a koinônia como uma coleta de ajuda às necessidades ou como agápê fraterno; as orações iniciais e conclusivas; e a fração do pão” (ALDAZÁBAL, 2003, p. 23).

5. As exigências da Eucaristia de Jesus

Comer e beber foram, ao longo de toda missão de Jesus, um jeito de romper protocolos, preconceitos e barreiras criadas pelas estruturas. “À mesa, Jesus aproxima a todos (Lc 5,29-32; 7,36-50; 19,1-10), (MAZZAROLO, 2006, p, 128).

No centro da celebração da Eucaristia, temos o pão e o vinho que, pelas palavras de Cristo e pela invocação do Espírito Santo, tornando-se o corpo e o sangue do mesmo Cristo. Fiel à ordem do Senhor, a Igreja continua a fazer, em memória d’Ele e até à sua vinda gloriosa, o que Ele fez na véspera da sua paixão: “Tomou o pão..., Tomou o cálice com vinho...”. Tornando-se misteriosamente o corpo e o sangue de Cristo, os sinais do pão e do vinho continuam a significar também a bondade da criação. “Por isso, no ofertório, apresentação das oferendas, nós damos graças ao Criador pelo pão e pelo vinho, fruto “do trabalho do homem”, mas, primeiramente, “fruto da terra e da videira”, dons do Criador” (CIC, 1999, § 1.333).

5.1 Nova Aliança

Lucas (22,20) anuncia: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue”. De modo global, podemos considerar os dois Testamentos (Antigo e Novo) como duas alianças. Entre os dois, os modelos podem ser considerados como semelhantes, mas há uma superação do Novo em relação ao Antigo. Para falar comparativamente sobre as duas Alianças, é preciso considerá-las na sua globalidade, sem querer justificar duas diferentes alianças ao longo da história do povo de Israel e do povo cristão. “Essas duas etapas da salvação (Antigo e Novo Testamento) podem ser vistas na perspectiva de sua continuidade e de suas rupturas. O Antigo Testamento tem uma “antiga” aliança que, no contexto hermenêutico do Novo Testamento, significa uma realidade a ser superada, e esta é, ao mesmo tempo, o gérmen de uma nova (Dt 30,1-10; Jr 31,31-33) que nasce com Jesus Cristo” (MAZZAROLO, 2006, p. 34).

5.2 Memorial

 “Lucas (22,19) também anuncia: “Fazei isso em minha memória”. Ao ordenar que repetissem os seus gestos e palavras, “até que Ele venha” (1 Cor 11, 26), Jesus não pede somente que se lembrem d’Ele e do que Ele fez, mas tem em vista a celebração litúrgica, pelos apóstolos e seus sucessores, do memorial de Cristo, da sua vida, morte, ressurreição e da sua intercessão junto do Pai” (CIC, 1999, § 1.341). Nesse memorial de Jesus inclui-se a Nova Aliança, a Nova Lei, o sacrifício, o louvor, o dar graças, a conversão, a partilha, a comunhão, o mistério da fé, a parusia na escatologia.

Lafont acredita que os alicerces da eucaristia, que ele denomina de clássica, estejam no pecado, na desobediência dos seres humanos no Éden Aqui, porém, há um engano muito acentuado em relação a essa compreensão. Diante dessa compreensão, o autor fala em desconstruir um possível conceito tradicional, para propor uma eucaristia da palavra, a partir da criação: ipse dixit et facta sunt (isso falou e foi feito). Lafon segue seu raciocínio, afirmando:

Se tudo o que nos é relatado no Gênesis é justo, nota-se a necessidade de colocar uma “nova teologia eucarística”, governada, não da economia da reparação do pecado, mas da consideração do simbolismo constitutivo do Mistério de Deus, na relação com o homem (ao interno do qual, sem dúvida, deverá inserir-se o mistério da Redenção). Poder-se-ia imaginar que a impostação a seguir deva ser, ao mesmo tempo, uma espécie de “desconstrução” da teologia clássica e uma “construção” da nova teologia. Por desconstrução não entendo destruição, mas análise dos elementos, explicação da sua articulação, identificação dos benefícios e denúncia das insuficiências. Poderia nascer pouco a pouco, uma reconstrução sobre uma nova base do simbolismo originário, mas que conserve, colocando de modo diverso, os elementos da teologia clássica.9

A preocupação de Lafont com o simbolismo originário é justa, pois nos primórdios cristãos, a relação entre ato de culto e práxis quotidiana pressupunha uma condição ética mínima para participar do ato sagrado (Mt 5,21-26). Havendo qualquer conflito nas relações interpessoais, a legitimidade de participar do ato de culto estava comprometida. A koinônia era uma condição sine qua non para legitimar a participação nas reuniões do memorial do Senhor, nos primeiros dias da semana (At 2,42-47; 4,32-35). 

