Alzirinha Souza*
** Pós Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora e pesquisadora do ANIMA Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e do Núcleo de Estudos Comunicação e Teologia e do Instituto São Paulo de Ensino Superior (ITESP). Contato: alzirinharsouza@gmail.com
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Resumo:
Sob o impulso do Concílio Vaticano II, o profetismo “renasceu” na América Latina. A tomada de conciência da realidade LA aliada ao nascimento de uma teologia autóctona que viria a ser a TdLib impulsiona novas formas de fazer e viver o cristianismo no continente. Entre tantos nomes que entraram nessa nova dinâmica pastoral e teológica, certamente encontra-se D. Paulo Evaristo, Cardeal Arns, e sua característica inegavelmente profética traduzida em sua defesa ampla da dignidade humana. Contudo, atualmente tem- -se a impressão de que a profecia desapareceu na América Latina. Por essa razão, mais que falar de D. Paulo, porém mantendo-o como paradigma de profeta, temos por objetivo nesse artigo retomar os elementos essenciais e re-situar os principais elementos da Profecia cristã alinhados ao momento atual. Iniciaremos pela reflexão filosófica para, posteriormente, apresentar as razões teológicas do profetismo. Seguramente a pessoa e a vida de D. Paulo serão identificadas nessa reflexão.
Palavras chave: D. Paulo Evaristo; Profeta; Profecia; pastoral; Igreja Latino-americana
Abstract
Under the impulse of the Vatican Council II, prophetism was “reborn” in Latin America. The realization of the Latin American reality combined with the birth of an autochthonous theology, which would become the Liberation Theology, boosts new ways of making and living Christianity on such continent. Among so many names that have entered this new pastoral and theological dynamic, there is certainly Monsignor Paulo Evaristo Cardinal Arns, and his undeniably prophetical characteristic translated into his wide defense of human dignity. However, today one has the impression that the prophecy has disappeared in Latin America. For this reason, rather than speaking of Cardinal Arns, but maintaining him as a prophet’s paradigm, we aim to retake at this article the essential elements and re-situate the main elements of Christian Prophecy aligned with the present moment. We will begin with philosophical reflection to later present the theological reasons for prophetism. Surely the person and the life of Cardinal Arns will be identified in this reflection.
Keywords: Paulo Evaristo; Prophet; Prophecy; pastoral; Latin American Church
A tarefa que me foi solicitada para esse texto se compreende em algo aparentemente muito fácil. Falar de Dom Paulo como profeta e com “P” maiúsculo é quase uma redundância. Muitos autores já escreveram sobre essa sua característica e muitos que ainda trabalham na Igreja de São Paulo e que puderam compartilhar de sua prática, a frente da mais representativa Arquidiocese do Brasil a sua época, diga-se bem, em momento histórico decisivo da vida política do país.
Em definitivo, D. Paulo, não poupou esforços para levar a cabo e com todas as consequências que isso poderia representar, para manter-se em coerência com o propósito que assumiu: viver o Evangelho em sua mais alta radicalidade. Com doçura quando em sempre, com firmeza quando necessário, valendo-se unicamente da “autoridade” de Cristo, advinda da mais alta forma de vivência do Evangelho.
Para tanto, igualmente cercou-se de gente, com “G” maiúsculo. Seja de seus bispos auxiliares, que mantinham junto ao Arcebispo a mesma coerência e vivência, seja na proximidade do povo de Deus o qual defendia com tanto zelo.
Aliás, é de se imaginar que para viver com D. Paulo, não poderia estar em outra sintonia que não fosse a dele. E muitos sabidamente se aproximaram em primeiro momento. Porém, em segundo momento, ou mudavam de postura ou se afastavam tal como o jovem rico que interpela a Jesus. Para o Povo de Deus não foi diferente. D. Paulo não lhes ensinava primeiramente o Evangelho, antes lhes ajudava a recuperar a identidade de pessoas amadas por Deus, e por esse caminho os ajudava a recobrarem o protagonismo de suas vidas. Recuperava com eles a pedagogia de Deus que recupera a centralidade do humano e a vivência em sua amizade, antes de qualquer doutrinação e “liturgização” existente. E é bom que se relembre que ao celebrar nas favelas, nas vielas da periferia de São Paulo, essas duas últimas não eram sua preocupação. Celebrava com o que era possível, em dignidade certamente, mas sem as mantas e rendas, uma vez que sua preocupação era a vida do povo que apresentava a Deus em suas celebrações e a boa homilia que os levasse a manter-se perto de Jesus mesmo na mais alta dificuldade. Por isso, transitou entre ricos e pobres, suscitando a uns e outros a ação de transformação de seus mundos e por ela sua reunificação. Mundos que não se conhecem, terminam por ter medo uns dos outros. A distância cria pré-conceitos e medo, contra os quais D. Paulo lutava.
Certamente, o diferente nunca foi problema para ele. Mantendo sua coerência de vida centrada e impulsionada pelo Evangelho, não hesitava em unir forças com aqueles que, como dizia Karl Rahner, eram os “cristãos anônimos” de sua época. O sentido maior de seus valores era exercitado nas diferenças. Assim, se uniu aos que desejavam lutar pelos direitos humanos em todos os níveis, aos que formaram a Comissão de Justiça e Paz, aos que denunciavam as torturas nas masmorras da ditadura. Unia-se, mesmo que não estivesse “unido”, e estes casos se davam pela tentativa de diálogo com os completamente distintos de si.
