Jamais outra vez - Revisitando a obra Brasil nunca mais, uma ode a Dom Paulo, cardeal dos maltratados    
Never Again - Revisiting Brazil Never Again, an ode to Dom Paulo, Cardinal of the Mistreated    

João H. Hansen* 
Antônio Sagrado Bogaz**
 
*Doutor em literatura portuguesa e pós-doutor em antropologia. Contato: jhhansen@uol.com.br
**Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP), doutor em Teologia pelo Pontifício Ateneo Santo Anselmo -IT. Pós-doutorado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Rio Claro). Atua principalmente nas seguintes áreas de conhecimento: Filosofia, Teologia e Liturgia. Contato: antoniobogaz@yahoo.com.br 
 

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Resumo:

No final do itinerário das lutas para vencer as investidas do poder ditatorial que se instalara no país, como de resto em vários outros países da América Latina, um grupo de líderes religiosos e humanitários, que se dedicara à resistência contra os torturadores do sistema ditatorial e à proteção às vítimas do golpe de estado, maquiado por seus agentes como revolução, escreve uma obra de impressionante valor. A obra Brasil, nunca mais foi um marco neste período dramático de nossa história. Este artigo, Jamais outra vez, recupera o objetivo, conteúdo, autores e protagonistas destes acontecimentos, para que não fiquem impunes seus algozes e a memória de suas vítimas seja perpétua. A referência eleita para homenagear é a figura de Dom Paulo, Cardeal Arns, que figura como modelo para nossos pastores e nossa Igreja.

Palavras chave: Brasil; ditadura; direitos humanos; Dom Paulo; tortura 

Abstract

At the end of the itinerary of struggles to win the onslaught of dictatorial power that had installed itself in the country, as well as in several other Latin American countries, a group of religious and humanitarian leaders, who had dedicated themselves to resistance against the torturers of the dictatorial system and to the protection of the victims of the coup d’état, made up by its agents as a revolution, he writes a work of impressive value. The work Brasil, was never again a landmark in this dramatic period of our history. This article, Never again, recovers the objective, content, authors and protagonists of these events, so that their tormentors do not go unpunished and the memory of their victims is perpetual. The reference chosen to pay homage is the figure of Dom Paulo, Cardinal Arns, who is a model for our pastors and our Church. 

Keywords: Brazil; dictatorship; human rights; Dom Paulo; torture 

“não podemos servir de exemplo a ninguém, Mas podemos servir de lição” (Mario de Andrade) 

Introdução 

 E stamos diante de uma importantíssima obra que marcou a história da vida brasileira recente. Estamos nos referindo a mais ampla pesquisa sobre o golpe militar de 1964, realizada pela sociedade, reunindo forças civis, religiosas e políticas, envolvidas com os cidadãos brasileiros. A partir da cruel indignação com a atrocidade de seus governantes, julgados pelo militarismo e pela ditadura, que como sempre se transvestem de democracia e direito dos povos, como o lobo em pele de carneiro. 

Deram-se as mãos na batalha os membros ativos da Arquidiocese de São Paulo e os integrantes do Conselho Mundial de Igreja, para denunciar, frear e exigir justiça diante dos sistemas de tortura que feriam, nos porões, os opositores dos opressores. Numa pesquisa abrangente, por vários anos, debruçaram- -se sobre 850 mil páginas de dolorosos processos do Supremo Tribunal Militar. Comprovou-se um desmando ditatorial dentro dos organismos militares, que deixava nas famílias inapagáveis feridas, nas ruas o medo e insegurança e nas suas corporações uma mancha para sempre. O relatório revelou espantosa violação dos direitos humanos orquestrada pelos poderes constituídos após o Golpe Militar de 1964. Este trabalho tem muitas similitudes com outras obras que relatam aquele período trágico de nossa história recente, pós golpe-militar, entre elas a obra de Bicudo, que descreve a similitude entre o esquadrão da morte e os sistemas opressivos americanos. A sua obra Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte que mostra a atrocidade do poder militar neste período, em suas torturas, desaparecimentos e mortes. 

Como preparação do golpe, 

a “direita” representada por empresários, latifundiários, banqueiros, políticos da União Democrática Nacional (UDN) e militares de alta patente (generais, almirantes) estavam preocupados e muito irritados com a forma com que Jango governava, dando liberdade para os sindicatos. Estes começaram a iniciar o golpe, conviviam com uma paranoia contra os comunistas, insinuavam que os vermelhos estariam infiltrados em todos os órgãos do governo. Os EUA monitoravam todas aquelas manifestações e estavam em sintonia com os golpistas para dar o respaldo necessário, inclusive com arsenal bélico” (ALMEIDA, 2014. p. 30). 

Numa continuidade congênere e semelhante a vários países da América Latina e do Caribe, este aparelho repressor se repetiu, mais ou menos simultaneamente, deixando mortos, exilados e desaparecidos. 

