Reflexões antropológicas e teológicas sobre a liberdade humana
Anthropological and theological reflections on human freedom

Renato Alves de Oliveira
Doutor em Teologia Sistemática pela Pontíficia Universidade Gregoriana de Roma (Itália). Professor de teologia sistemática na Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC MINAS). Contato: praobh@yahoo.com.br



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Resumo: 

Este artigo se propõe a refletir sobre alguns aspectos antropológicos e teológicos da liberdade humana. Um dos objetivos do artigo é refletir sobre os aspectos antropológicos da liberdade humana como a diferença entre a liberdade eletiva e a entitativa, a relação entre pessoa e liberdade humanas, a morte como consumação da história da liberdade e as correntes do pensamento contemporâneo que negam a existência da liberdade. O outro objetivo é meditar sobre os aspectos teológicos da liberdade humana, partindo de sua fundamentação bíblica, as suas principais dimensões cristãs, a relação entre a graça divina e a liberdade humana e sobre a possibilidade da liberdade se equivocar em suas decisões, fazendo uma opção infernal. O método usado é o de análise antropológica e teológica de algumas categorias que compõem a liberdade humana. As conclusões objetivam mostrar, contrariamente ao que foi defendido pela modernidade e por alguns teólogos contemporâneos, que Deus e a liberdade são duas magnitudes alérgicas, mas há uma reciprocidade entre ambos. A noção de Deus não fere a autonomia e o exercício da liberdade humana.

Palavras-chave: Pessoa; Liberdade; Antropologia; Teologia

Abstract

This article aims to reflect on some anthropological and theological aspects of human freedom. The anthropological aspects focus on issues such as the difference between elective and entitative freedom, the relationship between human beings and human freedom, death as the consummation of the history of freedom, and the currents of contemporary thought denying the existence of freedom. This study also reflects on the theological aspects of human freedom starting from its biblical foundation, on its main Christian features, the relationship between divine grace and human freedom, and the possibility for freedom to make wrong decisions opting for the infernal choice. The method used in this study is based on the anthropological and theological analysis of some categories of human freedom. The conclusion shows that, contrary to what modernity and some contemporary theologians have argued that God and freedom are two antagonistic magnitudes, there is reciprocity between them. The notion of God neither harms autonomy nor the exercise of human freedom.

Keywords: Person; Freedom; Anthropology; Theology


Introdução

No campo antropológico, a liberdade é um patrimônio inabdicável do sujeito. Trata-se de uma questão latente ao sujeito desde o seu nascimento. O ser humano não tem, mas é verdadeiramente livre. Já nasce livre. Dizer pessoa significa dizer um ser que é realmente livre. A liberdade não é uma dimensão conferida ao ser humano por um agente externo (estado, religião, sociedade etc.) e nem consiste num aspecto que ele conquista, mas trata-se de dimensão que reside na estrutura ontológica do ser humano. A liberdade pulsa latentemente dentro do ser humano. A liberdade é sinônimo de pessoa e vice-versa. O ser humano é uma subjetividade livre. Criado na e para liberdade, o ser humano é a liberdade em ação. O ser humano é a plataforma na qual a liberdade age. Ele é uma liberdade encarnada e concreta. É na liberdade que o ser humano acontece e se torna. A liberdade não é uma possibilidade latente no seu existir, mas uma certeza ontológica que habita sua interioridade. Mas do que uma faculdade eletiva, capacidade de escolher, a liberdade de uma dimensão ontológica, pois trata-se de uma faculdade estruturante do ser humano. A liberdade é faculdade da determinação em vista do eterno e do definitivo. O exercício da liberdade finda com a morte. Com a morte se dá a conclusão da história da liberdade. A morte é a última possibilidade com a qual a liberdade se depara. A liberdade é vista, por algumas correntes do pensamento contemporâneo, como uma faculdade ilusória e uma construção fictícia da sociedade ocidental.

No campo teológico, a liberdade humana possui uma dimensão bíblica. Um dos nomes de Deus é liberdade. Somente um Deus livre pode chamar livremente a criação à existência. O ser humano não é fruto de uma necessidade ou de uma obrigação, mas da liberdade de Deus. A encarnação é um ato livre de Deus. Jesus é a expressão máxima da liberdade cristã, pois foi livre diante de Deus e da realidade social, religiosa, política e cultural de sua época. A liberdade cristã é uma liberdade serviçal e em comunhão com a liberdade social, política, religiosa e civil. A liberdade humana não está em conflito, mas em harmonia com a graça divina. A afirmação da liberdade não nega a graça, mas se dá em comunhão com ela. Liberdade humana e graça divina se afirmam reciprocamente. A liberdade pode se equivocar em suas decisões de modo que o ser humano seja capaz de fazer uma opção equivocada por si mesmo de forma egolátrica, precipitando na solidão de num estado infernal.

1 Reflexões antropológicas sobre a liberdade humana

1.1 Características da liberdade humana

A liberdade humana foi compreendida historicamente como uma faculdade eletiva. Referia-se à capacidade de escolher diante de uma pluralidade de possibilidades. Imerso na infinitude das possibilidades finitas, o ser humano era convocado a eleger entre uma possibilidade ou outra, entre um bem finito ou outro. A liberdade enquanto faculdade eletiva se refere à escolha de uma possibilidade, de um bem ou alguma coisa exterior ao sujeito que elege. Trata-se de uma visão extrínseca e objetiva da liberdade humana. No entanto, a noção de liberdade humana não se restringe a uma mera capacidade de eleição, pois ela é também uma faculdade entitativa no sentido de uma atitude que a pessoa possui para dispor de si em vista de sua realização. É a capacidade humana de se autoconstruir como um projeto. Não é a possibilidade de fazer o que eu quero, mas entitativamente é capacidade de ser si mesmo, de se autoeleger e de compor a própria identidade. Trata-se de uma autodecisão em vista de uma autorealização. É escolha de si mesmo com o escopo de construir a própria personalidade e o seu próprio destino. Não é a liberdade enquanto capacidade de escolhas singulares e pontuais de objetos finitos, mas como faculdade fundacional do ser. Não é uma liberdade baseada em eleições provisórias, mas que tende ao definitivo, ao permanente e ao ser. A liberdade não consiste em fazer o que apetece ao sujeito, mas significa ser mais humano, mais pessoa, mais uno em si mesmo (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 187; RAHNER, 2007, p. 196; LADARIA, 1998, p. 74; PERSCH, 1988, 382-386; METZ, 1970, p. 171) “A liberdade não é, pois, primeiramente, capacidade de eleição deste ou daquele objeto, mas deste ou daquele modelo de existência, cuja realização se subordina a eleição dos objetos, ou seja, a seleção do material indispensável para cunhar a mesmidade pessoal” (RUIZ DE LA PEÑA, 1978, p. 487). “A liberdade não consiste tanto para o sujeito no escolher uma decisão particular, quanto no dar-se a própria fisionomia espiritual, o próprio modo de ser interior” (DE FINANCE, 1990, p. 12). A liberdade enquanto faculdade entitativa se refere à sua dimensão interna à qual está subordinada a faculdade eletiva. Uma vez que o ser humano opta e elege a si mesmo em vista de seu fim realizacional, ele passa a escolher objetos, coisas e caminhos. Um ser humano realizado e livre não nasce pronto, acabado, fabricado anterior e exteriormente à sua mesmidade pessoal, mas é aquele que assume o seu ser como um projeto e uma função. O ser humano, como ser pessoal e livre, reconhece sua condição itinerante, processual. É um ser-a-caminho, cuja identidade é uma construção. Não é uma realidade concluída, mas um devir, uma dinamicidade vital, uma transformação constante, cuja realização passa por ações sucessivas. O ser humano para ser livre tem que ser capaz de responder por si mesmo, assumindo sua existência responsavelmente. A liberdade não permite delegar ao outro a capacidade de responder por mim e assumir as conseqüências de meus atos. Liberdade implica responsabilidade, capacidade intransferível de dar resposta. Uma “liberdade sem responsabilidade acaba convertendo-se em uma pura formalidade vazia de conteúdos” (FAUS, 1991, p. 139).

O ser humano nasce em um contexto geográfico, cultural, social, econômico, religioso e genético que lhe é dado previamente. Esta situação pré-existente e anterior à existência do ser humano é determinante e condicionante para o exercício de sua liberdade. Não existe uma liberdade pura e blindada de qualquer condicionamento contextual. A liberdade é sempre contextualizada e situada. O exercício da liberdade se move dentro dos paramentos dos condicionamentos prévios à existência do sujeito. O fato de a liberdade estar submetida a condicionamentos não a destrói, mas demonstra seu caráter finito, delimitado e contingencial. Os determinismos são, ao mesmo tempo, limitadores da ação da liberdade e também o terreno e a condição de possibilidade da própria liberdade. O ser humano como um ser limitado, concreto e delimitado pelo seu contexto, não pode possuir uma liberdade que seja ilimitada, autárquica, absoluta. A liberdade humana é real, porém delimitada. O exercício da liberdade está circunscrito ao contexto no qual o ser humano se encontra. Uma liberdade que almeje ser ilimitada, irrestrita, despregada da realidade humana, prescindindo do em torno existencial, será ilusória, romântica e desumana. Não se pode exigir que um ser finito exerça a liberdade de modo absoluto. Pretender que um ser livre seja ilimitadamente livre é exigir que um ser finito se comporte de modo absoluto. O exercício da liberdade para ser humano será sempre condicionado, situado e determinado. Para ser livre, o ser humano precisa dos condicionamentos prévios. Sem o estímulo das situações impostas, a liberdade humana seria descontextualizada, ilusória e irreal (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p.190-191; RAHNER, p. 1992, 455; ZUBIRI, 1986, p. 145-147).