Exercia dessa forma seu “poder cardinalício”, da mesma forma que Jesus: como serviço. Consciente de que o serviço agrega pessoas, as coloca em vistas de um valor maior, D. Paulo não nos poupou de momentos raros. Recebia as pessoas em sua casa nas horas mais não convencionais possíveis, sentava-se na sacristia da Catedral da Sé para conversar tranquilamente com os que lhe procuravam, ia a presídios com a mesma naturalidade com que ia aos militares ou às periferias da cidade de São Paulo. Serviço, em sentido estrito, em forma de seguimento de Jesus, tem como consequência imediata a união de pessoas, a partilha de alegrias e sofrimentos de todos.
De fato, estudou na Sorbonne, e gostava de repetir aos amigos com “orgulho santo”: seu orgulho de ter estudado na Sorbonne. Não por ser a Sorbonne (ou até por sê-la), mas porque mesmo ali em ambiente francês, secularizado ao extremo fazia questão de dizer quem era e a que veio através de seu hábito franciscano, com o qual assistia às aulas e transitava em meio a seus colegas dos quais adquiriu o respeito e a amizade.
Contudo, hoje temos a sensação de que os Profetas com P maiúsculo se foram. Tempos secularizados, individualizados e líquidos nos sequestram o principal item da profecia: o cuidado, a consideração e a visibilização do outro. Profecia exige deslocamento do cuidado de si, para entrar no cuidado do outro. Essa é uma sensação ou será a constatação da intencionalidade da perda da visibilidade profética? Seguramente, o tempo histórico de D. Paulo favorecia essa visibilidade, tempos austeros de ditadura, de crise econômica e social. Contudo, se nos perguntarmos sobre a realidade de hoje, apenas não mudaram os atores so-ciais? Ainda que em contextos distintos, a crise política, social e econômica não só lamentavelmente permanece como se somou a estas a crise moral endêmica em que vivemos. Se Dom Paulo soube ser profeta em seu contexto, cabe a cada um de nós cabe ser dentro do tempo histórico que lhe cabe.
Por essa razão, mais que falar de D. Paulo, porém mantendo-o como paradigma de profeta, temos por objetivo nesse texto retomar os elementos essenciais e resituar os principais elementos da Profecia cristã alinhados ao momento atual. Iniciaremos pela reflexão filosófica para, posteriormente, apresentar as razões teológicas do profetismo. Seguramente, identificaremos a pessoa e a vida de D. Paulo nessas reflexões.
Buscar a essência de algo é buscar a razão que temos de nos sentir parte deste algo. Se a perdemos, provavelmente nos desligaremos, afastaremos ou continuaremos ligados de forma indiferente a esse algo. Enfim, as três proposições nascem de uma só razão: a perda do amor primeiro. No tocante ao Cristianismo, três filósofos trabalharam de maneira mais incisiva sobre “o quê” viria a ser o elemento substancial, ou o amor primeiro que nos vincula e determina o exercício de ser cristãos (ãs).
Começaremos pelo clássico de Feuerbach “A essência do Cristianismo” onde relaciona notadamente Teologia e Antropologia. Para ele não há diferença entre o Sujeito e a essência humana e a divina; ao contrário essas se identificam. Essa obra é a repetição dessa afirmação: “teologia é antropologia”, através do sentido positivo que demanda a consciência da fé, não é nada mais que autoconsciência do ser humano que se faz objeto para si mesma, e em sentido negativo demonstra que uma cisão entre as duas vertentes produz evidentes consequências. (FORTE, 2003, 181). Reduzir a consciência de Deus à consciência de ser humano, somente poderia gerar o que chamará de “amor infeliz”. Amor, porque na perspectiva de seu pensamento não podia fazer elogio maior do cristianismo do que ver nele a cabal expressão da condição humana e, infeliz, porque essa cabal presença do humano na religião cristã é estraçalhada e rompida, de modo que a religião, que deveria ser somente autoconsciência do humano, é apresentada como consciência infeliz que surge diante do objeto divino concebido como transcendente e separado deste. Desta maneira o maior elogio passa a ser o desprezo, onde a teologia é totalmente tragada pela antropologia, resume-se a uma mentira, um sortilégio da inteligência e coração a procura de garantias superiores.
Tomando em consideração sua perspectiva, Deus é tomado como o íntimo do ser humano revelado, o seu “eu” expresso, e a religião é o solene desvelar-se dos tesouros escondidos no ser humano. Nesse sentido, a essência divina não é outra coisa que a essência mesma do Ser Humano purificada, livre dos limites do individuo, objetivada. Dirá o autor: “o amor de Deus por mim não é outra coisa senão o meu amor divinizado” (FORTE, 2003, 183). Deus é a correspondência dos desejos e sentimentos, é aquele que é bom e justo e que satisfaz o desejo pessoal de homens e mulheres. A oração é adoração de si, a encarnação é uma “lágrima de compaixão divina, portanto apenas a manifestação de uma essência dos sentimentos humanos, logo essencialmente humana” (Forte, 2003, 184). Em resumo, o Cristianismo em sua melhor parte dirá Feuerbach, é uma “invenção do coração humano”.
Ora, dentro dessa completa auto-referencialidade humana e afastada da realidade concreta, uma vez que cria a sua própria, poderíamos nos perguntar: se Deus é resultado de mim mesmo, de minhas projeções e desejo, onde fica a necessidade do cuidado do outro? Se é invenção humana, poderia cada humano criá-lo a partir de suas projeções e fraquezas? De fato, Feuerbach tendo querido mostrar o essencial acaba por revelar a sua fraqueza ao constatar que Deus também poderia ser negação dos desejos, aprisionamento ao invés de libertação, esse poderia ser um Deus que se volta contra sua criatura? Dificilmente esse Deus se adequaria ao de um Profeta.