1. Profeta em tempos de opressão

Foi assim que tudo se iniciou. Almeida relata que 

os comandantes militares estavam aguardando a ordem do conspirador, Magalhães Pinto, mas o General Olympio Mourão Filho, da quarta Região Militar e Carlos Luiz Guedes, comandante da infantaria, anteciparam o golpe e colocaram os tanques nas ruas naquela tarde de 31 março de 1964. A partir daí, outros batalhões de todos os estados estavam prontos, e por último foi o de São Paulo. As tropas foram para as ruas, faziam barricadas, prendiam qualquer um que suspeitavam defender o governo de Jango. O deputado Leonel Brizola propôs que Jango reagisse, mas o presidente comunicou aos seus fiéis oficiais que se entregassem; não queria derramamento de sangue” (2014. p. 33-34) 

Muitos movimentos se colocaram à frente na luta em favor da democracia e na defesa dos perseguidos políticos, sejam pessoas físicas ou grupos sociais. Entre eles, vários movimentos cristãos, como vemos na obra narrativa de Almeida: 

a Ação Católica Operária (ACO) ou Movimento dos Trabalhadores Cristãos (MTC) não é um partido político, mas sim um movimento de trabalhadores cristãos organizados. Tem por objetivo o engajamento de seus membros em lutas e movimentos sociais, ou partidos políticos que defendem os trabalhadores e os mais oprimidos, fundamentando- -se no Evangelho e baseando-se no método ver-julgar e agir”. (Almeida, 2014, p. 10) 

A pesquisa que deu origem ao livro Brasil nunca mais1 foi totalmente preparada e realizada por advogados, cientistas sociais e lideranças religiosas sob a articulação de Dom Paulo Evaristo Arns e do Rev. Jaime Wright. 

2. Por que uma obra, a partir de líderes religiosos?

Mais que tudo, não se tratava de uma obra encampada somente por bispos, padres, pastores e religiosos, mas tornou-se uma síntese de uma luta, que se tornou bibliográfica, por um grande número de agentes de pastoral e agentes sociais indignados e envolvidos com um sistema opressor que, além de destroçar movimentos populares e grupos de conscientização, insistiam na pureza e na legitimidade de seus métodos, por meio de dissimulação, calúnias e hipocrisia. Basta recordar frases típicas como “no Brasil não tem repressão”, “somos uma democracia constitucional”, “combatemos os traidores do povo”. 

A obra, que é a síntese de uma luta social, religiosa e política visou preservar os processos dos tribunais, ainda que limitados e maquiados, para que não fossem destruídos com a amenização dos “anos de chumbo”, dificultando ou anulando a realização da justiça nos anos seguintes. A experiência de outros períodos de ditadura ou de outros países que adotaram a ditadura como sistema dominante e que destruíram os documentos das masmorras, fez com que os idealizadores da obra realizassem um trabalho seguro e crível, que pudesse servir de testemunho para os julgamentos nos tribunais, como haveria de se seguir depois da “abertura política”.

Ainda se considerou importante colher a maior quantidade possível de narrativas, entre fatos, descrições e depoimentos, para divulgar os dramas dos torturados e mortos, antes que desaparecessem ou fossem manipulados pelo aparelho repressor e embaralhado pelos meios de comunicação social, em grande parte, conivente com aquele sistema. Não bastassem estes objetivos, positivamente dever-se-ia destacar e fomentar a importância dos direitos humanos, dos perseguidos políticos e, ao mesmo tempo, das classes oprimidas. A revisão dos direitos humanos é uma exigência da ordem social e a sociedade como um todo, mas sobretudo as Igrejas cristãs estavam muito preocupadas e atentas ao seu desenvolvimento.

Os relatórios foram publicados em abundância, graças à presença e a vigilância dos organismos e instituições nacionais e internacionais, permitindo que fossem revelados seus algozes e, em parte, revisitados os danos morais, psicológicos e existências de suas vítimas. Esta obra é testemunhal, entre tantas, mas a literatura – escrita e cinematográfica – registrou muitos episódios, para nunca esquecer e não repetir a história em outros estágios da vida do país (KOTSCHO, 2006).

Em memória de Dom Paulo E. Arns, é sempre louvável reestudar as páginas desta obra, cujos depoimentos são transcritos pelos réus nos tribunais, em momentos de sofrimento, angústia e incerteza da própria vida. Os perseguidos, aqueles que sobreviveram, puderam relatar detalhes da violência física, moral e psicológica vividas in persona ou que as presenciaram. Puderam confrontar com relatos oficiais, carregados de mentiras e lacunas, mesmo que muitos fatos ainda estejam sepultados na cegueira de velhos torturadores. Muitas narrativas puderam ser publicadas pois esta obra-denúncia tem acesso aos documentos oficiais do mesmo estado repressor, depois de anunciada o fim da repressão. Mais que tudo, criamos a consciência que não se pode repetir nas páginas da história estes dias trágicos da opressão militar.

