A renovação escatológica no século xx
The escatological renewal in the twentieth century

Renato Alves de Oliveira
Doutor em teologia dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (PUG). Professor de teologia sistemática do departamento de Teologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC Minas). Contato:praobh@yahoo.com.br


Voltar ao Sumário


Resumo: O objetivo deste artigo é mostrar a renovação, em termos de conteúdo, metodologia e estrutura, pela qual passou a escatologia cristã. Este processo renovador iniciou-se no final do séc. XIX, com a teologia liberal, e no princípio do séc. XX, com exegese protestante, entorno da reflexão sobre a dimensão escatológica do reino de Deus anunciado por Jesus. As posições oscilaram entre uma dimensão futura e transcendente (escatologia consequente) ou presente e existencial (escatologia realizada, R. Bultmann) até culminar na síntese dialética de O. Cullmann: o reino de Deus é uma realidade já presente e ainda não consumada. A escatologia não é um discurso futurista (apocalíptico) sobre as realidades pós-mortais divorciado do presente. O futuro absoluto da fé cristã está em relação com o presente histórico e vice-versa (J. Moltmann, J.B. Metz, J.B. Libânio). A escatologia cristã passou de um discurso sobre as coisas últimas (eschaton) para um discurso sobre o Último (eschatos), no sentido antropológico, eclesiológico e cósmico. Desta forma, recuperou-se a dimensão cristológica da escatológica (W. Pannenberg, Y. Congar, J. Daniélou, K. Rahner, H.U. von Balthasar etc.). Cristo é o horizonte último da fé cristã. A escatologia deixou de ser, simplesmente, um tratado setorial que conclui a teologia dogmática para se tornar uma perspectiva presente em toda a teologia. A escatologia é uma dimensão transversal que perpassa toda a fé cristã.

Palavras-chave: Reino de Deus, Escatologia, Renovação, Transversal, Teologia.

Abstract: The purpose of this article is to show the renovation, in terms of content, methodology and structure undergone by christian eschatology. This renewal process began at the end of the 19th century, with liberal theology, and at the beginning of the 20th century, with protestant exegesis, around the reflection on the eschatological dimension of the kingdom of God announced by Jesus. The positions vary from a future dimension and transcendent (consequent eschatology) or present and existential (realized eschatology, R. Bultmann), culminating in the dialectical synthesis of O. Cullmann: the kingdom of God is a reality already present and not yet consummated. Eschatology is not a futuristic speech (apocalyptic) on post-mortal realities divorced from the present. The absolute future of the christian faith is related to the historical present and vice versa (J. Moltmann, J.B. Metz, J.B. Libânio). Christian eschatology went from a discourse about the last things (eschaton) to a speech on the Last (eschatos) in the anthropological, ecclesiological and cosmic sense. Thus, it recovered the christological dimension of the eschatology (W. Pannenberg, Y. Congar, J. Daniélou, K. Rahner, H.U. von Balthasar etc.). Christ is the ultimate horizon of Christian faith. Eschatology is no longer simply a sectoral treaty that concluded dogmatic theology. Escatotolgy became a perspective presents throghout the theology. Eschatology is a transverse dimension that permeates the entire Christian faith.

Keywords: Kingdom of God , Eschatology, Renewal, Cross, Theology

1. Do “Prognosticum futuri saeculi” ao “De novissimis”

A escatologia é uma disciplina da teologia cristã que trata de forma racional das realidades últimas (éschata) ou do último (éschaton). Este caráter de ultimidade da escatologia se refere aos acontecimentos que ocorrerão no final da existência do ser humano, da humanidade, da história e do mundo. As realidades últimas se referem à morte, à vida eterna, ao inferno, ao purgatório, ao juízo, à ressurreição dos mortos, à parusia e à nova criação. Neste contexto, o termo “realidades últimas” não tem uma acepção simplesmente cronológica ou espaço-temporal, mas enquanto eventos definitivos e conclusivos da existência individual e coletiva. As realidades últimas se consumam pela mediação do último e do definitivo que é Cristo, o evento que leva a cumprimento o criado. Neste sentido, a escatologia não é um discurso sobre algo (coisas últimas e novas), mas a respeito de alguém (Cristo).

