A forma escatológica do corpo de Cristo: Uma aproximação da teologia eucarística de Zeno Carra com a antropologia escatológica de Fabrice Hadjadj    
The eschatological form of the body of Christ: An approximation of the eucharistic theology of Zeno Carra with the eschatological anthropology of Fabrice Hadjadj  

Rafael Martins Fernandes, PUCRS*
Vinicius da Silva Paiva**

*Doutor em Teologia, Pontifícia Universidade Lateranense, PUL, Roma, Itália. Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: rafael.martins@pucrs.br 
**Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCRS). Contato: teologodemaria@gmail.com

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Resumo:

De que forma Jesus Cristo se faz presente no sacramento da Eucaristia? Essa é a questão central que o teólogo italiano Zeno Carra investiga em seu estudo de teologia fundamental sobre a presença de Cristo na Eucaristia. Carra propõe a forma processual do rito litúrgico como locus da presença de Cristo. Já o filósofo francês Fabrice Hadjadj enxerga no acontecimento da Ressurreição a inauguração de um espaço escatológico onde estaria o Corpo ressuscitado de Cristo, ao qual se tem acesso por meio da Eucaristia. Enquanto Hadjadj elabora princípios de uma física eucarística para enfatizar a presença escatológica de Cristo, Carra, contrapondo-se a uma concepção metafísica da realidade, propõe a forma relacional e vetorizada do Cristo histórico e do Cristo pascal como origem de sua presença sacramental. Em um esforço de convergência entre o conceito de forma adotado por Zeno Carra e o enfoque escatológico de Fabrice Hadjadj, o artigo reflete sobre a presença de Cristo na Eucaristia e sobre o processo de configuração a Cristo como forma eucarística de vida cristã. Em sua conclusão, o artigo propõe o alargamento do modelo de Carra para inclusão da perspectiva escatológica de Hadjadj e reconhece no relato de Emaús (Lc 24, 13- 35) tanto a presença processada pelas formas de mediação, quanto a presença dada e revelada do Cristo ressuscitado.  

Palavras chave: Eucaristia; Presença eucarística; Corpo de Cristo;; Forma. Escatologia  

Abstract

How is Jesus Christ present in the sacrament of the Eucharist? This is the central question that the Italian theologian Zeno Carra investigates in his study of fundamental theology about the presence of Christ in the Eucharist. Carra proposes a procedural form of the liturgical rite as the locus of Christ’s presence. The French philosopher Fabrice Hadjadj, on the other hand, sees in the event of the Resurrection the inauguration of the eschatological space where the risen Body of Christ would be, which is accessed through the Eucharist. While Hadjadj elaborates principles of a eucharistic physics to emphasize the eschatological presence of Christ, Carra, in opposition to a metaphysical conception of reality, proposes the relational and vectorized form of the historical Christ and the Paschal Christ as the origin of their sacramental presence. In an effort to converge the concept of form adopted by Zeno Carra and Fabrice Hadjadj’s eschatological approach, the article reflects on the presence of Christ in the Eucharist and on the process of configuration to Christ as the eucharistic form of Christian life. In its conclusion, the article proposes the expansion of Carra’s model to include Hadjadj’s eschatological perspective and recognizes in the Emmaus account (Lk 24, 13-35) both the presence processed by the forms of mediation, as well as the given and revealed presence of the Christ risen. 

Keywords: Eucharist; Eucharistic presence; Body of Christ; Form. Eschatology 

Introdução 

Neste artigo será feita uma comparação entre a teologia eucarística de Zeno Carra, exposta em sua obra HOC FACITE: Studio teologico-fondamentale sulla presenza eucaristica di Cristo, e alguns dos “princípios eucarísticos” (1º, 2º, 3º e 8º) elaborados por Fabrice Hadjadj, na obra O Paraíso à Porta: Ensaio sobre uma alegria que desconcerta. Trata-se de uma aproximação conceitual em torno da presença de Cristo na forma eucarística em Carra e na forma escatológica em Hadjadj. O primeiro desenvolve sua pesquisa na perspectiva da teologia fundamental e o outro na perspectiva antropológica. 

Parte-se da obra de Zeno Carra, que repropôs a discussão sobre os modelos teológicos da presença eucarística de Cristo. Segundo ele, o modelo clássico tomista já não corresponde à experiência da realidade do homem contemporâneo e o novo modelo, fundado nos movimentos teológicos do século XX, encontra-se inacabado. A proposição de Carra é dar continuidade à construção deste novo modelo de compreensão da Eucaristia. E, isto, ele o faz de modo original. O objetivo é confrontar a teoria de Carra com a teologia do corpo escatológico de Cristo em Fabrice Hadjadj, trazendo novos elementos que possam contribuir para a elaboração de uma compreensão da Eucaristia que, fiel à Tradição eclesial, consiga melhor expressar a presença de Deus para o ser humano atual.

Na primeira seção, dedicada a Zeno Carra (Corpo presente), será apresentado seu conceito de forma, sua crítica à concepção metafísica da realidade e à com-preensão da presença eucarística na categoria ôntico-espacial. Será abordada sua hipótese sobre o dar-se processual da forma litúrgica enquanto locus da presença de Cristo e a dinâmica relacional entre a forma crucis e a forma Christi que pos-sibilitaria o surgimento do Presentificado no rito eucarístico sem a remoção da condição criatural do pão e do vinho.

Na segunda seção, dedicada a Fabrice Hadjadj (Corpo glorioso), será apre-sentado seu ensaio sobre uma física eucarística pautada na Ressurreição de Cristo como evento escatológico fontal onde uma nova linguagem simbólica é inaugu-rada: não apenas o símbolo remete à realidade, mas também a realidade remete ao símbolo, como uma presença pneumática vivificante que faz do Corpo glo-rioso de Cristo a via de comunhão sacramental onde Deus abraça o ser humano na Eucaristia.