3. Para entender a obra

Se nos perguntarmos por que um Cardeal da Igreja se dispôs a assumir esta missão de registrar os fatos da história, encontraremos prontamente a resposta nas suas próprias palavras.  No prefácio que apresenta ao Brasil e ao mundo este trabalho tão importante, o próprio Dom Paulo esclarece o argumento. A obra é mais que uma provocação ou uma revanche, antes é um testemunho e um apelo para a sociedade, seus perseguidos e seus perseguidores. Todos nós acreditamos que as “angústias e esperanças do Povo devem ser compartilhadas pela Igreja” (BNM, 2014, p. 11). A solidariedade da Igreja confirmará sua solidariedade ao longo dos séculos, quer dizer no futuro. Alguns momentos históricos da Igreja em que seus líderes foram ausentes do sofrimento do povo perseguido, foi registrado nos seus anais como uma mancha histórica. Por certo, certas instituições religiosas de nosso tempo, passarão para as memórias históricas como espoliadoras e charlatães, deduzindo-se traidoras da mensagem evangélica. A Igreja deve ser fiel ao seu Senhor que foi o primeiro mártir, perseguido e torturado e mesmo sacrificado na cruz, por suas pregações proféticas e suas denúncias aos poderes apodrecidos da religião e da política da antiga Palestina. (Mt 2, 1-16). A coragem, a profecia e o enfrentamento da tortura e da morte é um legado de fé, de um Deus que se encarnou e viveu pelo Reino de Deus, concretizado em lutas por justiça, serviço de caridade e opção pelos perseguidos e desprezados da sociedade. Indignado e corajoso, Dom Paulo, como de resto grandes representantes da Igreja (bispos, padres, religiosos e leigos), declaram que a tortura, “além de desumana, é o meio mais inadequado para levar-nos a descobrir a verdade e chegar à paz”.

A realidade da ditadura era tão cruel que Dom Paulo atendia entre vinte a cinquenta pessoas a cada semana e todos estavam aflitos à procura de parentes que desapareciam sem deixar notícias. Até procurar por seus parentes era perigoso, pois corriam o risco de serem igualmente tomados como suspeitos e então também perseguidos. A propaganda pró-regime militar, disfarçada de nacionalismo, democracia e serviço à nação, colocava os perseguidos e suas famílias como traidores do povo e subversivos. Por certo é esta a maior perversidade dos regimes ditatoriais, que seja, a deterioração da imagem dos cidadãos diante da sociedade. 

Dom Paulo relata uma passagem no prefácio da obra, de uma senhora, cujo nome não revela e nem o desfecho do fato, por ocasião da edição do livro, demonstrando sua angústia, instalada no tecido social. Ele conta o histórico da jovem mulher: “é a aliança de meu marido, desaparecido há dez dias. Encontrei-a, esta manhã, na soleira da porta. Sr. padre, que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que eu continue a procurá-lo?” (BNM, 2014, p. 11)

Os fatos relatados no livro Brasil nunca mais, testemunham os sofrimentos de mães, pais, esposas e irmãos, que perdiam aos poucos e cada vez mais as esperanças e sofriam mais ainda com a crueldade da incerteza, sem ter os corpos de seus entes queridos, vivos ou pelo menos mortos. A sensibilidade de Dom Paulo, como dos demais autores da obra, faz os leitores sentir o mesmo espírito de solidariedade e indignação, comprometendo-se para que nunca mais se repitam estas atrocidades. A descrição dos detalhes dos acontecimentos, incrementada por descrições emocionais geram sentimento de mágoa e exigem justiça. Como repete o autor, na sua descrição sensível e solidária: “mas seu olhar suplicante de mãe jamais se apagara de minha retina... a Terra se enche de trevas, como por ocasião da morte de Jesus” (BNM, 2014, p.  12).

Os acontecimentos sinistros, envolvidos por informações controvertidas, calúnias e suspeições confundem os ouvintes dos processos, pois a tentativa de manchar a memória dos torturados, por meio de acusações de bandidagem, suicídios e delatores lhes rouba a imagem de heróis e os classifica como vilões. 

A obra, inspirada e motivada por Dom Paulo, mostra como as torturas chegavam ao topo do absurdo e da crueldade. A Comissão de Justiça e Paz, que conseguiu desvencilhar-se da manipulação do estado constituído e sendo coordenada por verdadeiros artífices dos direitos humanos, tornou-se um porto seguro para os perseguidos. 

Dom Paulo em sua grande sensibilidade percebe a atrocidade das garras da ditadura que tortura e assume este método como mecanismo de exercício do poder e sua sobrevivência, cada vez mais forte e cada vez mais imperativa para vencer os opositores, servindo-se de atrocidades sem limites.

A Comissão de Justiça e Paz anota que os interrogados se tornavam totalmente frágeis e confusos que não sabiam mais o que estavam falando nas sessões de tortura.  O medo e a dor, unida à agressão psicológica e espiritual os fazia entrar em contradição, sendo por isso ainda mais torturados. O fato de esquecer dados aumentava a agressão, pois os torturadores pareciam acreditar que socos e choques recuperam a memória.   Muitos das vítimas do regime cruel da ditadura militar, na cadeira do dragão ou no pau-de-arara, embaralhavam as informações e depoimentos (Prefácio, p. 13) chegando mesmo a confundir datas, nomes e dados. Os inquisidores tornam-se um monstro que amedronta e assusta o torturado.  Dom Paulo anota ainda sua perplexidade quando percebe que mesmo os torturadores são degradados. Eles perdem a própria identidade e tornam-se extensão de um sistema comandado por senhores distantes, vestidos em terno e gravata, desfilando em salões sociais e mesmo participando de campanhas sociais e assistenciais, talvez para amenizar suas consciências aflitas. Os torturados são amoldados nos quartéis e passam a acreditar que os “rebeldes” são subversivos, inimigos do povo e desordeiros. Existe todo um sistema para envergonhar suas famílias e seus amigos, por meio de falsas notícias e mecanismos de flagelação das identidades pessoais. Pior que a dor dos torturados é a degradação do espírito dos torturadores, servientes dos comandantes dos quartéis. Nas palavras de Dom Paulo, quando descreve a identidade civil e espiritual dos torturadores, oriundos de famílias simples e religiosas, “cada qual com problemas sérios na família e na vida particular, que eles próprios atribuíam à mão vingadora de Deus” (BNM, 2014, p. 13)

Eles mesmos sofreram depois a força da consciência que os intimidava com lembranças de suas ações abomináveis. Serviam-se de um mesmo refrão, para suavizar a própria culpa: éramos vítimas e tínhamos que obedecer. 