Entre outras questões, a que nos prende aqui é que a teoria de Feuerbach, longe ser uma relação com o outro, a religião pensada nessa perspectiva não deixa de ser unicamente a representação de sujeito mesmo e seus desejos, sendo Deus para ele uma necessidade de suprimento do que lhe falta e em nenhum momento lhe falta o “outro”, uma vez que esse outro é si mesmo. Dentro desses padrões de compreensão de cristianismo, poderiam nascer profetas?
Contrariamente ao “amor infeliz”, Harnack anuncia o cristianismo do “amor tranquilo”, na tentativa de reconciliar fé e razão, Deus e humano, cristianismo e modernidade, sem nenhuma paixão maior. Se Jesus veio para “incendiar” (Lc 12,44), para tirar homens e mulheres de sua zona de conforto e transformarem por suas ações suas realidades e o Espírito de Deus, dinamiza, desloca, recentra; Harnack tranquiliza.
Em suas aulas sobre “A essência do Cristianismo”, no auge do Iluminismo em 1899-1900, são o resultado do final do Séc. XIX, liberal e burguês, onde busca na pessoa de Jesus a possibilidade de reconciliação de todos os parâmetros de turbulência de sua época. Jesus, dirá o autor, “abre a perspectiva para um vínculo entre seres humanos que não seja ordenado por leis, mas regido pelo amor e no qual o inimigo é vencido pela mansidão” (FORTE, 2003, p.190). Sem dúvida, um ideal digno, porém tão elevado que nem mesmo a humanidade acredita que poderá um dia alcançar. Mesmo atualmente poderíamos perguntar àqueles que têm o “espírito mais elevado” dotados de sensibilidade mais aguda e porque não dizer “profética”, se ainda acreditam nessa possibilidade de transformação. Para Harnack “O Evangelho é uma mensagem social dotada de sagrado rigor e de uma força avassaladora (…). Mas esta mensagem se acha ligada ao reconhecimento do valor infinito da alma humana e encontra sua sede na pregação do Reino de Deus” (FORTE, 2003, 192), que seguramente não será no processo da história.
De fato, a idéia de uma religião sublimada pela razão e deslocada ao coração se apresenta hoje em dia, e leva as pessoas a uma forte acomodação, dependência e manipulação, mas os profetas que ali “nascem” apresentam-se unicamente como intermediadores da esperança de homens e mulheres junto à distorção de Deus. Ora, em sua concepção de Cristianismo, como idéia de religião do coração em que Deus fala a alma e a torna plena de amor, é inteligível para a função estrita do profeta que é estar em contato com as realidades, denunciá-las e assumir as conseqüências desse anúncio.
Poderíamos nós imaginar D. Paulo fazendo uma projeção de si junto a Deus, ou tranquilizando através de um cristianismo desencarnado? Difícil tarefa.
Por último, e contrapondo os dois autores anteriores, Romano Guardini em sua obra “A essência do Cristianismo”, pensa que o equívoco dos dois autores foi limitar o Cristianismo a um aspecto parcial, seja interioridade contra exterioridade, antropologia contra teologia, amor contra fé. Reduzir o Cristianismo a binômios contrasta com sua consciência mais profunda, porque este não pode ser entendido condicionado por pressupostos unicamente naturais (FORTE, 2003, p.199). Para Guardini, aquilo que é cristão não pode ser derivado de origens mundanas, pois esse modo elimina por completo sua particularidade.
Dirá Guardini: “o Cristianismo não é uma teoria de Verdade ou uma interpretação de vida. Ele é também isto, mas não está aí seu núcleo essencial. Este é constituído por Jesus de Nazaré, por sua concreta existência, por sua obra, por seu destino, ou seja, por uma personalidade histórica” (FORTE, 2003, 200). Alguém é cristão quando, aceita incondicionalmente em sua vida o Outro descartando o mito moderno da soberania do sujeito. Pode ser que para alguns essa “dependência” pareça um retrocesso em frente a emancipação do humano do iluminismo. Porém ao contrário dos primeiros que aceitavam questionar as subjetividades modernas, para Guardini a essência do Cristianismo consistia na implosão desse pressuposto para o qual não é o valor do humano a medida de Deus, mas a Pessoa do Verbo Encarnado que é a medida do Ser Humano A ideia de “um universal concreto e pessoal”, que era inconcebível à razão moderna, era a base do pensamento de Guardini, que se coloca frente a pretensão da razão absoluta e sua inquestionável objetividade.(FORTE, 2003, 201).
Ora, o que faz Guardini é guardar a relação entre cristianismo e história. O fato do primeiro ser composto por uma verdade transcendente, não elimina o fato de que essa é dita dentro de uma história concreta, onde é comunicada à mente e ao coração dos seres humanos e é compreensível a eles. E a história escolhida por Deus para comunicar-se é a de Jesus de Nazaré. Dirá Guardini: “Tudo aquilo em sentido cristão nos vem de Deus e da mesma forma tudo aquilo que em sentido cristão vai de nós para Deus deve passar por Ele. O caminho do Cristão é a própria pessoa de Jesus que é também verdade e vida (Jo 14,6)” (FORTE, 2003, p. 203). O autor coloca Jesus como o conteúdo e a medida do agir cristão em sentido absoluto. O bem em toda ação é Jesus. Para ele o que falta efetivamente no pensamento de Feuerbach e Harnack e em suas interpretações é o escândalo que desloca, impulsiona e realiza. Em suas teorias tudo se acha reconciliado e reduzido ao primado humano.
