Pássaros engaiolados e anjos assassinados: a dimensão profética da arte de Zuzu Angel e a luta de D. Paulo Evaristo Arns pelos direitos humanos (Brasil: nunca mais)    
Caged birds and murdered angels: the prophetic dimension of Zuzu Angel’s art and the struggle of D. Paulo Evaristo Arns for human rights (Brazil: never again)     

Breno Martins Campos*
Ceci Maria Costa** 

*Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: brenomartinscampos@gmail.com 
**Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas). Contato: 
ecibmariani@gmail.com 

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Resumo:

Para Wassily Kandinsky (1866-1944), o artista verdadeiro é alguém que põe a vida em movimento, abre caminhos bloqueados, vê e faz ver o que ainda será. Como hipótese de trabalho, portanto, assumimos que a arte possui uma perspectiva profética, sendo assim, nosso artigo aborda a dimensão profética da obra artística da estilista brasileira Zuzu Angel (1921-1976). Tendo perdido seu filho Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971), torturado e assassinado por agentes do regime ditatorial brasileiro, ela transformou sua arte em grito de protesto – e realizou aquele que pode ser considerado o primeiro desfile de moda político da história. As roupas com estampas e bordados de pássaros engaiolados e anjos colocados na mira de tanques e canhões, para além do aspecto político em si, eram expressões de uma energia espiritual, que pode ser interpretada em correlação com a espiritualidade da libertação, encarnada na América Latina no âmbito das igrejas cristãs a partir da década de 1960. Em plena ditadura civil-militar no Brasil, os caminhos de Zuzu Angel se entrecruzaram com a vida e a obra de D. Paulo Evaristo, Cardeal Arns (1921-2016) – profeta da esperança e da resistência. O testemunho de ambos é um grito que ecoa na história: “Brasil, nunca mais”. 

Palavras chave: Espiritualidade da libertação; protesto político; Zuzu Angel; D. Paulo Evaristo Arns; ditadura 

Abstract

According to Wassily Kandinsky (1866-1944), the true artist is someone who sets life in motion, clears obstructed paths, sees and makes us see what the future holds. Therefore, as a working hypothesis, we assume that art has a prophetic perspective and, on this account, this article addresses the prophetic dimension of the artistic work of Brazilian stylist Zuzu Angel (1921-1976). Having lost her son Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971) tortured and murdered by agents of the Brazilian dictatorial regime, she turned the art into a cry for protest - and held what can be considered the first political fashion show in history. Clothing prints and embroidery depicting caged birds and angels at the aim of war tanks, in addition to the political aspect itself, were expressions of a spiritual energy, which can be interpreted in correlation with the Spirituality of Liberation, embodied in Latin America in the scope of Christian churches since the 1960s. Amidst the civil-military dictatorship in Brazil, the paths of Zuzu Angel intersected with the life and work of D. Paulo Evaristo, Cardinal Arns – prophet of hope and resistance. The testimony of both is a cry that echoes in history: “Brazil, never again”. 

Keywords: Spirituality of Liberation; political demonstration; Zuzu Angel; D. Paulo Evaristo Arns; dictatorship 


Introdução 

Partimos do pressuposto de que, de fato, a arte tem uma dimensão profética. Como afirma Vassily Kandinsky (1966, p. 32), ela atua abrindo espaço em caminhos que se encontravam bloqueados, o artista é alguém que “possui uma força de ‘visão’ misteriosamente infundida nele”. “Ele vê o que será e o faz ver”, mesmo que com este dom seja exposto a zombarias e ódio; contudo, continua Kandinsky, o artista verdadeiro “atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de soltá-la das pedras que a retém e, com todas as suas forças, impele-a para frente”. 

Conforme afirma Andreaei Arsensevich Tarkovski (1998), a arte que brota da profundidade abissal se dirige ao que está vivo, considerando sua beleza e feiura, sua luz e sombra, sem medo da lama nem da cruz. Ela não se esquiva da sujeira do mundo. Para falar do que está vivo, lança mão do que está morto; para falar do infinito, mostra o finito. Fala da beleza por meio da feiura, de bondade com imagens de crueldade e maldade. O artista realmente genial é aquele que se encontra “num estado paradoxal de equilíbrio instável entre uma ânsia de felicidade e a convicção de que esta, enquanto realidade ou estado exequível, não existe” (TARKOVSKI, 1998, p. 59). 

