Octogesima Adveniens: um guia de leitura      
Octogesima Adveniens: a reading guide       

Francisco Aquino Júnior
*Pós-doutorado em teologia na Faculdade Jesuita de Filosofia e Teologia (FAJE). Professor da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Contato: 
axejun@yahoo.com.br 

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Resumo 

Publicada por ocasião dos oitenta anos da encíclica Rerum novarum, a Carta Apostólica do papa Paulo VI Octogesima adveniens, retomando e prosseguindo o ensino social dos papas anteriores, trata das profundas transformações socioculturais que se deram nas sociedades industriais e da aspiração cada vez maior de igualdade e participação que se traduz em ideologias, movimentos e utopias. Sua novidade maior tem a ver com o deslocamento do foco econômico para o social e político na reflexão social da Igreja (centralidade do social e político), com a importância e o papel decisivo que confere às comunidades cristãs na análise da realidade e no discernimento dos caminhos e modos de ação eclesial (eclesiologia conciliar do povo de Deus) e com o reconhecimento de um legítimo pluralismo de posições e opções sociais e políticas na Igreja (pluralismo social e político). Ela deixa claro que a Igreja não propõe um modelo cristão de sociedade, mas os cristãos devem agir na sociedade de acordo com sua fé e o ensino social da Igreja. Este trabalho, como indica seu subtítulo, pretende ser um guia de leitura desse documento. Começa indicando o contexto socio-eclesial em que ele surge e que procura analisar. Faz uma apresentação panorâmica da estrutura e do conteúdo do texto. E conclui destacando alguns pontos importantes para sua adequada compreensão e interpretação.   

Palavras-chaves: Paulo VI; Octogesima adveniens; Transformações socioculturais; Ideologias; Movimentos históricos; Pluralismo político 

Abstract
Published on the occasion of the 80th anniversary of the encyclical Rerum novarum, the Apostolic Letter of Pope Paul VI Octogesima adveniens, taking up and continuing the social teaching of previous popes, deals with the profound sociocultural transformations that took place in industrial societies and the growing aspiration for equality and participation that translates into ideologies, movements and utopias. Its greatest novelty has to do with the shift from the economic focus to the social and political in the Church’s social reflection (centrality of the social and political), with the importance and decisive role that it gives to Christian communities in the analysis of reality and in the discernment of paths and modes of ecclesial action (conciliar ecclesiology of the people of God) and with the recognition of a legitimate pluralism of positions and social and political options in the Church (social and political pluralism). She makes it clear that the Church does not propose a Christian model of society, but Christians must act in society in accordance with their faith and the Church’s social teaching. This work, as indicated by its subtitle, is intended to be a reading guide for this document. It begins by indicating the socio-ecclesial context in which it arises and which it seeks to analyze. It gives a panoramic presentation of the structure and content of the text. It concludes by highlighting some important points for its proper understanding and interpretation. 

Keywords: Paul VI; Octogesima adveniens; Sociocultural transformations; Ideologies; Historical movements; political pluralism 


Introdução  

Por ocasião dos 80 anos da Encíclica Rerum novarum (RN) do papa Leão XIII, Paulo VI publicou no dia 14 de maio de 1971 uma Carta Apostólica intitulada Octogesima adveniens (OA) e endereçada ao cardeal Maurice Roy, presidente da Comissão Pontifícia “Justiça e Paz” e do Conselho de Leigos. Esse texto tem uma importância muito grande na reflexão social da Igreja pós-conciliar. Pode-se mesmo afirmar que, sob muitos aspectos, ele marca uma nova etapa na reflexão social da Igreja de- senvolvida ao longo dos últimos oitenta anos. A começar pela nomenclatura: em vez de falar de “doutrina social”, Paulo VI prefere falar de “ensino social” (infelizmente as traduções nem sempre são fiéis a essa mudança de linguagem – sutil, mas muito importante). Mas a novidade maior desse documento tem a ver com o deslocamento do foco econômico para o social e político na reflexão social da Igreja (centralidade do social e político), com a importância e o papel decisivo que confere às comunidades cristãs na análise da realidade e no dis- cernimento dos caminhos e modos de ação eclesial (eclesiologia conciliar do povo de Deus) e com o reconhecimento de um legítimo pluralismo de posições e opções social e política na Igreja (pluralismo social e político).

Para compreender bem esse documento é importante situá-lo em seu contexto socio-eclesial, analisar a estrutura e o conteúdo do texto e destacar os aspectos mais relevantes e/ou que representam uma novidade no contexto mais amplo da reflexão social da Igreja desenvolvida ao longo das últimas oito décadas.

I - Contexto histórico

A reflexão social da Igreja é inseparável do contexto em que é desenvolvida: seja na medida em que procura compreender esse contexto, seja na medida em que pretende orientar a ação dos cristãos nesse contexto, seja na medida em que é condicionada pela mentalidade e pelas opções sociais e eclesiais de seus autores. É o caráter histórico de toda teologia. Nada disso nega a importância e autoridade do texto nem sua validade para além do contexto em que surgiu. Mas ajuda a compreendê-lo melhor em sua problemática, em sua posição, em sua formulação, em seus limites e ambiguidades, em sua continuidade e novidade com relação à reflexão social anterior e, assim, situá-lo no contexto mais amplo da Tradição da Igreja que é um processo vivo, dinâmico, em construção... 

Como as encíclicas sociais publicadas anteriormente, a Carta Apostólica Octogésima adveniens reflete sobre aspectos importantes da realidade atual para orientar a ação dos cristãos neste contexto a partir da fé. Se na encíclica Populorum progressio (PP) Paulo VI tratou da problemática do desenvolvimento integral e solidário dos povos a partir das nações subdesenvolvidas ou dos “povos da fome”, neste novo documento ele se enfrenta com necessidades e desafios de um mundo em profundas e rápidas transformações socioculturais. Chama atenção para essas transformações, bem como para o compromisso da Igreja nessa realidade. 

De fato, o final dos anos 1960 é marcado por uma crescente consciência das profundas transformações socioculturais que se deram nas sociedades industriais, bem como pela aspiração cada vez maior de igualdade e participação que se traduz em contestação à ordem vigente e na busca de transformação da sociedade. 