A ação da liberdade se dá pela mediação da realidade concreta e finita. Além dos pressupostos externos (cultural, social, religioso, econômico etc.) e internos (biológicos, subjetivos, ontológicos, éticos etc.) ao sujeito, verifica-se uma mediação do tempo, do espaço, do corpo e da história do ser humano. A ação da liberdade finita se dá pela mediação dos condicionamentos e determinações do mundo. Por isso, a liberdade humana é circunscrita no marco do tempo, do espaço, da delimitação do corpo e da sua inserção na história do ser humano. Enquanto possui uma natureza corpórea, inserida no mundo, a liberdade humana se exercerá no seio dos atos concretos da existência mundana que ocorrem no tempo, no espaço e em meio à multiplicidade de eventos históricos e sociais. A liberdade é uma realidade mediada, encarnada e imersa no mundo. Logo, a liberdade é afetada por tudo aquilo que é próprio do mundo. Uma liberdade que prescinda da encarnação no mundo e cuja ação não considera as instâncias mediadoras da finitude (tempo, espaço, corpo etc.) não pode ser chamada de humana. A liberdade não é exercida nem mundo das ideias e nem mundo ilusório e irreal, mas no mundo concreto, ou seja, no aqui e agora do existir humano. Embora se exerça na multiplicidade do existir finito, a liberdade humana é una e expressa a unidade do ser do sujeito. A liberdade se refere a um sujeito inteiro e uno na unidade de sua realização em toda a sua existência. Esta noção da liberdade não consiste numa realidade extrínseca ao sujeito como se fosse algo que ele possui e pudesse carrega em seu peregrinar humano, mas trata-se de uma dimensão interna e constitutiva do ser pessoal do sujeito. Assim, dizer pessoa humana significa dizer uma subjetividade livre que tem posse de si mesma, que é responsável e se posiciona diante de Deus. A ação da liberdade sempre coloca o ser humano em jogo, na totalidade de seu existir. O objeto da liberdade, no sentido genuíno, é o próprio sujeito. Neste sentido, os objetos e situações que o sujeito experimenta no seu existir no mundo estão sempre a serviço da liberdade e são mediadores do ser do sujeito situado no tempo e no espaço. Por isso, a liberdade é uma faculdade entitativa do sujeito que decide sobre si mesmo e busca construir a si mesmo (RAHNER, 1989, p. 51-54).

A liberdade humana não pode ter uma postura de neutralidade diante de Deus, mas deve tomar uma posição. Por isso, a liberdade pessoal consiste na possibilidade de uma tomada de posição diante de Deus. A tomada de uma posição diante de Deus implica em responsabilidade e consequência. Uma postura afirmativa ou negativa diante de Deus consiste numa posição verdadeira ou falsa diante dos bens finitos os quais procedem de Deus em virtude da orientação necessária do espírito para o absoluto em que se apoia a liberdade. A posição que o ser humano assume diante de Deus tem um reflexo na forma de lidar com os objetos e os bens finitos. A liberdade é autorealização da pessoa num material finito diante de Deus. A realização da liberdade diante de Deus passa necessariamente pela relação com os objetos finitos. Sem a liberdade, o ser humano não se situaria diante de Deus como um sujeito operante e responsável, parceiro e interlocutor, e também não poderia ser diante de Deus um sujeito de culpa e nem de redenção. A ausência da liberdade humana tomaria o ser humano um objeto e não um sujeito diante de Deus (RAHNER, 2002, p. 242).

Porque Deus criou o ser humano livre, enquanto sujeito de ações e de responsabilidade, o ser humano pode se posicionar diante dele. Deus, ao criar o ser humano livre, corre o risco de ser rejeitado, porque o ser humano é capaz de dizer “não” para Deus. E Deus deve acolher e respeitar a posição do ser humano, como consequência de criá-lo livre. A liberdade humana é um patrimônio inviolável no qual Deus não pode tocar nem interferir. Deus deixaria de ser Deus e se tornaria um tirano eterno e o homem deixaria de ser homem e se tornaria um fantoche ou um súdito servidor da vontade divina, se Deus interferisse e violasse a liberdade humana.

A liberdade humana tem um fundamento teologal. Como ser livre, o ser humano não pode permanecer indiferente diante de Deus. Mas, fazendo uso de sua liberdade, deve ser capaz de acolher ou recusar Deus, a realidade-fundante do ser humano e, por consequência, de sua liberdade. Porém, para Ruiz de la Peña (1988, p. 191), a liberdade mais livre será aquela que aceita e não rejeita, acolhe e não repele o seu fundamento. Na realidade, o sim e o não são possibilidades simétricas, pois negar a Deus seria um defeito da liberdade humana, orientada para o Bem supremo. Uma experiência radical de Deus é uma experiência da liberdade humana. Assim, o fato de Deus criar o ser humano livre não o condiciona a amá-lo e acolhê-lo? Uma liberdade livre não deveria comportar efetivamente uma negação de Deus? Se a liberdade é capacidade de tomar uma postura diante de Deus, por que negá-lo seria um defeito?

O exercício da liberdade pessoal se dá em comunhão com o exercício de outras liberdades (social, política, religiosa...). Não é possível pensar uma concepção de liberdade que prescinda das demais liberdades. A liberdade é um conceito englobante. A liberdade política é um mito sem a liberdade econômica. A garantia da liberdade civil, que consiste no conjunto dos direitos que a sociedade reconhece aos cidadãos, deve ser um pressuposto necessário para que o indivíduo possa exercer sua liberdade pessoal. Não existe liberdade pessoal sem liberdade social. Tem que haver uma sincronia no exercício da liberdade de modo que um ser humano livre seja reflexo de uma sociedade livre. Não haverá um ser humano livre enquanto os demais não forem livres. Enquanto existir alguém sendo reduzido a algo (objeto, coisa, etc.), degradando sua dimensão pessoal, não haverá verdadeiramente liberdade. Para que a liberdade pessoal seja real é necessário que o outro também seja livre. A liberdade pessoal é inseparável da libertação universal. A liberdade, como autodecisão pelo próprio sujeito vista de sua realização, será autêntica, fiel, comprometida, ativa, caso consista na eleição pelos demais seres humanos. Deve existir uma solidariedade, uma unidade, uma sincronicidade, no uso da liberdade. Enquanto um único ser humano padecer a escravidão, a violação, a desqualificação, por regimes políticos, sistemas econômicos e instituições civis ou religiosas, os demais seres humanos padecerão a mesma situação. A libertação de todas as liberdades pode criar condições melhores para o exercício efetivo da liberdade. A liberdade tem um conteúdo militante, ativo e solidário (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 193-194).

A liberdade possui dois níveis de ação: opção fundamental e liberdade concreta. O ato da liberdade como opção fundamental ou intenção radical se refere à escolha global que norteia todas as decisões, as orientações e os valores das escolhas setoriais do sujeito. É a decisão última que perpassa todas as decisões penúltimas do modelo de existência do sujeito. É uma autodestinação unificante do sujeito na direção de uma meta última em relação a todas as metas parciais e possibilidades circunstanciais. A opção fundamental está relacionada com o sentido da vida da pessoa, com o horizonte último sobre o qual está sedimentado o seu existir, com a perspectiva englobante que recolhe numa unidade os múltiplos e fragmentários aspectos da existência e os reconduz à construção do eu como sujeito livre. A opção fundamental pode ter um caráter explícito/temático ou implícito/irreflexo. A liberdade concreta consiste nas escolhas cotidianas que o sujeito faz diante das situações vitais do existir. A liberdade concreta concentra sua ação entre as situações penúltimas, agindo em correspondência ou desarmonia com o horizonte último para o qual a liberdade está radicalmente inclinada, enquanto opção determinante de seu ser e sua vontade (FORTE, 1999, p. 300).

A liberdade não é um atributo que vem do externo sendo acoplado ao sujeito. A liberdade não é outorgada ao sujeito por uma instituição ou por alguém. O sujeito não tem, mas é liberdade. Não se trata de um recurso sobre o qual o sujeito se apropria, mas se refere a uma faculdade estruturante do existir do sujeito. Não é o estado, a religião ou a sociedade que concede a liberdade ao sujeito, mas ele já o é livre por si mesmo, pelo simples de ser pessoa. O sujeito já nasce livre. É um elemento constitutivo do seu existir. A liberdade é uma faculdade que emerge do interior do sujeito. O sujeito não é provisório ou circunstancialmente livre, mas, desde o seu nascimento até o morrer, ele é totalmente livre. A liberdade o acompanha aonde ele vai. O sujeito deve tomar posse da liberdade que o constitui. “O homem não existe simplesmente como liberdade, mas deve colocar-se à procura daquela liberdade que é ele mesmo” (PERSCH, 1988, p. 384).

A lei moral não implica numa restrição à ação da liberdade. Na realidade, a lei moral pressupõe a liberdade. Só é possível seguir uma lei moral quando se realmente livre. Caso uma lei moral deva ser seguida sob coação ou observância forçada, isso consiste numa postura contraria ao princípio da liberdade. Nenhuma lei moral deve ser seguida sob regime de coação, porque infringe o princípio da dinâmica da liberdade. Um princípio só pode ser seguindo retamente quando se é livre para aderir a ele. A lei moral está orientada para o fim essencial da pessoa: sua realização autêntica (RAHNER, 2002, p. 244).

1.2 Pessoa e liberdade humanas

A noção de liberdade é inseparável da de pessoa e vice-versa. Todo ser pessoal é livre e todo ser livre é pessoa. Não é possível pensar o conceito de pessoa à margem do conceito de liberdade. Por isso, pessoa é sinônimo de liberdade. Na base da definição do conceito de liberdade está o conceito de pessoa. O ser livre é o ser que dispõe de si para tornar-se disponível. A mesma definição de ser livre pode ser aplicada ao ser pessoal. Os conceitos de pessoa e liberdade são intercambiáveis. Assim como a noção de pessoa supõe um sujeito responsável e dador de resposta, a de liberdade supõe uma noção de responsabilidade (RUIZ DE LA PEÑA, 1998, 47-50). “Não é difícil compreender como o problema da liberdade reflete e prolonga o da pessoa. A pessoa é subsistente e aberta; a liberdade é um poder de autonomia e um poder de doação. A pessoa é uma realidade de fato e uma realidade que deve constituir-se, a liberdade é um poder indestrutível de eleição e um poder de aperfeiçoamento que deve conquistar-se. [...] A história da pessoa é a própria história de sua liberdade” (MOUROUX, 1961, p. 129).