Contudo, Guardini se detém unicamente em Jesus como modelo e práti-ca humanas. Certamente este é um dado chave, que no desenvolvimento da Teologia será essencial, sobretudo na Teologia Latino Americana. Contudo, o paradigma da prática de Jesus, sua forma específica de vida, que assumiu para si em obediência à realização do projeto de Deus, inclui igualmente assumir suas consequências até o final. E a reflexão sobre o “amor paradoxal” de Guardini excluiu a conclusão e o ápice da vida Jesus que se revela no “Amor crucificado” (FORTE, 2003, p. 204).
Mesmo compreendendo que Guardini (1968) encontra-se em momento histórico influenciado pela contraposição racional e por K Barth com seu “excesso” da centralidade cristológica, não se pode limitar a pessoa de Jesus a uma verdade e paradigma de prática pessoal. Ele não pode ser representado por um modelo que leva unicamente a uma espécie de ideologia. Seguramente, à medida que é revelação de Deus na história o ouvimos, contudo devemos fazê-lo de forma a assumir todas as consequências da atualização de sua prática no momento histórico em que vivemos. Finalmente, sua linha de pensamento mostra que o risco está em conceber Jesus de forma tão universal que a torne a-histórica.
Seguiram na história da Teologia outros autores que refletiram o tema da essência do cristianismo tal como Willian Hamilton que publicará “A nova essência do Cristianismo” em 1966, no auge do início da morte de Deus na Modernidade. E como análise global do mesmo tema há ainda Bruno Forte, em “A essência do Cristianismo” publicado em 2003, pelo qual também pautamos nosso texto. Títulos muito semelhantes e por vezes idênticos para perspectivas bastante diversas.
Contudo, deixemos nossa reflexão nos três primeiros e busquemos tentar visualizar a pessoa de D. Paulo fazendo projeção de Deus, ou apaziguando o mundo de forma sentimentalista ou excluindo de sua fé a Cruz de Jesus. Tarefa dificílima, dado seu testemunho que revelou inúmeras vezes sua postura de assumir seu ministério como serviço a favor dos pobres, a partir de uma prática de Jesus que leva a consequências nem sempre desejadas, a combates que devem ser assumidos sem a certeza da vitória, mas tal como Jesus o realizou impulsionado pelo Espírito de Deus na certeza da presença de Deus em sua vida.
Igual que em termos filosóficos, na Teologia a caminhada e a compreensão do profetismo e o que o compõe não foi linear. Não pretendemos aqui dissertar com detalhes toda sua trajetória, mas propor elementos essenciais que traga a luz compreensão desta. O fazemos notadamente para que seja base de compreensão para o item seguinte de nosso texto que tratará do profetismo na América Latina, onde se situa D. Paulo Evaristo.
O Concílio Vaticano reabilitou os carismas entre os quais o Profetismo. Em sua reflexão o Espírito Santo age na Igreja a partir de duas vertentes: o magistério e os carismas. Ora, durante muitos séculos não se falou em profetismo na Igreja, porque durante séculos o papel da ação do Espírito ficou restrito à hierarquia e ao seu trabalho de condução do povo de Deus. Por isso, o regaste do Espírito Santo com ação universal, realizado pelo Concílio ampliando-o aos carismas foi essencial (LG,4).
Mesmo se o Concílio não explica o papel da profecia, confundindo-o com o papel do Magistério (LG,25), revelando um significado muito distante do bíblico, nessa mesma constituição (LG,31) esse cita a missão profética dos leigos, referindo-se ao papel de seu testemunho no mundo. Permanece distante do sentido bíblico, uma vez que reduz esse profetismo ao ato de ensinar como reforçado em Apostolicam Actositatem (AA). Da mesma forma, mesmo sem falar a palavra profecia, Unitatis Reintegratio (UR) chama a atenção da necessidade da crítica profética da Igreja pelos que estão dentro e fora dela (UR,4), da necessária reforma contínua da Igreja justamente porque ela é constituída por pessoas (UR,6).
Sabidamente, Deus dá o carisma independente da função eclesial que a pessoa ocupa na Instituição. De fato, o Espírito Santo atua livremente sobre todos os cristãos, e os carismas que dele procedem, não tem direcionamento do humano.
José Comblin em seu estudo sobre a profecia (COMBLIN, 2009), ressalta que entre todos, Paulo o Apóstolo, destaca a profecia, como o que é o mais útil para Igreja. O Espírito orienta a sua Igreja também pelos profetas e é essa a afirmação do Vaticano II que abre uma etapa absolutamente nova para o futuro da Igreja (COMBLIN, 2009, 10). Nesse sentido, não está entre as tantas preocupações do profeta brigar por lugar na hierarquia, ou eliminá-la. Antes, sua preocupação maior está em reconhecer na realidade a compreensão de cada momento, já que a revelação não mostra como o Evangelho deve ser vivido em cada momento da história. Estes devem ser descobertos e é o Espírito que mostra o caminho por diversos meios, inclusive através dos Profetas. Não sem razão, o Credo afirmará: “O Espírito que falou pelos profetas” e não afirmará o Espírito que foi dado aos que pertencem a Hierarquia.