O artista sabe, porque antevê, que a verdadeira felicidade não pode ser adquirida nem dominada, pois consiste na aspiração ao Absoluto – desejada por nós, sendo religiosos ou não. A arte a que se refere Tarkovski (1998) é crítica, emite sinais de advertência, possui vocação profética. Obras-primas, observa ele, quase sempre se tornam prenúncio do choque entre o novo e o velho. Ousamos acrescentar, em diálogo com a tradição teológica, que a vocação profética da arte atrai para o artista, em muitos casos, a incompreensão de seus contemporâneos. 

Foi justamente a dimensão profética que aflorou na arte de Zuzu Angel, estilista brasileira, natural de Curvelo-MG, impactada pelo drama familiar que a colocou dentre as mães que perderam seus filhos para a ditadura militar. Como uma Pietá de braços vazios, a ela foi negada a possibilidade de ao menos poder enterrar o corpo do filho brutalmente assassinado. Zuzu Angel transformou seu lamento em protesto e passou a denunciar com sua arte o poder que aprisiona, tortura e mata inocentes. 

Stuart Edgar Angel Jones, filho de Zuleika (Zuzu) Angel Jones e Norman Angel Jones, era estudante de Economia no Rio de Janeiro e militante ligado ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Foi acusado de participar do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick e preso em 1971. Conforme relatório publicado no site “Memórias da Ditadura”,1 supõe- -se que as prisões de Stuart e de outros integrantes do MR-8 e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) estivessem ligadas ao fato de Carlos Lamarca, em abril de 1971, ter deixado a VPR e ingressado no MR-8. No início de maio de 1971, o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) já sabia que Lamarca tinha ido para o MR-8 e queria capturá-lo de qualquer maneira. Stuart foi barbaramente torturado até a morte – conforme depoimento escrito de Manoel Henrique Ferreira, encaminhado ao cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns – pelos agentes do CISA, para que revelasse o paradeiro de Carlos Lamarca: 

Dias após minha prisão, quando passava pela fase de torturas, na quinta ou sexta-feira (não sei precisar o dia exato, pois devido às condições em que me encontrava, tinha perdido a noção do tempo), fiquei sabendo, pelo “dr. Pascoal” (tenente-coronel Abílio Alcântara), que Stuart havia sido preso. Pela tarde “dr. Pascoal” abre a cela e me mostra uma carteira de identidade, para ver se eu conhecia a pessoa que tinha ali sua fotografia. [...] Ele, tenente- -coronel Abílio Alcântara, deu um pequeno sorriso e disse que Stuart se encontrava [...]; que o haviam prendido naquele dia. [...] Logo após, de minha cela ouvi um intenso barulho no pátio, uma grande movimentação, gritos e barulho de motores de carros que saíam apressados. À noite, veio um médico, acompanhado pelo tenente-coronel Muniz (“dr. Luiz”), visitando todas as celas. Este, ao chegar à minha cela, pergunta-me se eu já sabia que o Stuart estava preso. Ante minha resposta afirmativa ele fala-me que naquela noite ia entrar outro “peixe grande”. Mais tarde, fui levado para a cela da equipe de análises, onde se encontravam os brigadeiros João Paulo Burnier e Carlos Affonso Dellamora, que logo se retiraram, e outros dois indivíduos da equipe de análise, o “dr. Pedro Paulo” e outro oficial que não sei o nome. Estes dois fizeram-me sentar e disseram que o Stuart estava preso, que haviam recolhido algum material em seu aparelho e queriam algumas informações [...]. Antes de me mandar de volta para a cela, o “dr. Pedro Paulo” ainda me disse que “agora que pegamos Stuart, em dois dias chegaremos ao capitão Lamarca”. Quando de volta à cela, percebi que em uma delas, que ficava próxima à entrada do corredor, havia alguém gemendo muito e às vezes gritava. [...] que pela madrugada se interromperam. Logo depois houve uma grande balbúrdia pelo corredor. Abriram uma cela e ouvi claramente quando alguém pediu que trouxessem um tapete. Depois cessou a movimentação e não voltei a ouvir mais os gemidos.2

