Sofrimento e cuidado: o olhar de João Paulo II para a pessoa idosa      
Suffering and care: John Paul II’s gaze on the elderly      

Elaine Pinheiro Neves de Macedo
*Doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: elaine.pnm@gmail.com
 

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Resumo 

Na história de cada pessoa, em cada etapa de sua vida, inevitavelmente o sofrimento atravessará o seu viver e percorrerá seus caminhos. O envelhecimento é marcado por uma série de transformações, especialmente frente a tantas situações estressoras internas e externas como, por exemplo, o declínio da saúde, o abandono, por vezes, pelos familiares e a inutilidade que lhe é posta pela sociedade. Desse modo, o objetivo do estudo é discorrer sobre o sofrimento da pessoa idosa à luz da passagem bíblica do Bom Samaritano e do ensino de João Paulo II, como paradigma do cuidado. O estudo envolveu revisão bibliográfica com breve análise das Escrituras, do Ensinamento do Magistério, e dos Documentos: Carta Apostólica Salvifici doloris e a Carta aos Anciãos. Foi possível observar quão relevantes são a fé e a espiritualidade personalizada na vida da pessoa idosa, não somente no sentido objetivo, mas em sua realidade vivida. Afinal elas influenciam no comportamento, iluminam a mente, colaboram no processo de resiliência e equilibram o caminho por meio do sofrimento, da doença e da preparação para a morte. Ao final do estudo, foi possível concluir que, os indivíduos que estão na fase de decrepitude da vida necessitam de cuidados humanizados e profissionais para o enfrentamento deste processo com tranquilidade. 

Palavras-chave: Sofrimento; Pessoa Idosa; Espiritualidade; Cuidado 

Abstract 

In the history of every person, at every stage of his or her life, suffering will inevitably cross his or her life and travel his or her path. Aging is marked by a series of transformations, especially in the face of so many stressful internal and external situations, such as, for example, the decline of health, the abandonment, sometimes by family members and the uselessness that is put on it by society.Thus, the objective of the study is to discuss the suffering of the elderly person in the light of the biblical passage of the Good Samaritan and the teaching of John Paul II, as a paradigm of care. The study involved a bibliographic review with a brief analysis of the Scriptures, the Teaching of the Magisterium, and the Documents: Apostolic Letter Salvifici doloris and the Letter to the Elders. It was possible to observe how relevant are faith and personalized spirituality in the life of the elderly, not only in the objective sense, but in their lived reality. After all, they influence behavior, enlighten the mind, collaborate in the resilience process, and balance the path through suffering, illness, and preparation for death. At the end of the study, it was possible to conclude that individuals who are in the phase of decreasing life need humanized and professional care to cope with this process with tranquility.  

Keyword: Suffering; Elderly; Spirituality; Care 

Introdução 

O sofrimento de uma pessoa é muito variável, quase sempre associado com a dor, mas que tem causas variadas e múltiplas. Fato é, que o sofrimento faz parte da natureza humana. Sofrer é como experimentar as inadequações da vida que estão por toda parte, e estão no bojo da existência humana, podem ser fruto das escolhas individuais e, também, pelos condicionamentos do cotidiano. Sofrimento é destino inevitável, o grande desafio é dar-lhe sentido. 

Dentro dessa esteira, pode-se destacar dentro da complexidade humana, o sofrimento em seus mais diversos contextos, tais como: na pobreza; na doença; morte; separação de entes queridos; coexistência forçada com pessoas opressoras; catástrofes; e na velhice, dentre outros. Diante disso, há uma demanda clara que clama por cuidados não somente biopsicossocial, mas numa dimensão espiritual. 

piritual. Por isso, o presente artigo se propõe a discorrer sobre o sofrimento da pessoa idosa à luz da passagem bíblica do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) e do ensino de João Paulo II, como paradigma do cuidado. Ademais, pretende-se mostrar o quanto é possível dar sentido ao sofrimento seja na vida cotidiana seja ao enfrentar uma enfermidade. Será utilizado, como caminho reflexivo, uma revisão bibliográfica com breve análise das Escrituras, do Ensinamento do Magistério, e dos Documentos Carta Apostólica Salvifici doloris e a Carta aos Anciãos do Papa João Paulo II. 