A desconstrução postulada por Lafont deve ser o rubricismo, ritualismo e estereótipos obsoletos nas liturgias frias e vazias de sentido, totalmente desvinculadas da realidade que cerca a própria comunidade. As celebrações para inflar o próprio ego com cerimoniais do passado, devem sim ser desconstruídos.

7. Os conceitos de Lafont

7.1 A eucaristia como sacrifício

É provocadora, mas, ao mesmo tempo, conflitiva a afirmação da possibilidade de ter havido uma eucaristia no Éden. A pergunta é: Qual o conceito de eucaristia que Lafont possui? Ele afirma:

Por isso, eu penso que no Éden existiu uma proposta de Eucaristia, “sacramento e sacrifício”, conforme os termos mais clássicos: o alimento assimilado, enquanto nutre efetivamente, exprime também um reconhecimento no sentido profundo deste termo (sacramento) na direção de Deus e na direção de sua palavra; isso implica, ao mesmo tempo, uma oferta que compreende a renúncia à autonomia absoluta, para estabelecer a comunhão (sacrifício).

“Na narrativa do Éden, os seres humanos possuíam liberdade condicional, isto é, poderiam comer de todos os frutos das árvores do jardim, exceto de duas árvores: a árvore da Vida e a árvore do Conhecimento (Gn 2,8-9). É fundamental frisar que a palavra gan que é traduzida para o grego pela LXX por parádeisos, indica um lugar aprazível, harmônico e belo” (MAZZAROLO, 2013, p. 113).

Para Lafon, a interdição de não comer dos frutos das duas árvores do centro do jardim eram um sacrifício. Isso pode ser compreendido, mas esse sacrifício não contém o espírito do sacrifício eucarístico. O sacrifício eucarístico é uma ação prospectiva, positiva, altruísta e não restritiva. Não comer do fruto das árvores interditadas é um exercício típico da teologia do medo, do castigo e do pecado. Um exemplo categórico dessa teologia é o ensinamento do velho Tobit ao filho Tobias, no momento em que o pai dá suas últimas instruções ao filho, antes de sua morte: Não faças a ninguém aquilo que não queres que te façam (Tb 4,15a). E Jesus, transformando a filosofia negacionista, constrói uma pedagogia positiva e construtivista: Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós, antes, a eles, pois esta é a Lei e os Profetas (Mt 7,12). 

É, de fato, muito complicada a compreensão de eucaristia, por parte de Lafont. Como poderia haver uma ação de graças apenas pelo fato de respeitar os frutos das árvores “proibidas”? Vê-se, aqui, uma teologia veterotestamentária do sacrifício: não comer! No entanto, quando se fala de eucaristia, especialmente na pedagogia de Jesus, entende-se um fazer como eu fiz!

Lafont vai em busca do sentido antigo do sacrifício, especialmente do sa-crifício expiatório, mas não reporta, com suficiência, o sentido da superação já demonstrada pelo autor de Hebreus. Na eucaristia não existe um sacrifício ex-piatório, visto que esse já foi realizado de modo definitivo e conclusivo pelo próprio Cristo.

 “O sacrifício está ligado de modo intrínseco à criação, pois, nas compreensões mais antigas do Antigo Oriente, o ser hu-mano foi criado para o serviço dos deuses. “O que, conven-cionalmente, se chama sacrificium era ligado à necessidade absoluta de o homem alimentar os deuses e zelar pela sua sub-sistência. Como veremos, o sacrifício típico era o sacrifício--refeição/banquete oferecido quotidianamente ou com soleni-dade nos privilegiados encontros deuses-homens que eram as festas” (Beauchamp, 2006, p. 39).