Buarque (música de Miltinho), composta pouco depois de sua morte em um acidente de carro.4 Uma semana antes de sua morte, já recebendo ameaças, ela deixou na casa do compositor um bilhete para alertar aos amigos que, se algo acontecesse a ela, como um desastre de automóvel, seria responsabilidade dos mesmos poderes que mataram seu filho, segundo relata Zuenir Ventura (In: VALLI, 1986, p. 24). 

Zuzu Angel, conforme a poesia de Chico Buarque, é essa mulher que canta sempre o mesmo arranjo, com o desejo de agasalhar seu anjo e deixar seu corpo descansar. 

Com os verbos embalar, agasalhar, deixar descansar, lembrar o tormento, essa mulher simboliza as funções maternas como também uma denúncia profética de que ela não esquecerá e nem permitirá que a memória do seu filho torturado permaneça inculpada (RODRIGUES; RODRIGUES, 2021, p. 178). 

Neste artigo, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, pretendemos apontar a dimensão profética da arte da designer de moda Zuzu Angel, em correlação com a luta pelos direitos humanos empreendida por D. Paulo Evaristo Arns, motivada, sobretudo, pela espiritualidade da libertação – uma experiência espiritual vivenciada na América Latina, sob inspiração do Concílio Vaticano II (1962-1965), acolhido pela Igreja latino-americana na Conferência de Medellín, na Colômbia (1968). 

1. Espiritualidade profética na ditadura – Brasil: nunca mais 

Profeta não é quem adivinha o futuro: “A função do ministério profético e alimentar, nutrir, fazer surgir uma consciência e uma percepção alternativa à consciência e à percepção culturais dominantes à nossa volta” (BRUEGGEMANN, 1983, p. 12). Assim, podemos aproximar a arte da profecia e o artista do profeta, pois ambos veem e fazem ver o que ainda não está posto, trazem à existência o que ainda não é. 

No Brasil, por exemplo, um dos arautos da espiritualidade profética durante a ditadura militar foi D. Paulo Evaristo Arns. O livro Brasil: nunca mais, ao qual o nome dele está indelevelmente associado, é um dos marcos de seu ministério profético – por denunciar a consciência e a percepção hegemônicas, associadas à morte, e anunciar esperança. “Nunca mais” é o mesmo de dizer para que não se repita. A obra registra “um relato para a história” e para a memória do período em que o regime de exceção gerou tantos “crucificados” e “crucificadas” no Brasil, dentre os quais o jovem militante Stuart Angel. 

O projeto Brasil: nunca mais, esclarece Magali Cunha (2014), tinha inicialmente como proposta a composição de um acervo com cópias de processos judiciais de presos políticos – que um grupo de advogados percebeu ser possível fazer no curto período em que ficavam disponível para exame. Ganhou grande proporção este projeto quando foi assumido pelo pastor presbiteriano Rev. James (Jaime) Wright – que procurava seu irmão, Paulo Stuart Wright, deputado estadual por Santa Catarina, que teve seu mandato cassado, foi sequestrado pelo regime e desapareceu nos porões da ditadura – e por D. Paulo Evaristo Arns. Com recursos obtidos do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), conseguiram montar uma estrutura que recolheu em seis anos de trabalho milhares de cópias, a partir das quais se produziu um grande relatório de 6.891 páginas, em doze volumes, que foram entregues a universidades, bibliotecas e centros de documentação de entidades dedicadas à defesa dos direitos humanos no Brasil.5 Como parte de um esforço mais amplo, D. Paulo viabilizou a produção de um livro, organizado por Ricardo Kotscho e Frei Betto, sob a coordenação de Paulo de Tarso Vannuchi. Publicado em 1985 pela Editora Vozes, Brasil: nunca mais é ainda uma das referências importantes na luta em defesa dos direitos humanos no Brasil, um dos aspectos marcantes da pastoral de D. Paulo à frente da Arquidiocese de São Paulo. 