Na atualidade vive-se num cenário em que o progresso, as pesquisas, os avanços da Ciência trazem uma multiplicação de meios e possibilidades para o ser humano desenvolver-se e agir. Segundo Brant e Gomez, o viver, “do ponto de vista físico, tornou-se mais leve, mas, em termos psicológicos, vem se configurando como algo árduo” (2005, p. 940). 

Há no ser humano uma magnitude em tudo que realiza, no entanto, pode-se assim dizer, que o mesmo ser se vê mais frágil diante do sofrer. O sofrimento traz a destruição dos possíveis sonhos, provoca crises, mas também pode motivar uma revisão na maneira de ver e viver a vida, favorecendo assim o crescimento e amadurecimento psíquico e espiritual. Esta experiência pode levar à ressignificação da existência. Descobre-se na ressignificação do sofrimento uma mina a jorrar sempre de novo água cristalina, benfazeja para qualquer pessoa em busca de caminho, proteção e acolhida. 

O problema do sofrimento humano 

É importante que se tenha a percepção do sofrimento, que sejam consideradas as queixas do ser humano e sua dor. Afinal, na existência humana, ninguém escapa da dor; o tema é amplo e envolve diversas instâncias, 

como é sabido, em diversos momentos da vida; verifica-se diversas maneiras e assume dimensões diferentes; mas, de uma forma ou de outra, o sofrimento parece ser, e é mesmo, quase inseparável da existência terrena do homem (JOÃO PAULO II, 2016, n. 3, p. 7). 

Certamente, o sofrimento é o lugar da interrogação dos “porquês”, uma questão acerca da causa; e “para quê”, uma questão acerca do sentido. A comunidade cristã entendeu que é necessário assumir como missão o cuidado quem sofre, como observa João Paulo II: “o sofrimento humano suscita compaixão, inspira respeito” (2016, n. 4, p. 7). Posto nesta perspectiva, o sofrimento humano assume formas diversas, o que torna difícil uma precisa descrição. 

A existência humana traz perdas, alegrias, culpas, dores, e a atitude que cada ser humano tem diante desses sentimentos pode causar o inesperado, um sofrimento maior. Certas circunstâncias se impõem, de modo a fazer parte da história humana, porém, “o sofrimento, de certo modo, deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido” (FRANKL, 2015, p. 137). Nesta direção, procurando dar um sentido à dor de existir, segue João Paulo II as pessoas: 

que sofrem tornam-se semelhantes entre si por efeito da analogia da sua situação, da provação do destino partilhado ou da necessidade de compreensão e de cuidados; mas, sobretudo, talvez por causa do persistente interrogar-se sobre o sentido do sofrimento (2016, n. 8, p.14). 

O sofrimento não é, de modo algum, necessário para encontrar um sentido para a vida, mas é um apelo a encontrar respostas diferentes para as vivências, pois revela, não raras vezes, força e superação até então desconhecidas. Quantas vidas encontraram ou encontram o próprio sentido e significado passando por insuportáveis dores? 

Voltando a interrogação do “porquê” e do “para quê” sofrer, tais questionamentos, em sua maioria, é direcionada ao transcendente, porque o ser humano não tem a resposta. Giuseppe (1999) afirma que a resposta ser encontrada no campo da esperança, como dom e graça. A Sagrada Escritura relata inúmeras experiências de sofrimento humano e o cuidado de Deus ao sofredor, como no livro das Lamentações e Salmos de súplica onde perguntas são dirigidas a Deus: “por quê? “Até quando?” Os textos sagrados relatam situações de doenças, abandono, preconceitos, medo, desespero, guerras, morte etc. A figura de Jó, por exemplo, no Antigo Testamento é um personagem a ser ressaltado; João Paulo II vê, nesta figura bíblica, não só um homem justo e sofredor, mas alguém que lida com as agruras da vida numa relação de obediência e fidelidade a Deus. Nesse sentido, valores costumam florescer a partir de sofrimentos mais agudos quando lidos e relidos na perspectiva da espiritualidade. 