Por um lado, é cada vez mais claro que a revolução industrial e a retomada do crescimento econômico no pós-guerra, além dos graves problemas de ordem socioeconômica, provocaram transformações profundas na sociedade (BURNS; LERNER; MEACHAM, 1995, p. 759-780; HOBSBAWM, 1995, p. 282-336). Tão profundas que parecem marcar o início de uma virada de época. É nesse contexto que se começa a falar de sociedade “pós-industrial” ou “pós-moderna”, no claro intuito de descrever ou indicar algo novo, cujos contornos não estão ainda bem determinados. Eric Hobsbawm chega a falar neste contexto de “revolução social” (HOBSBAWM, 1995, p. 282-313) e “revolução cultural” (HOBSBAWM, 1995, p. 314-336). E indica alguns traços ou características fundamentais dessa revolução sociocultural em curso: 1) “a mudança mais impressionante e de mais longo alcance da segunda metade deste século [...] é a morte do campesinato” (HOBSBAWM, 1995, p. 284) e o crescimento espantoso das cidades: “o mundo da segunda metade do século XX tornou-se urbanizado como jamais fora” HOBSBAWM, 1995, p. 288); 2) “quase tão dramático quanto o declínio e queda do campesinato, e muito mais universal, foi o crescimento de ocupações que exigiam educação secundária e superior” (HOBSBAWM, 1995, p. 289); 3) “uma grande mudança que afetou a classe operária [...] foi o papel impressionante maior nela desempenhado pelas mulheres e sobretudo – fenômeno novo e revolucionário – as mulheres casadas” (HOBSBAWM, 1995, p. 304); 4) mudanças profundas no âmbito familiar, isto é, na “estrutura de relações entre sexos e gerações”, o que se materializa no aumento espantoso do número de divórcio, de famílias monoparentais e de novas configurações familiares com sua regulamentação jurídica (relação entre sexos) e no surgimento de uma “cultura juvenil específica” que tornava a juventude um “agente social independente” (relação entre as gerações) (HOBSBAWM, 1995, p. 314-323); 5) “a cultura jovem tornou-se a matriz cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por homens e mulheres urbanos” (HOBSBAWM, 1995, p. 323) e que bem pode ser compreendida como “o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que que ligavam os seres humanos em texturas sociais” HOBSBAWM, 1995, p. 328). 

Por outro lado, todo esse processo de transformação sociocultural desencadeado pela revolução industrial e intensificado pela reconstrução da Europa e pela retomada do crescimento econômico pós-guerra teve consequências sociopolíticas importantes no mundo inteiro. De fato, o otimismo gerado pela reconstrução da Europa (HOBSBAWM, 1995, p. 183s), pela conquista de independência política de muitos países do chamado Terceiro Mundo (CAMACHO, 1995, p. 185; BURNS; LERNER; MEACHAM, 1995, p. 743- 755; HOBSBAWM, 1995, p.337) e pelo “surto econômico” (HOBSBAWM, 1995, p. 253-281) nas décadas de 1950-1960 criou um ambiente de participação sociopolítica muito fecundo. Os ideais/valores de independência, democracia, justiça social, direitos humanos e participação alimentaram convicções de que era possível transformar o mundo e mobilizaram amplos setores da sociedade (ALVES, 2001, p. 351-353). Nos países desenvolvidos, além dos movimentos operários e dos partidos comunistas e socialistas, surgem novos sujeitos, processos e movimentos que provocarão grandes impactos culturais, sociais e políticos: a exigência de mão de obra qualificada levou a um grande investimento na educação superior e a concentração de massas de estudantes e professores em “cidades universitárias” criou um fato novo na cultura e na política que explodiu e se impôs com toda força no final da década de 1960 e que teve como epicentro o levante estudantil de maio de 1968 em Paris (HOBSBAWM, 1995, p. 289-296); a entrada da mulher no mercado de trabalho e na educação superior possibilitou o surgimento e desenvolvimento de movimentos feministas a partir dos anos de 1960 com grandes impactos sociais, políticos e culturais (HOBSBAWM, 1995, p. 304-313); nos EUA, ao mesmo tempo em que crescem os movimentos de jovens e mulheres, crescem a consciência e os movimentos negros, dos quais tornou-se símbolo Martin Luther King, assassinado em 1968 (BURNS; LERNER; MEACHAM, 1995, p. 762-767). No chamado Terceiro Mundo ganhavam força ideologias e movimentos libertários (nacionalistas ou socialistas): tanto nos países que tinham conquistado recentemente sua independência política, quanto nos países que lutavam contra as profundas desigualdades sociais e contra regimes militares, como na América Latina, com participação significativa de cristãos e movimentos cristãos (HOBSBAWM, 1995, p. 214-219; ALVES, 2001, p. 352s; LIBANIO, 1987, p. 49-63). 

De modo que o final da década de 1960 é marcado por profundas transformações socioculturais nas sociedades ocidentais e por um espírito libertário de contestação sócio-político-cultural generalizado. Parece marcar o início de uma virada ou mudança de época nas sociedades ocidentais que, progressivamente, junto com e através das profundas transformações tecnológicas e da reestruturação da economia mundial, vai repercutindo e se imponto nas mais diversas regiões do mundo. 

A Igreja católica, por sua vez, vive um processo intenso de renovação. O Concílio Vaticano II (ALBERIGO, 2006; LIBANIO, 2005) inaugurou uma nova etapa na vida da Igreja: “fechou definitivamente a época pós-tridentina e abriu um novo curso, que não renega o passado, mas o integra, o aperfeiçoa e o adapta à contínua evolução da humanidade” (MARTINA, 1997, p. 320). Não obstante as tensões e as ambiguidades do evento conciliar e de seus documentos e, sobretudo, de sua recepção posterior, estava em curso um processo irreversível de renovação eclesial, marcado por uma nova mentalidade e um novo dinamismo eclesiais: Igreja como “povo de Deus” com seus carismas e ministérios (estrutura eclesial) – “sacramento” de salvação ou do reinado de Deus no mundo (missão). E o papa Paulo VI teve um papel decisivo nesse processo: seja na condução e conclusão do evento conciliar, seja no processo de recepção e implementação do Concílio nos anos posteriores. 

É verdade que, frente à oposição de grupos tradicionalistas e na busca de criar consensos e evitar rupturas, as intervenções de Paulo VI em questões polêmicas no Concílio e nos anos pós-conciliares, em geral, atendem a exigências dos grupos conservadores. É caso da “nota prévia” acrescentada à Constituição Dogmática Lumen Gentium (1964), das modificações no documento sobre o ecumenismo (1964), da encíclica Mysterium fidei sobre a eucaristia (1965), da encíclica Sacerdotalis caelibatus sobre o celibato (1967), da encíclica Humanae vitae sobre o controle de natalidade e o planejamento familiar (1968), dentre outros (MATOS, 1997, p. 315s). Mas isso não nega sua contribuição decisiva no processo de renovação eclesial: seja na condução dos trabalhos conciliares, seja em sua recepção e implementação posterior. Convém destacar aqui sua firme decisão de levar a termo o Concílio e sua habilidade na construção de consensos, bem como sua atuação na recepção e implementação da renovação conciliar: reformas litúrgicas, algumas reformas institucionais (Sínodo dos Bispos, Secretariado para a promoção da unidade dos cristãos, Secretariado para os não cristãos, Comissão Teológica Internacional), impulso ao ecumenismo e à colegialidade episcopal, Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi (1975) e seu empenho pela justiça social e pela paz no mundo (MARTINA, 1997, p. 299-366; MATOS, 1997, p. 316-320; PIERRARD, 1982, p. 277-280). 