No acervo digital Zuzu Angel,6 por sua vez, consta que a Coleção Pastoral, lançada em 1970, que inclui peças compostas em patchwork de rendas brasileiras variadas em tonalidade bege (vindas do Nordeste), tenha sido uma espécie de homenagem às pastorais de D. Paulo Evaristo Arns, além de ter como referência as pastoras propriamente ditas. Além disso, no mesmo site, pode ser encontrado também um bilhete, de 1973, escrito pelo Cardeal Arns, notificando a recepção de uma mensagem de Zuzu Angel, acompanhada de documentação (provavelmente sobre a morte e desaparecimento do filho), que atesta esse frutífero contato entre a estilista (a artista profeta) e o cardeal (o profeta artífice de um novo mundo, novos tempos): 

Não é possível, que o sacrifício de um jovem seja inútil à História de um País que tanto precisa de jovens. Nossa Senhora teve consolo de apertar em seus braços o cadáver do Filho torturado, e ainda ensanguentado. E é ela que transmitirá à mãe de Stuart um consolo, se possível, nesta terra. Nossa história, e o Deus da História, nos confiam a tarefa de lutarmos pelos direitos humanos dos jovens e das mães.7 

Em sua busca desesperada pelo filho desaparecido, Zuzu Angel foi a D. Paulo – que a consolou com palavras muito confortadoras, a despeito de não poder resolver concretamente a situação. O acolhimento do cardeal foi, para ela, que se sentia como uma das mães de mártires – “essas malucas que procuram desaparecidos” – muito significativo: “Pelo menos há alguém importante, um cardeal, que responde ao apelo das vítimas – D. Paulo Evaristo Arns. E ele não esquece de dar o nome do meu filho quando se fala em torturados e desaparecidos. E sei que nunca deixou de rezar por nós” (In: VALLI, 1986, p. 44). D. Paulo se referia ao conforto divino para além da história, mas tratava também de justiça no aqui e agora. 

A Igreja de D. Paulo foi, certamente, um dos locais em que a espiritualidade da libertação latino-americana deixou mais visivelmente os traços de seu rosto profético, porque nascida da experiência espiritual concreta de agentes de pastoral (religiosos e leigos) que, indo ao mundo, segundo orientação do Concílio Vaticano II, descobre a face sombria da modernidade. Os vários estudos sobre a situação do sujeito latino-americano, lembra-nos o Documento de Medellín (1.1), descrevem a miséria que marginaliza grandes grupos humanos. A justiça, conforme denúncia o mesmo documento no capítulo que abre a primeira parte, sobre a promoção humana, não tem sido respeitada nos vários setores das comunidades nacionais. Faltam boas condições de educação e trabalho, igualdade de direito e de fato entre homem e mulher. Falta integração cultural. No campo econômico, “implantaram-se sistemas que encaram só as possibilidades dos setores com alto poder aquisitivo”, é frequente também a instabilidade política e falta solidariedade (Med., 1.2). 

Os problemas que citamos são apenas alguns dos muitos que fazem parte das contradições modernas enfrentadas na América Latina. Elaborado segundo o método ver, julgar, agir, o Documento de Medellín aponta muitos outros problemas que constituem a face perversa da modernidade na periferia do mundo. Acolhendo o espírito do Concílio traduzido em termos latino-americanos pelos bispos reunidos em Medellin, certas lideranças da Igreja Católica, D. Paulo incluído, começaram a implementar uma pastoral orientada “pela justiça e pela solução dos problemas sociais que deveriam ser considerados sob a ótica cristã, na qual o homem ocupa o primeiríssimo lugar” (ARNS, 2001, p. 110). 