Por isso, para Comblin, o papel do profeta não consiste em enunciar ou explicar a doutrina revelada, mas está em descobrir e dizer como se aplica essa revelação em determinada situação e em determinado lugar e tempo. Ele é dotado de sensibilidade para perceber o que está acontecendo, “perscrutar os sinais dos tempos”, identificando onde está o pecado e por onde pode vir a salvação e a ordenação em qualquer grau, não confere essa sensibilidade. Esse dom não é adquirido ou desenvolvido ou até mesmo permanente. O carisma é dado pelo Espírito para o tempo determinado por ele.
Profecia e profetas revelam características próprias vindas do Espírito. Se a primeira se dá pela continuidade da história, a segunda se dá para toda a vida, isto é permanentemente. Nesse sentido, profecia não é opcional, não é puro discurso e nem desistência fácil. A profecia se constitui em ação pública e de visibilidade, em política e pública e por isso o mais importante está em que o profeta não fala apenas por palavras, mas fala com toda a sua vida. Ser profeta por inteiro dá credibilidade à profecia.
A segunda característica é a que o profeta se dirige ao povo e presta-lhe um serviço. Este não é preso as estruturas eclesiais ou políticas e, ainda que eventualmente pertença a elas, não as exclui de seu reconhecimento positivo ou negativo. Por isso denúncia a corrupção, seja do povo de Deus, seja das instituições.
Colocando-se face aos dois, arrisca-se a despertar a ira de ambos. Por isso a terceira característica é o risco da perseguição, o maltrato que pode sofrer e por vezes, de forma intensa que pode levar a própria morte. Por consequência, o profeta vive em permanente insegurança, porque não sabe o que vai acontecer e a experiência de seus predecessores invariavelmente, mostra os riscos de sua missão. Anunciar a fidelidade de Deus a seu povo e exigência de reciprocidade a essa fidelidade é também sinal de fortalecimento da minoria, que se mantém fiel a Deus e a si mesmo.
Comblin destaca ainda que ao longo da história da profecia e das diversas perspectivas eclesiológicas revelaram dois tipos de profetas: o verdadeiro e o falso, e essas características ajudam a identificá-los. A história da profecia é influenciada por contextos eclesiológicos e cada época revela essas diferenças. Contudo, o critério primeiro se dá pelo parâmetro da proximidade com o real significado da profecia nos textos bíblicos. O AT revela em toda sua história que os profetas de Israel sempre foram a principal referência e constituíram o modelo do profetismo. Na teologia católica pós-tridentina, os profetas do AT perderam efetivamente espaço na reflexão original e a realização de milagres e sinais passou a ser o parâmetro para identificação de profetas e finalmente foram postos na função do anúncio do evento da chegada do Messias. A apologética tridentina influenciou e reduziu o papel dos profetas a sinais e previsões, sem relações concretas com a realidade de seu tempo.
Ora, os estudos exegéticos, baseados no método histórico-crítico, permitiram o redescobrimento do sentido da profecia em especial na América Latina. Associado à mudança do modo de presença de Igreja no continente, a profecia assumiu seu real valor na teologia LA. Resgatou-se as relações entre os profetas do AT e a nova atividade de Igreja no continente. Com efeito, isso não quer dizer que toda a Igreja latino-americana tenha assumido essa perspectiva, porém não se pode negar que os profetas foram lidos e comentados nas Cebs, porque davam apoio às atividades públicas das comunidades. Essa mesma leitura teve como consequência direta o alargamento da compreensão da historicidade de Jesus. A visão profética de Jesus era sua atividade histórica e pública em meio ao povo.
Claro está que “evento Jesus” não elimina nem substitui a importância dos profetas do AT, ao contrário, os ilumina e desvela suas mensagens e imagem. Seguramente no NT, Jesus aparece como profeta: realiza gestos e muitas de suas palavras somente se compreende dentro da lógica da profecia. É isso que nos permite afirmar que a lógica se inverte: é Jesus quem nos permite salientar o valor permanente dos profetas do AT.
Nas primeiras comunidades fica clara a diversidade dos ministérios. Além de presbíteros, diáconos e bispos, apresentam-se também os profetas. E isso nos permite questionar e reforçar a compreensão da liberdade de ação do Espírito de Deus. De outra parte, isso questiona também a estrutura vertical na qual a Igreja se configurou. Onde nesta hierarquia encontram-se os profetas, se esses não são nomeados e nem recebem o seu poder de uma hierarquia instituída?
À medida que a Igreja se integrou a estrutura romana, oficialmente os profetas desapareceram. A essa integração preservou-se a classe do clero dedicada à religião, ao culto e às normas. Nessa estrutura o clero assumiu o papel de sagrado, como donos de gestos e das palavras sagradas e isolando-se cada vez mais do Povo de Deus. Segundo Comblin, “com o tempo, uma casta que se renova por cooptação, sem nenhuma intervenção do povo” (COMBLIN, 2009, 17) e acrescento eu, para o povo. A relação de dependência com o Império pagou o alto preço da perda da profecia.
O desaparecimento da ordem dos profetas permitiu o aparecimento de personalidades, que mesmo sem o título, reassumiram de fato o papel dos profetas. No Séc. IV, houve bispos tais como S. João Crisóstomo, S. Gregório Nazianzeno, São Basílio e Santo Ambrósio, que tiveram atuação semelhantes a dos profetas, sendo defensores da justiça e dos pobres, enfrentando autoridades e as classes dirigentes do Império. Posteriormente, podemos citar Francisco de Assis e Domingos de Gusmão. A partir da contestação ao modelo eclesial vigente, sobretudo a riqueza do clero, ambos chamam à Igreja ao retorno à realidade, ao cuidado com o destinatário central do evangelho: o pobre.