Importante destacar que esse processo de renovação conciliar foi particularmente intenso e fecundo na América Latina. E a referência fundamental aqui é a conferência de Medellín em 1968 (GODOY; AQUINO JÚNIOR, 2017). Ela marcará o início de uma nova etapa na vida da Igreja latino-americana, caracterizada pela inserção na realidade e pelo compromisso com os pobres e suas lutas por libertação. “Opção pelos pobres”, “libertação”, “comunidades eclesiais de base” e “teologia da libertação” são os traços ou as características fundamentais desse processo de renovação eclesial na América Latina. Em Medellín nasce verdadeiramente uma “Igreja dos pobres” (AQUINO JÚNIOR, 2012, p. 807-830). E tudo isso terá enorme repercussão na pastoral, na teologia e no magistério do conjunto da Igreja. 

E é neste contexto de profundas transformações socioculturais e políticas e renovação eclesial que se insere a Carta Apostólica Octogesima adveniens de Paulo VI. Ao mesmo tempo em que retoma e prossegue o ensino social dos papas anteriores, enfrenta-se com problemas e desafios novos de um mundo em profundas e rápidas transformações. E faz isso em um novo contexto eclesial que, não apenas refirma e destaca o compromisso da Igreja com os problemas de mundo (sacramento de salvação no mundo), mas reafirma e destaca a corresponsabilidade de todos os cristãos na missão salvífica da Igreja, o que implicará num maior protagonismo das Igrejas locais na análise dos problemas e no discernimento da ação da Igreja (povo de Deus). 

II – Texto: estrutura e conteúdo

Tendo apresentado em grandes linhas o contexto em que se insere esse novo documento de Paulo VI ou, mais precisamente, as questões que ele considera mais relevantes e mais desafiantes nessa época e com as quais se enfrenta, procurando compreendê-las e discerni-las a partir da fé cristã e animando e orientando a ação dos cristãos nesse contexto, passemos agora ao estudo do documento (PAULO VI, 2011)1 . Isso é fundamental para compreendermos tanto a leitura que o papa faz desse contexto como as perspectivas de ação da Igreja que ela apresenta no espírito do Concílio (CAMACHO, 1995, p. 339-362; ALBURQUERQUE, 2006, p. 40-143; BIGO; ÁVILA, 1986, p. 203- 206, 348-351; GUTIÉRREZ, 1995, p. 67-70; ANDRADE, 2009, p. 843-848; ALVES, 2001, p. 349-364). 

Um detalhe que chama atenção é o fato da Octogesima adveniens ser uma “carta apostólica” e não uma “encíclica”, como os documentos papais anteriores sobre doutrina ou ensino social da Igreja. Não se sabe exatamente o porquê dessa mudança (CAMACHO, 1995, 340; ALVES, 2001, p. 349s). Há quem pense que a proximidade cronológica com a encíclica Populorum progressio (1967) teria levado Paulo VI a optar por escrever uma carta apostólica em vez de uma nova encíclica. Mas isso não é muito convincente. Basta lembrar que João XXIII publicou duas encíclicas sociais num espaço de tempo muito mais reduzido: Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963). Há quem pense que, com uma carta apostólica dirigida ao presidente da Comissão Pontifícia “Justiça e Paz” e do Conselho de Leigos, o papa queria realçar o papel dos leigos nas questões que dizem respeito ao empenho social e político. Mas isso é ainda menos convincente: seja porque isso poderia ser feito através de uma encíclica, cujo status jurídico é superior a uma carta apostólica; seja porque, se essa fosse mesmo a razão da mudança de tipo de documento, deveria ser dirigira diretamente aos leigos e não a um cardeal. E há quem pense que a opção por uma carta apostólica esteja motivada ou pelo menos deva ser situada no contexto da polêmica em torno da encíclica Humanae vitae (1968) sobre o controle de natalidade. Como a expressão “encíclica” poderia favorecer uma associação e retomada da polêmica anterior, parecia oportuno e prudente a opção pelo gênero “carta apostólica”. Mas na verdade não se sabe exatamente a razão dessa mudança. Em todo caso, isso não diminui em nada o seu valor nem compromete seu caráter de documento magisterial. É um documento do magistério social da Igreja. 

1. Estrutura

A estrutura do texto é bastante clara. Depois de uma Introdução que vincula o documento ao ensino social dos papas anteriores, destaca a diversidade de situações de nosso tempo e a responsabilidade da Igrejas locais na análise dessas situações e no discernimento da ação da Igreja e apresenta a finalidade do novo documento (1-7), o texto está dividido em quatro partes: A Primeira parte faz uma apresentação panorâmica dos novos problemas sociais (8-21); a Segunda parte trata das aspirações fundamentais e das correntes ideológicas de nosso tempo (22-41); a Terceira parte reflete sobre o compromisso cristão perante os novos problemas (42-47); e a Quarta parte, uma espécie de conclusão, é um chamado ou apelo à ação (48-52). Camacho chama atenção para a correspondência da estrutura do texto com o método ver-julgar-agir da Ação Católica, retomado por João XXIII na encíclica Mater et magistra (MM, 232). Se prescindimos da Quarta parte, que é uma espécie de conclusão, diz ele, as três primeiras partes que constituem o “corpo” do texto correspondem aos três momentos do método: análise da sociedade atual (ver), critérios para a organização da vida social (julgar), linhas de ação (agir) (CAMACHO, 1995, p. 342). 

2. Conteúdo

Seguindo a estrutura do documento explicitada acima, faremos a seguir um resumo do texto, procurando ser o mais fiel possível ao seu conteúdo e à sua formulação. Isso evidentemente não substitui a leitura do texto, mas ajuda a tomá-lo em seu conjunto e em sua riqueza e complexidade. É uma espécie de guia de leitura...  

Introdução 

O texto inicia afirmando que a Rerum novarum “continua a inspirar a ação em ordem à justiça social” e que a celebração dos seus 80 anos é uma ocasião para “retomar” e “prosseguir” o ensino social dos papas anteriores “em resposta às necessidades novas de um mundo em transformação” (1). Em sintonia com o Concílio, recorda que “a Igreja caminha com a humanidade e compartilha de sua sorte” e que, com o anúncio da “Boa Nova do amor de Deus e da salvação em Cristo”, ilumina a atividade dos homens e os ajuda a “corresponderem aos desígnios do mesmo amor de Deus e a realizarem a plenitude de suas aspirações” (1). 