O livro de Jó mostra um homem que, aos olhos de Deus, é “íntegro e reto, que teme a Deus e evita o mal” (Jó 1,1), mas há questionamentos de Satanás quanto à obediência de Jó caso ele perca tudo o que possui. Contudo, a reposta de Deus: “faça o que você quiser com o que ele possui, mas não estenda a mão contra ele” (Jó 1,12), indica a autoridade divina sobre o mal; Deus não permite a maldade sobre seu servo. Jó perde tudo o que tem: bois; ovelhas e pastores; camelos e empregados; filhos e filhas (Jó 1,13-19). Diante destas perdas, ele dá a sua reposta: “nu eu saí do ventre de minha mãe, e nu para ele voltarei. Javé me deu tudo e Javé tudo me tirou. Bendito seja o nome de Javé” (Jó 1,21). Completamente sem nada, pobre e marginalizado, ele é o retrato fiel da miséria humana, mesmo assim, Jó continua fiel à Deus. 

Entretanto, mais adiante, aparecerá o desânimo, a tristeza, a desilusão com amigos e sua própria situação, mostrando motivos para reclamar e desejar seu fim. Destaca-se o sofrimento como castigo de Deus, contestados por Jó a partir de sua consciência pessoal. João Paulo II (2016) discorre que Jó é um inocente e ninguém pode compreender racionalmente o seu sofrimento. 

A reflexão interpela a voltar o olhar para a revelação do amor divino. Deus ajuda a descobrir as respostas, ou seja, o porquê do sofrimento humano (JOÃO PAULO II, 2016). Esta é a mística cristã a respeito do sofrimento humano. Não há nada nessa vida, por mais trágico que possa parecer, que não esteja pleno de motivos e ensinamentos. Tudo depende da lente que se usa para enxergar o que acontece, da maneira com qual se lança um olhar para dentro das paredes do sofrimento. Tudo depende do que se permite que venha “demorar em nós”. Posto nesta perspectiva, o mundo do sofrimento humano necessita misericórdia de Deus, também para servir à conversão e a mudança de postura na relação com o outro e com o transcendente. 

João Paulo II: um olhar sobre a pessoa idosa 

A velhice é uma realidade que transcende a história, mas é vivida de maneira variável segundo o contexto social de cada pessoa. A velhice é uma das questões mais urgentes que a humanidade é chamada a enfrentar. Por isso, pode-se afirmar que o processo de envelhecimento é singular, individual, constituindo uma etapa da vida única, e diferenciada. Há exemplos de pessoas de idade avançada passando por inúmeros problemas cruciais de saúde, tentando por vezes manter suas atividades habituais, por outro lado, também se identifica pessoas idosas completamente saudáveis, levando uma vida sem tantos desafios e sofrimentos. 

Atualmente percebe-se uma preocupação acerca do sofrimento e do cuidar; uma maior consideração com questões inerentes à condição do ser humano. O sofrimento perpassa por todas as fases da vida, contudo, na última fase, a velhice, a pessoa enfrentam muitas perdas advindas do próprio e natural envelhecimento, como apontam Kreuz e Franco: 

a saída dos filhos, impondo muitas vezes restrições no convívio social e de lazer; a aposentadoria compulsória, com a qual pode haver afastamento de suas atividades laborais e produtivas, consequentes redução de renda e do convívio, assim como abalos no senso de utilidade; a constatação de que os pares estão morrendo ou ainda, o enfrentamento da viuvez e da solidão; a ausência de papéis sociais valorizados; o aparecimento de doenças ou comorbidades; o declínio da beleza e do vigor físico; a perda do exercício pleno da sexualidade e a perda da perspectiva de futuro (2017, p. 169-170). 