Aliado a esses, de certa forma aparecem também os reformadores. Não se pode negar que a Reforma teve como um dos primeiros impulsos, a contestação da riqueza, vista como fontes de todos os vícios e corrupções na Igreja. Pergunto-me se necessitariam ter deixado a Igreja mãe? Não podemos responder, mas também não podemos negar a legitimidade de suas denúncias. O endurecimento por parte de João XXII (1316-1334) e a condenação dos Franciscanos Espirituais, agrava a perseguição aos movimentos de pobreza, tendo esse termo sido eliminado da hierarquia. Finalmente os herdeiros profetas da Idade Média foram expulsos da Igreja, não foram ouvidos e considerados heréticos. Após Trento, durante mais de 300 anos deixou de existir na Igreja a preocupação com a justiça e os pobres (COMBLIN, 2009, 24).
A colonização da América Latina ainda registra indícios dessa compreensão. Ainda que chegassem aqui missionários franciscanos e dominicanos, e os primeiros chegaram antes de Trento, a Igreja encontrou-se durante 250 anos na dependência das monarquias, que a reduziram à função de legitimar a dominação colonial e a de criar uma cultura nova, centrada no ambiente tridentino, destinada a esmagar as culturas dos povos colonizados.
Contudo, houve missionários que souberam elevar a voz em favor desses povos. Foram poucos em relação a quantidade dos que chegaram no continente, é verdade, mas seus gestos iluminaram posteriormente o pensamento da Igreja da Libertação de Medellín. São eles, Bartolomeu de las Casas, Antonio de Montesinos, Vasco de Quiroga, João de Zumárraga, e o primeiro bispo mártir Antônio Valdivieso (PB,8), que lutaram contra a cobiça e a violência dos conquistadores.
No dinamismo da História, a Igreja não entendeu a mudança de contexto que se abre no Séc. XIX, com o nascimento da Indústria e a formação de um proletariado, dominado em situação de quase escravidão. (COMBLIN, 2009, 26). Ela estava preocupada por demais em não perder os privilégios, face ao risco da ruptura Igreja x Estado e com a manutenção da igualdade de um único modelo de Igreja pelo mundo. Segundo sua perspectiva, as esmolas resolviam a questão dos pobres. Os profetas que surgiram nesse período quase todos foram condenados pela Igreja. Leigos como Frederico Ozanam, e alguns da hierarquia, como o padre belga Daens, que acabou excomungado pelo Bispo de Gant.
Na América Latina a industrialização começou mais tarde, é verdade, mas aí também a Igreja chegou atrasada. Os operários acharam antes o socialismo que substituiu a Igreja que os havia abandonado. Pio X acaba por fazer aliança com a burguesia de seu tempo contra o mundo socialista. Cria a Democracia Cristã alimentada pela Ação Católica, do tipo franco-belga, é dizer Ação Católica especializada, alimentada pelo método de trabalho de Joseph Cardjin. Após a Segunda Guerra mundial, alguns católicos quiseram mais que a Ação Católica. Contudo, Pio XII tornou impossível toda a transformação da Igreja, e sua herança tornou quase impossível a recepção e o alcance das reformas propostas no Vaticano II (O” MALLEY, 2008,135).
Porém, como os carismas e o dinamismo da Igreja são de propriedade do Espírito e não de homens e mulheres, esse agiu novamente às vésperas e durante o Concilio. Houve vozes verdadeiramente proféticas como a Henri Godin, que publicou France un pays de mission? , houve teólogos com vocação profética que fizeram o Concílio, tais como Yves Congar, M-D Chenu, entre outros que condenados por Pio XII foram resgatados por João XXIII, que a sua vez, também foi um profeta. (O” MALLEY, 2008,141).
Ainda que o Vaticano II não possa ser considerado um Concílio profético, nele se manifestou outras vozes como a do cardeal Lercaro de Bolonha que vez apelos brilhantes em favor dos pobres, o que levou a constituição do Grupo da Igreja dos Pobres (Sauvage, 2017, 520) no Concílio capitaneados por D. Helder, D. Ancel (França) e D. Himmer (Belga), que teve como gesto mais significativo o Pacto das Catacumbas.
Um fato, porém, é determinante: os verdadeiros profetas referem-se sempre aos pobres e à conivência com que a Igreja se coloca a favor dos poderosos. Esse é o parâmetro determinante para distinguir o verdadeiro profeta. Não há profetismo em uma Igreja acuada pelo poder, ou associada a ele. Nesse caso o que há é traição à prática de Jesus e ao humanismo de Deus.
Ao contrário de todos os humanistas (filosóficos gregos e teológicos escolásticos), Deus mesmo nos dá sua definição e a nós, somente resta nos submetermos a seu critério. Os textos mostram que os pobres, os que buscam a João Batista e depois a Jesus, são os que estão à parte da sociedade por diversos motivos, inclusive o econômico (COMBLIN, 1974,84). E é a eles, que desde o AT Deus ouve seu clamor e que no NT Jesus se dirige prioritariamente. A partir do humanismo de Deus, se pode afirmar que o Evangelho cristão é uma boa nova para os seres humanos em situação específica: aos que estão em situação de escravidão, de menosprezo, fora da sociedade Afirma Comblin: “Ora, o horror da escravidão não gera a liberdade. A liberdade é uma aspiração nova na humanidade” (COMBLIN, 1998, 21).