A escatologia cristã está fundamentada na Escritura. No entanto, a Escritura não apresenta uma reflexão sistemática, racional e metodológica sobre a escatologia. Pode-se dizer que a Escritura trata de temas escatológicos, sem muita conexão sistemática, e não propriamente de uma reflexão organizada e ordenada sobre a escatologia. Os temas escatológicos são tratados dentro de um horizonte cristológico e uma visão coletiva. Cristo é o fundamento de temáticas como, dentre outras, a ressurreição, a morte, a vida eterna, juízo escatológico e parusia.

O primado da perspectiva cristológica e coletiva da escatologia do NT se mantêm no período patrístico. A teologia patrística, também, não apresenta uma visão escatológica sistematizada, mas reflete sobre temas escatológicos como, dentre outros, da ressurreição de Cristo como fundamento da ressurreição dos mortos, que se dará por ocasião da parusia; com a parusia ocorrerá o juízo e a recompensa para cada pessoa segundo suas boas obras; o corpo também participará da ressurreição; a salvação não tem como sujeito somente a alma, mas também a carne (padres apostólicos e apologistas); a sedução milenarista que significa a crença num futuro reino terrestre de Cristo e de seus eleitos, que situaria entre a ressurreição e a parusia, que duraria mil anos (Justino, Irineu e Tertuliano); a defesa da participação da carne na salvação diante do espiritualismo da gnose que tem um repudio pelo corpo, pela matéria e pela carne (Irineu, Tertuliano e Cipriano); a preocupação com a vida eterna da alma, considerada a melhor parte do composto humano; a alma, imortal e incorruptível, passará por um processo de purificação depois da morte até a realização da ressurreição; a crença na apocatástase (a restauração universal de todas as coisas); a salvação se realizará só quando todo o corpo de Cristo estiver completo; discussões entorno da natureza e da identidade do corpo glorioso (Clemente de Alexandria e Orígenes); questões entorno de 1Cor 15, 24-28 sobre a consumação do reino e do mundo (Hilário de Poitiers, padres capadócios); a purificação depois da morte e sufrágio oferecido pelos vivos para os que morreram (Cipriano e Agostinho); a vida ressuscitada, o juízo e o fim da história; o céu como experiência de comunhão com Deus; a visão de Deus, depois da morte, como a alegria sem fim; pequeno número de eleitos, a grande massa de condenados (aqueles que pecaram pessoalmente e crianças mortas sem o batismo) e eternidade do inferno e seus tormentos (Agostinho); a visão imediata de Deus, por parte da alma, logo após a morte; a purificação dos pecados veniais antes do julgamento final; o inferno como destino dos condenados (Gregório Magno) (LADARIA, 2003, p. 346-372).

A primeira tentativa de uma elaboração sistemática surgiu no século VII com o Prognosticum futuri saeculi do bispo espanhol Juliano de Toledo. Esta obra estava estruturada da seguinte forma: o primeiro capítulo tratava da origem da morte humana, o segundo refletia sobre a condição das almas dos defuntos antes da ressurreição dos corpos e o terceiro discorria sobre a ressurreição dos corpos. Juliano de Toledo apresentava um nexo interno entre os temas tratados e sua divisão determinou o modo da estruturação da abordagem clássica da escatologia: escatologia individual, escatologia intermediária e escatologia final. 

Apesar do influxo da obra de Juliano, principalmente na primeira fase da Idade Média, os temas escatológicos eram abordados separadamente e em relação com outros tratados teológicos como a criação, os sacramentos, a graça etc. Alguns exemplos desta abordagem dos temas escatológicos podem ser encontrados em Anselmo de Laon (1050-1117) que trata do inferno junto com o pecado dos anjos e a ressurreição com os efeitos dos sacramentos (NITROLA, 2001, p. 28-29). Hugo de São Vitor (1096-1141), na obra De sacramentis christianae fidei, medita sobre a teologia da história da salvação, tratando dos temas fundamentais do itinerário histórico-salvífico do ser humano. Os temas escatológicos (morte do homem, escatologia intermediária e escatologia final) faziam parte deste itinerário e eram colocados no final da obra. Também Pedro Lombardo, em sua obra Sententiarum libri quattuor, tratou de temas escatológicos (purificação pós-mortal, sufrágio pelos defuntos, ressurreição, juízo, condenação etc.) (ANCONA, 2013, p. 164-167).