Na busca de compreensão deste processo, Dom Paulo não condena, mas busca na compaixão entender as razões dos opressores, servos de um sistema invisível e maléfico, que se esconde em ideologias e interesses políticos. São suas as palavras, que mostram o processo interior dentro dos homens simples que se tornam monstros malévolos: 

Lembrei-me então da advertência de um general, aliás contrário a toda tortura: quem uma vez pratica a ação, se transtorna diante do efeito da desmoralização infligida. Quem repete a tortura quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico e psíquico tamanho que é capaz de torturar até as pessoas mais delicadas da própria família! (BNM, 2014, p. 13)

A perda da fé que nos faz perceber o próprio Deus nas pessoas mais miseráveis, nos torna operadores dos sistemas e nos afastam dos verdadeiros sentimentos humanos. A criação de uma pseudo religião, como sistema de justificação de nossas atitudes nos facilitam a prática de torturas e opressões, conformadas por uma adaptação dos preceitos éticos e religiosos à nossa ideologia de conveniência. Este é o perigo das grandes ideologias e dos sistemas opressores, que se transvestem de civilização e perdem a noção de civilidade, se transvestem de cristandade e perdem o sentido de cristianidade.

4. Uma obra em mutirão

Dom Paulo tinha como espírito próprio trabalhar em mutirão, unindo forças e desejos comuns nas causas humanitárias, religiosas e transformadoras. Não foi diferente com esta obra sobre a trágica realidade das masmorras da ditadura. Podemos distinguir entre os autores da obra e seus escritores. Assim que os verdadeiros autores da obra são os jovens, homens e mulheres, pais, mães e filhos que ofertaram seus testemunhos. É uma obra produzida em mutirão, para a qual alguns agentes humanitários e mesmo cristãos ofertaram seus ouvidos e seus corações para vítimas e algozes dos dramas da ditadura militar. Não é uma obra de ficção, antes, são descrições e narrativas do cotidiano dos personagens, como se fosse um extenso documentário, capaz de relatar os ambientes, os tempos e os espaços onde viveram suas histórias ao longo dos meses e dos anos da grande perseguição, que fazia eco aos grandes sistemas militares das ditaduras latino--americanas dos “anos de chumbo”.  As décadas de 60, 70 e meados de 80 do século XX foram o cenários temporal destes sistemas, filiados à guerra fria das grandes potências mundiais, e vários países da América Latina e Caribe mancharam sua terra, na cidade e no campo, de sangue inocente e calaram com a crueldade da tortura – mutilação e morte – a voz da profecia. Panoramicamente, estas realidades são escritas em muitas obras, tanto escritas, quanto documentários e cinegrafia. Na cinegrafia podemos citar alguns, entre tantos: Desaparecidos, um grande mistério, Casa dos espíritos, (Chile), Romero, El Salvador, o martírio de um povo (El Salvador), História Oficial, A noite dos lápis quebrados (Argentina), Z e Estado de Sítio (várias ditaduras) e Pra frente, Brasil, O que é isso, companheiro?(Brasil) entre tantos.

As longas histórias estão registradas nas páginas da obra, com grande emoção e riqueza de detalhes. Todo mérito está na convicção dos “heróis desta história”, que viveram dias trágicos, sem esperança e sem luzes no final do túnel. Está nas histórias silenciosas e não registradas dos que morreram envergonhados, antes mesmo de exaltar a solidariedade dos grandes profetas que denunciaram estas atrocidades. 

Como forma de agradecimento e de reconhecimento, destacamos alguns destes profetas que batalharam para estancar a sangria da perseguição, antes mesmo de registar suas histórias.  Dom Paulo, nosso Cardeal Arns é nome imperativo. Ele é, como se diz, hors concurs, pois sua própria posição eclesiástica e sua espiritualidade franciscana lhe assegurou opções fundamentais pelos oprimidos e, deve-se dizer, maior segurança e proteção diante dos poderosos. Por certo, sua vida corria menos risco que a vida e as famílias de outros profetas e profetizas sem representação social e eclesiástica. Sua grandeza está em oferecer sua posição política e religiosa em favor dos mais frágeis. Sua grandeza foi a solidariedade e o registro destas páginas tornou-se referência fundamental para esta luta, para clarear seus fatos, enlameados de mentiras, e para afastar reincidências futuras. 

Dom Paulo declarou que o projeto foi dinamizado e efetivado por aproximadamente 35 pessoas, algumas mais famosas outras menos conhecidas, mas fundamentais para a concretização do projeto, que, como vimos, não se trata de uma obra literária, mas da literatura como serviço à história real. 

Recordamos seus protagonistas, ainda que brevemente.