O espírito missionário insuflado pelo Vaticano II e por Medellín provocou um deslocamento que, segundo Gustavo Gutiérrez (1984, p. 13), significou um kairós: “Todo um povo se pôs em marcha para construir um mundo no qual as pessoas sejam mais importantes que as coisas, todos possam viver com dignidade”. Solidários com as vítimas, sacerdotes, religiosas, religiosos, leigos e leigas agentes de pastoral descobrem, na convivência com os pobres, na solidariedade com os sofredores, os sinais da presença de Deus no meio do mundo. Como salienta o Cardeal Arns (2001, p.121), a partir de sua experiência de pastor na Arquidiocese de São Paulo, no exercício da implantação de uma ação de emergência recomendada pelo Papa João XXIII para a América Latina, uma grande vitalidade reanimou as lideranças em sua atuação pastoral: 

Nada pode reanimar tanto o vigário e os colaboradores leigos quanto a possibilidade nova que lhes é oferecida para cumprirem sua função profética, na palavra, sua função sacerdotal, na oração e no oferecimento da vida, e sua função régia no serviço, ou seja, na transformação do lugar e da sociedade em que vivem. 

A “Operação-Periferia” fez parte desse movimento pastoral e profético; motivada pela Campanha da Fraternidade de 1972, constituiu-se na mobilização de recursos humanos e cristãos em favor dos marginalizados da cidade de São Paulo, que na época recebia milhares de brasileiros vindos de outros estados, “despreparados para a vida urbana e incapazes de inserir-se numa sociedade industrializada” (ARNS, 1978, p. 89). Esperava-se com essa mobilização atingir, a longo prazo, uma “vivência fraterna e espírito de colaboração com todo o Brasil, ampliando a Operação Periferia até a ajuda de São Paulo à Amazônia” (ARNS, 1978, p. 89). 

Além disso, nos anos de grande repressão política, a atenção à periferia envolveu a busca de meios jurídicos para oferecer socorro às vítimas do regime ditatorial que se encontravam nas prisões, estavam desaparecidas ou sofrendo torturas. Formou-se, então, a “Comissão de Justiça e Paz”, que fez da cúria de São Paulo um polo de atração de refugiados de vários estados brasileiros e até de outros países latino-americanos. “O povo acordara para a sua libertação”, lembra D. Paulo (ARNS, 2001, p. 209), e fazia propostas de ação para um país mais justo. A pastoral dos Direitos Humanos “predominava nas reuniões episcopais onde os problemas mais oprimiam a alma e a iniciativa do povo” (ARNS, 2001, p. 209). Neste memorial, o Cardeal faz questão de destacar a presença do reverendo Jaime Wright – a demonstrar a necessária abertura da espiritualidade da libertação ao ecumenismo. 

Como mostram os exemplos que destacamos, a espiritualidade da libertação é fruto de uma práxis que dá novo sentido, mais objetivo, à caridade. Segundo Gutiérrez (1984), a verdadeira caridade não deve partir do dever subjetivo de praticar o amor, mas das necessidades concretas do outro. Sendo respeitosa ao próximo, “deve partir de uma análise de sua situação concreta e de suas exigências” (GUTIÉRREZ, 1984, 119). Deve ter a preocupação com a busca da eficácia, pois a luta contra a injustiça exige análise adequada de suas causas e do eventual tratamento. Mas a busca de eficácia deve estar envolvida na confiança que o poder vem de Deus, pois é quem atribui nova vigência à vivência da gratuidade. A experiência é do poder de Deus que envolve os sujeitos, ao mesmo tempo em que solicita deles um compromisso real e eficaz. A alternativa transformadora – profética e artística –, que se busca com o máximo esforço humano, também se experimenta como dádiva divina. 

A espiritualidade da libertação que se encarnou na Igreja latino-americana, podemos acrescentar, não foi uma experiência isolada. O ímpeto profético, uma de suas características marcantes, esteve presente em outros lugares do mundo – noutras formas de teologias e espiritualidades – e em vários setores das sociedades (para além das fronteiras eclesiásticas). Segundo o escopo deste artigo, afirmamos que se manifestou de forma admirável na arte, como atesta a obra de Zuzu Angel. 