Os temas escatológicos eram tratados no final das obras sistemáticas medievais como realidades últimas e conclusivas da fé cristã. Eram as coisas que aconteciam no fim. Esta tendência determinou a posição da abordagem dos temas escatológicos na teologia dogmática: eram colocados no final, quase que como um apêndice, dando a ideia de um arremate na reflexão dos temas teológicos.

A partir do século XVIII, surgiu a teologia dos novíssimos que tratava das realidades últimas e futuras que consistia numa série de eventos que ocorriam no final da existência terrena e no início da existência definitiva. A teologia dos novíssimos era dividida em duas partes: De novissimis hominis (morte, purgatório, inferno, céu etc.) e De novissimis mundi (ressurreição dos mortos, juízo universal, parusia etc). Esta configuração teológica dos novíssimos perdurou até o começo do século XX. Os inícios de uma renovação na estrutura, na metodologia e no conteúdo na abordagem da escatologia começaram com o teólogo alemão M. Schmaus, que trata primeiro da escatologia coletiva e depois da individual. Schmaus inverte a abordagem metodológica, tratando primeiro da escatologia coletiva e recupera a centralidade de Cristo na reflexão escatológica, em sintonia com a visão bíblica (MOIOLI, 1994, p. 199-210).

Historicamente, houve um primado dos temas escatológicos individuais sobre os coletivos. A escatologia passou por um processo de privatização e de individualização. Os motivos principais desta privatização foram o influxo helênico na fé cristã e o afastamento da escatologia bíblica. O influxo helênico provocou uma preocupação com o destino e a salvação da alma. A alma separada do corpo era a protagonista da vida pós-mortal. O distanciamento da escatologia bíblica significou a negligência com a dimensão coletiva e com a centralidade cristológica das realidades últimas.

2. Renovação escatológica no século XX

2.1. O anúncio do reino de Deus na visão da teologia liberal

A teologia liberal (segunda metade do séc. XIX e primeira metade do séc. XX) não era propriamente uma escola, mas um movimento polimorfo que nasceu do “encontro do liberalismo - como autoconsciência da burguesia europeia do século XIX - com a teologia protestante” (GIBELLINI, 1998, p. 19). Era uma tradução teológica do otimismo iluminista que cultuava a razão e reafirmava a subjetividade moderna. Assim, essa teologia denominada de “liberal” era a expressão do ser humano livre, emancipado, adulto e iluminado que concebia a razão e os frutos de sua investigação como realidades absolutas. Neste contexto, o cristianismo era visto como um fenômeno imanente, cultural, racionalista e universal. As principais características da teologia liberal eram: 1) uma aplicação do método histórico-crítico e uma assimilação de seus resultados; 2) uma leitura relativizante da tradição dogmática, particularmente da cristologia; 3) uma visão ética do cristianismo (GIBELLINI, 1998, p. 19)[1].

A teologia liberal, servindo-se do método histórico-crítico, queria reconstruir, do ponto de vista histórico, a imagem real de Jesus a fim de proporcionar uma base confiável para a fé. O centro do Evangelho era a personalidade e a vida de Jesus. Na visão da teologia liberal, a abordagem dogmática da cristologia era resultado de uma helenização da fé cristã. Uma visão dogmatizada da figura de Jesus se mostrava distante de sua personalidade real e concreta. Para redescobrir a figura de Jesus, era necessário purificá-lo de suas influências helenizantes. A teologia liberal concebia Jesus como o Filho de Deus que anunciava aos seres humanos as leis eternas da moralidade que tinham uma validade para todas as épocas. A mensagem de Jesus consistia na vivência do amor universal e no reto agir. O cristianismo era reduzido a um ideal de vida prática. Destarte, o reino de Deus era concebido como uma realidade moral, fruto do esforço humano. O reino de Deus seria resultado de uma construção humana. A mensagem cristã era uma mensagem moral. Jesus era visto como um modelo moral. O reino de Deus não era concebido como uma realidade transcendente e futura, mas imanente, cuja participação dependeria da vivência moral de cada ser humano. O reino de Deus era a manifestação do senhorio de Deus na consciência de cada sujeito (NITROLA, 2001, p. 38-40).