Em primeiro lugar, citamos Dom Paulo, Cardeal Arns, um frei franciscano, arcebispo de São Paulo (1970), denunciante da repressão política, sobretudo dos freis dominicanos, muito engajados na militância contra a repressão. Considerado um ícone na luta contra o aparelho ditatorial dos militares, exercendo seu sacerdócio e sua cidadania.  Junto dele, encontramos Jaime Wright, um pastor presbiteriano, que veio como missionário dos Estados Unidos. Fez-se companheiro dos mais pobres e trabalhadores e denunciou corajosamente a violação sistemática e camuflada dos direitos humanos dos pobres e direitos civis dos que lutavam contra a ditadura. O impulso pessoal de sua luta tem raiz na perseguição e desaparecimento de seu próprio irmão, Paulo Wright, um deputado catarinense e militante. A personalização desta tragédia o tornou operante na luta pelos demais perseguidos. Agarrou com as mãos e o coração o projeto da obra Brasil nunca mais, como forma de desmascarar a hipocrisia do aparelho militar estatal que insistia em se inocentar e repetir que “não temos no Brasil presos políticos”.  Foi convidado por Raimundo Moreira para dedicar-se ao projeto. Esta foi uma das mentoras deste trabalho. Sua experiência no escritório de Sobral Pinto (RJ) deu--lhe as bases na compreensão do que estava acontecendo no país. De fato, seu local de trabalho prestou serviços aos perseguidos, por meio de apoio jurídico e direito de defesa, para denunciar torturas e calúnias. Foi um suporte importante para os familiares dos perseguidos e fez o possível e o impossível para evitar que os documentos fossem destruídos. A preocupação em garantir a manutenção dos processos jurídicos foi sua luta, pois sem estes arquivos tornar-se-ia impossível promover a justiça, resgatando a memória das vítimas e a denuncia dos algozes. Esta foi uma das principais preocupações dos idealizadores deste projeto.

Destacou-se no projeto com importante dedicação o pastor Charles Roy Harper Jr, como membro do Conselho Mundial de Igrejas, uma vez que este projeto é ecumênico e mesmo humanitário. A proposta é a defesa da vida e dos direitos dos perseguidos pelo cruel sistema ditatorial. Não se trata de separar o projeto da história, pois o projeto é um “link” da própria história, foi assim que este pastor batalhou por meios financeiros para sustentar organizações e ativistas da resistência política daqueles anos. Os refugiados e torturados e mesmo suas famílias urgiam apoio logístico para sobreviver e para manter-se na luta. O registro e a denúncia dos acontecimentos eram uma “arma pacífica” nas mãos dos perseguidos e limitavam suas atrocidades.  Ficou em suas mãos o levantamento e a organização das reportagens da imprensa, tanto no Brasil, como fora dele. A posse deste material foi fundamental para sistematizar o emaranhado destes acontecimentos. 

A figura de Paulo Vannuchi foi igualmente valiosa pois foi ele quem compilou os documentos, dos quais foi elaborado o relatório para a obra Brasil nunca mais. Foi fundamental na publicação do texto, que teve uma grande repercussão. Ele mesmo foi um preso político pela ditadura e um primo seu, Alexandre Vannuchi Leme, foi assassinado, como líder estudantil engajado na luta contra a repressão.

Estes nomes memoráveis merecem o crédito da existência desta obra, que estancou e promoveu a justiça durante e depois dos tempos da perseguição militar, dificultando que a imprensa global se omitisse diante dos fatos e os cobrisse com uma cortina de fumaça de omissão. 

5. Folheando as páginas do Brasil Nunca Mais

A obra é testemunhal. São descrições dos fatos e através deles, a elaboração de conhecimentos, sempre proféticos e denunciantes, como é o estilo Arns. Todas as suas obras são mais indutivas que dedutivas, pois partem da realidade e desta realidade abordam concepções mais abrangentes para compreender o universo. A percepção dos fatos provoca o confronto com os princípios da democracia, da liberdade e da dignidade do ser humano. Não se trata de um olhar para os conceitos fundamentais, mas antes a realidade concreta como forma de definir conceitos. Não se trata de proclamar aos quatro ventos, como fazia a propaganda do sistema ditatorial, insistindo que havia uma democracia, mas uma radiografia dos fatos, para compreender se havia mesmo uma democracia. Não se tratava da hipócrita proposição “este é um país que vai para frente”, mas confrontar as realidades das masmorras e das ruas para perceber que o país caminhava para a depressão e para a desigualdade, silenciada pelo poder do aparelho repressor.