A liberdade é a maneira de apropriação e realização da pessoa e de sua dignidade absoluta diante de Deus. Pessoa e liberdade são entidades reais de ordem suprema e de valor absoluto (RAHNER, 2002, p. 243). A liberdade encontra sua concretude e encarnação na pessoa. A base sobre qual a liberdade acontece e se expressa é a pessoa. A pessoa possui uma dignidade absoluta e um primado onto-axiológico supremo sobre as demais criaturas. Assim como a pessoa possui um caráter supremo, também o possui a liberdade. Trata-se de um patrimônio absoluto e inviolável que sujeito possui. Conjecturar a possibilidade da violação da liberdade humana incorre numa desumanização e numa despersonalização da pessoa. Nenhuma instância (política, social, religiosa, cultural e econômica) pode sequestrar a liberdade. O estado deve zelar para que o sujeito exerça sua liberdade, mas jamais cerceá-la ou manipulá-la.

A liberdade é uma dimensão constitutiva da pessoa. Faz parte de sua condição humana natural. A liberdade não é conferida por um outro (estado, religião, sociedade etc.) ao sujeito. A liberdade não é um bem que se confere ao sujeito, pois ele já é livre por natureza. Pensar uma liberdade conferida ao sujeito por um agente externo seria o mesmo que imaginá-lo como uma propriedade do estado, da religião, da sociedade ou de outra instância externa. A pessoa não recebe a liberdade para exercê-la em nome de um agente externo. A liberdade é uma faculdade que pertence à existência do sujeito. “Na ação livre, o ato pertence-me de um modo único; mas é nela, simultaneamente, que me pertenço a mim próprio. O ato livre é a forma essencial em que realizo o eu, a minha qualidade de pessoa” (GUARDINI, 1957, p. 9). A liberdade é faculdade revestida de uma sacralidade, pois trata da profundidade, da inviolabilidade, do supremo, do absoluto e do transcendente no ser humano. Sem a liberdade, a pessoa seria reduzida a uma massa biológica ou um objeto que ocupa lugar no espaço. Todo atentado à pessoa é um golpe na liberdade. Qualquer instância ou estrutura que reduza a pessoa ao nível do objetal, do animal, do comercial, da degradação, violando sua dignidade, atinge frontalmente a noção de liberdade. Toda instrumentalização da pessoa e todo desejo de transformá-la em um meio degrada sua dignidade e sua liberdade. A pessoa tem fim em si mesma. Da mesma forma, a liberdade humana não pode ser instrumentalizada em favor de nenhum fim. “A liberdade fundamental do homem é a liberdade de dirigir-se ao seu fim e à sua plenitude, que é também a liberdade de realizar-se como pessoa” (LORDA, 2009, p. 488).

A liberdade pertence ao ser humano e à sua existência. Trata-se de um modo humano de existir, é uma faculdade que pertence à pessoa em sua totalidade indivisa e indivisível. A liberdade não é uma qualidade ao lado ou que concorre com outras, mas uma dimensão constitutiva da essência da pessoa. “Quem traz consigo originariamente o caráter de liberdade é o homem enquanto pessoa, quer dizer, o homem que pertence a si mesmo. O ato livre é o modo segundo o qual a pessoa realiza o seu ser ordenado à liberdade” (GUARDINI, 1957, p.10). Do ponto de vista da finitude, dizer liberdade é referir-se a uma faculdade própria da pessoa. Somente a pessoa é livre e tem noção do que significa liberdade. Na medida em que o ser humano vai crescendo em sua humanidade, ele vai progredindo também em sua liberdade. Quanto mais o ser humano adquire a consciência de que ele é ser livre tanto mais vai de se apropriando da liberdade. A identidade entre as noções de pessoa e liberdade significa que a integridade do ser humano não é um simples dado na natureza, mas fruto da pessoa e de sua capacidade de autorealização. “A liberdade é aquela estrutura dinâmica através da qual a pessoa tem a capacidade de construir sua própria vida sem padecê-la, tem a capacidade de orientar a história sem se resignar a ela e de realizar o domínio sobre sua própria existência sem abdicar de sua missão” (COLZANI, 2001, p. 413).

Há uma diferença entre pessoa e natureza. A natureza refere-se àquilo que é. Trata-se daquilo que é dado. A pessoa remete àquilo que é chamado a ser. Trata-se de uma vocação e de um chamado. A pessoa transcende a natureza; é a natureza autosuperada. A natureza é chamada a ser pessoa. Algo análogo ocorre com as noções de pessoa e liberdade. A liberdade é uma faculdade inerente ao existir humano. O ser humano é, de per si, livre. Porém, quanto mais ele se apropria dessa liberdade, que é sua por natureza, mais a faz sua. Ser livre é vocação propriamente humana. No entanto, o ser humano deve fazer da liberdade dada, uma liberdade assumida e encarnada. A liberdade não pode ser somente uma faculdade da pessoa em geral, mas deve se converter na liberdade do sujeito singular. De modo que, a liberdade seja a minha liberdade.

1.3 Negações da liberdade humana

A defesa da condição livre do sujeito é feita por correntes antropológicas de inspiração humanista e personalista. Para algumas correntes do pensamento humano, a liberdade seria um conceito mitológico e delirante. A liberdade seria conceito falacioso construído pela sociedade ocidental. Dentre as correntes atuais que negam a existência da liberdade humana, é possível nomear o condutivismo e a engenharia social, a sociobiologia e a engenharia genética e a cibernética e engenharia de computadores.

Segundo Skinner (1904-1990), pensador norte-americano que pesquisa sobre o comportamento humano, uma análise científica do comportamento humano tem de execrar o caráter livre e responsável do ser humano. O uso de recursos científicos na compreensão da conduta humana permite prevê-la e manipulá-la. Através da ciência, é possível pressupor um ordenamento e uma determinação da conduta humana, possibilitando sua previsibilidade (SKINNER, 1981, p. 20). A conduta humana seria determinada por fatores genéticos e ambientais. Comportamentos até então vistos como originários da liberdade e da vontade, na realidade, seriam programados por condicionamentos genéticos e situações culturais e ambientais. Desta forma, uma mudança no ambiente e no contexto cultural em que o sujeito encontra-se inserido interfere no seu comportamento. O sujeito não é um agente dinâmico, responsável e transformador do ambiente, mas seria uma vítima afetada pela mudança ou alteração no ambiente. O sujeito é reduzido ao objeto e sua liberdade se dissolve. Skinner (1978, p. 255) diz, peremptoriamente, “eu nego que a liberdade sequer exista”. “A luta do homem pela liberdade não se deve à vontade de ser livre, mas a certos processos de comportamento característicos do organismo humano, cujo principal efeito é evitar ou fugir dos chamados aspectos adversos do ambiente” (SKINNER, 1977, p. 37)

Skinner compreende que a tecnologia do comportamento conduz a uma engenharia social. O comportamento humano da sociedade do futuro será determinado por acionamento de controles. “Se o homem é livre, então a tecnologia do comportamento é impossível” (SKINNER, 1978, p. 254). Os membros da sociedade futurista farão o que desejam, ou elegem fazer, “mas nós conseguiremos que queiram fazer precisamente o que é melhor para eles mesmos e para a comunidade. A conduta será determinada e, porém, são livres” (SKINNER, 1978, p. 293), ou seja, sentem-se (ou crêem) livres. Nessa sociedade, o exercício da liberdade será uma falácia, pois o ser humano viverá sob a ditadura dos comandos eletrônicos. O comportamento humano futurista será passível de manipulação tecnológica, conforme os interesses de quem estiver no comando da sociedade (sociólogos e psicólogos de grupo). Os membros dessa idealização social de Skinner deixarão de ser sujeitos e se tornarão objetos que se movem, segundo os mecanismos eletrônicos.

O etólogo norte-americano, Edward O. Wilson (1929), pai da sociobiologia, afirma que o fator genético determina todo comportamento social. O etólogo faz uma leitura zoológica da vida humana, demonstrando que os princípios biológicos usados para compreender a vida e o comportamento dos animais podem ser utilizados analogamente para compreender a vida e o comportamento do ser humano. A antropologia é reduzida à biologia e o ser humano, ao animal. Não existe uma diferença qualitativa entre ambos. “A questão que interessa já não é saber se o comportamento social humano é determinado geneticamente, mas até que ponto” (WILSON, 1981, p.19). A determinação genética do comportamento é uma questão certa. A sociedade do futuro será controlada pelo conhecimento biológico. A genética consegue identificar muitos genes que influenciam na conduta humana. Este modelo social corre o risco de ser geneticamente seletivo, segundo a raça, o sexo, a condição financeira. Considerando que o comportamento humano recebe uma influência genética, então até que ponto o ser humano é livre? Se o comportamento social humano é fruto de uma interação entre seu ambiente e seus genes, logo “liberdade é apenas uma ilusão auto-imposta” (WILSON, 1981, p. 71). A vontade ou liberdade seria produto daquilo que está geneticamente pré-programado. Assim, o paradoxo determinismo-livre-artbítrio se reduziria a um problema empírico de ordem físico-biológico. A previsão de uma decisão humana exigiria uma compreensão do funcionamento mecanicista do cérebro e das variáveis que o influenciam. Somente quando não é possível compreender o funcionamento e as variáveis que influenciam o cérebro que é possível deve entender a liberdade e a responsabilidade humanas (WILSON, 1981, p. 77).

A antropologia cibernética de Ruiz de Gopegui reduz o ser humano a uma máquina inteligente, questionando a liberdade e a responsabilidade humanas. Não existe um desnível qualitativo entre o ser humano e a máquina: o ser humano é um autómata consciente e máquina um sujeito artificial (GOPEGUI, 1983). Aspectos relevantes do pensamento e do comportamento humanos (discurso racional, autoconsciência, subjetividade, personalidade, etc.) não são atributos próprios do ser humano.

O ser humano é um ser determinado. A conduta humana é condicionada pelas leis da natureza (ou da física). A liberdade, entendida como a capacidade de eleger, espontânea e incondicionalmente, é um mito. A eleição humana está condicionada por fatores anteriores e incontroláveis à sua decisão, privando o sujeito do exercício de sua liberdade. A satisfação do sujeito em fazer o que deseja é uma falsa liberdade, visto que seu querer está condicionado. A liberdade é uma miragem. Na realidade, o sujeito faz o que, necessariamente, tem que fazer. A liberdade é o conhecimento da necessidade (GOPEGUI, 1983). Uma liberdade sem determinação viola as leis da natureza. A liberdade não conduz à responsabilidade. O ser humano chega a esta última pela razão. A responsabilidade é um fator a mais dentro do programa operacional que rege a conduta humana. É uma ilusão acreditar na liberdade e autonomia humanas (GOPEGUI, 1983).