Na última seção (Corpo eucarístico), buscar-se-á alguma convergência entre a visão sistêmica de Carra e a visão poética de Hadjadj, complementando o debate em torno da presença de Cristo na Eucaristia com enfoques e contribuições de outros autores. Na conclusão, o relato de Emaús (Lc 24, 13-35) mostrar-se-á decisivo para a elaboração de uma síntese a partir do confronto entre as teorias dos dois autores estudados. 

1. Corpo Presente

Nesta parte será analisada a obra de Zeno Carra, que está situado no hori-zonte epistemológico da teologia fundamental e se utiliza do debate em torno do conceito de forma para propor uma nova compreensão a respeito da presença de Deus na Eucaristia e na História. Desenvolve sua pesquisa fazendo um acurado levantamento histórico da doutrina eucarística em Tomás de Aquino e no período que o sucede até o Concílio de Trento; e, também, nos autores do século XX que discutiram a viabilidade de uma nova teologia eucarística. Em seu livro HOC FACITE Studio teologico-fondamentale sulla presenza eucaristica di Cristo, o autor, além de desenvolver sua perspectiva na linha teológico-fundamental, também aborda aspectos na linha dogmático--sacramental, como por exemplo, o corpo pascal de Cristo em sua forma proces-sual de presentificação. Explicaremos brevemente seu pensamento para depois relacioná-lo com a antropologia escatológica de Fabrice Hadjadj.

Para compreender as formulações teológicas de Zeno Carra, tendo em vista a epistemologia da complexidade adotada pelo autor, é preciso abandonar a ideia de uma simples substância (física ou metafísica) que se esconda por detrás daqui-lo que é visto. Nesse sentido, Carra faz ressoar a crítica contemporânea à entifica-ção como explicação última da realidade e defende uma compreensão sistêmica do real, ou seja, a realidade é viabilizada por um sistema de conexões que ele chama de “formas”. A realidade seria, portanto, um entrelaçamento das relações de seus componentes e isso aplicado à Revelação permite ter acesso não apenas ao conteúdo revelado, mas às “formas” pelas quais Deus vem até nós, sendo já essas mesmas formas a própria Revelação.

Para compreensão do conceito de forma em Zeno Carra, não se deve buscar simplesmente uma definição, pois dar uma definição já seria torná-la conteúdo e sucumbir novamente à tentação de um entificismo. Então, no caso da presença de Deus, o primeiro passo deve ser acolher essa presença mediada pelas formas. Em sua obra, o autor se propõe a responder à seguinte pergunta: Como falar sobre a presença de Deus na história do ser humano e no mundo a partir do eixo central que é a presença sacramental eucarística? Como articular a presença no sacra-mento da Eucaristia com a História enquanto forma processual da Revelação? Ele parte da premissa de que essa presença eucarística não pode mais ser dita e praticada na categoria ôntico-espacial de um conteúdo (substância), mas sim na “dinâmica relacional do dar-se processual de uma forma” (CARRA, 2018, p.259).

É evidente que, por esse motivo, Zeno Carra precisou propor uma nova compreensão do mistério eucarístico, já que a categoria de transubstanciação não lhe atende mais. Sem abandonar a definição dogmática da presença real de Cristo no sacramento, o autor buscou consolidar, pela via da teologia fundamental, uma nova “forma” de acesso ao dogma, que fosse não “i-mediata”, mas “mediada” pelas formas que se apresentam e nas quais cada um estaria responsavelmente envolvido como um dos polos dessa presença. Ele se utiliza da figura geométrica do poliedro para esboçar seu modelo de compreensão da realidade. Zeno Carra cita a Eucaristia, o papa, os dogmas, a Escritura e a oração como exemplos de entes representativos que estariam preenchidos pela presença de Deus (CARRA, 2018, p.260), desde que em posição espacial de relação com os outros pontos poliédricos dessa presença. Esta visão sistêmico-relacional é seu principal con-traponto a uma concepção metafísica da realidade.

Já aqui duas oportunas observações podem ser feitas. A primeira diz respeito ao fato de o “eu” humano ser um dos polos do poliedro no sistema proposto por Carra, o que já se configura como uma premissa antropológica do modelo. Outra questão importante a ser destacada é que, ao restringir a possibilidade da experi-ência imediata da presença de Deus e sustentar que tal presença é necessariamen-te mediada pelas “formas”, não se altera o dado fenomenológico da realidade, já que se continua fazendo experiência das formas pelas quais Deus se apresenta a nós. O risco de se abandonar o modelo metafísico da substância é justamente o de reduzir a presença divina à subjetividade da percepção humana. Para superar esse reducionismo, Zeno Carra vai aderir à contribuição de Loris Della Pietra (CARRA, 2018, p.260) pela qual o rito é pensado como uma realidade variada, múltipla e dinâmica de elementos. Essa dinamicidade das formas aplicada ao evento histórico será para Carra a garantia da objetividade do modelo.

Para Zeno Carra, a forma não seria um fato estático, a não ser por uma abs-tração crônica, mas um evento histórico, contínuo e coerente. Depurando a linguagem ocidental profundamente marcada pela metafísica, ao invés de se dizer “Deus está”, deveria ser dito “Deus estando”, já que essa presença se dá de forma continuada e perene. Este é um ponto que mereceria um maior aprofundamento exegético para avaliar o quanto a concepção bíblica que se tem da presença de Deus está afetada por uma ontologia que nem sempre remonta à concepção ori-ginal do conceito de presença no cristianismo nascente. De que forma (palavra--chave do modelo de Zeno Carra) Deus será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28)?Na comparação de Della Pietra citada por Carra (CARRA, 2018, p.260), uma estátua seria um bom exemplo de presença na forma fixa, enquanto uma obra musical um exemplo de presença na forma dinâmica, tal qual o rito eucarístico, onde vários elementos precisam entrar em ação para que a presença de Cristo surja como sacramento da Eucaristia.