Os sacrifícios sagrados e as eucaristias dos terapeutas, no testemunho de Filon de Alexandria, eram celebrações com vestes brancas, jejuns e muitas orações. Depois de uma iniciação, a prática religiosa compreendia orações quotidianas, leitura das Sagradas Escrituras e, os mais idosos, ensinavam os homens e as mulheres ao domínio de si. “Consideravam o sétimo dia como sagrado e festivo no mais alto grau. Comiam e alimentavam os corpos com pão temperado com sal e água pura, depois de terem alimentado o espírito” (YANG, 2006, p. 67).

7.2 A eucaristia como Sacramento

Lafont entende que, o fato do casal primordial ter recebido liberdade para comer muitos frutos, cada vez que se alimentavam podia ser considerada uma eucaristia, ou uma ação de graças. Esse conceito de eucaristia não corresponde à etimologia e ao sentido do termo. Se Lafont caracterizasse este gesto como um louvor ou agradecimento, o qual seria uma todah no hebraico, poderia ser corre-ta, contudo, uma ação de graças não é um gesto de gratidão ou agradecimento, mas o resultado de uma ação, atitude que envolve o corpo inteiro, pois o louvor depende exclusivamente da palavra. Esse conceito, para Lafont, “seria apenas o reconhecimento da “autoridade” divina, pois Ele doa e Ele interdita”.10

7.3 A eucaristia como Comunhão

Lafont, em livro publicado em 1986, sustentou a tese de que o sacrifício de Cristo devia ser interpretado como um sacrifício de comunhão, e só, em segundo lugar, como um sacrifício pelo pecado. É difícil entender a posição de Lafont, pois a comunhão com Cristo, como vemos em 1Cor 10,14-11,1, é diferente. A comunhão no ato de culto indica comunhão na vida, nas atitudes, na conduta ética, por isso Jesus fez a distinção clara entre a família de sangue e a família de compromisso e aliança (Mc 3,31-35).

No mundo helenístico, as refeições geravam comunhão entre familiares e amigos. As refeições culturais, os sacrifícios aos ídolos e a comensalidade nas assembleias geravam comunhão com as divindades e a consequente subserviência. Paulo utiliza essas práticas para alicerçar e fortalecer o conceito de eucaristia como comunhão com Cristo e, ao mesmo tempo, persuadir os coríntios a não mais participarem das refeições dedicadas aos deuses pagãos (1Cor 10,16-17):

O cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Porque de um único pão somos muitos no corpo, pois todos participamos do único pão (1Cor 10,16-17).

“A tese do Apóstolo é clara: não há comunhão com Cristo e comunhão com os ídolos, concomitantemente. Ninguém pode servir a dois senhores... (Mt 6,24). Desta forma, a eucaristia cristã gera compromisso, aliança, pacto e comunhão com toda a missão de Jesus dentro da comunidade de convivência” (MAZZAROLO, 2013, p. 86).

7.4 A eucaristia como sacrifício de louvor espiritual

Jesus acabou sendo crucificado por aqueles que deviam tê-lo acolhido (Jo 1,11), mas o seu sacrifício não foi apenas de louvor, pois envolveu toda a sua existência, desde a encarnação (Jo 1,14) e a sua transformação, abdicando da condição de Senhor, para assumir a condição de servo, até as últimas consequências (Fl 2,5-8), não como ato de louvor, através da palavra, mas como entrega total no processo da redenção (Mc 10,45). 

No tocante ao sacrifício espiritual, Lafont cita Rm 12, mesmo não especificando os versículos, mas a interpretação nos parece longe do contexto paulino da carta. “No momento em que Paulo exorta os romanos a fazerem dos próprios corpos um sacrifício espiritual (Rm 12,1-2), ele está solicitando um novo conceito de sacrifício, não de louvor, pela palavra, mas do testemunho com a própria vida”.11

O conceito de sacrifício espiritual (Rm 12,1-2) implica uma transformação existencial, de forma que, aquilo que agrada a Deus é uma nova forma mentis, capaz de discernir o que agrada a Deus e não o que agrada aos homens: o que é bom e perfeito. Nesse contexto, qual é a compreensão de eucaristia como sacrifício espiritual? Os conceitos e parêneses, contidos em Rm 12, podem ser situados dentro de uma unidade maior (Rm 12,1-15,13) (LYONNET, 1989, p. 08).