A transposição das idéias de Ruiz de Gopegui para o cenário sociopolítico permite concluir que a negação da liberdade individual acarreta uma negação das liberdades sociais. As estruturas sociopolíticas que se baseiam na liberdade individual, necessitam ser reavaliadas. O ser humano acaba se tornando refém de uma estruturação social mecanizada, eletrônica que ele mesmo criou. Cada vez mais os objetos, as máquinas ocupam o centro, enquanto o sujeito é lançado para a periferia. O antropocentrismo está dando lugar ao automatocentrismo. A sociedade do futuro será regida pelas máquinas inteligentes. O ser humano se tornará funcionário dessas, mostrando que o criador está a serviço (se submeteu) da criatura. Se um computador que só sabe contar e que está longe de ser inteligente é capaz de escravizar o ser humano, imaginemos o que poderia fazer uma máquina inteligente. O ser humano se tornará um menino de recados dos robôs futuros (GOPEGUI, 1983).

É possível fazer uma síntese das analogias das três perspectivas expostas: a) as três correntes estão implicadas e arrancam a condição de sujeito do ser humano, reduzindo-o ao nível físico (Skinner, Ruiz de Gopegui) ou biológico (Wilson); b) negam a subjetividade e a liberdade humanas; c) a negação da liberdade individual conduz a uma negação (Ruiz de Gopegui), ou coloca em questão (Skinner, Wilson) as liberdades sociais; a sociedade humana do futuro “funcionará sob os controles acionados pelo sociólogo (Skinner), pelo biólogo (Wilson) ou pelo computador (Ruiz de Gopegui)” (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 198).

O posicionamento destas correntes produz conseqüências antropológicas, éticas e sociopolíticas. No que tange às antropológicas, o rechaço de uma idéia de liberdade responsável leva ao rechaço da pessoa, da dialética eu-tu, da alteridade. A pessoa é reduzida a um dispositivo de entrada e saída de resposta, tornando-se um mecanismo que funciona bem ou mal, e não uma realidade geradora de diálogo e encontro. Desta forma, a pessoa é tomada por uma crise de sentido da vida (Para que viver? Qual o significado da vida?), mostrando-se incapaz de eleger um projeto existencial, de construir sua identidade, de escrever sua história e de compor sua biografia. Sem liberdade, subjetividade, alteridade, a realidade adquire uma textura única, os seres se fundem em um continuum homogêneo. É a heterogeneidade qualitativa entre os seres que possibilita perceber a diferença axio-ontológica nas dialéticas: sujeito-objeto, homem-máquina e homem-animal. A falta de reconhecimento desta heterogeneidade qualitativa resulta, como conseqüências éticas, na negação de valores humanos (respeito, dignidade, inviolabilidade, etc.), na vigência da lei darwinista do mais forte, no desconhecimento da alteridade (não se vê o outro como irmão, mas adversário), na redução da moral ao sócio-bio-político, no desaparecimento da responsabilidade. Sem responsabilidade, como consequência sócio-política, as pessoas serão submetidas a um regime político oligárquico, despótico. Diante da precisão racional das decisões matemáticas e físicas, não há possibilidade de se ter opiniões diferentes nem oponentes ao sistema. É uma supressão das liberdades civis, dos direitos democráticos. Esse cenário é propício para o surgimento de regimes totalitários, governados por pessoas ou máquinas (Ruiz de Gopegui). Diante destas antropologias anti-personalistas, a fé cristã dá um uníssono “não”, demonstrando que a afirmação da liberdade humana é imprescindível para quem crê (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 198-200).

1.4 A morte como consumação da liberdade humana

A morte é fim da história da liberdade humana a qual, por sua vez, ganha um caráter permanente e definitivo. Com a morte, a história humana individual chega à sua conclusão. A existência alcança um caráter irreformável e irrevogável, a vida ganha sua fisionomia derradeira. A morte significa a realização da última possibilidade do humano. Com a morte, a existência física e pessoal adquire um caráter irreversível e definitivo; a história da liberdade chega ao seu ponto conclusivo. A liberdade é a faculdade fundamental pela qual o sujeito, em sua transcendentalidade, dispõe de si mesmo em ordem de sua realização definitiva. A liberdade funda a história enquanto a possibilidade de realizar algo realmente definitivo (RAHNER, 1992, p. 452). Com a morte, a existência pessoal alcança sua conclusão ontológica e chega à sua identidade definitiva, logo a liberdade, no sentido entitativo, conquista seu ponto máximo de realização. A história do ser chega ao seu apogeu.

A essência da liberdade é a possibilidade de uma decisão irrepetível e definitiva do sujeito sobre si mesmo. Esta irrepetibilidade da autodecisão, em princípio definitiva e irrevogável, se realiza através de toda extensão e dispersão temporal dos instantes concretos que constituem a vida histórica e corpórea da pessoa. A irrepetibilidade da autodecisão acontece no tempo e não é suprimida pela multiplicidade dos instantes. A unicidade desta decisão global do sujeito livre não pode ser entendida independentemente da vida histórica espaço-temporal (RAHNER, 1992, p. 453). Na morte, a autodecisão do sujeito sobre si mesmo, que possui um caráter definitivo, perpassa todos os momentos das decisões concretas da vida do sujeito e ganha um caráter absoluto. A opção fundamental que está no subsolo das decisões tomadas no espaço e no tempo ganha uma fisionomia derradeira. Com a morte, cessa todas as possibilidades espaço-temporais. A morte é a última possibilidade espaço-temporal que decreta o fim de todas as possibilidades finitas. Como a liberdade é a faculdade cujo exercício ocorre no espaço e no tempo, logo, com a morte, o escolhido pela liberdade permanece perpetuamente. A morte representa o fim da história das escolhas e das decisões. O que foi decidido pela liberdade, em sua opção fundamental, com a morte, chega à sua consagração. A morte significa a cessação da história da liberdade. Depois da morte, entra em vigor o que foi decidido pela liberdade no tempo.

Não tem sentido pensar que a história corpórea da liberdade continua mais além de uma morte concebida como fim da corporeidade histórica do ser humano. Isso suporia situar a autodecisão do ser humano fora de sua história espaço-temporal. Neste sentido, a história seria reduzida à condição de mera aparência que encobre a verdadeira liberdade. Se a história da liberdade segue seu curso depois da morte enquanto fim da história corpórea, isso significa que a autêntica história nunca esteve presente enquanto tal nessa vida espaço-temporal (RAHNER, 1992, p. 453). Porém, a história da liberdade desenvolve sua trama é dentro da história e não além dela. É dentro da história que a liberdade acontece. Com a morte, cessa a atividade corpórea, e considerando que a liberdade está ligada à historicidade do corpo, da finitude e espaço-tempo, logo finda também a história do exercício da liberdade. A liberdade humana é faculdade exercida na finitude, dentro da história e das coordenadas do espaço e do tempo. Assim, cessando a finitude da corporeidade individual finda também da liberdade individual.

É na morte que se dá a manifestação do caráter único e irrepetível da liberdade fundamental. Nesse momento, profundamente existencial, o ser humano faz uma dupla experiência: primeiramente, o sujeito alcança a consumação do seu existir, chegando a uma conclusão ontológica. Trata-se do momento em que a biografia do sujeito à sua plenificação. Por outro lado, é momento em que o sujeito se torna indisponível, tornando despossuído de si mesmo e de todo poder. Na morte, o sujeito não tem mais domínio de sua existência, perdendo a posse de seu existir. A possessividade do existir se dá no âmbito do espaço e do tempo. A disponibilidade do ser e a construção ontológica se dão no campo histórico. A morte representa a expropriação do ser. Com a morte, cessa toda possibilidade de exercício da liberdade e a existência se torna indisponível. É o momento do despojamento do ser. Essa dupla experiência consiste num momento ativo e outro que ocorrem simultaneamente na experiência única do morrer: o ativo é o momento da autopossessão de si mesmo e da conclusão da história da liberdade; o passivo é o momento do despojamento e da expropriação de si mesmo. “Na morte, o homem parece que é despojado de tudo aquilo mediante do qual pode dispor de si mesmo e que todos os resultados anteriores de seus atos livres concretos, enquanto integrantes desta única e total autodisposição, ficam apagados” (RAHNER, 1992, p. 456). Na realidade, junto com esse despojamento está ocorrendo a dimensão ativa do morrer quando a liberdade em sua capacidade de autodisposição chega ao seu término. Ativamente, no momento da morte, a opção fundamental se torna definitiva.

2 Reflexões teológicas sobre a liberdade humana     

2.1 Fundamentos bíblicos da liberdade humana

No campo bíblico, a liberdade tem uma conotação social, econômica, política e espiritual. No Antigo Testamento (AT), liberdade era um conceito que estava em contraposição ao de escravidão. Ser livre significava não ser escravo (Lv 19,20; Dt 15,12-15 etc.). A posse de escravos era permitida em Israel (Lv 25,44), mas sua posição social e jurídica era melhor do que a dos escravos entre outros povos, em virtude do conjunto de leis contido em Ex 21,2-11: os escravos israelitas depois de seis anos deveriam novamente ser libertados. Era necessário libertar o escravo hebreu ou a escrava hebreia de modo que ninguém deveria ter como escravo um irmão judeu. Todos os príncipes e todo o povo estavam de acordo com esse pacto e aceitaram libertar seu escravo e sua escrava, de modo a não mantê-los mais em situação de escravidão. Porém, depois de libertarem os escravos, eles não se mantiveram fiéis ao pacto, rompendo-o e submetendo novamente ao regime de escravidão os irmãos hebreus que tinham sido libertados. A quebra no pacto da aliança representava uma profanação com o nome de Javé. Por isso, Javé ameaçou punir o povo com a peste e a fome (Jr 34, 8-18) (KOSNETTER, 1988, p. 634; BERGER, 1973, p. 285-286). 