São muitos os motivos que podem levar ao sofrimento da pessoa idosa. A cultura dominante tem como único modelo o estereótipo do jovem-adulto, isto é, um indivíduo que se faz por si mesmo e que permanece sempre jovem. Não há dúvidas de a juventude é bela, mas o asfixiante conceito da eterna juventude é uma alucinação muito perigosa. Ser ancião é tão importante – e belo – como ser jovem. Em sua Carta aos Anciãos, João Paulo II chama atenção da sociedade para os numerosos problemas acarretados pelo peso da idade já que “infelizmente cruzes e tribulações estão amplamente presentes na vida de cada um” (2006, n. 2, p. 5). Na fase avançada da idade sobressaem questões peculiares do declínio em todos seus aspectos e dimensões. 

O haurir das Sacras Páginas não deixa de chamar atenção para esse tempo, que passa inexoravelmente: “ensinai-nos a contar os nossos dias, para que guiemos o coração na sabedoria” (Sl 90,12). Nesta direção, João Paulo II, na Carta aos Anciãos, traça um panorama bíblico relacionado ao idoso (Ecl 1,2; Gn 11,10- 32; Tb 3.16-17; 2Mc 6,18-31; Lc 1,7; Lc 1,42; Lc 2,29; Lc 2,38; Jo 19,38-40), destacando inúmeras pessoas e desfechos a partir da vida e do amor dispensado a Deus. Na atual conjuntura urge discorrer sobre o sofrimento em sua dimensão biopsicossocial e espiritual. 

Embora por um lado tenhamos um significativo aumento da expectativa de vida no Brasil (BRASIL, 2015) e no mundo, por outro, há o aumento da ocorrência de doenças, especialmente crônicas e degenerativas, que afeta consideravelmente pessoas idosas. Tais situações clamam por cuidados, e estes requerem responsabilidade por parte de profissionais de saúde ou familiares. Com efeito, somente com a cooperação conjunta das famílias, do Estado, e das organizações sociais se poderá garantir condições de vida dignas e sensíveis à população idosa. 

A Sagrada Escritura destaca: “quando eras mais novo, tu mesmo te cingias e andava por onde querias; mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos e outro te cingirá e te levará para onde tu não queres” (Jo 21, 18). Tal passagem fez João Paulo II pensar na necessidade de estender as mãos em direção a Jesus (2006, p. 15). Desse modo, pode-se traduzir para a realidade atual: há muitas situações em que a pessoa idosa busca enfrentar sua impotência frente à dor, ao sofrimento, ao isolamento e ao abandono. Nesta busca, apresentam-se as necessidades que se direcionam à fé; aspectos espirituais/religiosos passam a ser uma demanda nítida de cuidado. 

No estudo realizado com 188 idosos/as institucionalizados, por meio de entrevistas e aplicação das Escalas de Coping Espiritual Religioso (CER BREVE) e da Escala da Centralidade da Religiosidade (ECR), foram obtidos resultados significativos no que refere à espiritualidade/religiosidade (MACEDO; ESPERANDIO, 2021). Para as autoras “foi possível verificar que a pessoa idosa institucionalizada acredita que a prática da espiritualidade é eficaz, quer na recuperação da saúde quer na lida com o sofrimento e com o advento da morte” (MACEDO; ESPERANDIO, 2021, p. 350). 

Em outro estudo com grupo de 40 familiares com parentes em Unidade de Tratamento Intensivo, Esperandio e colaboradores (2017, p. 303) perceberam que 60% utilizam-se da religião como principal forma de enfrentamento. Ou seja, “espiritualidade/religiosidade é um fator expressivo no enfrentamento de situações em que a vida é ameaçada, sendo relevante sua integração nas práticas de cuidado” (ESPERANDIO et al., 2017, p. 303). 