Em outra passagem, bastante conflitiva na exposição de Lafont, está a afirmação, baseada em Rm 12, sem referência a versículos, de que a eucaristia é essencialmente um louvor e, a isso, chama de “nova teologia eucarística”.12 Há, novamente, uma necessidade de distinguir o louvor que pertence à articulação da palavra e do discurso. “O louvor, pedagogia explícita como nova catequese aos neófitos greco-romanos e mesmo judaicos, era um amor sem hipocrisia, sem exclusões e de conversão integral ao evangelho” (MAZZAROLO, 2004, p. 315).

Na carta aos Romanos, Paulo “utiliza o verbo parakaléô, no imperativo, a fim de chamar atenção dos seus ouvintes e leitores para a urgência das reflexões e mudanças. As diatribes e discussões ocupavam longo tempo entre judeus e pagãos. Os greco-romanos tinham seus mitos e ritos, enquanto os judeus tinham suas crenças mais rígidas e tradições sustentadas por leis fortes. Nesse âmbito, Paulo utiliza o paradigma de Cristo, cuja oferta não foi de coisas estranhas ou alheias, mas de si próprio (Mc 10,45) e, por isso, convoca e exorta os cristãos à novidade do sacrifício de louvor, não com a palavra, com o incenso ou com as salmodias, mas com o próprio corpo (Rm 12,1-2)” (MAZZAROLO, 2014, p. 147). 

O corpo vivo em ação, em missão e em doação de serviço, tornar-se-á o sacrifício agradável e santo a Deus, como expressão perfeita de ato de culto. “Afastando-se dos ritos pagãos das carnes dos pagãos e dos ritos de animais dos judeus, ambas as culturas e religiões compreenderiam a verdadeira forma da eucaristia na construção da pedagogia da inclusão, da construção da verdade e da justiça” (MAZZAROLO, 2014, p. 148). A novidade da parênese de Paulo, em sua missiva aos Romanos, é que eles, uma vez ouvido o Evangelho, não deveriam mais conformar-se (syschêmatizesthe) com o mundo presente. Ele emprega o lexema ´aiôn que indica era, época, saeculum. Em outras palavras, depois do Evangelho, as ideologias, as filosofias político-econômicas e outras correntes de dominação deveriam ser minimizadas e, talvez, descreditadas, a fim de que a verdade, a maturidade humana e o amor pudessem acontecer.

8. A Eucaristia é uma aliança de amor e comunhão (Rm 12,9; 1Cor 10,10-30)

“O amor é não hipócrita (Rm 12,9), visto ser, por sua natureza intrínseca, um compromisso em todas as circunstâncias. Paulo sabia, ao menos por informações de viva voz, que Roma era uma metrópole complicada. Cerca de 60% da população era composta de escravos, em sua grande maioria trazidos das colônias, comprados ou feitos espólios de guerras, enquanto a elite se dava o luxo de tomar banhos requintados nas termas e gozar de privilégios nos anfiteatros e nas arenas” (MAZZAROLO, 2004, p. 313).

Por exemplo, as duas passagens em que Paulo fala da eucaristia, na Primeira Carta aos Coríntios, emergem em contexto polêmico: não se pode comungar ao mesmo tempo na ceia do Senhor e nas refeições dos sacrifícios aos ídolos, portanto, aos demônios (1Cor 10,10-22); não se pode comungar dignamente na ceia do Senhor se não se fizer isso juntos e não se compartilhar a comida (1Cor 11,17-34). O contexto é o dos modos equivocados de fazer a comunhão.

De sua parte, a Carta aos Hebreus já se lamenta de um desinteresse pelas sinaxes (Hb 10, 25). Em todo o caso, a impressão que permanece, depois de ler tudo o que pude encontrar, é que, paradoxalmente, quando o culto cristão se tornou livre, no século IV, com Constantino, os cristãos se afastaram da comunhão e, em grande parte, limitaram-se a assistir às liturgias, mas sem receber o sacramento.

Sabemos muito bem também que, se o capítulo 21 do IV Concílio Lateranense, bem mais tarde, quis tornar obrigatório um mínimo de práti-ca sacramental na Páscoa, foi precisamente para frear uma maior deserção da Eucaristia e da Penitência. A rigidez jansenista se movimentou sucessivamente na mesma direção. Na maior parte do tempo, continuou-se a assistir à missa, mas sem participar da comunhão.