O povo de Deus passou por situações de dominação e escravidão. Moisés defendeu um judeu contra a opressão dos egípcios (Dt 2,11-12) e posteriormente tirou todos os judeus do Egito, a casa da escravidão (Dt 7,8), e os conduziu à liberdade. O êxodo do Egito ocorreu em meio a uma atmosfera de insegurança, angústia e fome de tal modo que os judeus sentiam saudades das panelas de carne do Egito. Mas, para Javé, a liberdade conquistada pelo povo era mais importante do que a antiga segurança econômica no Egito. Também quando Jerusalém foi destruída em 586 a.C., a maioria do povo foi levada para o cativeiro da Babilônia, perdendo a liberdade nacional. A situação vital do povo no cativeiro foi descrita por Jeremias no livro das Lamentações. Neste sentido, a liberdade consiste na independência do domínio estrangeiro. A vida pastoril com sua organização patriarcal permitia ao indivíduo muita liberdade apesar do poder do patriarca. Essa liberdade é contrastada desfavoravelmente com a vida sob a monarquia em 1Sm 8,11-18. No início da monarquia, assim como por toda sua história, parece ter surgido círculos em Israel que encaravam a monarquia como uma violação da liberdade tradicional (KOSNETTER, 1988, p. 634; MACKENZIE, 1983, p. 553).

No Novo Testamento (NT), a liberdade possui uma conotação mais teológico-espiritual e menos social, econômica e política, própria do AT. No NT, a situação do ser humano livre surge como oposta à do escravo. Na época de Jesus, a sociedade estava organizada e estruturada em duas categorias sociais: livres e escravos (Cl 3,22-25; 1Tm 6,1; Tt 2,9; Flm 8-14 etc.). A adesão a Cristo, pela fé e pelo batismo, faz com que o ser humano escravizado pelo pecado e pela morte possa ser liberto. A salvação trazida por Cristo consiste na libertação da condição de escravidão e na inserção na vida livre e nova em Cristo. O velho ser humano refém do pecado é liberto em Cristo. A vida nova em Cristo não é marcada por classe social, nem por nacionalidade e nem por outra categoria econômica, política ou de gênero, mas por uma unidade humana: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). O batismo proporciona uma eliminação soteriológica das fronteiras entre escravos e livres. Todos se revestem de Cristo no batismo e, assim, formam uma unidade com ele. A nova escravidão consiste em estar sob a lei de Cristo (Rm 8,2). A liberdade é a passagem de um tipo de escravidão a outro: da escravidão do pecado e da lei à escravidão em Cristo (1Cor 7,22). O crente, por causa da salvação operada por Cristo, foi inserido numa condição de liberdade em razão da salvação que lhe foi dada e também devido ao vínculo que o une a uma nova ordem existencial (Ef 5,8-10). No livro do Apocalipse, a denominação de escravos e livres aparece sempre ao lado de grandes e pequenos, ricos e pobres e outros binômios semelhantes (Ap 6,15; 13,16; 19,18). A universalidade e a força transformadora do acontecer escatológico conduzem a uma desaparição das diferenças sociais e nacionais. No interior da comunidade cristã, as oposições que são próprias do mundo se dissipam: o escravo chamado no Senhor tem os mesmos direitos que o ser humano livre (RICHTER, 1970, p. 157-158; BERGER, 1973, p. 287-288; THÖNISSEN, 2004, p. 1025).

O vocábulo liberdade também era usado no sentido de estar isento de algo, não estar submetido a uma prescrição e ter independência de pessoas e situações: Mt 17,24-26; 1Cor 7,39; 9,19; Rm 6,20; 7,2-3.

A liberdade, no sentido teológico, está relacionada com o efeito da ação salvífica de Deus para o ser humano através de Jesus Cristo. A liberdade do crente está relacionada com a tomada de posse da salvação em Cristo, mediante a libertação do pecado, do sofrimento e da morte. Ser livre é estar liberto de todas as situações de negatividades e ser acolhido num estado de vida qualitativamente melhor. No passado, o ser humano antes de Cristo e, no presente, o ser humano sem Cristo vive num estado de escravidão e servidão ao pecado. O advento de Cristo arranca o ser humano do jugo do reinado do pecado e da morte. Cristo liberta o ser humano para a liberdade (Gl 2,4; 5,1; 5,13). Através da redenção em Cristo, os seres humanos morrem para o pecado e se libertam dele (Rm 6,10-11; 6,18-22). O apóstolo Paulo deduz o conceito e o conteúdo da noção de liberdade em confronto com os judeus que enxergavam na lei mosaica o caminho para a vida e a conquista da salvação mediante o cumprimento dos preceitos da lei. Paulo reage afirmando que a salvação não vem pelo seguimento da lei, mas pela adesão da salvação em Cristo. A lei não redime o ser humano do pecado, do sofrimento ou da morte, mas, contrariamente, reafirma a sua submissão a essas situações. A lei simboliza a escravidão e Cristo é a libertação. A salvação é a libertação do pecado, da morte e da observação da lei (Rm 7,6; Gl 2,4; 5,1). A liberdade do crente diante da lei, do pecado e da morte é um dom da graça (Gl 2,4; 1Cor 7,22). “Livres do pecado vos tornastes servos da justiça” (Rm 6,18). Sem o auxílio da graça, o ser humano não teria força suficiente para se autolibertar das situações de negatividades e de morte presentes nas prescrições da lei e no velho homem. A libertação ocasionada pelo auxílio da graça possibilita a criação de novos relacionamentos, de uma ligação com a justiça (Rm 6,16-19), com o Espírito da vida em Cristo (Rm 8,2), com a lei do amor e com o Cristo crucificado, ressuscitado e glorioso. A liberdade do crente consiste em decidir entre a obediência a Deus ou a obediência ao pecado. Uma decisão contra a comunhão com Deus torna o crente automaticamente um servo do pecado. A filiação é o estado do ser humano redimido em Cristo (Gl 4,7; Rm 8,14-16). A liberdade do crente diante da lei mosaica está fundamentada em Gl 4,21-31. Esse trecho apresenta Sara, sinal de liberdade, cujos filhos creem em Cristo e recebem a salvação como herança, e Agar, sinal de escravidão, cujos filhos são os judeus que vivem sob a escravidão da lei. A história de Agar e de Sara mostra contra os adversários judaizantes que os cristãos, por causa da posse da promessa, são livres da lei. A liberdade dos cristãos frente à lei se mostra no fato de que podem apresentar-se como filhos de Sara, ou seja, da mulher livre. Isaac procede de uma mãe livre. Assim, a mãe e o filho representam a imagem da relação entre a liberdade e a promessa. (RICHTER, 1970, p. 158-160; BERGER, 1973, p. 288; KOSNETTER, 1988, p. 638-639; LEON-DUFOUR, 1987, p. 528-529).

No evangelho de João, a liberdade reivindicada pelos judeus (Jo 8,33) não possui um teor político ou social e nem tem uma conotação interior, mas consiste na consequência da condição da filiação abrâamica pelo fato de terem sido eleitos por Deus como seu povo e de serem objetos da graça de Deus. A hermenêutica teológica da reivindicação da liberdade dos judeus se apoia na relação particular de Israel com Deus, como povo eleito e como filhos de Deus. No horizonte dessa liberdade, os judeus acreditam já possuir a salvação. Essa crença é objeto de contestação do evangelho de João. O evangelista contrapõe Moisés e Jesus, o maná e o pão que Cristo oferece, a liberdade reivindicada pelos judeus e a liberdade trazida por Cristo. Para o evangelista, os judeus, na realidade, não possuem a liberdade que acreditam ter, porque somente Cristo pode proporcionar a liberdade. Para se alcançar a liberdade em Cristo, é necessário ter a fé nele, na sua palavra e a perseverança nessa fé.

A verdadeira liberdade tem como consequência a filiação divina. Somente pela mediação do Filho, o crente pode conquistar sua filiação. Jesus é o Filho que possibilita ao crente se autoreconhecer como filho e consequentemente chamar a Deus de Pai. Em Jesus, o crente passa da condição de escravo do pecado à de filho de Deus. Através da filiação por natureza, da parte de Jesus, o crente alcança sua filiação por graça. Essa condição filial pela mediação de Jesus falta aos judeus e por isso eles não são livres. Os judeus não creem em Cristo e a incredulidade é o seu pecado (Jo 8,24). Por isso, os judeus se tornam escravos do pecado (Jo 8,34). A incredulidade judaica os impossibilita a ver Deus como Pai. A escravidão dos judeus deriva não de uma filiação divina, mas diabólica (Jo 8,44). Na realidade, os judeus não possuem uma verdadeira relação com Deus e, consequentemente, não conquistaram a liberdade que almejam possuir em razão da filiação abrâamica (Jo 8,39-40). Somente Jesus, o Filho por excelência que tem Deus como Pai pode comunicar a verdadeira liberdade: “Se, pois, o Filho vos libertar sereis, realmente, livres” (Jo 8,36). A liberdade cristã é dom escatológico que só pode ser alcançado pela fé em Cristo. A liberdade, assim como toda a existência cristã, está em função de uma ordem escatológica e de uma finalidade decisiva. Não se trata de algo acabado, mas de alguma coisa que se encontra a caminho. (RICHTER, 1970, p. 161-162).

2.2 Aspectos cristãos da liberdade humana

Antes do surgimento do ser humano, no palco da criação, a liberdade já se fazia presente no ato criador de Deus. Todas as criaturas são livremente chamadas à existência. Somente um Deus livre pode criar livremente. As criaturas são criadas na e para a liberdade. Deus não concebe exteriormente a liberdade às criaturas, mas elas são criadas para a liberdade. O ser humano é a criatura que tem consciência de seu estado de liberdade. Ele é um ser livre e tem consciência disso. Por isso, a liberdade é um dado inabdicável para a fé cristã. “A liberdade humana foi criada e, como tal, realiza-se fundamentalmente diante do Criador e em obediência a ele, que é não só o criador do ser, mas também o fundamento da verdade e raiz de todo bem” (GUARDINI, 1957, p. 71). O chamado e a resposta em que consiste a fé estão inscritos no marco de uma relação dialógica que caracteriza dois seres pessoais que são mutuamente referidos. Deus e o ser humano são duas realidades pessoais, duas alteridades e duas liberdades que se encontram frente a frente. A criação é o cenário do diálogo entre a liberdade absoluta e a liberdade finita. Deus é um tu para o ser humano o qual, por sua vez, é um tu para Deus. Somente porque o ser humano foi criado na e para liberdade pode estabelecer uma relação dialogal com Deus. Ao criar o ser humano, Deus cria um sujeito capaz de responder e se posicionar diante dele. A liberdade divina, relacionando-se com a humana não a destrói ou subestima, mas fundamenta e permite seu exercício.