Na primeira parte da obra, tocamos a realidade dos torturados. Com o título contundente: “castigo cruel, desumano e degradante”, passeamos pelos corredores da tortura, entre tantos o “pau de arara”, choque elétrico, pimentinha, afogamento, cadeira do dragão, geladeira, produtos químicos, lesões físicas e o uso de insetos e animais para provocar o medo e a aflição nos torturados. Não se trata de explicar tecnicamente como são projetados estes métodos, como se fosse uma escola técnica; antes os relatos descrevem como os perseguidos eram torturados. Para recordar, por exemplo, encontramos “...havia também, em seu cubículo, a lhe fazer companhia, uma jiboia de nome “miriam” ou ainda “que ao retornar à sala de torturas, foi colocada no chão com um jacaré sobre seu corpo nu” ou “torturas constantes de choques elétricos em várias partes do corpo, inclusive nos órgãos genitais e injeção de éter, inclusive com borrifos nos olhos”. (Brasil, nunca mais, p. 39). Estas narrativas são todas apresentadas e documentadas pelos curadores da obra, dando a identidade da testemunha e a descrição do processo. Mais que tudo, a força da tirania se expressa quando os torturadores aplicam os sistemas de dominação com ironia, desprezo e mácula de brincadeiras, divertindo-se com o sofrimento das vítimas. Dizem que se trata de uma forma de suportar a própria tirania e não se deixar assustar. Tanto é que a “pimentinha”, que era uma máquina de tortura, constituída de uma caixa de madeira, com um imã que produzia corrente elétrica, aumentando durante a operação. Como a caixa era vermelha, os torturadores a denominavam de pimentinha. Outras formas de tortura são bastante conhecidas e são descritas nos processos. Fica muito extenso descrever todos os fatos.  No livro é um mergulho tétrico na história destas maldades. Assim era a geladeira, na “qual por cinco dias foi metida numa “geladeira” na polícia do Exército, da Barão de Mesquita” (BNM, 2014, p. 37): 

Em julho de 1970, contudo as coisas pioraram. Um investigador havia sido morto por certo marginal e seus colegas policiais, encolerizados, falavam abertamente de vingança. Logo a chacina teve início: quatro bandidos massacrados num dia, dois no outro, três logo a seguir e um último, por final. Não era possível calar por mais tempo” (BICUDO, 1976, p. 12).

Nesta tragédia, não foram poupadas nem mulheres, crianças e gestantes. Anotamos isso, quando lemos que “foi presa no dia 21 de outubro de 1973, juntamente com seu filho menor Eduardo, de 4 anos de idade, que o motivo da prisão era que a interroganda desse o paradeiro de seu esposo [...]” (BNM, 2014, p. 43)  

Na segunda parte do trabalho, seus autores apresentam a constituição do estado repressivo naquele período. Dedica várias páginas para explicar como se erigiu um estado repressivo, considerando os acontecimentos e os confrontos políticos, bem como as ideologias internas e externas ao país, levando os militares a uma postura de repressão, instituindo um governo de direita, que foi aos poucos se consolidando, por meio de sistemas de manipulação das classes populares, ameaças aos adversários e montagem do aparelho repressivo. Dentro deste quadro, os opositores eram presos e as consequências eram trágicas e temíveis: 

Estudantes, artistas e numerosos setores das classes médias urbanas vão engrossando as lutas por modificações nacionalistas., por uma nova estrutura educacional, pela reforma agrária e pela contenção da remessa de lucros. O estopim se dá no dia 13 de março, quando uma concentração de mais 200 mil pessoas, no Rio, tendo a frente João Goulart aclama reformas de base... Cresce a propaganda anticomunista, veiculadas pelos partidos Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e grande parte da hierarquia católica. Todo movimento é financiado pelos Estados Unidos. Chega-se à ação golpista e os movimentos nacionalistas não são capazes de resistir” (BNM, 2014, pp. 58-59). 

A obra relata como o governo militar serve-se de mecanismos para consolidar seu poder e sua hegemonia, mesmo que reprimindo, torturando e matando seus opositores. O primeiro mecanismo é o famigerado AI-5, que se seguiu com a Lei Falcão e o instrumento de repressão, DOI-CODI. De fato, Costa e Silva baixa o AI-5 no dia 13 de dezembro de 1968. A gota d’água foi um discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves, considerado ofensivo às Forças Armadas. Ao contrário dos atos anteriores, no entanto, o AI-5 não vinha com vigência de prazo. Era a ditadura sem disfarces” (Brasil ...p. 62). No período, orquestrado pelo governo de Emilio G. Médici, os órgãos de segurança pretendiam eliminar todos os agrupamentos de esquerda e de resistência. Foram anos que aumentaram as torturas, sequestros e assassinatos. A ARENA era abrangente e dominava todos os setores políticos. Nesta ocasião, o Cardeal Arns visitou o General Golbery. Dom Paulo representava a comissão dos familiares de “desaparecidos políticos”. A grande repressão acontecia nas dependências do DOI- CODI que deixou marcas profundas na vida de tantos presos políticos. Foi desastroso, pois o Ministro da Justiça, Armando Falcão, determinou e informou que não havia presos políticos e que tais desaparecidos nunca tinham sido prisioneiros. 

Neste esquema repressivo, os opositores do regime eram presos, maltratados, humilhados e levados pela tirania do aparelho repressor. Entre vários casos que são narrados na obra e que perpetuam a memória destes acontecimentos, reportamos o depoimento de Adail Ivan de Lemos, estudante de medicina, de 1970, como se segue: 

... quando entrei na sala de jantar, minha mãe, sentada escrevendo à máquina, chorava em silenciar. Um pouco antes, por volta das 15:30 h, meu irmão tinha sido preso enquanto estudava. Minutos antes começou a ser agredido fisicamente no quarto de minha mãe, levando, segundo suas palavras, “um pau violento”. Socos, cuteladas, empurrões, seriam “café pequeno” perto do que viria mais tarde. Mas, ainda ali, separado da mãe por alguns metros, teve a sua cabeça soqueada contra a parede” (BNM, 2014, p. 78). 