2.2. A dimensão escatológica do anúncio do reino de Deus: a escatologia consequente (Mc 1,15)

A redução do reino de Deus a uma realidade moral, por parte da teologia liberal, provocou uma reação da exegese protestante, que o considera uma realidade histórica. O reino não seria produto de uma construção ou de uma conquista humana, como desejavam os liberais, mas um evento e um acontecimento.

As primeiras reações às teses liberais emergem de dois exegetas protestantes, J. Weiss (1863-1914) e A. Schweitzer (1875-1965), que interpretam o reino de Deus anunciado por Jesus de forma consequencial, no sentido que o fim esperado chegaria iminentemente. Para Weiss, Jesus e sua mensagem deveriam ser vistos em sintonia e continuidade com o contexto judaico. Inserido neste contexto, Jesus teria assumido a sensibilidade da apocalíptica judaica de seu tempo, pregando não uma nova doutrina sobre o reino de Deus, mas o Evangelho propriamente dito, como manifestação da vitória de Deus sobre as forças do mal (WEISS, 1993, p. 62). O reino de Deus anunciado por Jesus seria um evento que procederia de cima para baixo como um acontecimento novo, obra de uma intervenção miraculosa de Deus, que corresponderia ao século futuro anunciado pela apocalíptica. Na visão de Jesus, todos esses fatos ocorreriam de forma iminente, devendo acontecer logo após a sua morte, a qual “não pode significar o naufrágio de sua obra, mas um meio para instaurar o reino de Deus” (WEISS, 1993, p. 126). Para Weiss, esta instauração do reino de Deus, enquanto uma realidade futura, teria levado Jesus a não se autocompreender como o Messias esperado, mas o Filho do Homem que deveria vir. Esta percepção estaria em sintonia com a apocalíptica judaica do tempo de Jesus (WEISS, 1993, p. 175-196). O retardamento na instauração do reino através da parusia provocou, na comunidade cristã primitiva, uma desescatologização na ideia da realização iminente do reino de Deus, anunciada por Jesus. Isso teria acontecido com Paulo, que fala do reino de Cristo realizado na comunidade, e com João, que teria percebido no Jesus histórico aquilo que a comunidade cristã antiga esperou só através da parusia (WEISS, 1993, p. 195-196).

Schweitzer retoma e aprofunda as posições exegéticas de Weiss, dando contornos mais definidos a uma visão escatológica consequente que conceberia o reino de Deus, o eschaton, como uma consequência iminente da história de Jesus e de sua morte. Já no início de sua obra, Schweitzer manifesta sua intenção: “Johannes Weiss demonstrou o caráter radicalmente escatológico do reino de Deus operado por Jesus. A minha contribuição consiste essencialmente no prosseguir o seu trabalho e no provar como não somente o anúncio, mas também o comportamento e a atividade de Jesus são condicionados pela espera escatológica” (SCHWEITZER, 1986, p. 56). A investigação histórico-crítica apresentaria não só a mensagem, mas também a pessoa de Jesus dentro de um quadro apocalíptico como um profeta escatológico que anunciaria a iminência da realização do reino de Deus, decretando o fim do mundo, que já deveria irromper antes do retorno da missão dos discípulos (Mt 10). No entanto, os discípulos retornaram de sua missão e o reino não chegou. Este fato ocasionou um retardamento no advento do reino de Deus, uma não-realização da parusia, o qual foi postergado para o momento da morte de Jesus: o reino chegaria como consequência da sua morte sacrifical. Mas, o reino de Deus não veio depois da sua morte, gerando um segundo retardamento de sua efetivação. Em razão da não-realização desses fatos, para Schweitzer, tudo estaria permeado por uma grande ilusão, inclusive a ressurreição de Jesus que estaria estreitamente ligada ao advento do reino (NITROLA, 2001, p. 44-45).