Soma-se ao olhar fraternal e solidário, como afirmam Lucchetti e colaboradores sobre o cuidado espiritual, “o retorno a uma prática religiosa passa a ser mais evidente, sendo por muitos percebida como indispensável (2011, p. 160). Necessita-se sondar a plena dimensão espiritual, desta etapa da vida, para que se possa criar possibilidades e intervenções que atendam a pessoa idosa. 

João Paulo II ainda assinala que “justamente quando as energias vêm a faltar e se reduz a sua capacidade de movimento, estes nossos irmãos e irmãs tornam- -se mais preciosos no desígnio misterioso da Providência” (2006, p. 23). Ou seja, muitas são as necessidades com vistas ao sofrimento espiritual, desde um pedido de perdão, de reconciliação, de pagar uma promessa, da visita do seu líder religioso, dentre outros elementos peculiares a cada pessoa. 

Nesse sentido, é preciso entender que cada pessoa em idade avançada terá uma espiritualidade e/ou religiosidade personalizada. Isto é, cada pessoa busca formas de conexão com o transcendente buscando maior sentido, significado e propósito de vida, considerando sua trajetória e experiências vividas ao longo da vida. 

Quanto à responsabilidade pelo cuidado, a família vem em primeiro lugar, ou pelo menos deveria, como aponta a Constituição Federal (BRASIL, 1988, Art. 229, 230). Em seu Art. 229, o texto constitucional (BRASIL, 1988) observa que, diante da necessidade, da carência e na enfermidade de pais e mães, próprios da velhice, filhos/as maiores têm o dever de ajudar e ampará-los. A pessoa idosa deve ser acompanhada pela família ou por uma pessoa cuidadora para que goze de bem-estar e melhor qualidade de vida. Também o Art. 230 (BRASIL, 1988) aponta para esta demanda imposta à família: a pessoa idosa deve ser amparada e sua dignidade como partícipe da comunidade deve ser assegurada. O § 1º do Art. 230 define que os programas de cuidados à pessoa idosa serão executados preferencialmente em seus lares (BRASIL, 1988). 

Como referência, por todas as gerações, desde sempre se fala na Escritura do Mandamento do Decálogo: “honra teu pai e tua mãe” (Dt 5,16), aqui ressalta João Paulo II, “o acolhimento, a assistência e a valorização das suas qualidades” são demasiadamente necessárias (2006, p. 20). Para ele, em alguns ambientes, isso acontece de forma natural, mas em outros, nem sempre concorrem para um cuidado e um olhar integral da família à pessoa idosa. 

Nesse contexto, há outros fatores a serem observados neste estudo, como a questão da utilidade ou inutilidade que sente a pessoa já em idade avançada. Nas palavras de João Paulo II, “constatamos que em alguns povos a velhice é valorizada e estimada; em outros pelo contrário, é o muito menos devido a uma mentalidade que põe em primeiro lugar a utilidade imediata e a produtividade do homem” (2006, p. 17). 

Nas circunstâncias do século XXI, cada vez mais se pensa na produtividade, no ter, no lucro enfim. Portanto, pode-se afirmar que a pessoa idosa, em sua maioria, não se enquadra mais na vida laboral. Todavia, boa parte da população idosa não consegue superar determinadas situações devido às mudanças do próprio corpo, causando lhe angústia e sofrimento. Conforme aborda João Paulo II, por causa das exigências da sociedade atual, a pessoa idosa é “frequentemente desprezada e os mesmos anciãos são levados a perguntar-se se a sua vida tem utilidade” (2006, n. 9, p. 17). 

O processo do envelhecimento, dentro do ambiente familiar, gira em torno da dificuldade de adaptação às mudanças que a velhice traz e exige. Segundo Teixeira (2010) é necessário que familiares compreendam de fatores e mudanças ocasionadas que são determinantes do envelhecer, visando proporcionar um envelhecimento com qualidade de vida e bem-estar. 