A obra relata que neste período inicia-se uma repressão contra todos os movimentos e grupos denominados “esquerdistas”, entre eles o partido comunista, os grupos militares dissidentes, as ações populares e os setores sociais que eram críticos ao governo militar. Foram anos de grande propaganda subversiva, contraposta por propaganda militar e nacionalista, veiculada pelos meios de comunicação social e pelo aparelho estatal, sobretudo nas escolas e nos programas políticos. 

Na quarta parte, “subversão de direito”, são reunidas as partes do processo de perseguição, onde encontramos a fase policial, com inquéritos intimidadores e a fase judicial, na qual se ajuntam a denúncia, a prisão preventiva, a prova, a prisão e  a sentença. Todo processo era bastante dissimulado, como vemos nas narrativas que a obra apresenta em seis casos particulares. Mais uma vez, o texto se serve de testemunhas para que, por meio dos fatos, se reconhecem os sistemas repressivos do governo militar. Quando trata das marcas da tortura na quinta parte, os autores apresentam muitos depoimentos que mostram a farsa dos processos, em que são relatados a intimidação pela tortura, os documentos falsos, com as mesmas confissões falsas. Segue-se a exposição das consequências das torturas e o sentimento de morte que impacta sobre as mesmas vítimas. De fato, “para facilitar ainda mais seu trabalho, situando-o à margem da própria legislação autoritária vigente, o sistema repressivo passou a dispor de seus próprios “aparelhos”, nos quais presos políticos eram mantidos em cárcere privado, após serem sequestrados. (Brasil... p. 239) Em consequência, alguns encontram a morte nestes locais e na maioria dos casos perdem a noção do tempo e dos acontecimentos. Vejamos um relato, para entender a tragédia mais ampla: “...que essa casa de campo fica próxima a uma lagoa... que o interrogado ouviu os gritos e gemidos daquelas pessoas que eram torturadas, lá do depósito, onde se encontrava recolhido, no pavimento térreo da referida casa de campo” (BNM, 2014, p. 240)

Os personagens deste quadro dantesco sentem-se como participantes de um inferno profundo ou de uma casa de horrores. São lugares marcados como São Conrado, no Rio de Janeiro, Petrópolis, Belo Horizonte e São Paulo. Na maioria das vezes, os próprios presos não sabiam para onde eram levados e perdiam a noção dos dias que viviam nestes lugares de suplício.  Como forma de homenagem e memória, trazemos os nomes de alguns “desaparecidos” mortos sob a tortura, entre eles Chael Charles Schreider, que foi chutado como um cão e cujo atestado de óbito apresenta 7 costelas quebradas, hemorragia interna, hemorragias puntiformes cerebrais e equimoses em todo o corpo. Ainda, João Lucas Alves e Severino Viana Calú, Eduardo Leite, Joaquim Alencar Seixas, Carlos Nicolau Danielli, Odijas Carvalho de Souza, Alexandre Vannucchi Leme, nomeados no último capítulo do livro, em meio a narrativas assustadoras e cruéis. 

A mentira dos torturados era escandalosa, como vemos, por exemplo, no caso de João Lucas Alves que 

depois de seis meses de prisão, mais ou menos, e depois de barbaramente torturado, em consequência veio a falecer, e que foi dado pelas Autoridades Policiais, como ‘causa mortis’ o suicídio, quando é do conhecimento do público, e isto consta da perícia médica, que esse companheiro tinha os olhos perfurados ao falecer e as unhas arrancadas (BNM, 2014, p. 248).

A importância fundamental do Cardeal Arns vai muito além que sua parceria na obra. Sua atuação é preciosa na luta em favor das vítimas da ditadura e de suas famílias. Ele fortaleceu os oprimidos do sistema e possibilitou que se confrontassem os poderosos, sobretudo nos quartéis, os quais não davam respostas satisfatórias e tratavam com descaso os familiares e amigos que procuravam informações ou exigissem justiça. Eram sempre enganados pelos servidores dos quartéis, tratados com ameaças e desprezo.

6. O calvário dos desaparecidos

Embora a centralidade dos textos da obra seja os grandes relatos, depoimentos e testemunhos sobre os fatos que se passaram naqueles dias, algumas reflexões são fundamentais para entender os mecanismos do poder ditatorial para amedrontar os opositores do poder e, ainda mais, para propagandear positivamente seus feitos e sua ideologia. Mesmo que Victor Hugo, autor da impressionante obra “Os Miseráveis” tenha dito que a tortura desapareceria da história, nossos poderosos mancharam mais uma vez nossa história; uma mancha inapagável e vergonhosa.

Naqueles anos da ditadura, que se espalhou em vários países, relata o livro, “o fenômeno da detenção arbitrária ou sequestro, seguido do desaparecimento da vitima, se propagou rapidamente na América Latina, durante as últimas décadas, em que a maioria dos países foi governada sob a Doutrina da Segurança Nacional” (BNM, 2014, p. 260). Muito trágica, particularmente é a realidade dos desaparecidos, que perpetua o sofrimento da família e dos amigos, pela incerteza do destino de seu familiar, a desconfiança de todos os vizinhos, como possíveis delatórias, acrescida da imaginação dos sofrimentos nos aparelhos de tortura.  