As recentes viagens apostólicas possibilitaram ao papa ver como “em todos os continentes, entre todas as raças, nações e culturas, e no meio de todos os condicionamentos, o Senhor continua a suscitar apóstolos autênticos do Evangelho”, bem como entrar em “contato com as multidões” e “ouvir os seus apelos, gritos de angústia e de esperança ao mesmo tempo” (2). Nessas ocasiões, ele pôde perceber os “graves problemas do nosso tempo”, constatar como “diferenças flagrantes subsistem no desenvolvimento econômico, cultural e político das nações” e sentir o “despertar de uma aspiração por mais justiça” e o “desejo de uma paz melhor assegurada, num clima de respeito mútuo entre os homens e entre os povos” (2). 

O texto constata que “são muito diversas as situações na quais, voluntária ou forçosamente, se encontram comprometidos os cristãos, conforme as regiões, os sistemas sociopolíticos e as culturas” (3) e afirma que diante de situações tão diversas é difícil “tanto pronunciar uma palavra única, como propor uma solução que tenha um valor universal” (4). Indo ainda mais longe, o papa afirma que isso não é sua “ambição” nem mesmo sua “missão” e que “é às comunidades cristãs que cabe analisarem [...] a situação própria do seu país e iluminá-la com a luz [...] do Evangelho”, bem como “haurirem [nos ensinamentos sociais da Igreja] princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação” (4). Esse discernimento deve ser feito “com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade” (4). Esse exercício mostra a “força” e “originalidade” do Evangelho para a “conversão dos homens” e o “progresso da vida em sociedade” (4). 

Assim como em épocas passadas, “no meio das perturbações e das incertezas da hora atual, a Igreja tem uma mensagem específica a proclamar, um apoio a dar aos homens nos seus esforços para tomar as rédeas do seu futuro e orientá-lo” (5). Mais recentemente, João XXIII, o Concílio e o próprio Paulo VI procuraram compreender os grandes desafios do mundo atual para a fé cristã (5). E o próximo Sínodo dos Bispos (30/09 – 06/11 de 1971) se dedicará a “estudar e aprofundar a missão da Igreja diante das graves questões que levanta em nosso tempo a justiça no mundo” (6). Mesmo assim, Paulo VI aproveita a ocasião dos 80 anos da Rerum novarum para expressar suas “preocupações” e seus “pensamentos” sobre a situação atual e “encorajar” a Comissão “Justiça e Paz” e o Conselho dos Leigos em sua atividade “a serviço dos homens” (6). 

Sua pretensão é “chamar atenção para algumas questões que, pela sua urgência, pela sua amplitude, pela sua complexidade, devem estar no centro das preocupações dos cristãos” (7). Eles devem colaborar para “resolver as novas dificuldades que põem em causa o próprio futuro do homem”, equacionando “os problemas sociais, postos pela economia moderna [...] num contexto mais amplo, de civilização nova” (7). 

Primeira parte

A primeira parte do texto trata de novos problemas sociais a partir de um dos fenômenos mais importantes e mais determinantes da vida de nossas sociedades: o processo crescente e acelerado de “urbanização” (8). 

De fato, “após longos séculos, a civilização agrícola perdeu o seu vigor”. As condições de vida das populações rurais “provoca o êxodo em direção aos tristes amontoados dos subúrbios onde não as esperam nem trabalho nem alojamento” (8). Trata-se de um fenômeno complexo, no qual “este êxodo rural permanente, o crescimento industrial, o aumento demográfico contínuo e a atração dos centros urbanos determinam concentrações de população cuja amplitude se torna difícil imaginar”, chegando-se mesmo a falar em “megalópoles” (8). 

Embora não se possa identificar urbanização e industrialização, não se pode negar que “o crescimento desmensurado dessas cidades acompanha a expansão industrial”: O desenvolvimento “incessante” da industrialização e a “competição desmedida” entre empresas criam novos problemas sociais; a “civilização urbana” que acompanha o processo de industrialização “transtorna os modos de viver e as estruturas habituais da existência: a família, a vizinhança e a própria maneira de ser comunidade” e produz “nova forma de solidão”; o “crescimento desordenado” das cidades faz aparecer “novos proletariados” e “cinturões de miséria” que “numa forma de protesto ainda silenciosa” denuncia “o luxo demasiado gritante das cidades do consumo e do esbanjamento” e favorece outras formas de degradação da dignidade humana como “delinquência, criminalidade, droga, erotismo etc.” (9). 

O texto diz que “são os mais fracos que se tornam vítimas das condições de vida desumanizadoras, degradantes para as consciências e perniciosas para a instituição da família”; fala da urgência de “reconstituir [...] aquela rede social em que o homem possa satisfazer as necessidades da sua personalidade” (11); afirma que “construir a cidade [...], criar novos modos de vizinhança e de relações, descortinar uma aplicação original de justiça social [...] é uma tarefa em que os cristãos devem participar”, levando uma “mensagem de esperança, mediante uma fraternidade vivida e uma justiça social” (12). 

E passa a tratar de uma série de problemas que emergem na sociedade urbano-industrial: O “diálogo” entre a juventude e a geração adulta e a reivindicação das mulheres por “relações de igualdade nos direitos e de respeito pela sua dignidade” (13); “direito ao trabalho”, “remuneração equitativa”, “assistência em caso de necessidade” e “organização sindical” (14); a situação dos “novos pobres”, vítimas da rápida e constante “mutação industrial” (15); as vítimas de “discriminações por motivo da sua raça, da sua origem, da sua cor, da sua cultura, do seu sexo ou da sua religião” – e “tanto no interior de alguns países, como mesmo no plano internacional” (16); a “situação precária de um grande número de trabalhadores emigrados” (17); crescimento demográfico e criação de postos de trabalho (18). Tudo isso se impõe como um “apelo à imaginação social” que exige “esforços de invenção e capitais tão importantes como os que são consagrados ao armamento e às conquistas tecnológicas” (19). 

Por fim, o texto destaca duas das maiores e mais importantes mudanças de nosso tempo: Por um lado, “a importância crescente que assumem os meios de comunicação social e o seu influxo na transformação das mentalidades, dos conhecimentos, das organizações e da própria sociedade”, chegando mesmo a representar “como que um novo poder” (20); por outro lado, “por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [ o homem] começa a correr o risco de a destruir e de vir ser, também ele, vítima dessa degradação” – a degradação do “ambiente natural” e do “quadro humano” terminará criando um “ambiente global” que “poderá tornar-se-lhe insuportável” (21). 

Segunda Parte 

A segunda parte trata das grandes aspirações, das correntes ideológicas e dos movimentos históricos predominantes em nosso tempo, com os quais os cristãos são confrontados na vivência da fé no campo sociopolítico. 