Vale destacar por meio desta discussão, a importância da participação da pessoa idosa em pelo menos seus afazeres domésticos, isso possibilita um certo valor de que apesar da velhice, ainda é possível viver de forma independente em algumas situações. Torna-se necessário procurar bem-estar e justiça social, que não falte jamais a dignidade humana população idosa. É preciso compreender bem que a pessoa idosa não é um material de descarte, ao contrário, é uma bênção para a sociedade. Em sua tradicional catequese às quartas-feiras, assim expressou o Papa Francisco: “tudo o que uma sociedade tem de bom está relacionado com as raízes dos idosos” (FRANCISCO, 2022). 

O cuidado no paradigma cristão 

A Carta de João Paulo II (2006) sobre o cuidado com os idosos remete à base da caridade cristã, relatada na Sagrada Escritura, pois trata particularmente do sofrimento e do cuidado. A parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) ilustra um retrato realista da sociedade contemporânea. Mas, antes de adentrar na passagem bíblica é necessário debruçar sobre duas questões ou sentimentos extremamente relevantes para a compreensão da respectiva parábola: a misericórdia e a compaixão. 

Segundo o Dicionário Bíblico (McKENZIE, 1983, p. 615-616) o termo misericórdia teve algumas transformações na visão de estudiosos. O termo hebraico hesed foi mais utilizado para indicar o amor, porém junto com ele também o conceito emet foi objeto de reflexão ao indicar “firmeza”, “resolução” e “fidelidade”. Geralmente os dois termos aparecem juntos e significa uma boa ação ou misericórdia em favor do outro (Gn 24,12; Gn 40,14). 

O Papa Francisco, em Misericordiae vultus, assinala que a misericórdia “revela o mistério da Santíssima Trindade” [...] é a “lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida” (2015, n. 2, p. 4). Desse modo, usar de misericórdia é ir ao encontro dos que sofrem levando-lhes o cuidado, a bondade, a ternura e a amorosidade de Deus. 

A compaixão, do latim compassio, quer dizer: “sofrer com”; um comportamento ativo no confronto da dor alheia (GIUSEPPE, 1999, p. 174). No senso comum pode se afirmar que a “compaixão” desperta a vontade de ajudar a uma outra pessoa a superar os seus problemas, consolando e dando suporte para a vida. Se uma pessoa sente profunda tristeza ao ver a miséria e sofrimento de outra pessoa e se aproxima dessa dor, que de certa forma a afeta, essa empatia também pode ser entendida como compaixão. João Paulo II, na Carta Apostólica Salvifici doloris, observa que o bom samaritano é “todo o homem que se detém junto ao sofrimento de um outro homem, seja qual for o sofrimento”(2016, n. 28, p. 60-61). 

A compreensão deste conceito simples e profundo, traz à tona a perspectiva do sofrimento humano. Tem-se neste cenário (Lc 10,25-37) um homem agredido, espancado, e abandonado a mercê da própria sorte. Passam-se três pessoas que teriam condições de socorrê-lo: um sacerdote, um levita e um samaritano. Os dois primeiros “passaram adiante”. Esse “não se envolver” com a situação do outro denota ausência de misericórdia e compaixão. O dever, pode-se assim dizer, em socorrer as necessidades do sofredor, é particularmente significativo e constitui na sensibilidade do coração e da alma. Nas palavras de João Paulo II “por vezes, esta compaixão acaba por ser a única ou a principal expressão do nosso amor e da nossa solidariedade com o homem que sofre” (2016, n. 28, p. 61). O terceiro, o samaritano, ao contrário fará toda a diferença quando acolhe, se comove e tem compaixão do sofredor. Sua ação desinteressada e incondicional aplicada voluntariamente ao cuidado, mostra sua sensibilidade para com o próximo. 