2. A trajetória artística de Zuzu Angel: o primeiro desfile político do mundo 

Nascida em Minas Gerais, como já mencionamos, Zuzu Angel foi casada com Norman Angel Jones, cidadão estadunidense, com quem teve um filho, o primogênito Stuart Edgar Angel Jones, e duas filhas (Hildegard e Ana Cristina). Começou sua carreira trabalhando como costureira, com grande potencial criativo e veia empreendedora, projetou-se como figurinista; sua produção, autenticamente brasileira, causou grande impacto no exterior, começando por Nova Iorque, onde mantinha um escritório.8

A inspiração de Zuzu Angel eram flores e pássaros, moda leve, mas, ao mesmo tempo, ousada. Na contramão de uma certa moda brasileira muito dependente da francesa, trabalhava com referências nacionais: “Misturava estamparias nos vestidos, xadrez com pois, desfilava noivas de calças compridas [...], lançava renda do norte, fazia roupas de chita com rendão. Costurava pedras semipreciosas de Minas nos vestidos [...], aproveitava o folclore” (In: VALLI, 1986, p. 21). Era aplaudida no exterior e atendia clientes da elite brasileira e grandes estrelas do cinema americano. Sua arte, entretanto, ganhou um novo rumo com o desaparecimento do filho – para fazer surgir uma alternativa contra a consciência hegemônica. 

Eu sou uma mineira jeca. Agora virei uma negocista (nisto puxei meu tio e padrinho Oscar). Só penso em trabalhar e ganhar dinheiro para dar o melhor aos meus filhos, principalmente depois que o pai deles me deixou e foi fundar um orfanato para criar os filhos das outras. Agora tenho que entrar nessa política e virar militante. Que jeito? A procura do meu filho, e depois dos filhos das outras, me envolveu completamente. [...] Como não viver o drama das outras mães que não tinham coragem ou, às vezes, nem tinham dinheiro para sair pelo mundo gritando, como eu fazia para procurar meu filho desaparecido, isso é, assassinado na tortura? (In: VALLI, 1986, p. 31-32). 

Em sua busca obcecada pelo filho, conheceu a verdadeira história do Brasil posterior ao golpe militar: “Começo a aprender nessa escola, em conta-gotas, em que cada gota dói e queima. Que é tortura? Existe tortura?”; e toma consciência da ilusão que não é só sua: “Eu, na minha santa ignorância. Fazendo moda, vestidinho com flor e passarinho. Moda alegre, descontraída. Moda liberdade. [...] A moda como uma força viva de expressão e comunicação” (In: VALLI, 1986, p. 34). Solidariza-se com tantas mães que, como ela, estavam enfrentando a truculência do sistema montado para imprimir a moços e moças, operários, padres e ministros religiosos, mulheres grávidas a morte-suplício, usando da “arte de reter a vida no sofrimento, dividindo-a em mil mortes até acabar. Milhares de agonias até morrer” (In: VALLI, 1986, p. 34). Por caminhos transversos, soube que o filho teria sido arrastado, com os braços presos a um jipe e com a boca próxima ao escapamento, na Base Aérea do Galeão; o drama, afirma sua filha Hildegard (In: VALLI, 1986), não matou seu ímpeto criativo. Intensificou a linha dos passarinhos e dos anjinhos, figuras com as quais trabalhou de forma incrivelmente imprevisível em seu icônico desfile-protesto, o primeiro dessa categoria realizado no mundo. 

Em setembro de 1971, ano da morte de seu filho, Zuzu Angel lançou uma coleção com um desfile na residência do cônsul do Brasil em Nova Iorque. Dividida em três partes, apresentava, na primeira, roupas descontraídas para viagens, férias e lazer. A segunda foi dedicada a roupas para ocasiões especiais, vestidos esvoaçantes em sedas e organzas. Por último, apresentou seu protesto político por meio de vestidos brancos com modelagem ampla, bordados com desenhos de traços singelos e infantis, mas com clara referência à violência e ao desrespeito aos direitos humanos praticados no Brasil: anjos amordaçados, meninos aprisionados, sol atrás das grades, jipes, quepes, tanques de guerra, canhões.9 O tema do luto dominou alguns dos figurinos e, no fim do desfile, a própria Zuzu Angel se apresentou com um vestido longo preto, adornado com um cinto com muitas cruzes e usando um anjo de porcelana no pescoço.10