Como o objetivo deste artigo é relacionar a nova teologia eucarística de Zeno Carra com a escatologia antropológica de Fabrice Hadjadj, a proposta é se deter em como Zeno Carra aborda o tema da Eucaristia na perspectiva escatológica em seu modelo de  teologia fundamental e que interface pode ser estabelecida com o modelo antropológico de Hadjadj. Apesar de sua obra não ser de teologia dogmática, mas sim de teologia fundamental, o brilhante esforço metodológico empregado por Carra para conceber o modelo poliédrico da presença de Deus, que passa pela mediação das formas históricas da revelação cristã e se dá através de uma dinâmica litúrgica processual, é uma boa oportunidade para se repensar, não os fundamentos dogmáticos, mas a experiência que fazemos da presença do Cristo que caminha conosco, mas que só é reconhecido ao partir o pão (cf. Lc 24, 30-31).

Citando uma conferência de Joseph Ratzinger em 1964 sobre a transubstan-ciação e a questão do sentido da Eucaristia (CARRA, 2018, p.160), Zeno Carra reconhece que a presença eucarística tem por fundamento o acontecimento pas-cal e vê na ressurreição de Cristo uma possibilidade de expansão dessa presença em um novo regime totalmente relacional e não mais na forma físico-natural do Cristo pré-pascal. Entretanto sua crítica se dirige ao fato de que na doutrina da transubstanciação, a presença de Cristo removeria a autonomia criatural do pão e do vinho, que, por sua vez, se tornariam simples sinais (signos) da presença divina sem qualquer dimensão relacional com a realidade material. O que Ratzinger considera como sinal escatológico, Carra, seguindo a opinião de M. Ghirardi, se pergunta: Que tipo de relação escatológica a mutação da substância do pão e do vinho nos apontaria como destino comum de todas as criaturas? Será que a con-dição escatológica vindoura implicará em uma renúncia ontológica? Portanto, para Zeno Carra, existe uma incompatibilidade do sistema eucarístico tomista com aquilo que ele entende ser a verdadeira dimensão escatológica da Eucaristia (CARRA, 2018, p.165).

Para explicitar sua tese, faz-se necessário tratar especificamente do corpo de Cristo enquanto presentificado na forma eucarística. Apesar de complexa, sua abordagem apresenta uma visão renovada a respeito da vocação humana diante do mistério divino, pois para que Cristo se faça presente, é indispensável a ação humana, sempre coordenada e interconectada com outros atores da realidade. Para Zeno Carra, o corpo ressuscitado de Cristo é o cumprimento da dimensão corpórea e da natureza relacional do ser humano. Esse corpo pascal é plenamente relacional em sua conectividade com o mundo circundante e se constitui como a plenitude de tudo aquilo que é humano, cumprimento da corporeidade prometida na criação e escatologização da humanidade de Cristo realizada plenamente na cruz (CARRA, 2018, p.237). O corpo glorioso é a verdadeira humanidade aber-ta, assumida e amadurecida pelo Filho em superação ao pecado, que é retratado como uma força inercial regressiva, divisiva e atrófica, verdadeiro fechamento, que poderia ser perfeitamente chamado, em linguagem escatológica, de condição infernal.

Para Zeno Carra, o corpo de Jesus é o conteúdo e o fundamento da presença eucarística: seu corpo terreno faz parte da dinâmica do processo de constitui-ção do seu eu histórico- relacional e seu corpo ressuscitado (corpo pascal) é o resultado desse processo, portanto, estatuto escatológico da presença de Cristo na Eucaristia e na história (CARRA, 2018, p.237). Sendo assim, para se tor-nar presente de forma completa (pessoal e corporal), ele propõe compreender a Eucaristia como relação do vetor do corpo terreno do Cristo homem com o vetor do corpo pascal do Cristo Filho e, somente através da dinâmica celebrativa do rito eucarístico, tem-se o pleno acesso ao corpo total de Cristo. Zeno Carra afirma que o corpo de Jesus passou da forma crucis (forma histórica) para a forma Christi (cumprimento glorioso da forma crucis) e conclui que “o corpo glorioso de Cristo é esta forma, ou seja, o feixe de conexões, coerente e orgânico enquanto estrutura-do em torno do ponto adimensional do seu eu pessoal” (CARRA, 2018, p. 239).

A partir dessa complexa conceituação, Zeno Carra situa a Eucaristia enquan-to mediação sacramental da presença real e corpórea do crucificado-ressuscitado. O Cristo é o Presentificado (CARRA, 2018, p.234) que passou da condição terre-na para a condição gloriosa e nos deixou na Última Ceia a forma celebrativa do mistério pascal: “fazei isto em minha memória” (Lc 22,19). A alternativa encon-trada por Carra para superar o pressuposto metafísico da transubstanciação foi enfatizar toda a ação litúrgica como o locus da presença e não apenas o momento da consagração. Pão e vinho se tornam vetores conectivos da forma litúrgica pro-cessual onde o pão não precisa deixar de ser pão para que se torne corpo de Cristo, já que é a “forma relacional” o lugar da presença sacramental de Cristo (CARRA, 2018, p. 247), superando-se assim, em sua opinião, o modelo clássico baseado no pensamento ôntico-espacial de origem grega e não condizente com a mentalidade judaica.