A compreensão cristã de uma liberdade doada, criada, atestada choca com a antropologia grega para a qual a liberdade humana é um luxo escasso, precário e caríssimo. É um troféu a ser penosamente conquistado e que está constantemente ameaçado pelas forças da natureza ou pelo capricho dos deuses. Não é algo pacificamente adquirido. É fruto de uma transgressão de normas e leis, contrariamente ao homem bíblico que pode dizer “não” porque é livre. Para os gregos, a liberdade é um bem a ser desfrutado precariamente por pouco tempo. Compreende-se a liberdade como uma conquista e não como um dom. Na visão cristã, crer e fazer a experiência da liberdade são uma mesma e única coisa. Para o cristianismo, a liberdade é uma livre decisão sobre si mesmo. Trata-se de uma modalidade de liberdade que é uma decisão e uma encomenda. Essa noção de liberdade implica uma autoresponsabilidade. A liberdade consiste na absoluta aceitação do mistério absoluto de Deus. Porém, Deus não consiste num objeto entre os objetos particulares do mundo finito. Ele não é um objeto disponível para ser escolhido como ocorre com a faculdade eletiva da liberdade. Deus não é um objeto finito e pontual, mas aquele mistério de desabrocha para o ser humano no ato absoluto de sua liberdade. Deus é aquele, cuja essência da liberdade chega à sua única consumação essencial (RAHNER, 2007, p. 196).

A noção cristã de liberdade humana significa, por um lado, que a pessoa é autoidentidade e determinação fundamental de si mesma e, por outro, que essa identidade é assegurada por Deus como dom. A pessoa recebe o seu existir como um dom e livremente vai paulatinamente modelando o seu existir. A identidade do sujeito vai sendo tecida nas malhas da história mediante sua relação com Deus, com os outros e com si mesmo. A liberdade sinaliza a modalidade humana de se relacionar com Deus. A questão teológica da liberdade humana está em pensá-la dentro da criação e dentro da finitude criada. A liberdade é exercida numa existência recebida e não escolhida. Por isso, terá que se remontar inevitavelmente mais além de si mesma para encontrar seu sentido e seu significado. Neste sentido, a liberdade finita do ser humano tem que se remontar até Deus. A liberdade humana encontra motivação e justificativa para o seu exercício na sua relação com Deus. Entre a liberdade humana e a divina há um desnível ontológico porque o ser humano não é livre como Deus o é. A liberdade de Deus não conhece condicionamento e nem determinação como a liberdade humana. A liberdade humana é exercida numa existência recebida com dom e seu exercício se dá num mundo permeado de condicionamentos anteriores à sua existência. No entanto, a relação com Deus não se opõe à liberdade humana, mas a supõe e constitui (COLZANI, 2001, p. 408-412).

Do ponto de vista da teologia cristã, a liberdade é entendida desde e para Deus. A relação entre Deus e a liberdade humana é possível de ser entendida por que o ser humano é um ser de transcendência. O ser humano, ainda que não consciência disso, é um ser perpassado pela transcendência. Trata-se de um aspecto originário do ser humano que pertence à sua estrutura ontológica. A transcendência está presente em cada ato particular do sujeito. O ser humano como ser de transcendência encontra-se relacionado, ainda de forma atemática e irreflexa, pelo mistério absoluto de Deus. A liberdade está relacionada com caráter transcendental do espírito humano. Trata-se de uma faculdade originária presente no espírito humano. Por isso, o caráter teológico da liberdade está presente na essência da liberdade, já que em cada ato livre do ser humano Deus está dado atematicamente como fundamento e instância última que sustenta os atos humanos. A atematicidade de Deus se faz presente em cada objeto eleito pela liberdade e em cada ato da liberdade. Em cada ato da liberdade Deus é buscado atemática e realmente. Assim, na experiência da liberdade e na relação com a finitude, o ser humano degusta em que consiste o real mistério atemático, inabarcável e inabrangível de Deus (RAHNER, 2007, p. 197). Deus, na sua liberdade soberana, é o lugar da possibilidade concreta da liberdade humana. A liberdade de Deus não é uma concorrente da liberdade humana. A liberdade divina está na raiz e torna possível a liberdade humana. É a liberdade divina que a faz existir e a liberta. Sem essa libertação, que traz a liberdade humana na infinitude da liberdade divina e lhe dá origem, tal liberdade deveria consumar-se na própria limitação ou perder-se (METZ, 1970, p. 165). A liberdade humana é verdadeiramente livre quando opta pelo mistério de Deus. “Se é verdadeiramente livre não só quando se pode optar entre alternativas diversas, mas quando a autodeterminação e a autodestinação da pessoa não contradizem a abertura transcendental do seu ser para o Mistério absoluto e transcendente” (FORTE, 1999, p. 301).

Na visão cristã, a liberdade não pode ser entendida somente desde Deus ou como faculdade referida a ele como horizonte que sustenta toda ação eletiva, mas também como uma liberdade que está diante dele e se posiciona. A liberdade é capaz de posicionar de forma negativa, com um “não”, ou de forma afirmativa, com um “sim”, diante de Deus. A possibilidade do “não” da liberdade significa a possibilidade do rechaço de Deus, o “objeto” mais originário desejado pela liberdade. No entanto, essa possibilidade não existe enquanto um puro ser possível de possibilidade, mas enquanto possibilidade real. Não se trata de uma possibilidade fictícia, mas de uma possibilidade que realmente é possível de se realizar em razão do caráter próprio da liberdade. A ação da liberdade não comporta somente uma possibilidade do “sim” dito a Deus. Se assim fosse, a liberdade não seria livre, mas uma faculdade determinística e condicionada teologicamente. A autêntica liberdade não supõe uma postura de neutralidade diante do bem e nem diante de Deus. Está latente na liberdade seu caráter de decisividade e de eletividade. A liberdade não pode se esquivar de uma capacidade de escolher e de posicionar diante de Deus, diante dos outros e diante do projeto sujeito.

A liberdade é uma autodisposição do sujeito em direção à definitividade. O ser humano livre é aquele que se possui a si mesmo, realizada e definitivamente. Através da liberdade, o ser humano se determina e se dispõe de si de forma inteira e definitiva. A liberdade é uma liberdade de ser e isso significa que ela não é uma faculdade periférica ou marginal, mas uma determinação transcendental do ser mesmo do ser humano. Em sua dimensão transcendental, a liberdade é a capacidade de se autoescolher, dizendo sim ou não para si mesmo. É uma decisão a favor ou contra si mesmo. Refere-se à capacidade de eleger um modelo de existência autêntica ou inautêntica. A liberdade é uma eleição enquanto autoeleição que pode ser na direção de uma autorealização na relação com Deus ou uma autonegação diante dele. De forma livre, o ser humano dispõe de si, tomando uma posição definitiva diante de Deus. É o ser humano que livremente faz uma opção fundamental sobre o seu existir diante de Deus. A liberdade é capacidade de uma decisão irrepetível e definitiva. É possibilidade de decidir de uma forma definitivamente válida. Liberdade é a capacidade do eterno. Enquanto, faculdade eletiva, é possível refazer e revisar as escolhas, mas como faculdade entitativa o decidido é o permanentemente válido e a verdadeira necessidade que permanece. Em um ato livre, subjaz uma índole irrevogável, autêntica, fiel e comprometida. A liberdade tende à irreversibilidade (RAHNER, 2007, p. 200-203; RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 192-193; METZ, 1970, p. 173-174).

A liberdade é também capacidade dialógica de amor entre Deus e o ser humano. A liberdade é a autoconsumação do ser humano que consiste na consumação total de seu ser diante de Deus. A autoconsumação da liberdade consiste na autorealização diante de Deus. A liberdade é capaz de se perder, se condenando, ou de se ganhar, se salvando, diante de Deus. As duas possibilidades, salvação e condenação, envolvem o ser humano todo e de forma definitiva. Essas duas possibilidades dizem respeito à capacidade de aceitação ou de recusa do amor originário de Deus. A oferta amorosa de Deus pode ser aceita ou recusada pelo ser humano.

O amor de Deus pelo ser humano o envolve todo. Sem o amor de Deus, o ser humano estaria relegado ao vazio e ao nada. O amor é capaz de reunir todas as forças humanas, múltiplas e contraditórias, as quais, por sua vez, estão orientadas para Deus. O amor a Deus é a força integradora da existência humana (RAHNER, 2007, p. 204-206). A capacidade fundamental de amar faz parte da estrutura única e última da pessoa. A capacidade de amar não tem medida. A vocação do ser humano para o amor encontra sua realização plena quando se vincula ao amor fontal e originário de Deus. As ações humanas buscam, ainda que de forma atemática e irreflexa, o amor insaciável de Deus. A liberdade humana se realiza é na abertura dialógica com a liberdade divina. O ser humano não se encontra diante de Deus como uma subjetividade fechada, mas como alguém que interpelado por Deus no centro de seu ser pessoal. O ser humano existe como uma interioridade interpelada pelo mistério de Deus, mediante uma relação consciente e permanentemente disponível da criatura para o criador. Na medida em que o ser humano se abre para essa interpelação de Deus e se põe à sua disposição, alcança sua subjetividade, sua independência e sua liberdade fundamental (METZ, 1970, p. 164). A liberdade humana tem uma relação de autonomia e dependência da liberdade divina. Como o ser humano recebe de Deus o seu ser, logo há uma relação de dependência ontológica em relação a ele. Na relação criatura-criador, existe uma dependência do ser humano em relação a Deus, não escravizante, mas libertadora e personalizante. A dependência da criatura não é uma forma de alienação e nem uma forma de roubar sua autonomia. A criatura é, simultaneamente, dependente e livre. “A liberdade do homem é uma liberdade participada. Sua capacidade de se realizar não se suprime de modo algum sua dependência de Deus [...] Na realidade, é de Deus e com relação a ele, que a liberdade humana adquire sentido e consistência” (LC, 1986, n. 29). A autonomia significa que o ser humano recebe o ser de Deus como um dom para ser livre, logo o ser humano pode livremente estabelecer uma relação com Deus. Por isso, há um diálogo amoroso entre a liberdade humana e a divina. Na verdade, o ser humano nunca é mais livre do que quando responde com amor à oferta de amor. A relação dependência-liberdade se dá no seio de uma relação interpessoal. Toda experiência amorosa é libertadora. Quem ama, de fato, deixa o outro ser livre. Respeita a autonomia e a liberdade do outro. O eu que ama dependente do tu amado, o faz não de forma obsessiva, sufocante, alienante, mas personalizante, edificante, libertadora (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 201). 