Neste marcante evento, aparece claramente a força profética da arte de Zuzu Angel. Fazendo uso de linguagem simbólica, grita com elegância contra a truculência com que se vitimavam os mais fragilizados no Brasil. Coloca os holofotes da moda apontados para desenhos infantis em tecidos esvoaçantes que falam para “aquele que tem ouvidos para ouvir” (Mc 4,9) sobre as coisas que aconteciam por baixo dos panos da ditadura militar. Por certo, como elabora Kandinsky (1966), abre passagens no paredão de pedras – que atravanca não apenas o seu caminho, mas o de tantas pessoas que se envolveram na luta por uma vida melhor. Com destreza admirável, usa de imagens delicadas para mostrar a feiura e a sombra, sem medo da lama e nem da cruz (TARKOVSKI, 1998). 

A luta de Zuzu Angel continuou até sua morte prematura em 1976. Lançou várias coleções, assumindo o anjo como marca identificadora de seu trabalho. No entanto, “a sua força mental”, comenta Hildegard, seria empregada na documentação e na denúncia da morte do filho: “Peregrinava de casa em casa, procurava as pessoas influentes. Ela própria começou a escrever, com sua ação, a história do filho mártir. Queria deixar bem documentada a importância do seu sacrifício” (In: VALLI, 1986, p. 22). 

Assim como os agentes de pastoral movidos pela espiritualidade da libertação, Zuzu Angel realizou um êxodo. Saiu do seu lugar de empresária bem sucedida e se colocou ao lado das vítimas, solidarizando-se, como vimos, com o drama de outras tantas mães que, sem coragem nem dinheiro, não podiam gritar como ela. Podemos dizer que fez de sua causa pessoal uma práxis libertadora. Com sua postura obstinada, firme e corajosa, inspirou, como testemunhou Nilo Baptista (então presidente da OAB do Rio de Janeiro), a luta pela justiça em prol de liberdade, vida e felicidade. 

A figura admirável de Zuzu Angel dominava as audiências de julgamento. Vestida de preto, com uma mantilha também preta sobre os ombros pequenos, suas feições transmitiam uma serena obstinação, uma firmeza desafiante que a convertiam num autêntico órgão acusador daquelas sessões judiciárias. Ela, sim, formulava, em seu silêncio, uma formidável acusação de tortura e de morte, que remarcava toda a discussão do processo. A última vez em que estive com ela foi uma semana antes de sua morte, em minha casa. Sua tenacidade se desdobrava, então, na denúncia internacional do martírio de Stuart. Ela o absolveu nos três processos. Onde quer que esteja, junto a seu filho querido, Zuzu Angel nos inspira a não nos determos jamais diante do arbítrio e do autoritarismo, e a tentar construir uma Justiça para a liberdade, a vida e a felicidade (In: VALLI, 1986, p. 68). 

Podemos dizer que também foi assim a luta pelos direitos humanos empreendida pela pastoral de D. Paulo Evaristo Arns, impulsionada pela espiritualidade da libertação. Os caminhos da artista e do profeta se entrecruzaram não somente pelas verdades que compartilhavam, mas de fato pelas lutas que empreenderam. 

Conclusão 

No centenário do nascimento de D. Paulo, optamos também por fazer memória do centenário de Zuzu Angel – correlação (ou sincronicidade) que não pode simplesmente passar despercebida, pois se impõe. São duas figuras nacionais que marcaram a história do Brasil – e da humanidade – com palavras e atitudes artísticas e proféticas (de intervenção propriamente dita). Habitantes de diferentes mundos, usando diferentes linguagens, cruzaram-se numa luta comum pelos direitos humanos – de cada pessoa e de todas elas. 