O texto começa constatando que, ao mesmo tempo em que o “progresso científico e técnico” altera profundamente a “paisagem do homem” e seus “modos de conhecer, de trabalhar, de consumir, de ter relações”, cresce “a aspiração à igualdade e a aspiração à participação” – “dois aspectos da dignidade do homem e da sua liberdade” (22). Afirma que, não obstante alguns progressos no “enunciado dos direitos do homem” e nos “acordos internacionais” em vista da aplicação desses direitos, “as discriminações – étnicas, culturais, religiosas, políticas... – renascem continuamente” (23). E adverte que, sendo “necessária”, a legislação se mostra “insuficiente para estabelecer verdadeiras relações de justiça e igualdade” e que é necessário o cultivo de um “sentido profundo do serviço de outrem” mediante uma “renovada educação” para a solidariedade (23). 

Essa “dupla aspiração”, diz o texto, “procura promover um tipo de sociedade democrática” (24). Embora diversos modelos de sociedade já tenham sido “propostos” e até “ensaiados”, nenhum deles se mostrou satisfatório e, por isso, “a busca permanece aberta, entre as tendências ideológicas e pragmáticas” e “o cristão tem o dever de participar nessa busca diligente, na organização e na vida da sociedade política” (24). Para isso, é de fundamental importância “uma educação para a vida em sociedade” que considere tanto os “direitos de cada um”, quanto os “deveres de cada um em relação aos outros” (24). Além do mais, “a ação política [...] deve ter como base de sustentação um esquema de sociedade, coerente nos meios concretos que escolhe e na sua inspiração” que, por sua vez, “deve alimentar-se numa concepção plena da vocação do homem e das suas diferentes expressões sociais” (25). O texto adverte ainda contra a “ditadura dos espíritos” por parte do Estado e dos partidos políticos e afirma que compete aos “grupos culturais e religiosos” desenvolverem “essas convicções supremas acerca da natureza, da origem e do fim do homem e da sociedade” (25). 

Não qualquer ideologia é compatível com a fé cristã. “O cristão [...] não pode [...] aderir a sistemas ideológicos ou políticos que se oponham radicalmente, ou então nos pontos essenciais, à sua mesma fé e à sua concepção do homem”: nem a “ideologia marxista” [“materialismo ateu”, “dialética da violência”, absorção da “liberdade individual na coletividade”, negação da “transcendência”] nem a “ideologia liberal” [exaltação da “liberdade individual”, “busca exclusiva do interesse e do poderio”, solidariedade como “consequência das iniciativas individuais” e não como “um fim e um critério mais alto do valor e da organização social”] (26). O texto chama atenção para a “possível ambiguidade de toda ideologia social” e afirma que “a fé cristã se situa num plano superior e, algumas vezes, oposto ao das ideologias” (27). Fala do “perigo” de adesão a uma ideologia que não esteja baseada numa “doutrina verdadeira e orgânica” e de tomá-la como “explicação cabal e suficiente de tudo”, transformando-a em um “novo ídolo”, ainda que justificado pelo “desejo generoso de serviço” (28). E adverte que o discurso atual de um “recuo das ideologias” pode ser indício de “abertura para a transcendência concreta do cristianismo”, mas pode ser também sinal de um “deslize mais acentuado para um novo positivismo” (29). 

A seguir, o texto passa a falar dos “movimentos históricos concretos” com os quais os cristãos se encontram em seu agir na sociedade: Eles são “resultantes das ideologias”, mas são “distintos delas” (30). O papa retoma aqui a distinção de João XXIII na encíclica Pacem in terris entre “falsas ideias filosóficas” [imutáveis] e “movimentos históricos” [evolução] (PP, p. 79) e passa a fazer considerações sobre os principais movimentos históricos na sociedade atual: socialistas, marxistas e liberais. 

Quanto ao socialismo, afirma que ele “assume formas diversas, sob um mesmo vocábulo”; que em “muitos casos” continuam “inspiradas por ideologias incompatíveis com a fé”; que é necessário um “discernimento atento” que evite idealizações, distinga os “diversos escalões de expressão do socialismo” e a “ligação concreta” que possa existir entre eles em cada circunstância e, assim, “estabelecer o grau de compromisso possível nesta causa, salvaguardando os valores, principalmente, de liberdade, de responsabilidade e de abertura ao espiritual, que garantam o desabrochar integral do homem” (31). 

Quanto ao marxismo, constata que ele não se apresenta mais como uma “ideologia unitária, explicativa da totalidade do homem e do mundo no seu processo de desenvolvimento e, portanto, ateia” (32); distingue “diversos escalões de expressão do marxismo” (32): “prática ativa da luta de classes”, “exercício coletivo de um poder econômico, sob a direção do partido único”, “ideologia socialista à base de materialismo histórico e de negação de tudo que é transcendente”, “atividade científica” (33); e adverte contra a ilusão e o perigo de perder de vista a “ligação íntima” entre esses diversos tipos ou escalões do marxismo (34).

Quanto ao liberalismo, diz que “esta corrente procura afirmar-se tanto em nome da eficiência econômica, como para defender o indivíduo” frente à “ação invasora das organizações” e às “tendências totalitárias dos poderes políticos”; afirma a importância de conservar e desenvolver a “iniciativa pessoal”; adverte contra a “tendência para idealizar o liberalismo”, esquecendo que “nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo na sua atividade, nas suas motivações e no exercício de sua liberdade”; e insiste, também aqui, na necessidade de um “discernimento atento” (35). 

O cristão deve buscar nas “fontes da fé” e no “ensino da Igreja” os “princípios” e os “critérios oportunos” necessários para o discernimento das ideologias e dos movimentos históricos (36). De modo que, “contornando todo e qualquer sistema, sem [...] deixar de se comprometer concretamente ao serviço dos irmãos”, procure “afirmar, no âmago mesmo das suas opções, aquilo que é específico da contribuição cristã, para uma transformação positiva da sociedade” (36). 

O texto afirma que “nos nossos dias, as fraquezas das ideologias são melhor conhecidas através dos sistemas concretos, nos quais elas procuram passar a realização práticas” (37). Em meio a um “mal-estar profundo” que se manifesta em “contestação” por toda parte, constata o “renascer daquilo que se convencionou chamar as utopias” (37). Diz que elas “pretendem resolver melhor do que as ideologias o problema político das sociedades modernas”; reconhece que o “apelo à utopia” muitas vezes não passa de “pretexto cômodo para quem quer esquivar as tarefas concretas e refugiar-se num mundo imaginário”; mas reconhece também que muitas vezes ela provoca uma “imaginação prospectiva” que faz “perceber no presente o possível ignorado”, “orientar no sentido de um futuro novo”, apoiar a dinâmica social pela “confiança” nas “forças inventivas do espírito e do coração humano” e, “se ela não rejeita nenhuma abertura, pode encontrar também o apelo cristão” (37). 