Ao final desta brevíssima síntese sobre a teologia eucarística de Carra, sur-gem  algumas perguntas: Haveria realmente a necessidade de se explicar a pre-sentificação do corpo de Cristo por meio de uma compreensão vetorizada da realidade? Será que o dado escatológico da presença do Ressuscitado não se-ria suficiente para garantir a presença sacramental de Cristo no rito eucarístico? Poderá essa compreensão da presença de Cristo na forma processual histórico- gloriosa dizer algo sobre o futuro da humanidade em Deus? Para Zeno Carra, a forma é o lugar teológico da presença de Cristo, mas para Fabrice Hadjadj, como será visto a seguir, é o próprio corpo do Ressuscitado o espaço onde nos encon-traremos com Ele. Sem dúvida, o esforço metodológico de Zeno Carra em torno do conceito de forma ajudará a alargar a compreensão a respeito da presença de Cristo na Eucaristia.

2. Corpo Glorioso

Nesta seção, a reflexão se dará a partir da obra de Fabrice Hadjadj, que propõe o acesso à condição humano-existencial pela via poética, como, por exemplo, quando afirma categoricamente que “a vida eterna não é um estado, mas um encontro. Ela não é a entrada em alguma coisa, mas a união a alguém” (HADJADJ, 2015, p.266). Hadjadj não faz teologia de forma sistemática, inclusi-ve esboça certa crítica a quem se aproxima do mistério apenas pela via racional, rejeitando a via contemplativa e espiritual, como se quisesse reduzir o mistério à matéria cinzenta (HADJADJ, 2015, p.332). Seu ensaio antropológico e filo-sófico resgata e elabora princípios de uma nova física espacial, chamando-os de “eucarísticos”. E é neste ponto que o artigo busca aprofundar algumas de suas afirmações sobre o corpo glorioso de Cristo e sobre a Eucaristia enquanto misté-rio de antecipação escatológica.

Para Fabrice Hadjadj um corpo glorioso é “atravessado visivelmente pelas águas vivas do Espírito” (HADJADJ, 2015, p.321). O tema da corporeidade é central no pensamento do autor e sua interpretação sobre a afirmação de Jesus “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2) é genuína, pois essa morada seria o prórpio corpo glorificado de cada pessoa em comunhão com o Corpo de Cristo. Hadjadj trabalha a lógica da superabundância e não tem medo de abordar o tema da morte. Aliás, em tom jocoso diz que “para fazer um bom ressuscitado, é preciso primeiro fazer um bom morto” (HADJADJ, 2015, p.329). É por isso que em seu primeiro princípio de “física eucarística” afirma que o corpo glorioso é primeiramente um corpo entregue (HADJADJ, 2015, p.330).

O segundo conceito de uma física eucarística para Hadjadj diz respeito ao corpo glorioso em sua condição espiritual: será mais espiritual quanto mais for carnal (HADJADJ, 2015, p. 335). Trata-se de uma carne invisível e irradiante, mas sempre corpo. Tendo presente o ensinamento de Agostinho de que a alma não pode ir a lugar algum a menos que tenha um corpo, ele considera que as almas dos justos, até que venha a ressurreição, se encontram em referência ao corpo glorioso de Cristo (HADJADJ, 2015, p. 308). Portanto, o corpo de Cristo passa a ser o locus escatológico dos justos que entram na eternidade. E se é no corpo glorioso de Cristo que subsistiremos, cresce de importância o mistério eucarís-tico como antecipação escatológica e estágio intermediário de comunhão. Aliás, comunhão é o outro nome do sacramento da Eucaristia.

 Sendo o corpo glorioso de Cristo tão importante para o futuro da humanidade, faz sentido que em sua condição terrena, Jesus tenha se dedicado a nos deixar o memorial de sua paixão como caminho de acesso às realidades celes-tes: “Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim” (Jo 14,6). Portanto, toda comu-nhão com Cristo é de certa forma uma comunhão eucarística. Esse entendimento aberto a respeito da Eucaristia se constitui como visão holística e inclusiva do sacramento, na qual toda a humanidade é chamada a tomar parte. Para Hadjadj, o futuro da humanidade será um futuro eucarístico vivido na corporeidade glo-riosa de Cristo. Fazendo eco à afirmação paulina de que nosso conhecimento é limitado e de que agora apenas vemos por um espelho (1Cor 13,12), Hadjadj usa a imagem do tapete ao reverso para dizer que “a intriga da minha vida não é muito clara porque está costurada às outras intrigas inumeráveis da História” (HADJADJ, 2015, p. 300) e, portanto, só no final toda a verdade será conhecida.

Hadjadj desenvolve princípios baseados na configuração do corpo de Cristo após a Ressurreição. Uma de suas principais afirmações é de que no momento da Ressurreição, Cristo saiu de nosso espaço e inaugurou um espaço de outra or-dem. Em seu terceiro princípio de física eucarística, diz que a glória de um corpo é proporcional à sua hospitalidade (HADJADJ, 2015, p 338), ou seja, é capaz de conter nosso espaço e não ser contido por ele. Para fundamentar esta tese, recorre à hipótese do filósofo Jacques Maritain de que o nosso espaço é um dos espaços possíveis e que “outro espaço” não relacionado ao tempo, mas à eternidade, po-deria coexistir invisivelmente de forma paralela. Seria nesse espaço transcenden-te que estariam os corpos gloriosos de Jesus e Maria, porque um corpo precisa necessariamente ocupar um espaço, já que “a ideia de uma carne sem medidas é uma contradição em termos e tudo aquilo que é corporal é necessariamente localizável” (HADJADJ, 2015, p.336).