Outro aspecto cristão da liberdade refere-se à sua condição de mistério. A liberdade é mistério porque, teologicamente, é compreendida desde e para Deus, o mistério incompreensível. Deus é o mistério inabarcável e inabrangível com o qual a liberdade está relacionada. Como Deus é mistério, logo a liberdade, estando relacionada com ele, também é captada pela índole mistérica. Deus está na origem e no fim do exercício da liberdade humana. A dimensão mistérica também é um dado originário do exercício da liberdade. A índole misteriosa da liberdade está presente em cada um dos atos do ser humano. Cada ato livre do ser humano participa do mistério da liberdade. A dimensão mistérica da liberdade se refere à sua dimensão interna e subjetiva e não diz respeito aos aspectos objetivos dos atos livres (RAHNER, 2007, p. 207-210).

O ser humano só pode possuir-se e ter domínio de si mesmo abandonando-se e entregando-se ao mistério de Deus. Trata-se de um mistério que faz um constante apelo ao sujeito. Assim, o ser humano só pode possuir a si mesmo como liberdade pelo abandono ao mistério soberano da liberdade divina (METZ, 1970, p. 165).

Outro aspecto cristão da liberdade, enquanto humana e criada, se refere à sua imersão numa situação de culpa. Renegando a Deus, o ser humano se desagrega de si, perde o seu vigor e descamba para uma situação de não-liberdade, ou seja, de escravidão, de pecado e de morte que configuram um estado de perdição do qual não pode mais se reerguer sozinho. O condicionamento situacional da liberdade, segundo a fé cristã, está caracterizado por uma condição de culpa em razão do pecado original e da concupiscência. A doutrina do pecado original e a doutrina da concupiscência significam que não têm para a liberdade humana uma situação e uma condição material para sua realização que não estejam determinadas pela culpa na história humanidade. O pecado original e concupiscência feriram, porém não destruíram a liberdade humana. A decisão moral da liberdade sempre está marcada pela situação de culpa que não pode ser eliminada da história da humanidade. Todas as ações da liberdade estão condicionadas e determinadas por uma situação originária de culpa. Como a situação de culpa original não é eliminável da história da humanidade, logo a liberdade não poderá ser ela mesma, ou seja, nunca poderá ser totalmente livre em sua decisão diante de Deus e nas situações cotidianas. Anterior à eleição da liberdade, ela deverá agir num terreno condicionado por uma situação negativa e, de certo, poderá influenciar em suas decisões (RAHNER, 2007, p. 210-212).

Outro aspecto cristão da liberdade trata de sua libertação em Cristo. O pecado original não destruiu, mas feriu a liberdade humana. Em Jesus Cristo, a liberdade é definitivamente libertada. A graça que liberta é a graça de Jesus Cristo. Nele e na sua obra redentora foi concedida a libertação da humanidade decaída pela culpa de Adão. A história da experiência da liberdade para com Deus é, portanto, uma história de revelação e salvação. Esta experiência se deu pela mediação de Jesus Cristo. Deus se dá à liberdade do ser humano, através da graça deificante, para que o ser humano possa ir ao seu encontro. Jesus Cristo, penetrando no tecido da condição humana, através da encarnação, assumiu a condição humana marcada por sua situação de pecaminosidade. Assim, a liberdade chagada pelo pecado foi definitivamente libertada por Cristo. Em Cristo, a liberdade humana é libertada. Nele, a liberdade humana atinge a sua forma alta. A liberdade libertada em Jesus Cristo se torna a autêntica dos filhos de Deus. Essa autêntica liberdade cristã ocorre porque o amor de Deus, que se manifesta no Filho feito carne, se faz livre (Jo 8,32) porque onde está o seu Espírito aí também está liberdade (2Cor 3,17). A liberdade é libertada da tirania do pecado (Rm 6,18-23; Jo 8,31-36), da lei (Rm 7,3; 8,2; Gl 2,4; 4,21-31; 5,1-13) e da morte (Rm 6,21; 8,21) (RAHNER, 2007, p. 212-213). A liberdade é entregue ao ser humano a fim de que possa atingir o seu fim: ser imagem de Deus em Cristo. Quanto mais próximo de seu objetivo está o crente, mais livre vai se tornando. Sua liberdade se consumará mediante uma plena identificação como filho de Deus no Filho. A liberdade cristã possui uma estrutura escatológica no sentido que ela deve esperar, junto com toda a criação, ser redimida de modo definitivo da escravidão para participar da liberdade da glória dos filhos de Deus (RAHNER, p. 1968, p. 354)

Outro traço específico da compreensão cristã da liberdade humana é o amor serviçal aos irmãos (Gl 5,13-15). A liberdade se presentifica quando o amor reconhece e promove o outro. O amor é o sacramento da liberdade. Quanto mais a pessoa dispõe de si, entregando-se para os outros, mais livre e disponível se torna. Um crente não se realiza se auto-afirmando egocentricamente, mas ofertando-se. É reconhecendo sua vida como oferta gratuita que a criatura é chamada a se desprender de si, doando-se no serviço aos irmãos. Para a fé cristã, Jesus é o arquétipo da liberdade. Jesus não retém sua vida para si, mas se desinstala de si, entregando-se, por amor aos outros (cf. Jo 10,18). A liberdade humana, do ponto de vista cristão, é chamada a se conformar com a liberdade de Cristo (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 203; COMBLIN, 1990, p. 237).

2.3 Liberdade humana e graça divina

A relação entre a liberdade humana e a graça divina é marcada historicamente por tensão e controvérsia. A polêmica mais famosa por essa relação ocorreu na teologia depois do concílio de Trento com a denominada controvérsia De auxiliis. De um lado estava a tese da predeterminação física, que buscava o patrocínio de Tomás de Aquino, defendida pelos dominicanos, encabeçada por Domingo Báñez (1528-1604). Do outro lado estava a tese do concurso simultâneo defendida pelo jesuíta Luis de Molina (1535-1600). 

A tese da predeterminação física defendia que o concurso divino a todo ato humano é ao próprio ato; a causalidade divina precede cronologicamente a causalidade humana (premonição). Ou seja, Deus tem sempre a iniciativa no ato e causalidade da criatura depende da causalidade divina. É Deus quem determina o ato. Tal premonição aponta para o ato físico e determina a vontade de realizá-lo. Agindo antes da realização do ato, Deus exerce um influxo sobre todas as ações humanas: as livres e as não-livres. Assim, Deus exerce um influxo para que as ações não-livres possam agir sem liberdade e para que as ações livres possam ocorrer livremente. Assim, a predeterminação física causa, no sentido que move e exerce um influxo, o ato e o modo como o mesmo acontece (livre ou não). Neste contexto, considera-se graça eficaz aquela predeterminação física que implica infalivelmente a execução do ato, por si mesma e anterior ao consentimento da vontade. A graça suficiente difere entitativamente da eficaz, sendo aquela que o ser humano pode rechaçar, ao não estar conectada com o efeito. Porém, se o ser humano não rechaça, Deus lhe outorgará então a graça eficaz.

A tese da predeterminação física tem uma tendência teocêntrica da graça, explicando a eficácia da ação divina. Porém, a liberdade humana, neste contexto, é seriamente comprometida de modo que quem recebeu a graça eficaz tem que realizar o ato obrigatoriamente independente de sua vontade e liberdade. Não há propriamente espaço para o exercício da liberdade humana, pois deve seguir o influxo da graça.

A tese do concurso simultâneo defende que a causalidade divina não atua sobre ou antes da causalidade humana, mas atua junto com ela. O influxo da graça não é anterior ao ato humano. Não há um concurso prévio ou uma premonição. A causalidade humana e a divina ocorrem de forma coordenada e simultânea, na realização do ato. A graça e a liberdade humana agem juntas na produção do ato e do efeito. A prioridade da causalidade divina não é cronológica (de tempo, anterior), mas ontológica (de natureza). Assim, não há uma diferença entitativamente entre graça eficaz e suficiente. Como salvaguardar a iniciativa soberana de Deus e a eficácia de sua graça? A tese de molinista apela para a ciência media: ao conferir a graça, Deus já sabe se o ser humano consentirá ou não; se o ser humano consente isso será dom de Deus, que elegeu aquela ordem na qual tal graça vai ser acolhida e conhecida por Deus como eficaz.

A tese do concurso simultâneo procura salvar a liberdade humana, colocando em risco a soberania de Deus; é o ser humano e não Deus quem termina fazendo eficaz a graça com sua opção livre. Os defensores da tese da predeterminação física acusaram os defensores da tese do concurso simultâneo de não defenderem os direitos e a soberania de Deus (RUIZ DE LA PEÑA, 1991, p. 355-357; LORDA, 2009, p. 496-498).

As duas teses possuem o mesmo vício estrutural, pois abordam a relação graça-liberdade a partir de uma perspectiva mais filosófica do que teológica. Ambas possuem um conceito mais filosófico do que teológico de Deus e do ser humano. Elas aplicam a uma relação interpessoal categorias que pertencem ao mundo físico e mecânico (causalidade, moção, predeterminação, anterioridade cronológica etc.) ou se discorre como se entre Deus e o ser humano fosse possível uma espécie de sinergismo que homologa suas respectivas causalidades, concebendo-as como homogêneas (concurso simultâneo etc.).

A relação entre a graça divina e a liberdade humana deve abordada a partir de uma visão mais teológica e interpessoal. O pano de fundo da relação não pode ser a afirmação de um e a negação do outro, do tipo ao Deus ou o ser humano. Deus e o ser humano não são duas magnitudes homogêneas ou simétricas. Ambos não são dois adversários que estão em mútua competição. Deus transcende infinitamente o ser humano, o qual recebe o ser e a sua condição existencial de Deus. A causalidade divina é heterogênea em relação à humana. Deus que transcende o ser do ser humano, transcende também a temporalidade. A causalidade divina não prévia ou simultânea num sentido cronológico ou mecânico. A ação de Deus procede de um presente eterno e atemporal. Da sua ação, dependem o ser e o agir humanos. O ato é totalmente de Deus (que lhe dá existência como causa primeira e transcendental) e totalmente do ser humano (que o executa como causa segunda, categorial). A graça, a ação de Deus, longe de anular a liberdade, a ação do ser humano, a funda, a sustenta e a dinamiza. O efeito da ação de ambos é totalmente humano e divino. A graça é liberdade e a verdadeira liberdade é manifestação concreta da graça (RUIZ DE LA PEÑA, 1991, p. 357-358).