Examinando a passagem bíblica, a questão que norteia todo o texto é “quem é o meu próximo”? (Lc 10,29). É muito significativo o apelo que Jesus. Ele atualiza, no Novo Testamento, a prática perdida do hesed. Ao refletir sobre o ensino e a prática de Jesus, comunidade cristã atualiza os conceitos para o século XXI. Jesus indica as etapas a seguir implicando os seus seguidores: “Amem-se uns aos outros, como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros” (Jo 13,34). 

É muito importante nesta parábola, a compaixão do protagonista que, comovido pela condição do sofredor, fez-se próximo. Nas palavras de João Paulo II “quanto são essenciais para todos os homens, na perspectiva da vida eterna, o ‘parar’ como fez o samaritano junto do sofrimento do seu próximo, o ter ‘compaixão’ dele, e, por fim, ‘ajudá-lo’” (2016, n. 30, p. 66). 

O cuidado com o outro vislumbrado na parábola do Bom Samaritano, permite transpor para a realidade atual a urgência do cuidado. O atual contexto que se vivencia, em tempos pandêmicos, cada ser humano é convidado a pensar nas mais diversas formas de cuidado tendo como perspectiva a misericórdia divina. 

Quantos sofrimentos causados, especialmente com os mais vulneráveis, particularmente a pessoa idosa, mais atingida e atacada pela doença e a morte. Hoje, mesmo com a chegada de possibilidades de controle de doenças, há pessoas idosas que sofrem com a solidão, o isolamento, perdas de entes queridos e pessoas amigas. 

Desse modo, pode-se afirmar que a parábola de Jesus inspira um “modelo de cuidado” com base no amor divino. O “próximo”, na concepção de Jesus, é quem se aproxima do/a outro/a para dar-lhe uma resposta às necessidades. Além disso, na prática do cuidar, não se considera as barreiras de etnia, cor, religião e classe social. Portanto, meu “próximo” é aquele/a que eu encontro pelo caminho. A missão é de fato, estabelecida a exemplo de Jesus e de sua palavra final na parábola: “vai e faze o mesmo”! (Lc 10,37). 

Considerações Finais 

A temática do sofrimento humano sempre esteve no cerne das discussões a respeito do sentido da vida. Ao tratar da pessoa idosa marcada, por vezes, pelo sofrimento, fica patente a importância da relação do cuidado na busca por um sentido. Foi possível observar quão relevantes são a fé e a espiritualidade na vida da pessoa idosa, pois influenciam no comportamento, iluminam a mente, colaboram no processo de resiliência e equilibram o caminho, apesar do sofrimento, da doença e da preparação para a morte. 

A Carta de João Paulo II (2006) lida à luz da parábola do Bom Samaritano, conclama cristãos/ãs católicos/as a olhar, aquele que sofre, com misericórdia e compaixão. Traz à luz o paradigma cristão do cuidado, atualizado por Jesus no Novo Testamento e que busca, com urgência ser reatualizado pela Igreja. 

Se João Paulo II escreveu a partir da própria experiência de quem envelheceu durante seu papado. A afirmação contida logo no início da Carta aos Anciãos inspirou esta reflexão focada no magistério de João Paulo II ainda em 1999, pois este ao se implicar na questão dá o tom de alerta: é preciso dialogar sobre o envelhecimento (2006, n. 1). Não é indiferente e demonstra a magnitude da temática, Francisco, em Fratelli tutti (2020), quando se ocupa igualmente da mesma parábola para pensar o cuidado e cuidado com as pessoas idosas. O diálogo necessário e contínuo, portanto, deve levar às atitudes concretas e efetivas. 

Ao final do estudo, foi possível concluir que indivíduos, em fase de decrepitude da vida, necessitam de cuidados humanizados e profissionais para enfrentarem este processo com tranquilidade. Seguramente, o sentir compaixão não resolve as dores de outrem, mas ajuda a dar um sentido à sua caminhada sofrida. Assim, o acolhimento, a solidariedade e a amorosidade oferecida a quem sofre traduz-se em amor maior, “vai e faze o mesmo”! (Lc 10,37). 

Referências

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