Para Hadjadj, o acontecimento pascal da ressurreição de Cristo é o evento fontal da nova configuração de seu corpo glorioso. Esse disrruptivo aconteci-mento histórico inaugura uma nova lógica simbólica que parte do dado escato-lógico celebrativo para uma compreensão da presença de Deus como experiên-cia vital da realidade humana. Todo o mistério eucarístico pode ser relido pela via existencial dessa presença pneumática, inclusive o milagre da transubstanciação enquanto dogma fundamental da fé católica. Com seus princípios de “fisica eucarística”, Hadjadj reposicona a contemplação do mistério, saindo de uma con-sideração meramente ôntica para uma compreensão mística do rito celebrado. Dessa nova hermenêutica emerge a necessidade de uma nova prática de comu-nhão eclesial, já que o Cristo comungado é o Cristo glorificado e sua presença é a “forma” de se participar da liturgia celeste já inaugurada.

Para Fabrice Hadjadj é exatamente no acontecimento extraordinário da Ressurreição que se abre a possibilidade da comunhão eterna com Deus e isto im-plica em reconhecer a lógica eucarística da Encarnação, pela qual Jesus Cristo, ao assumir nossa natureza humana e sua corporeidade, fez de seu próprio corpo um sacramento (via de acesso) para a eternidade. Hadjadj diz que “o Corpo de Cristo é o Templo do universo inteiro. E assim serão também os corpos, ain-da que de maneira subordinada, daqueles que pertencem a Cristo” (HADJADJ, 2015, p.339). Portanto, também nossos corpos quando forem ressuscitados e glo-riosamente constituídos farão parte dessa nova condição, já que, para Hadjadj, vamos nos tornar “corpos não contidos no espaço, mas corpos que  dispõem em torno de si o espaço do mais sublime acolhimento, corpos cósmicos, corpos fon-tes, corpos templos para uma liturgia imperecível” (HADJADJ, 2015, p. 326).

Ao todo, Fabrice Hadjadj elabora nove princípios de física eucarística. Como o artigo relaciona a obra de Hadjadj com a de Zeno Carra na perspctiva escatológica, é importante citar também seu oitavo princípio: “o corpo glorioso, na medida em que é eucarístico, é um corpo poético” (HADJADJ, 2015, p. 358). Ao tratar especificamente da Eucaristia, ele se apóia na doutrina da transubstan-ciação de Tomás de Aquino e reconhece que quando se recebe as espécies consa-gradas do pão e do vinho ocorre um ato de efetiva comunhão com o corpo de Cristo em sua condição escatológica usando para isso a imagem do abraço divino. A lógica que adota não é a do símbolo que remete à realidade, mas da realidade que remete ao símbolo. Não se trata apenas do Cristo que se faz presente na hós-tia consagrada, mas da hóstia consagrada que revela a presença real de Cristo que extrapola nosso espaço e o contém.

Participar da Eucarsitia é participar da perspectiva escatológica do corpo ressuscitado de Cristo e fazer uma experiência de comunhão como membros de um mesmo corpo místico, vivo e gloriosamente presente. A celebração euca-rística, para Fabrice Hadjadj, possibilita o acontecimento desse encontro com o divino, mas não sem a efetiva participação humana. Não é apenas o sacerdote que age, mas todos que participam da missa interagem na cena eucarística. E neste ponto há uma perspectiva comum com a visão de Zeno Carra. Para Hadjadj, a mediação eucarística é invertida na medida que “não é mais a criatura que é para mim caminho para o Criador, é o Criador que se torna caminho para a criatura” (HADJADJ, 2015, p.279). Portanto, quando pão e vinho transubstanciados se tornam sinais escatológicos da presença divina, ingressam no âmbito da teonomia, já que a existência é sustentada por uma presença que tudo abraça. Seria essa a forma pela qual Deus um dia será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28)? 

Para Hadjadj, o corpo noético é sempre um corpo poético. A poesia não é apenas expressão artística, mas o próprio jeito divino de se relacionar com o ser humano. A alegria não é mero sentimento, mas a nova condição da criação inaugurada pelo Ressuscitado. Celebrá-lo na Eucaristia é antecipar a poesia que vem. Cada encontro com Cristo na Eucaristia é uma experiência com o transcendente carnal que nos espera. Verdadeiramente Ele está ali sem estar con-tido ali, está presente sem estar localizado, pois Ele mesmo é o nosso lugar. Estar sem estar limitado pode, na opinião do autor, se coadunar com o modelo tomista de substância. Por sua vez, essa substância é espiritual e carnal, verdadeiro corpo de Cristo dado, celebrado e comungado. Sua conclusão é de que “antes do misté-rio da eucaristia, era possível crer que, para ir ao invisível, era preciso afastar-se cada vez mais do carnal. No momento, convém afirmar que a carne faz parte das coisas invisíveis e celestes” (HADJADJ, 2015, p.335).

Por fim, importante destacar também o conceito de tempo em Hadjadj, já que o autor admite a existência de um tempo não cronológico, que define como “tempo espiritual, agido e não suportado, que se dilata e se contrai segundo o an-dante ou o allegro de nossa canção. Digamos até que se trata do tempo verdadeiro com sua flecha precipitando-se infinitamente para o alvo” (HADJADJ, 2015, p. 293). Esse tempo de atração, que se dilata e anda de acordo com a música, faz alusão à celebração litúrgica, pois através da liturgia também se pretende condensar e atualizar no presente o acontecimento histórico e eterno do sacrifício de Cristo. Reconhecer na dinâmica eucarística o tempo do eschaton equanto tempo da eternidade, é estar “na plenitude de seu cumprimento e no frescor de seu co-meço” (HADJADJ, 2015, p. 274).