Na visão de Schweitzer, o Jesus da história seria uma figura distante porque se expressaria numa linguagem apocalíptica que seria incompreensível para o mundo atual. Mas esta linguagem seria um revestimento através do qual Jesus transmitiria o conteúdo universal de sua mensagem: “A ação de Jesus consiste nisto, que a sua ética natural e profunda se apodera da escatologia judaica tardia e exprime assim no material daquela época a esperança e a vontade de uma realização ética do mundo” (SCHWEITZER, 1986, p. 749). Assim, se trataria de traduzir eticamente a mensagem de Jesus envolta na linguagem apocalíptica. O conteúdo da mensagem de Jesus não pode ser invalidado em razão de seu invólucro linguístico. O reino de Deus anunciado por Jesus seria resultado da ação ética dos homens. Esse reino deve ser buscado com todas as forças e para além dos interesses pessoais dos homens de todas as épocas. Em razão disso, a relação dos homens de todas as épocas com Jesus seria de caráter místico, no sentido da busca de uma vontade comum porque seria na vontade de Jesus que a vontade dos homens se esclareceria e se alargaria (SCHWEITZER, 1986, p. 749-755). Desta forma, “a nossa religião, na sua especificidade cristã, não é tanto um culto a Jesus quanto uma mística de Jesus” (SCHWEITZER, 1986, p. 755).

A escatologia consequente teve o mérito de evidenciar o aspecto bíblico-teológico da dimensão escatológica da mensagem de Jesus.      Ela apresentou Jesus como um profeta escatológico em sintonia com a apocalíptica judaica da época. Porém, não mostrou em que residia a descontinuidade, a novidade e a especificidade da figura de Jesus e de sua mensagem. Sem um elemento que decreta a ruptura entre Jesus e o seu contexto, ele seria reduzido a um judeu com ideias apocalípticas de sua época.

2.3. O reino de Deus presente em Jesus: a escatologia realizada (Mt 12,28; Lc 11,20; Lc 17,20-21)

A escatologia realizada, cujo principal representante é o exegeta inglês C.H. Dodd (1884-1973), tem uma compreensão do reino anunciado por Jesus numa direção oposta à escatologia consequente. A escatologia realizada interpreta cristologicamente o reino de Deus como uma realidade já presente e consumada na pessoa e na atividade de Jesus. Há uma mudança de impostação: o reino não seria uma realidade futura, mas já presente. Na visão de Dodd, a análise das parábolas seria uma etapa necessária para se refletir sobre o reino de Deus proclamado por Jesus que, finalmente, já teria chegado. O reino “não era somente iminente, mas estava alí” (DODD, 1970, p. 49). Essa mudança de percepção possibilitaria compreender o reino não como uma realidade futura e distante que deveria ser esperada, mas já presente e atuante. O reino já seria uma realidade presente na vida e nas ações de Jesus. No horizonte de Jesus, o reino já seria algo realizado, cuja experiência era imediata. Diante do anúncio do reino, os ouvintes deveriam tomar uma posição de acolhida ou de recusa. Portanto, não se trataria de algo ainda futuro como pregava a apocalíptica judaica, usando imagens fantasiosas (DODD, 1970, p. 50-51).

Os defensores da escatologia consequente pensavam que tinham encontrado a chave hermenêutica do ensinamento de Jesus, apoiando-se em textos que falam do reino de Deus como uma realidade que se realizaria num futuro próximo e não naqueles textos tratam do reino como uma realidade já presente. Apoiar-se nos textos que tratariam do reino como algo futuro seria desconhecer a importância e a abundância dos textos que mostram-no como uma realidade presente. A solução defendida pela escatologia consequente “não vale muito porque os textos que anunciam a chegada do reino são simples e explícitos; não só, mas eles representam o que de mais característico e distintivo os evangelhos dizem sobre este assunto, porque eles não têm paralelo nenhum na doutrina ou na liturgia judaica do tempo. Se queremos identificar a diferença específica do ensinamento de Jesus em relação ao reino, o encontramos próprio neste ponto” (DODD, 1970, p. 50).