O relato do drama familiar de Ana Rosa (BNM, 2014, P. 268) manifesta a perversidade do aparelho de tortura. Seu desaparecimento é negado todo o tempo, fazendo com que a família acredite, antes de tudo, que ela simplesmente fugiu, como se fosse uma rebelde. Depois nega sua prisão diante da família, para em seguida afirmar que ela estava presa e estava bem. Os falsos bilhetes (primeiro, confirmando ser sua própria escrita e depois tentando enganar que ela ditara o bilhete), deixaram as famílias por semanas e mesmo meses, na mais triste agonia. Para depois saberem que estava morta, com a afirmação de suicídio e finalmente a negação do local de seu sepultamento. E tempos depois ultrajaram seu sepultamento clandestino, fazendo desaparecer seu corpo. E finalmente, conta-se a aflição dos familiares e os custos do processo, reconheceram seu corpo por resquícios de seus restos mortais (dentes, cabelo e ossos). 

Este relato, bem como aquele de Vladimir Herzog e Rubens Beirodt Paiva, deputado federal, são transcritos nas páginas desta obra, como testemunha da atrocidade de todas as ditaduras, ensinando a humanidade a fugir destes mecanismos de dominação, para salvaguardar estas ideologias e interesses partidários.

A obra reporta um breve texto de Alceu de Amoroso Lima, que reflete bem os sentimentos dos cidadãos e dos familiares tocados cruelmente pelo sistema ditatorial dos militares nos anos de chumbo: “Até quanto haverá, no Brasil, mulheres que não sabem se são viúvas, filhos que não sabem se são órfãos; criaturas humanas que batem em vão em portas implacavelmente trancadas, de um Brasil que julgávamos ingenuamente isento de tais insanas crueldades”. 

Conclusão

Inauguramos, com alívio, o final dos anos de ditadura no Brasil. Houve um grande movimento para abafar ou justificar a crueldade dos quartéis, que serviram aos propósitos ideológicos de um poder perverso, fundado na tortura, na perseguição e na propaganda ideológica, servilmente publicadas por canais de televisão, programas radiofônicos e vários jornais. Uma página manchada de sangue e blasfêmias, que foi virada, à duras penas. Ainda muitas famílias esperam por justiça para minimizar um sofrimento que perpassou anos de suas vidas. Encontramos ainda pessoas marcadas por traumas insuperáveis, pelas vidas ceifadas de pais e filhos, irmãos e amigos. 

No entanto, nestes anos, ouve-se ainda vozes que reclamam a volta dos militares ao poder, como se fossem o socorro para os infortúnios sociais, políticos e econômicos. 

Por certo, os clamores inconscientes pelo regime militar se devem à grande decepção com o governo civil, marcado pela corrupção, pela irresponsabilidade dos políticos. Deve ser muito desesperadora a indignação dos cidadãos que clamam pelos governos militares. Toda nação está frustrada com nossos governantes, que se enriquecem de forma ilícita, que confundem os bens públicos com os bens privados e que manipulam as leis para seus interesses corporativistas.

Como nos tempos da ditadura militar, onde figuras como Dom Paulo e tantos profetas corajosos, precisamos de vozes proféticas para denunciar os desmandos de policiais violentos, de senadores, deputados e executivos alinhados com a propinagem, para fortalecer as lutas daqueles que correm riscos denunciando a injustiça e a corrupção endêmica em nossa sociedade atual. “Como o homem – fautor e beneficiário do desenvolvimento – é o capital mais valioso com que conta o país, a Constituição não pode deixar de traçar as regras fundamentais, concernentes à educação, à saúde e à assistência social”. (COMPARATO, 1986, p. 62). 

Comparato afirma que 

a constituição para o Brasil atual deve definir a origem e os limites de todos os poderes – não só os políticos (em sentido escrito), como também os econômicos e os sociais; ela há de fixar objetivos de mudança a alcançar no processo histórico e criar condições institucionais para a sua consecução. Tudo isto significa rejeitar, em definitivo, a separação entre a ordem política – artificial e consensual – realizada no Estado e a ordem econômica e social – correspondente à natureza das coisas” – domínio da sociedade civil, onde reinariam a tradição e a liberdade”. (COMPARATO, 1986, p. 12). 

Este é o projeto verdadeiro e iluminador de uma sociedade sem dominações e manipulações de qualquer tipo. Jamais outra vez a ditadura. 

Dom Paulo e tantos parceiros de sua missão marcou nossa história com um selo verdadeiramente cristão, sendo um nome de orgulho e grandeza de nossa Igreja e de nossa história. Que sua memória seja um brado de justiça e sua intercessão entre os santos de Deus desperte sempre novos e grandes em nosso cenário eclesial, para que nunca mais volte no Brasil e no mundo a ditadura. E quem sabe surjam nomes corajosos para que a ditadura econômica dos poderosos e a ditadura política dos nossos governantes sejam substituídas por tempos de justiça e paz. 


Referências

ALMEIDA, A. P. Um tempo para não esquecer. Ditadura. Anos de Chumbo. São Paulo: Piratininga, 2014. 

ARNS, P. E. Brasil nunca mais. 41ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.  

BICUDO, H. P. Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo: Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. 1976. 

COMPARATO, F. K. Muda Brasil. Uma constituição para o desenvolvimento democrático. Brasiliense. 1986. 

KOTSCHO, R. Do Golpe ao Planalto. Uma Vida de Repórter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 

Notas

[1]  De ora em diante toda vez que fizermos referência ao livro Brasil nunca mais utilizaremos a sigla BNM