Cabe aqui perguntar até que ponto a poética de Fabrice Hadjadj, ainda que mais atraente do que a metodologia de Zeno Carra, pode, de forma concreta, contribuir sistematicamente para uma nova teologia eucarística? De fato, em sua obra O Paraíso à Porta: Ensaio sobre uma Alegria que Desconcerta Hadjadj não pretendeu sistematizar uma teologia eucarística, mas, assim como Carra, criou seu próprio percurso para contemplar o mistério da presença divina no mundo e na história. A visão poliédrica da realidade de Zeno Carra, enquanto exercício metodológico, e a perspectiva escatológica de Hadjadj possibilitam o esforço de síntese que será feito na última seção do artigo em torno do tema da presença de Cristo na Eucaristia.

3. Corpo Eucarístico

Nesta parte, o percurso será diferente, ao invés de partir daquilo que os autores trataram sobre a presença eucarística de Cristo, serão buscados enfoques complementares que auxiliem a aproximação da teologia fundamental de Zeno Carra da antropologia escatológica de Fabrice Hadjadj. Esta é a paradigmática afirmação da Sacrosanctum Concilium: 

Na Liturgia terrena, antegozando, participamos da Liturgia celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual, peregrinos, nos encaminhamos. Lá, Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do tabernáculo ver-dadeiro; com toda a milícia do exército celestial entoamos um hino de glória ao Senhor e, venerando a memória dos Santos, esperamos fazer parte da sociedade deles; suspiramos pelo Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, até que Ele, nossa vida, Se manifeste, e nós apareçamos com Ele na glória (SC 8).

Não se pode ignorar que a liturgia eucarística extrapola a dimensão terrena. Há certa dificuldade de se falar na categoria “Céu” pelo simples fato de estar fora do alcance da capacidade argumentativa do ser humano, mas nisso Fabrice Hadjadj tem toda razão ao evocar a via poética como via de acesso a uma realidade que ultrapassa a compreensão humana. Aliás, liturgicamente falando, pode se afirmar que a liturgia celeste é mais completa do que a terrena porque Cristo Ressuscitado encontra-se primeiramente lá e só depois aqui de forma eucaris-ticamente secundária. É comum nos esquecermos de que a Ascensão de Cristo marcou o término de sua presença terrena e deu início a um novo tempo: o tempo do Espírito Santo. Mesmo que tenha dito que permaneceria conosco até o final dos tempos (cf. Mt 28,20), o Jesus terreno já não está mais entre nós, ressuscitou, partiu e até hoje não voltou. Segundo Michael Böhnke, somente uma compreen-são pneumatológica da presença de Deus pode nos reaproximar do Ressuscitado (BÖHNKE, 2020, p. 17).

Jean Corbon tem uma afirmação bastante interessante a esse respeito: “A Ascenção do Senhor é realmente o espaço novo da liturgia dos últimos tempos” (CORBON, 2014, p.43). Também o grande liturgista Jesús Castellano, baseado em J.A. Jungmann, sustenta que a presença celeste de Cristo, após a Ascensão, é a forma primária de sua existência e todas as demais são secundárias e devem ser explicadas em função da forma primária (CASTELLANO, 2008, p.145). Diz que “a humanidade de Cristo se torna espiritual, pneumática, perde sua relação espacial e adquire uma nova dimensão e relação referindo-se aos homens: é uma presença divinizada, estendida, profunda” (CASTELLANO, 2008, p.159). Duas noções parecem se destacar até aqui: espaço e forma. Sem dúvida, não se pode ignorar a relevância do novo espaço ocupado por Cristo Ressuscitado após sua Ascensão, ainda que esse espaço seja seu próprio Corpo enquanto locus escato-lógico de sua presença, como defende Hadjadj. Mas, além do espaço, a forma também é extremamente relevante para a presença eucarística, pois não há litur-gia sem conexão relacional com a forma primária da existência de Cristo no Céu.

Sobre o conceito de presença, há de se observar, segundo Castellano, que a definição de presença passou a ser a de uma relação interpessoal entre dois seres através de uma mútua abertura que permita a intercomunicação, onde “supera-se simplesmente a noção de presença espacial ou local, ou, ao máximo, essa classe de presença que constituía a base de toda reflexão filosófica anterior, é relegada à categoria de meio, de mediação, para a relação interpessoal” (CASTELLANO, 2008, p. 158). E faz sentido que a presença local deixe de ser fim em si mesma, haja vista a possibilidade, sempre frequente, de nos encontrarmos com pessoas que se mostram ausentes mesmo quando estão próximas. E por outro lado, após o advento da era digital, a distância, que sempre foi sinônimo de ausência, pôde ser superada pela presença on line, ainda mais em tempos de pandemia. Como dizer que o encontro on line não é real ou que a pessoa não está presente quando uma verdadeira comunicação se estabelece?

Mas em se tratando do sacramento da Eucaristia, o modo on line não é suficiente, já que uma “comunhão espiritual”, enquanto experiência pneumá-tica da presença de Cristo, não corresponde ao desejo histórico de Jesus de se fazer comida e bebida. Há que se respeitar o sinal e a forma do banquete (CANTALAMESSA, 2015, p.46), ou seja, o próprio Jesus Cristo quis que sua presença fosse mediada por um alimento comestível e bebível, especificamente, o pão e o vinho. Se por algum motivo o discípulo comungante deixar de fazer a experiência do pão e do vinho, não estaria comprometida a forma escolhida por Cristo para ser fazer presente? O próprio Cardeal Cantalamessa reconhece que a Eucaristia, “mais que presença real de uma pessoa, é vista como memorial de um evento, a morte-ressurreição de Cristo” (CANTALAMESSA, 2015, p. 94). E não é qualquer evento, é um evento ao mesmo tempo histórico e eterno. Negar um desses polos seria desconfigurar o sacramento e em última análise impossibilitar a presença sacramental de Cristo.