A ação de Deus está pautada na sua livre vontade de comunicação gratuita e amorosa, e que quando a ação divina tem como destinatário o ser humano, então essa vontade criadora é também vontade de encontro e diálogo, que chama um ser que é, ao mesmo tempo, inteiramente dependente e livre. Porém, é uma dependência que confere autonomia ao ser humano. É uma dependência que não é escravizadora, mas libertadora e criadora de personalidade.

A liberdade é uma faculdade dialógica que se exerce na esfera das relações interpessoais. A dialética graça-liberdade é um caso específico da dialética liberdade do tu e liberdade do eu. Tal dialética compreende um corte do raio de ação de minha liberdade. A existência do tu implica numa limitação de minhas possibilidades: não posso fazer, sem mais, o que bem entender, porque devo ao tu um supremo respeito. As ações do eu não são irrestritas, mas terminam por ser limitadas pelas ações do tu. Ocorre também que a real e única possibilidade de seu exercício se dá na forma do recurso à minha responsabilidade. Sem o tu, o eu não teria por que dar resposta, não seria responsável. Assim, a relação Deus-homem está pautada no respeito mútuo e na reciprocidade. Deus é um tu para o ser humano e o ser humano é um tu para Deus. A relação entre Deus e o ser humano está pautada num tu a tu, numa dialogia amorosa e respeitosa (RUIZ DE LA PEÑA, 1998, p. 63-65).

2.4 Liberdade humana e o problema do inferno

Segundo a escatologia cristã, a vida eterna e a morte eterna (inferno) não são duas possibilidades espiritualmente simétricas. A vida eterna e a morte eterna não gozam do mesmo direito de cidadania. Quem equipara os dois destinos escatológicos deturpa o horizonte escatológico. O único destino escatológico proposto e pregado pela fé cristã é o da vida eterna. A morte eterna uma possibilidade antropológica e a vida eterna é uma promessa teológica. Não é possível equiparar os dois caminhos escatológicos como se fossem duas propostas igualmente ofertadas. A morte eterna ou o inferno é um desvio de rota e uma possibilidade que não deveria acontecer. A possibilidade do inferno é possível em razão da negação ou da recusa da vida eterna. O inferno não tem uma consistência ontológica em si mesmo, mas surge devido à possibilidade antropológica de recusa da vida eterna. O inferno é uma possibilidade que surge diante da revelação sobre a vida eterna e como sua imagem invertida.

A reflexão teológica sobre o inferno não tem o seu ponto de partida em Deus. O inferno não é criação divina, mas humana. O inferno não é uma possibilidade teológica, mas antropológica. Ele é possível porque o ser humano pode rejeitar a vida eterna se precipitando numa vida marcada pelo pecado. O inferno é a consumação de uma vida mergulhada no pecado. Trata-se de uma possibilidade que consiste numa sansão imanente da culpa. O inferno é fruto extremo do pecado. Assim como Deus não pode quer e nem criar o pecado, também não pode querer ou criar o inferno. Por que o pecado é uma possibilidade humana, logo o inferno é uma possibilidade antropológica (RUIZ DE LA PEÑA, 2002, p. 235-240; LIBANIO; BINGEMER, 1985, p. 259-263; BOFF, 2012, p. 91-96; ALVIAR, 2007, p. 254-255; RAHNER, 1989, p. 512).

O ser humano foi criado livre por Deus. Em consequência de sua criação livre, ele pode dizer “não” para Deus e rejeitá-lo. Como um ser livre, o ser humano pode aceitar ou rejeitar Deus. A liberdade humana supõe uma tomada de posição de diante de Deus. Diante de Deus, a aceitação ou a rejeição são duas possibilidades reais. Em razão do ser humano poder dizer “não”, o inferno é possível. A possibilidade do inferno está ligada às possibilidades reais das decisões e escolhas da liberdade humana. O inferno é possível porque a liberdade humana pode dizer um “não” permanente e irreversível para Deus. A rejeição absoluta de Deus se verifica nas ações concretas da vida diária mediante a rejeição da graça de Deus presente em vários momentos da vida cotidiana. A recusa de Deus é uma rejeição da ação da graça de Deus na vida do sujeito e na vida diária. Rejeição de Deus também passa pela rejeição do outro. Trata-se de um comportamento anti-social e de uma negação do outro, para uma afirmação de si mesmo. Consiste em negar ao outro a sua condição de imagem de Deus. A rejeição de Deus é também uma afirmação absoluta de si mesmo. Trata-se de um comportamento egolátrico. É uma afirmação e um culto exacerbado de si de mesmo. Então, a possibilidade do inferno se dá em detrimento da rejeição de Deus, do outro e uma afirmação absoluta de si mesmo. Por isso, o inferno é a ausência de relação e de comunhão e afirmação exclusiva do amor próprio e do culto a si mesmo.

“Deus quer todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tim 2,3-4). A salvação é o único caminho escatológico que Deus oferece para o ser humano. Deus não deseja que ninguém se condene e nem se perca. Porém, a possibilidade da perdição é real e não meramente especulativa. A passagem da condição de possibilidade à de realidade depende da liberdade humana. O inferno é uma possibilidade de uma autocondenação e de uma autoperdição eternas. Deus não condena ninguém ao inferno, mas é a liberdade humana que se autocondena, pela sua opção fundamental, mediante uma vida que rejeita a comunhão com Deus, com outros e uma afirmação absoluta de si mesmo. A autofirmação absoluta da liberdade, e a consequente rejeição de Deus e do outro, deflagra uma situação infernal definitiva e irreversível. A possibilidade do inferno consiste na instauração de um estado pós-mortal eterno de ausência de comunhão com Deus e de autoafirmação egolátrica que é permanente e irrevogável.

A liberdade, no sentido entitativo e estrutural, é capaz de pronunciar um “não” radical e definitivo para Deus, dando margem para uma opção infernal, no contexto histórico e espaço-temporal. Inserido na história, o ser humano pode fazer uma opção fundamental contra Deus e o outro, afirmando radicalmente si mesmo. A decisão da liberdade entitativa se verificará nos vários momentos concretos da liberdade de escolha. Nas decisões e opções diárias, estará presente o “não” radical e permanente proferido contra Deus e o outro. Como no momento da morte, a liberdade, no sentido histórico, alcança um caráter irreformável e definitivo, nesse instante a decisão contra Deus e o outro conquista um estado permanente e irreversível. A rejeição de Deus e do outro e a consequente afirmação absoluta de si mesmo, que configuram a decisão infernal, se tornam irrevogáveis no momento da morte. A morte torna definitivo o que foi decidido historicamente. Por isso, a possibilidade da opção fundamental pelo inferno, no âmbito espaço-temporal e histórico, conquista sua definitividade e eternidade no momento da morte. A possibilidade de uma decisão infernal, por parte da liberdade, não pode ser pontual nem provisória, mas deve ser permanente e se verificar nas decisões e opções da vida diária. Como depois da morte não há possibilidade de mudança de posição e de uma nova escolha, logo o decidido historicamente se torna irreversível no momento da morte. A morte seria apenas o momento da consagração do que foi decidido historicamente.

Diante da possibilidade de uma decisão infernal ocorrer dentro da história e se consagrar no momento da morte, é preciso colocar algumas interpelações à liberdade humana: será que a liberdade humana com seus determinismos e condicionamentos externos (social, cultural...) e internos (psicológicos...) é realmente livre para tomar uma decisão infernal? O ser humano seria realmente livre a ponto de se autodeterminar responsavelmente na direção de um não irrevogável a Deus e aos outros? Será que a liberdade humana, finita e condicionada, poderia tomar uma decisão temporal permanente capaz de gerar um estado pós-mortal e suprahistórico definitivo e irreversível? O ser humano seria tão livre a ponto de pecar definitivamente, criando um estado infernal?

Meditações conclusivas

A liberdade não é produto de uma conquista e nem é um patrimônio antropológico luxuoso disponível apenas para alguns. A liberdade é uma dimensão estruturante da vida humana. É inimaginável uma vida humana que prescinda da liberdade. Prescindir da experiência, do exercício e da vivência da liberdade é uma experiência de morte existencial. A liberdade é uma experiência constitutiva do existir humano. O ser humano é constitutivamente livre. A vivência da liberdade é uma espécie de condenação imposta ao existir humano. A liberdade não é algo que vem de fora e se acopla ao ser humano, mas trata-se de bem interno e estruturante ao sujeito. O ser humano é uma subjetividade livre. A negação e a privação da liberdade conduzem à morte do sujeito. Qualquer instituição, corrente de pensamento ou instância que se atreva a negar a liberdade descamba para posturas anti-humanistas.

A afirmação da liberdade humana não conduz a uma negação de Deus. O ser humano é criado na e para liberdade. Somente um Deus livre pode criar um ser humano livre. Porque o ser humano é criado livre ele pode negar e rejeitar Deus. Sendo criado livre, o ser humano pode se posicionar diante de Deus. Criando o ser humano, Deus não cria uma marionete, um fantoche, um ser subserviente e nem uma passividade, mas cria um ser livre e capaz de responder e de se posicionar. Sendo criado por Deus, o ser humano tem uma dependência não-alienante de Deus. O ser humano é livre porque Deus o criou assim. A liberdade humana se fundamenta na liberdade divina. A afirmação da liberdade humana não pode causar uma rejeição de Deus que criou o ser humano livre e se afirma na sua liberdade. O ser humano não conquista a liberdade porque Deus o cria nela e para ela. Assim, a afirmação da liberdade e da autonomia do ser humano não podem conduzir a um eclipse na ideia de Deus. O exercício da liberdade humana é uma forma de afirmar a ideia de Deus. A liberdade humana é um patrimônio no qual Deus não mexe e nem pode tocar. Trata-se de um patrimônio humano inviolável. Se um dia o Deus cristão violar e intervir no exercício da liberdade humana ele se tornará uma divindade despótica, tirânica e carrasca.

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