E Jesus se dirige a eles não somente porque têm pouco, mas é justamente o fato de terem pouco é que os fazem ser abertos a sua mensagem. O pouco ou nada que têm, permite ver no Nazareno o que muitos outros personagens bíblicos, a exemplo de Nicodemos, um Doutor da Lei, não conseguiu enxergar: a nova forma de vida e de relações fraternas. Enxergar o projeto de Jesus exige mudar o olhar, tirar as capas de proteção cultural, religiosa e cultual para enxergar o outro, prioritariamente ao que está à parte da sociedade.
No contexto atual é necessário perguntar, uma vez que o pobre não irrompe do nada na história, senão que emerge dentro de situações históricas conflitivas. Ou no dizer de Susin:
O pobre irrompe na história, é novo sujeito social histórico. É escandaloso, porque eles não são, assim como o pobre bíblico, a viúva, o estrangeiro e o órfão. Eles são o reverso da história. São um lugar teológico, antes de ser um sujeito eclesial, porque revelam Deus na cruz, revelam Deus Keinótico. Mas ele não é somente pobre: eles têm Palavra para poder afirmar sua subjetividade e alteridade. São fonte de outras riquezas e de outros mundos culturais. Enquanto pobres, são reveladores do Reino de Deus, em quanto outros que têm palavra, linguagem e experiência, sobre a afirmação do Reino de Deus, enquanto esvaziamento, são a mais keinótica, profunda e escandalosa Revelação de Deus (SUSIN, 2012).
Ora, se Deus e Jesus o fazem, por que deixamos nós de fazê-lo? A modernidade matou a profecia, ou ela nunca foi tão necessária e nós a deixamos de lado? Não nos faltam no Séc. XX homens e mulheres que impulsionados pelo ES souberam se valer de sua voz profética. Foi a geração de bispos que surgiu na América Latina na segunda metade do Século XX. Esses acabaram, sem nenhuma intenção, por formar ao que Comblin denominou “Os Santos Padres Latinoamericanos” (COMBLIN, 2009, 203) tendo como principais: D. Oscar Romero (El Salvador); os Jesuítas assinados na UCA entre os quais Ignácio Ellacurría, D. Enrique Angelelli (Argentina); D. Juan Girardi (Guatemala); D. Carlos Horacio Ponde de Leon (Argentina); nosso D. Hélder Câmara; D. Leonidas Proaño (Equador), Sérgio Mendes Arceo (México), Manuel Larraín (Chile); Alberto Hurtado s.j (Chile). E os leigos, Clotário Blest (Chile); Adolfo Perez Esquivel (Argentino) Rigoberta Manchú (Guatemala). Muitos outros poderiam ser citados e cada um a seu tempo soube enxergar em seu contexto a necessidade de defesa dos sem defesa. Entre eles, e seguramente iluminado por seus testemunhos, encontramos D. Paulo Evaristo, o qual por sua vida nos mostra ser referência profética contra toda a violação dos direitos humanos, e não somente para a cidade de São Paulo.
Um ponto comum em toda a história da profecia é que os profetas se levantam do meio dos pobres. Isso não quer dizer, como vimos nos exemplos anteriores, que tenham nascidos pobres, mas sim, que tenham tornado-se solidários a eles. É a vocação que é profética e não a situação de origem. A solidariedade, a aproximação, o esforço pela compreensão do contexto é o que faz a base da profecia e o exercício do profeta, e não sua condição de origem. Aliás, deixar uma condição de origem rica para entregar-se aos pobres é por si só um gesto profético. E é importante que se deixe claro também, que nem todos que se instalam no mundo dos pobres tornam-se automaticamente um profeta, contudo a vocação profética somente pode surgir em seu meio.
O desafio encontra-se então em “como” estar no meio dos pobres. É isso que descobre um profeta. Pobre é o que não falta nesse mundo, e pelo que vemos não temos nenhuma perspectiva de solucionar essa questão. Desde o século passado, esses começaram a ser gerados pela condição econômica: eram os que ficavam fora do processo de modernização e futura globalização da AL, e na sequência por questões políticas: eram os excluídos da sociedade por condenar sistemas políticos que avalizavam os sistemas econômicos. A divisão do mundo em classes não é bem o problema. Porém, a pretensão de dominação de uma classe a outra é o que gera a exclusão. Se existissem classes distintas, mas solidárias, talvez não houvesse excluídos.
Desde a época em que D. Paulo expressava seus gestos proféticos na defesa dos pobres e presos políticos em uma realidade dividida entre pobres e ricos até hoje tivemos poucos avanços na AL. O continente continua constituído por grandes cidades divididas em subcidades que revelam grandes contrastes entre pobreza e riqueza. Os bairros ricos têm toda estrutura ao passo que as periferias, sem nenhuma condição, seguem crescendo, ainda que em menor ritmo que nos anos 60, quando de sua constituição. Ainda há o povo que insiste em ficar no campo, continua sem assistência adequada, ao passo que grandes latifundiários vivem de sua exploração com todo conforto. Em definitivo, evoluímos pouco dos anos 80 aos 2017.
E o papel da Igreja hoje? E aqui me refiro a realidade onde D. Paulo Evaristo viveu e profetizou juntamente com seus bispos auxiliares, a maior parte de sua vida, como Arcebispo e Cardeal (05/05/1966 a 15/04/1988) e onde, até mesmo em sua retirada, se comportou como um verdadeiro profeta, passando a profetizar em oração.