Por fim, num contexto “dominado pela mutação científica e técnica, que corre o risco de deixar arrastar para um novo positivismo”, o texto aborda a problemática das “ciências humanas” (38). É que “a necessidade metodológica e o ‘a-priori’ ideológico levam-nas, muitas vezes, a isolar [...] alguns aspectos do homem e dar-lhes, não obstante, uma explicação que pretende ser global ou [...] totalizante” e “essa redução científica deixa transparecer uma pretensão perigosa” que termina por “mutilar o homem” sob a “aparência de um processo científico” (38). Sem falar que elas podem elaborar “modelos sociais, que se quereria em seguida impor como tipos de comportamento, cientificamente comprovado”, tornando o homem “objeto de manipulações” (39). Certamente, a Igreja não rejeita as ciências humanas. Ela “deposita confiança nessa investigação e convida os cristãos a procurarem estar ativamente presentes nela” e “estabelecer um diálogo [...] entre a Igreja e este campo novo de descobertas” e, com isto, favorecer uma melhor articulação entre o “aspecto parcial” [ciências] e a “totalidade” [fé] (40). Tudo isso permite um “conhecimento mais apurado do homem” e torna possível “criticar melhor e esclarecer” a “ideologia onipresente” do progresso, “superando a tentação de medir tudo em termos de eficiência e de intercâmbios e em relações de forças e interesses” por uma “consciência moral que leve o homem a assumir das solidariedades ampliadas e a abrir- -se para os outros e para Deus” (41). 

Terceira parte

A terceira parte reflete sobre o compromisso cristão perante os novos problemas, destacando o dinamismo do ensino social da Igreja e tratando do desafio de um desenvolvimento econômico mais justo e da construção de uma sociedade política.  

O texto começa afirmando que “diante de tantas questões novas, a Igreja procura fazer um esforço de reflexão para poder dar uma resposta, no seu campo próprio, à expectativa dos homens” (42). Aliás, é isso que a Igreja tem feito através de seu ensino social. Não se trata de “autenticar uma estrutura estabelecida”, nem de “propor modelo pré-fabricado”, nem simplesmente “recordar alguns princípios gerais” (42). Trata-se de uma “reflexão que é feita em permanente contato com as situações do mundo, suscetíveis de mudanças, sob o impulso do Evangelho”; uma reflexão “marcada por uma vontade desinteressada de serviço e por uma especial atenção aos mais pobres”; uma reflexão inspirada “numa experiência rica, de muitos séculos, que lhe permite empreender na continuidade das suas preocupações permanentes, as inovações ousadas e criadouras que a presente situação do mundo exige” (42). 

Em seguida, passa a tratar da necessidade de “ser instaurada uma maior justiça pelo que se refere à repartição dos bens, tanto no interior das comunidades nacionais, como no plano internacional” (43). No que diz respeito às relações internacionais, é preciso “superar as relações de força para se chegar a pactos favoráveis em vista do bem de todos” e “permitir a cada país promover o seu próprio desenvolvimento no sistema de uma cooperação isenta de todo espírito de domínio econômico e político”, o que implica “revisão das relações entre as nações” (43). O texto chama atenção aqui para o perigo que representa as “novas potências econômicas” que são as “empresas plurinacionais” no contexto dos “novos sistemas de produção” e da explosão das “fronteiras nacionais”: “estes organismos privados podem conduzir a uma nova forma abusiva de dominação econômica no campo social, cultural e político” (44). E faz uma dupla advertência: 1) a aspiração pela libertação tão presente no mundo atual “começa pela liberdade interior” diante dos “bens” e dos “poderes”, mediante “um amor transcendente para com o homem e uma disponibilidade efetiva de serviço”; 2) a “ambição de muitas nações” de “atingir o poderio tecnológico, econômico e militar” se opõe à “criação de estruturas em que o progresso seja regulado em função de uma maior justiça” (45). 

Por fim, defende uma “passagem da economia ao campo político” (46). Primeiro, pelo risco da atividade econômica “absorver excessivamente as forças e a liberdade” e porque “nos domínios sociais e econômicos [...] a decisão última é do poder político” (46). Tomar a sério a política, diz o texto, “é afirmar o dever do homem, de todos os homens de reconhecerem a realidade concreta e o valor da liberdade de escolha [...] para procurarem realizar juntos o bem da cidade, da nação e da humanidade” (46). Entendida dessa forma, “a política é uma maneira exigente [...] de viver o compromisso cristão, a serviço dos outros” (46). Os cristãos devem agir respeitando sempre a “autonomia da realidade política”, buscando uma “coerência entre as suas opções e o Evangelho”, dentro de um “legítimo pluralismo”, dando “testemunho [...] da seriedade da sua fé, mediante um serviço eficaz e desinteressado em favor dos homens” (46). Segundo, porque “a passagem à dimensão política exprime também um requisito atual do homem: maior participação nas responsabilidades e nas decisões”, ajuda “contrabalançar uma tecnocracia crescente” com a criação de novas “formas de democracia moderna” e favorece a construção de “solidariedades ativas e vividas” (47). 

Quarta parte 

A quarta e última parte, uma espécie de conclusão, é um chamado ou apelo à ação. Insiste na necessidade do compromisso cristão na sociedade. 

O texto começa afirmando que “a Igreja sempre teve um duplo papel” no campo social: “iluminar os espíritos para ajudá-los a descobrir a verdade e a discernir o caminho a seguir nos meio das diversas doutrinas que os solicitam” e “entrar na ação e difundir, com uma real solicitude de serviço e de eficácia, as energias do Evangelho” (48). Renova o “apelo à ação” a “todos os cristãos”, segundo a condição própria de cada um: “se o papel da hierarquia consiste em ensinar e interpretar autenticamente os princípios morais [...], pertence aos leigos, por suas livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e diretrizes, imbuir de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas de sua comunidade de vida” (48). Adverte que “não basta recordar princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas”, pois “estas palavras ficarão sem efeito real, se elas não forem acompanhadas [...] de uma tomada de consciência mais viva de sua própria responsabilidade e de uma ação efetiva” e que isso será muito importante para superar a tentação de “intolerância” e “sectarismo” na ação e evitar o “desencorajamento diante de uma tarefa que pode parecer desmedida” (48). E insiste que “na diversidade das situações, das funções e das organizações, cada um deve individuar a sua própria responsabilidade e discernir em consciência as ações nas quais é chamado a participar”, evitando se comprometer em “colaborações incondicionais e contrárias aos princípios de um verdadeiro humanismo” e buscando agir sempre em “conformidade com a sua fé” (49). 