Como se pode constatar, retomando essas memórias, são duas presenças reveladoras do anseio de libertação que aflora na América Latina, assolada que estava por regimes ditatoriais na segunda metade do século passado – e que ainda não deixaram de existir em alguns países e, noutros casos, ameaçam voltar –, e obrigada a atravessar a face escura da modernidade. Com certeza, cada qual a seu modo, D. Paulo e Zuzu Angel apontam a presença de Deus no meio do mundo, sofrendo ao lado das vítimas e conferindo forças de ressurreição. 

É preciso desfilar a arte contra a morte, caso contrário, desfiles de morte podem acabar por silenciar a arte, a profecia, a esperança. É preciso desfilar a arte como resistência, para que a política de morte nunca mais se repita. “Brasil: nunca mais”! 


Referências

ANDRADE, Priscila. A marca do anjo: a trajetória de Zuzu Angel e o desenvolvimento da identidade de sua grife. Iara – Revista de Moda, Cultura e Arte. São Paulo, v. 2, n. 2, out./dez. 2009, p. 85-119. Disponível em: http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistaiara/wp-content/uploads/2015/01/05_IARA_ vol2_n2_Dossie.pdf. Acesso em: 15/09/2021. 

ARNS, P. E. Da esperança à utopia: testemunho de uma vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. 

ARNS, P. E. Em defesa dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Ed. Brasília Rio, 1978. BRASIL: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. 

BRUEGGEMANN, W. A imaginação profética. São Paulo: Paulinas, 1983. 

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documentos do CELAM: conclusões das Conferências do Rio de Janeiro, de Medellín, Puebla e Santo Domingo. São Paulo: Paulus: 2004. 

CUNHA, M. N. Memória, verdade e justiça: o Projeto Brasil Nunca Mais e a comunicação alternativa nos anos de chumbo no Brasil. Lumina, v. 8, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21143. Acesso em: 13 out. 2021. 

GUTIÉRREZ, G. Beber do próprio poço. Petrópolis: Vozes, 1984. KANDINSKI, W. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1966. 

RODRIGUES, S. G. F.; RODRIGUES, R. G. Lamento angelical em Angélica. In: CAVALCANTE, R. Essas Mulheres: o protagonismo da mulher nas canções de Chico Buarque. São Paulo: Recriar, 2021. p.175-186. 

TARKOVSKI, A. A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 

VALLI, V. “Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho”. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986. 

Notas

[1]  Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/memorial/stuart-edgar-angel-jones/. Acesso em: 13 out. 2021. 

[2] Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/memorial/stuart-edgar-angel-jones/. Acesso em: 13 out. 2021. 

[3] “Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho? / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar. // Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento? / Só queria lembrar o tormento / Que fez o meu filho suspirar. // Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo? / Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar. // Quem é essa mulher / Que canta como dobra um sino? / Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hGRMIUbFEW0. Acesso em: 11 out. 2021. 

[4] Sobre a possibilidade de envolvimento da ditadura militar na morte de Zuzu Angel, não se tratando, portanto, de um mero acidente, cf.: “Cláudio Guerra liga coronel à morte de Zuzu Angel”. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/outros-destaques/506-claudio-guerra-liga-coronel-a-morte-de-zuzu- -angel.html. Acesso em 13 out. 2021. 

[5] Para uma ampla consulta a todo o material (ampliado e atualizado), cf. o BNM DIGIT@L. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/. Acesso em: 12 out. 2021. 

[6] Disponível em: www.zuzuangel.com.br. Acesso em: 12 out. 2021. 

[7] Disponível em: http://www.zuzuangel.com.br/documental/carta-original-de-d-paulo-evaristo-arns. Acesso em: 13 out. 2021. 

[8] Sobre a trajetória profissional de Zuzu Angel, cf. Priscila Andrade (2009). 

[9] Disponível em: http://www.zuzuangel.com.br/clothes/political-protest-dress-long-sleeve. Acesso em: 12 out. 2021. 

[10] Disponível em: http://www.zuzuangel.com.br/vestuario/xale-luto-de-zuzu-conjunto-com-vestido-lenco-cinto-e-colar. Acesso em: 12 out. 2021.