Dodd indaga em que sentido se deveria compreender que o reino de Deus como uma realidade já presente em Jesus? Através da atividade de Jesus “os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciado o evangelho” (Lc 7,22). No mistério de Jesus, se manifestaria a potência de Deus diante das forças malignas: “se é pelo de Deus que eu expulso os demônios, então o reino de Deus chegou para vós” (Lc 11,20). O quarto evangelho interpretaria corretamente os textos que tratariam das curas como “sinais” da presença da vida eterna entre os homens. A vida eterna seria “o resultado da vinda do reino e esta vinda se manifesta no desenvolvimento dos eventos históricos que constituem o ministério de Jesus” (DODD, 1970, p. 51). O quarto evangelho manifestaria o presentismo escatológico da pregação de Jesus. Neste evangelho estaria a exposição mais fiável e penetrante de seu sentido original.

Nesta visão estaria o ponto de partida através do qual se deveria orientar uma interpretação do ensinamento do reino de Deus: “o ministério de Jesus é apresentado como ‘escatologia realizada’ (realized eschatology), isto é, como a ação imprevista e potente neste mundo das ‘forças do mundo que virá’, ação absolutamente nova e irrepetível que se manifesta numa série de eventos concretos históricos” (DODD, 1970, p. 51).

Usando o mesmo critério histórico de Schweitzer, Dodd chega a conclusões diferentes: Jesus não pode ser visto dentro do enquadramento apocalíptico de seu tempo, porque sua pregação sobre o reino não está imbuída de um futuro escatológico, mas de uma realidade já presente. Dodd quis mostrar a especificidade e a descontinuidade entre a visão do reino pregada por Jesus e a visão apocalíptica de seu tempo. O ainda não (futurismo) de Schweitzer é substituído pelo (presentismo) de Dodd. Uma leitura escatológica do anúncio do reino que se reduz ao e liquida o ainda não descamba para uma experiência individualista e intimista, ocasionando um esvaziamento da dimensão social, política e cósmica da escatologia.

2.4. O reino de Deus é uma realidade que está se iniciando: Escatologia em realização

A interpretação do reino anunciado por Jesus como uma realidade já presente, defendida por Dodd, é seguida por outros dois exegetas protestantes: J. Jeremias (1900-1979) e E. Käsemann (1906-1998). No entanto, ambos autores deram uma impostação um pouco diferente à proposta por Dodd: o reino de Deus não seria uma realidade escatológica já realizada, mas em realização. O reino abrigaria uma dimensão presente e futura. O reino não estaria totalmente presente em Jesus, mas teria sido iniciado com ele. A realização do reino seria processual.

Segundo Jeremias, Dodd teria rompido com uma interpretação alegórica e fantasiosa das parábolas de Jesus sobre o reino de Deus. Seria necessário purificar as parábolas de um universo linguístico apocalíptico para se ter acesso ao seu núcleo original. As parábolas deveriam ser compreendidas no contexto concreto da vida de Jesus. Na visão de Jeremias, teria sido Dodd, na sua obra As parábolas do Reino, o realizador desta questão. “Nesta obra de extraordinária importância faz-se de fato e pela primeira vez com grande êxito a tentativa de situar as parábolas dentro da vida de Jesus, como que ele introduziu uma nova era na interpretação das parábolas. Todavia, Dodd se restringe às parábolas do reino e a universalidade do seu conceito de ‘basileia’ (Dodd põe toda a acentuação na idéia de que o reino já irrompeu agora definitivamente) acarreta como consequência um encolhimento da escatologia, o que não deixa de exercer influência no resto de sua exegese de forma magistral” (JEREMIAS, 1980, p. 14). 