Considerando as “diferentes situações concretas” em que os cristãos se encontram e as “solidariedades que cada um vive”, o texto afirma que é necessário “reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis” e que “uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes” (50). Exorta a um “esforço de compreensão recíproca das posições e das motivações uns dos outros” e a uma “atitude de caridade mais profunda, a qual, reconhecendo muito embora as diferenças, não acredita menos nas possibilidades de convergência e de unidade” (50). Destaca a “responsabilidade” das organizações cristãs na sociedade: “sem se substituir às instituições da sociedade civil, devem refletir [...] as exigências concretas da fé cristã para uma transformação justa e necessária da sociedade” (51). E conclui afirmando que as reflexões feitas nessa carta apostólica não dão conta de “todos os problemas sociais que se levantam hoje ao homem de fé e aos homens de boa vontade”, mas pretendem oferecer ao Conselho de Leigos e à Comissão Pontifícia Justiça e Paz “novos elementos, juntamente com um encorajamento, para a continuidade da sua tarefa de ‘despertar o Povo de Deus para uma inteligência plena do seu papel na hora atual’ e de ‘promoção do apostolado no plano internacional’” (52). 

III - Destaques

Começamos com uma apresentação panorâmica do contexto socio-eclesial em que se insere e ao qual responde a Carta Apostólica Octogesima adveniens. Fizemos um resumo do conteúdo do texto, seguindo sua estrutura e sendo o mais fiel possível a suas formulações. Resta agora destacar alguns elementos que ajudam a compreender a importância e a novidade desse documento em seu contexto socio-eclesial imediato e no contexto mais amplo do ensino social da Igreja nos últimos oitenta anos. 

1. Antes de tudo, é importante ter presente que esse documento se insere na tradição de ensino social desencadeada pela encíclica Rerum novarum: não só foi escrito por ocasião dos oitenta anos dessa encíclica – daí o nome Ocotgesima adveniens, mas se propõe explicitamente “a retomar e a prosseguir o ensino dos [seus] predecessores em resposta às necessidades novas de um mundo em transformação” (1). E faz isso em profunda sintonia com o magistério de João XXIII, com o Concílio Vaticano II e sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes, com a encíclica Populorum progressio e com o processo de preparação do sínodo dos bispos de 1971 que tratará da “justiça no mundo” (5-6) (CAMACHO, 1995, 339, 346, 363, 364; ALBURQUERQUE, 2006, p. 140; ALVES, 2001, p. 351; ANDRADE, 2009, p. 844s). Chama atenção o fato de ser uma Carta Apostólica e não uma Encíclica Social, embora não se saiba exatamente a razão dessa opção nem isso comprometa seu valor e sua autoridade magisterial (CAMACHO, 1995, p. 340; ALVES, 2001, p. 349s). E chama ainda mais atenção o fato de Paulo VI preferir falar de “ensino/ensinamento” social em vez de “doutrina” social (1, 4, 36, 42) (CAMACHO, 1995, p. 345; GUTIÉRREZ, 1995, p. 40), embora as traduções nem sempre sejam fiéis a essa mudança de linguagem – sutil, mas muito importante. Por fim, convém destacar com Camacho certa correspondência da estrutura do texto com o método ver- -julgar-agir: “análise da sociedade atual” (1 parte), “critérios para a organização da vida social” (2 parte) e “linhas de atuação” (3 parte) (CAMACHO, 1995, p. 342, 344). 

2. Esse documento se insere num contexto de profundas transformações socioculturais (industrialização-urbanização) e eclesiais (renovação conciliar) e só pode ser compreendido adequadamente em referência a esse contexto. Sua pretensão é chamar atenção para as grandes mudanças na sociedade atual, buscando “equacionar os problemas sociais, postos pela economia moderna [...] num contexto mais amplo, de civilização nova” (7). Trata tanto dos novos problemas sociais, vinculados aos processos de “industrialização” e “urbanização” da sociedade (primeira parte), quanto das grandes aspirações e buscas sociais de “igualdade” e “participação” (segunda parte). E produz uma dupla mudança de enfoque ou um duplo deslocamento de foco que marcará uma nova etapa no ensino social da Igreja. Por um lado, insere a problemática econômica no contexto sociopolítico mais amplo, insistindo na necessidade de realizar uma “passagem da economia ao campo político”, na medida em que “nos domínios sociais e econômicos a decisão última é do poder político” (46) (CAMACHO, 1995, p. 339, 340, 361). Por outro lado, no espírito do Concílio, afirma não ser sua “ambição” nem sua “missão” propor uma “solução que tenha valor universal”, mas que compete às comunidades cristãs locais “analisarem” a realidade e “discernirem” os caminhos e modos de ação eclesial (4) (CAMACHO, 1995, p. 340s, 343, 346; BIGO; ÁVILA, 1986, p. 204s; ANDRADE, 2009, p. 844-848). 

3. A propósito do protagonismo das comunidades cristãs na vida social e política, um dos pontos mais importantes e uma das maiores novidades desse documento, convém analisar com atenção o parágrafo/número quatro do texto. Enraizado na “eclesiologia conciliar” da Igreja como “povo de Deus” (ANDRADE, 2009, p. 847), esse parágrafo condensa as “grandes linhas teológicas” da OA.(ANDRADE, 2009, p. 844). Partindo da constatação de que “são muito diversas as situações nas quais [...] se encontram comprometidos os cristãos” (3), o papa afirma ser difícil “pronunciar uma palavra única” e “propor uma solução que tenha um valor universal” (4). Indo ainda mais longe, afirma que isso não é sua “ambição” nem mesmo sua “missão”, mas é tarefa das “comunidades cristãs” locais: a elas cabem analisar a situação, iluminá-la com a luz do Evangelho e haurir dos ensinamentos sociais da Igreja “princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação”; elas devem discernir, “com a ajuda do Espírito Santo, em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade”, as opções e os compromissos sociais mais adequados à sua situação e mais de acordo com sua fé (4). Nunca é demais destacar essa afirmação tão clara do protagonismo das “comunidades eclesiais” (e não apenas da hierarquia!) na ação social e política da Igreja. 

4. Outra grande novidade desse documento é o reconhecimento explícito da legitimidade de um pluralismo de posições e opções social e política na Igreja (4, 50). Alburquerque chega a afirmar que esse é o “núcleo essencial” da OA. (ALBURQUERQUE, 2006, p. 140). E Bigo e Ávila afirmam que “pela primeira vez, de modo explícito, o papa renúncia oficialmente à pretensão de definir o que chamaríamos um modelo socio-político-econômico equidistante dos modelos inspirados no capitalismo liberal e no socialismo marxista” ou um “modelo especificamente cristão” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 203). Embora as encíclicas sociais anteriores nunca tenham afirmado ser tarefa própria da Igreja a elaboração de um modelo de sociedade, a contraposição aos modelos existentes não deixava de suscitar a pretensão ou ilusão da Igreja ser/apresentar uma espécie de “terceira via”. Quanto a isso, Paulo VI é muito claro. Não só afirma ser difícil “pronunciar uma palavra única” e “propor uma solução que tenha alcance universal” e que isso nem é sua “ambição” nem sua “missão” (4), mas afirma explicitamente que é “necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis” e que “uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes” em situações concretas diferentes (50). A Igreja não tem/propõe um “modelo” de sociedade, mas “princípios” e “critérios” de discernimento para a ação sociopolítica (4, 36, 49). 