Ora, se essa Igreja desde sua partida aparentemente instalou-se em um andar superior da realidade, de onde sairão os profetas? Se a nova configuração eclesiológica desde então, tende a atender primeiros aos que já têm todas as condições; aos movimentos que fechados em si mesmos praticam mais as orientações dos fundadores do que o Evangelho de Jesus; se seus responsáveis aparentemente dão testemunho de uma vida contrária a dos pobres e somente lhes encontram em condições e situações muito especiais, de onde virão efetivamente os profetas? Se a vida deixa de ser celebrada nos cultos e esses se tornam simples referências simbólicas, onde os pobres encontrarão Deus? Será necessário neste espaço de Igreja local, repensar com urgência, o sentido entre Igreja e Evangelho de Jesus? Em limitando a consciência profética hoje, como ficará a profecia no futuro? Ou como afirmará Comblin: “Com efeito, hoje a força da Igreja está concentrada ao redor de dois pólos: os movimentos e as paróquias. (...) Os movimentos estão implantados no mundo dos incluídos. Toda sua forma de ser revela a perfeita adaptação à cultura dos incluídos. Por ser emanação da cultura dominante, os movimentos não têm comunicação com o mundo dos excluídos, mesmo que seu discurso multiplique as profissões de boa vontade”. (COMBLIN, 2000,12). São muitas as perguntas decorrentes do abandono dos pobres por parte da Igreja.
O profeta é a voz dos que não têm voz, e essa somente pode vir do contato com os pobres. A voz deve falar o que a realidade demanda, deve anunciar a essa realidade, a possibilidade de transformação real pelo Evangelho através de ações conjuntas com os pobres. A voz do profeta deve dar aos pobres a consciência de quem têm condição de reconstruir seus espaços e sua identidade. Afinal, o quê Jesus deu aos pobres de seu tempo a não ser uma identidade que lhes permitia seguir de outra forma? Aliás, os pobres podem falar por si sós, mas honestamente falando: sozinhos foram alguma vez escutados? Vide as realidades gritantes que se encontra nas periferias da cidade de São Paulo.
A missão do profeta foi a missão de Jesus: despertar a esperança. Creio eu que não por acaso, D. Paulo Evaristo escolheu seu lema Episcopal: “De espe-rança em esperança” (Ex spe in spem - Sl 70,1) e, através dela deixar emergir o Reino de Deus na realidade, através da ação solidária, dos olhos proféticos que enxergam mais ao longe, da autoridade ganha no segmento de Jesus.
Como dissemos ao início do nosso texto, não pretendíamos relatar a vida profética de D. Paulo Evaristo em sua literalidade, mas retomar os principais elementos da profecia e do profeta para neles o identificarmos. Contextualizando com os demais textos que compõem essa publicação, não há como não relacioná-lo a história de vida e vivência cristã de D. Paulo Evaristo.
Sua marca foi deixada na história da Igreja e na histórica política do País, pois não diferenciava fé e vida, não as separava. Ao contrário, as vivia plenamente entendendo a ambas como composição de integridade das dimensões humanas as quais todos fomos chamados a viver, mas prioritariamente os pobres, aos quais atendeu com palavras de esperança em seus encontros, acolheu com abraço sincero, incentivou à esperança e, sobretudo, verdadeiramente os amou.
COMBLIN, J. A maior esperança, Petrópolis, Vozes, 1974, p. 84.
COMBLIN, J. Humanité et libération des opprimés. In : Revue Concilium 175 (1982), p. 122-131.
COMBLIN, J. Vocação para a liberdade, São Paulo, Paulus, 1998.
COMBLIN, J. A Igreja e o mundo dos excluídos, In: Revista Vida Pastoral 211 (2000), p. 12.
COMBLIN, J. A profecia na Igreja, São Paulo, Paulus, 2009.
FORTE, B. A essência do cristianismo, São Paulo, Vozes, 2003.
SUSIN, L. C. Resistência das alteridades como possibilidade de pluralismo. Conferência pronunciada em 08/10/2012 em São Leopoldo – Brasil - no Congresso Continental de Teologia Latino Americana. Disponível em: http://www.ustream.tv/channel/congresoteologicobrasil. (Acesso em em 06/05/2017).
O’MALLEY, J. L’événement Vatican II, Bélgica, Lessius, 2011.
Conclusão Como dissemos ao início do nosso texto, não pretendíamos relatar a vida profética de D. Paulo Evaristo em sua literalidade, mas retomar os principais elementos da profecia e do profeta para neles o identificarmos. Contextualizando com os demais textos que compõem essa publicação, não há como não relacioná- -lo a história de vida e vivência cristã de D. Paulo Evaristo. Sua marca foi deixada na história da Igreja e na histórica política do País, pois não diferenciava fé e vida, não as separava. Ao contrário, as vivia plenamente entendendo a ambas como composição de integridade das dimensões humanas as quais todos fomos chamados a viver, mas prioritariamente os pobres, aos quais atendeu com palavras de esperança em seus encontros, acolheu com abraço sincero, incentivou à esperança e, sobretudo, verdadeiramente os amou. SAUVAGE, P. Gênese, évolution et actualité de la théologie de la libération. In : CHEZA M.; MARTÍNEZ, L.; SAUVAGE, P. Dictionnaire Historique de la Théologie de la libération, Bélgica, Lessius, 2017.