Chega-se aqui a um ponto de contato da teologia eucarística de Carra com a antropologia de Hadjadj. Não é possível ignorar que a Eucaristia exige a inter-conexão dos elementos históricos da vida de Cristo (última ceia, paixão, morte e ressurreição) com os elementos sacramentais da celebração. Sem Cristo não há rito. Sem rito não há Eucaristia. Celebrar a Eucaristia é participar na ofer-ta presencial de Cristo, é de fato sentar-se à mesa como convidado do banquete preparado pelo Rei e que muitos optaram por não comparecer (cf. Mt 22,5). No entanto, este Rei preside sua própria liturgia celeste, e, portanto, a forma pela qual sua presença acontece necessariamente é uma “forma escatológica”. A visão poliédrica da realidade extrapola (ou seja, expande para além dos polos) o es-paço e o tempo litúrgicos. É necessário alargar o modelo para incluir as formas escatológicas de mediação.

Alargar o modelo de Zeno Carra não significa simplesmente dizer que o eschaton é um dos polos do poliedro. Seria reducionismo achar que uma relação processual com o transcendente possa ser compreendida e enquadrada em nosso modelo mental. Por isso, o maravilhamento de Hadjadj diante do evento da Ressurreição e sua contemplação poética a respeito do Corpo de Cristo como espaço transcendente de comunhão não deve ser descartada. 

Sobre nossa participação em Cristo na “forma escatológica”, disse Corbon:

A Transfiguração do Verbo faz entrever a plenitude daquilo que Ele inaugurou na sua Encarnação e manifestou desde o seu Batismo nos seus milagres: o Corpo do Senhor Jesus é o sacramento que dá a vida de Deus aos homens. Quando a nos-sa humanidade consentir em unir-se à humanidade de Jesus, participará, então da natureza divina (cf. 2Pd 1,4), será divini-zada. Se todo o sentido da economia da salvação consiste nis-so, compreenderemos que a liturgia é, afinal, a sua realização. A divinização do homem será participação no Corpo de Cristo (CORBON, 2014, p. 71).

Trata-se, portanto, de um caminho para a meta escatológica onde a “mor-te será definitivamente absorvida pela vida quando o pleroma dos santos tiver cumprido aquilo que dever ser da cristificação da humanidade e do cosmos” (CLÉMENT; RUPNIK, 2010, p.24) – para usar uma linguagem da teologia or-todoxa. Olivier Clément diz ainda que “o Corpo do Ressuscitado é real, o único plenamente real, sem ser objetivado, porque é matéria penetrada pelo Espírito” (CLÉMENT; RUPNIK, 2010, p. 28). Hadjadj também considera não ser possível falar de um corpo glorioso sem considerar a ação vivificante do Espírito. Já no modelo de Zeno Carra, o Espírito Santo aparece muito pouco e talvez isso dificul-te sua compreensão da Eucaristia como corpo pneumático. Para Clément, o corpo do Ressuscitado é um corpo pneumático que “quebra e transforma a existência fe-nomênica, isto é, as modalidades de nossa existência” (CLÉMENT; RUPNIK, 2010, p.28). 

Talvez aqui se possa aplicar o princípio tomista de que o Corpo de Cristo no sacramento da Eucaristia não é substância perceptível aos sentidos, mas somente ao “olho espiritual” do intelecto (NADEAU, 2005, p.170). O papel do Espírito é deveras importante nesse contexto. Para Castellano, “a presença eucarística não é o fato mais alto e sublime, a meta e a recompensa do cristão, mas o sinal e o meio da presença pneumática permanente de Cristo, significada e aumentada por esse sinal sacramental” (CASTELLANO, 2008, p.170). Ou seja, a presença pneumática do Ressuscitado fora da Eucaristia (na Palavra, na Assembleia, na oração) densifica-se e se torna corporal na celebração litúrgica graças à epicle-se, ao poder do Espírito que torna eucaristicamente presente o corpo pascal de Cristo e nos configura a ele.

Por isso, Michael Böhnke defende a via epiclética como a mais elevada forma histórica da certeza da presença de Deus (BÖHNKE, 2020, p. 87). Invocar sua presença, recebê-la e comungá-la nas espécies eucarísticas do pão e do vinho significa estar “na presença do corpo pascal do Senhor, do corpo glorioso, isto é, do corpo transformado pelo Espírito Santo na ressurreição” (NADEUA, 2005, p.157). Sem a ação vivificante do Espírito quer seja no rito, quanto em nós, não é possível saborear antecipadamente a consumação escatológica revelada no banquete eucarístico (BENTO XVI, 2009, n.30, p.50). Nessa mesma Exortação, Bento XVI diz que “em cada celebração eucarística, realiza-se a unificação es-catológica do povo de Deus” (BENTO XVI, 2009, n.31, p.51). Falando da forma eucarística da vida cristã, ele diz que não é “o alimento eucarístico que se trans-forma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele” (BENTO XVI, 2009, n.70, p.102) e dessa forma, configurados a Cristo, nos tor-namos, por meio Dele, “pessoas eucarísticas” (BENTO XVI, 2009, n.96, p.141).