Como explicar esse afastamento? Sem dúvida, por causa de uma conscien-tização, ressaltada na época pelos pastores, do grande abismo que se abre entre a dignidade sublime desse sacramento e a miséria moral do cristão médio. O pecado torna indigno da comunhão, como repetimos ainda hoje – “Senhor, eu não sou digno...”, – e, se a excomunhão solene é excepcional, produz-se uma ex-comunhão de fato, mais ou menos encorajada pelos pastores. A perfeição trans-cendente do sacramento pressupõe e exige a perfeição daquele que comunga.

“A ceia cristã nasce e se identifica com um gesto original e profundamente significativo que é a partilha do pão (e do cálice, quando era possível). Contudo, a influência dos banquetes helenísticos (aos ídolos), como sentido de comunhão entre o ofertante e a quem é ofertado, serve para que os primeiros cristãos, de modo particular Paulo, utilizem como paradigma para uma evangelização da comunhão na eucaristia” (PERROT, 2006, p. 89).

Conclusões e novas propostas hermenêuticas 

O “lapso” de Lafont é insistir na Eucaristia como sacrifício. Na pedagogia da igreja, pode ter havido um acento sobre a renúncia, a penitência, etc., mas no conceito bíblico, é aliança, pacto, compromisso, portanto, assume um sentido positivo, ativo e construtivo.

É elogiável o depoimento do monge Ghislain Lafont ao blog de professor Andrea Grillo, contudo, sendo tópicos de uma entrevista longa ou de algumas entrevistas breves, elas devem ser enquadradas no gênero homilético. Ao ler os tópicos no blog Come se non de Andrea Grillo, percebe-se tratar-se de um depoimento oral e não escrito, por isso, carece de fontes e fundamentos específicos das posições sustentadas. Contudo, a visão de Gislain Lafont parece um tanto marginal em relação ao que se pode esperar numa perspectiva bíblica da Nova Aliança, do Memorial de uma vida, do testemunho da Diaconia integral. 

Lafont, em suas entrevistas no blog de Andrea Grillo, propõe-se a fazer uma nova leitura da Eucaristia, numa perspectiva desconstrutivista, a fim que esse novo enfoque pudesse contribuir com uma nova chave hermenêutica. Contudo, no seu resumo final, coloca a eucaristia dentro dos três tópicos salientados pelo Vaticano II (Presbiterorum Ordinis e Lumen Gentium). No Vaticano II, a liturgia é realçada em três aspectos:

a.    “A igreja é uma comunidade e comunhão de pessoas que participa do misté-rio de Cristo, como povo santo e sacerdócio real (1Pd 2,9; PO II);

b.    O último fundamento dessa comunidade é a eucaristia, através do qual o nosso sacrifício espiritual se une ao de Cristo, na adoração a Deus Pai;

c.    O terceiro aspecto dessa eucaristia se faz na presença do sacerdócio real, comum, dos fiéis batizados, mas também do sacerdócio hierárquico, os quais se encontram em três planos: o evangélico; o litúrgico e o político”.13

Em síntese, não nos parece que a proposta de Lafont seja novidade ou uma contribuição desconstrutivista para uma nova compreensão da eucaristia. Lafont não vai além de uma leitura do mistério da eucaristia, como memorial da instituição da Quinta-Feira Santa. Dentro de uma interpretação mística, insiste na celebração da missa, mas não vincula “os dois altares: o altar da mesa do mundo e o altar do memorial de Jesus” (MAZZAROLO, 2006, p. 177).

Repensar a eucaristia é devolver-lhe o sentido original: pacto, comunhão, aliança e compromisso em todas as dimensões. A primeira é a comunhão no altar do mundo, buscando construir passo a passo as utopias do Sermão da Montanha (Mt 5-7) e a segunda é a comunhão no altar do memorial de Jesus, isto é, a união entre o céu e a terra, a humanidade e a divindade, antecipando a eucaristia no Éden celeste.



Referências

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ALDAZÁBAL, José. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002. 

BEAUCHAM, Paul. O sacrifício no Oriente Próximo Antigo. In: BROUARD, Maurice (org.). Eucaristia, Enciclopédia da Eucaristia (orig. francês). São Paulo: Paulus, 2006. 