5. Particularmente relevante é a abordagem que o documento faz das ideologias, dos movimentos históricos e das utopias (CAMACHO, 1995, p. 350-360; BIGO; ÁVILA, 1986, p. 350s; GUTIÉRREZ, 1995, p. 67-72; ALVES, 2001, p. 349-364). Partindo da afirmação de que “o cristão tem o dever de participar na organização e na vida da sociedade política” (24) e de que sua ação “deve ter como base de sustentação um esquema de sociedade coerente nos meios e na sua inspiração” (25), o texto afirma que o cristão não pode “aderir a sistemas ideológicos ou políticos que se oponham à sua fé e à sua concepção de homem”, como as ideologias “marxista” e “liberal” (26). Indica os pontos incompatíveis entre essas ideologias e a fé cristã (26). Adverte sobre a “possível ambiguidade de toda e qualquer ideologia social” e afirma que “a fé cristã situa-se num plano superior e, algumas vezes, oposto aos das ideologias” (27). Com relação aos movimentos históricos, retoma a distinção feita por João XXIII entre ideologias e movimentos históricos (30) e aborda os movimentos socialistas, marxistas e liberais, destacando seus aspectos atrativos, sua complexidade e seus perigos e insistindo na necessidade de discernimento sobre o grau de compromisso possível com esses movimentos (30-36). Quanto às utopias, adverte contra o risco de refúgio num “mundo imaginário” e de “álibi fácil para poder alijar as responsabilidades imediatas” e destaca seu potencial de “imaginação prospectiva” (37). 

6. Na abordagem dos novos problemas sociais, convém destacar três temas que começam a emergir na consciência socio-eclesial (CAMACHO, 1995, p. 346s; BIGO; ÁVILA, 1986, p. 206): Primeiro, o fenômeno da “urbanização” e sua vinculação com o processo de “industrialização” que não só produz novos problemas sociais [habitação, trabalho, consumismo, discriminações, migração etc.], mas altera profundamente os modos de vida tradicionais [família, vizinhança, Igreja, conflitos de geração, lugar da mulher etc.] (8-19). Segundo “a importância crescente [dos] meios de comunicação social e o seu influxo na transformação das mentalidades, dos conhecimentos, das organizações e da própria sociedade”, chegando mesmo a “representar como que um novo poder” (20). O texto destaca seus “aspectos positivos”, mas adverte sobre os riscos, interrogando sobre os “detentores reais de tal poder” e sobre as “finalidades”, os “meios” e a “repercussão” de sua ação (20). Terceiro, “por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o homem] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”, de modo que “não só já no ambiente material se torna uma ameaça permanente [...] é mesmo o quadro humano que o homem não consegue dominar, criando assim, para o dia de amanhã um ambiente global que poderá tornar-se-lhe insuportável” (21). 

7. Por fim, é importante insistir no “caráter prático” (ALBURQUERQUE, 2006, p. 140) do documento. Ele começa (1-7) e termina (48-52) exortando os cristãos à ação. Nesse sentido, vale a pena destacar três aspectos que são extremamente relevantes para a ação social e política dos cristãos. Primeiro, o duplo papel da Igreja no campo social: “iluminar os espíritos para ajudá-los a descobrir a verdade e discernir o caminho a seguir no meio das diversas doutrinas que os solicitam” e “entrar na ação e difundir, com uma real solicitude de serviço e de eficácia, as energias do Evangelho” (48). Segundo o reconhecimento da legitimidade de um pluralismo social e político na Igreja, no contexto das diversas situações em que se encontram os cristãos, bem como o apelo a um “esforço de compreensão recíproca das posições e das motivações uns dos outros” e a uma “atitude de caridade mais profunda, a qual, reconhecendo, embora as diferenças, não acredita menos nas possibilidades de convergência e unidade” (50). Terceiro, a importância fundamental e decisiva do “discernimento” eclesial das ideologias e dos movimentos sociais e políticos e do grau de compromisso possível dos cristãos com essas ideologias e esses movimentos (4, 15, 31, 35, 36, 48, 49). E nunca é demais recordar que isso é tarefa de toda Igreja (fiéis e pastores), em diálogo com os outros irmãos cristãos e todas as pessoas de boa vontade (4). 


Referências

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ALBURQUERQUE, Eugenio. Moral social Cristiana: Camino de liberación y de justicia. Madrid: San Pablo, 2006. 

ALVES, Antonio Aparecido. “Ideologias, utopias e agir social segundo a Octogesima adveniens”. REB 242 (2001), p. 349-364. 

ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro. “O parágrafo quarto da Octogesima adveniens e a pastoral político-social”. REB 276 (2009), p. 843-860. 

AQUINO JÚNIOR, Francisco. “Igreja dos pobres: Do Vaticano II a Medellín e aos dias atuais”. REB 288 (2012), p. 807-830. 

BIGO, Pierre – ÁVILA, Fernando Bastos. Fé cristã e compromisso social: Elementos para uma reflexão sobre a América Latina à luz da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1986. 

BURNS, Edward Mcnall; LERNER, Robert; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental: Do homem das cavernas às naves espaciais. São Paulo: Globo, 1995. 

CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja: Abordagem histórica. São Paulo: Loyola, 1995. 

GODOY, Manuel – AQUINO JÚNIOR, Francisco (org.). 50 anos de Medellín: Revisitando os textos, retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017. 

GUTIÉRREZ, Exequiel. De Leão XIII a João Paulo II: Cem anos de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1995. 

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

LIBANIO, João Batista. Teologia da libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987. 

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MARTINA, Giacomo. História da Igreja: De Lutero a nossos dias. Vol. IV. São Paulo: Loyola, 1997. 

MATOS, Henrique Cristiano José. Introdução à história da Igreja. Vol. 2. Belo Horizonte: O Lutador, 1997. Paulo VI. Carta Apostólica Octogesima Adveniens: Por ocasião do 80º aniversário da Encíclica Rerum Novarum. São Paulo: Paulinas, 2011. 

PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1982. 

Notas

[1]  A partir de agora, os números entre parêntesis, sem outra indicação, remetem à numeração desta obra.