Conclusão

Espera-se que essas breves considerações sobre as obras de Zeno Carra e Fabrice Hadjadj sirvam de estímulo à leitura dos autores e ao aprofundamen-to de uma nova teologia eucarística que dialogue com a Escatologia e com a Pneumatologia. A forma processual e dinâmica proposta por Carra como chave hermenêutica para compreensão da presença de Cristo na celebração eucarística só pode ser validada, em nossa opinião, se levar em consideração o dado esca-tológico de uma “presença dada” antes da “presença processada” e que o Corpo ressuscitado de Cristo em sua forma escatológica não se constitui como um dos polos do poliedro, mas como espaço transcendente onde o próprio poliedro está circunscrito.

Uma das narrativas bíblicas mais eloquentes sobre a presença do Ressuscitado é o episódio de Emaús (cf. Lc 24, 13-35), sobre o qual serão tecidos os comen-tários finais do artigo, mas, antes, é necessário reconstruir a sequência dos acon-tecimentos:

a)    Os discípulos de Emaús não reconhecerem o Cristo Ressuscitado enquanto caminhavam e conversavam com Ele (cf. Lc 24, 15-17): tratava-se de uma presença real e corpórea e mesmo assim não o reconheceram. A presença de uma pessoa foi percebida, mas a pessoa não foi reconhecida.

b)    Os discípulos de Emaús contam para Cristo Ressuscitado a versão sobre os últimos acontecimentos (cf. Lc 24, 18-24): os discípulos ficaram sabendo da narrativa da Ressurreição, mas não acreditaram porque ninguém ainda tinha visto Jesus.

c)    Cristo Ressuscitado relembra e reinterpreta as Escrituras aos discípulos de Emaús, que sentem “o coração arder” enquanto o ouvem (Lc 24, 25-27.32): a palavra de Cristo uma vez dirigida aos discípulos ativa uma percepção espiritual ainda não compreendida, mas já sentida.

d)    Sentados à mesa, no momento da refeição, Cristo Ressuscitado é reconheci-do e desaparece (Lc 24, 28-31): É na sequência ritual de tomar o pão, aben-çoá-lo, parti- lo e dá-lo aos discípulos, que a pessoa de Cristo é reconhecida. 

No episódio de Emaús fica evidente que a presença de Cristo Ressuscitado é experimentada de forma progressiva. Vários elementos celebrativos e rituais precisam ser acionados para que aquela a presença se densifique: a caminhada, a contextualização dos últimos acontecimentos, a reinterpretação das Escrituras e finalmente o rito da fração do pão, que foi interpretado pela Tradição como uma referência à Eucaristia. Independente das várias possibilidades exegéticas que o texto admita, duas conclusões podem ser tiraradas:

1ª) Que a presença pneumática de Cristo no coração dos discípulos se fez sentir no momento que Cristo ensinava sobre as Escrituras e se tornou mais densa e determinante no momento da fração do pão, levando-os a reconhecerem Jesus; portanto, embora a presença de Cristo seja única, é possível termos dife-rentes níveis de acesso a essa presença, o que Zeno Carra chama de mediação processual pelas formas. O discípulo será sempre um dos polos do poliedro e sua participação nos diversos momentos do rito é fundamental para que o encontro com Cristo aconteça. E para além do relato bíblico, essa premissa antropológica do modelo faz parte da experiência da vida cristã.

2ª) Antes do desfecho eucarístico da narrativa de Emaús, a presença do Ressuscitado já era uma presença dada, ainda que não processada ou manifesta. Se a Eucaristia é mediação para comunhão com Cristo, não deveria ser tomada como um fim em si mesma, porque o Cristo comungado convida à fé na pro-messa de que Ele mesmo retornará glorioso a este mundo no fim dos tempos. A Eucaristia como antecipação escatológica deveria suscitar, primeiro, a extasiante alegria do paraíso, como ensaia Hadjadj, mas também um profundo compromis-so com as pessoas e com o mundo em que vivemos, já que, pelo Espírito, estão todos em processo de configuração a Cristo. E por fim, vale recordar que, ao partir o pão e ser reconhecido pelos discípulos, o evangelho não relata que Cristo os tenha deixado, mas apenas que “ficou invisível diante deles” (Lc 24,31).

 

Referências

BENTO XVI. Sacramentum Caritatis: Sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. 5 ed. São Paulo: Paulinas, 2009. 

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl.. São Paulo: Paulus, 2012. 

BÖHNKE, Michael. O Espírito de Deus na ação humana: Pneumatologia prática. São Paulo: Paulina, 2020. 

CANTALAMESSA, Raniero. “ISTO É O MEU CORPO”: À luz de dois hinos eucarísticos. 4 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2015. 

CARRA, Zeno. HOC FACITE: Studio teologico-fondamentale sulla presenza eucarística di Cristo. Assis: Citadella Editrice, 2018. 

CASTELLANO, Jesús. Liturgia e vida espiritual: Teologia, celebração, experiência. São Paulo: Paulinas, 2008. 

CLÉMENT, Olivier; RUPNIK, Marko Ivan. Ainda que tenha morrido viverá: Ensaio sobre a ressurreição dos corpos. São Paulo: Paulinas, 2010. 

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1962-1965, Cidade do Vaticano. Constituição Sacrosanctum Concilium In: VIER, Frederico (Coord.). Compêndio do Concílio Vaticano II. 25.ed. Petropólis: Vozes, 1996. 

CORBON, Jean. A fonte da liturgia. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2014. 

HADJADJ, Fabrice. O Paraíso à porta: Ensaio sobre uma alegria que desconcerta. São Paulo: É Realizações Editora, 2015. 

NADEAU, Marie-Thèrese. Eucaristia: Memória e presença do Senhor. São Paulo: Paulinas, 2005.