BLASS, F.; DEBRUNNER, R. Grammatik des Neutestamentlichen Griechish. Goettingen, 1984. 

CATECISMO da Igreja Católica. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola, 1999. 

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LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: por que uma ‘’nova’’ teologia eucarística? Disponível em:  Acesso em 02 de ago. de 2021. 

LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: uma eucaristia no paraíso? Disponível em:  Acesso em 02 de ago. de 2021. 

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PERROT, Charles. A eucaristia no Novo Testamento. In: BROUARD, Maurice (org.). Enciclopédia da Eucaristia. São Paulo: Paulus, 2006, p. 79-118. 

RECALCATI, Massimo. Contro il sacrificio. Al di là del fantasma sacrificale (Contra o sacrifício. Para além do fantasma sacrificial) Milão: Raffaello Cortina, 2017. 

YANG, Seung Ai. A ceia sagrada no judaísmo da época helenista. In: BROUARD, Maurice (org.). Enciclopédia da Eucaristia. São Paulo: Paulus, 2006, p. 65-71. 

Notas

[1]  A proposta nasce de uma provocação feita pelas entrevistas do monge, recentemente falecido (abril de 2021) Ghislain Lafont, ao blog do teólogo e professor Andrea Grillo, Come Se Non, em 22 de fevereiro de 2018. 

[2] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: por que uma ‘’nova’’ teologia eucarística? Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/576249-nova-teologia-eucaristica-por-que-uma-nova- -teologia-eucaristica-artigo-de-ghislain-lafont. 

[3] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: uma eucaristia no paraíso? Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/576382-nova-teologia-eucaristica-uma-eucaristia-no- -paraiso-artigo-de-ghislain-lafont. 

[4] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: o sentido do sacrifício simbólico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577445    

[5] MASSIMO, Recalcati. Contro il sacrificio. Al di là del fantasma sacrificale. Milão: Raffaello Cortina, 2017.  

[6] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: o primado do sacrifício eucarístico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577494. 

[7] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: o primado do sacrifício eucarístico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577494 

[8] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: o primado do sacrifício eucarístico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577494, citando AGOSTINHO, De civitate Dei, X, 1-7. 

[9] LAFONT, Ghislain. Nova teologia eucarística: uma eucaristia no paraíso? (parte 2). Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/576382nova-teologia-eucaristica-uma-eucaristia-no-paraiso-artigo-de-ghislain-lafont. Acesso 24.04.2022.  

[10] LAFONT, G. “In questo senso, ogni cibo assunto dall’uomo e dalla donna nel paradiso può essere detto “eucaristia”, ossia riconoscimento e azione di grazie a Dio che dona e che vieta, lode dell’identità divina e “sacrificio”, ossia accettazione e offerta di un limite posto dalla Parola di Dio.”  

[11] LAFONT, G. La Chiesa potrebbe essere descritta come la comunità che ha ricevuto la testimonianza apostolica della morte e resurrezione di Gesù come atto fondatore dell’ultima tappa della storia della salvezza, quella che conduce l’umanità al Regno di Dio. Seguendo l’esempio di San Paolo, al capitolo 12 della Lettera ai Romani, essa potrebbe definirsi come “sacrificio spirituale”, in una sorta di atmosfera di umiltà, di carità reciproca, di gestione misurata del sapere: è questo che la rende gradita a Dio. 

[12] Una nuova teologia eucaristica dovrebbe ripartire da ciò che dice la parola stessa: eucaristia, felice parola di grazia, o ancora, dossologia, parola di gloria. Un complimento fatto a una signora, per il suo bel vestito, degli applausi che esplodono alla fine di una esecuzione musicale perfetta o di una conferenza insieme magistrale e modesta, l’elogio convinto di un defunto prima di seppellire il suo corpo, delle felicitazioni (dal latino felix, felice) che accolgono una certa prestazione, qualunque essa sia…considero questi esempi semplici e umani, perché credo che ci sono utili per riattivare in noi la gioia dell’ammirazione, senza la quale non può esserci parola di grazia. Nell’Eucaristia si tratta di una atto di meraviglia davanti a Gesù Cristo, che provoca la lode e incita spontaneamente alla partecipazione.