Jesus não só falou em parábolas, mas também agiu. “O grande número das ações parabólicas de Jesus proclama a irrupção do tempo de salvação. As ações parabólicas de Jesus são pregação. Mostra que Jesus não só pregou a mensagem das parábolas, mas também as viveu e as corporificou em sua pessoa. ‘Jesus não só fala a mensagem do reino de Deus, ele a é ao mesmo tempo’“ (JEREMIAS, 1980, p. 228). Porém, Jeremias não fala de uma escatologia realizada, mas, influenciado por E. Haenchen, de uma escatologia em realização. Esta expressão de Jeremias foi acolhida pelo próprio Dodd (DODD, 2003, p. 575).

Käsemann segue a mesma linha reflexiva de Jeremias. Para Käsemann, a interpretação presentista e realizada da escatologia de Dodd teria sido exagerada. Seria preciso admitir que Jesus falou do futuro da soberania de Deus. “Jesus não pregou a soberania de Deus já realizada, mas pregou a soberania de Deus que, a partir de agora, está começando a se realizar. Este dado é confirmado, sobretudo, pelas parábolas” (KÄSEMANN, 1985, p. 55). A soberania de Deus, que seria a manifestação de seu reino, não seria uma realidade já presente, mas estaria se iniciando no presente. O anúncio da soberania de Deus exigiria que cada ouvinte tomasse uma posição de acolhida ou recusa do reino. “Jesus não veio para anunciar verdades gerais, religiosas ou morais, mas para dizer que coisa acontece com a basileia que está para ter início, isto é, para dizer que Deus se aproximou do homem na graça e na exigência” (KÄSEMANN, 1985, p. 55).

O radicalismo presentista de Dodd, na compreensão do anúncio do reino, foi amortecido por Jeremias e Käsemann como uma realidade que já teria iniciada. Em Jesus, o reino já iniciou sua efetivação, porém ele não se esgota numa realidade imanentista. A posição de Jeremias e Käsemann manifesta uma abertura para a dimensão futura da consumação do reino. 

2.5. O reino é uma realidade já presente, mas ainda não consumada: A escatologia de mediação

Diante as visões unilaterais do futurismo da escatologia consequente e do presentismo da escatologia realizada, a “escatologia de mediação” (MOLTMANN, 1993, p. 26)[2] propõe uma síntese dialética: o reino seria uma realidade já presente, mas ainda não consumada. Esta linha escatológica, no que tange à interpretação do reino de Deus anunciado por Jesus, é seguida por dois exegetas: um protestante, O. Cullmann (1902-1999), e outro católico, R. Schnackenburg (1914-2002).

Cullmann, que reagindo diante da posição existencialista da escatologia de Bultmann, propõe uma retomada da dimensão teológica da história. Para Cullmann, a diferença entre a concepção do tempo no Antigo Testamento e no Novo Testamento seria apresentada por uma diversa divisão, no sentido que os dois teriam uma diferente divisão do tempo. Para o Antigo Testamento, o centro do tempo se localizaria no futuro porque estaria ligado com a vinda do Messias, quando se daria o advento da era messiânica com a realização de seus prodígios. Neste sentido, a salvação seria uma realidade futura. Mas, para o Novo Testamento, com a novidade trazida por Cristo “a partir da Páscoa, o centro já não está situado no futuro [...] O centro da história já é uma realidade cumprida” (CULLMANN, 2008, p. 105). 

O centro da história já não seria a futura vinda do Messias, mas a vida e a atividade histórica de Jesus, realizada no passado. Cristo seria o centro da história da salvação. A novidade na concepção cristã do tempo, diante da judia, estaria na divisão cronológica. “O que os judeus esperavam para o futuro se mantém aqui, porém já não constitui o centro da história da salvação, porque o centro agora é um acontecimento histórico. Se alcançou o ponto central, porém o fim, todavia, não chegou. Esta representação pode ser ilustrada com um exemplo. Numa guerra, a batalha decisiva pode produzir-se numa fase relativamente inicial do confronto, ainda que a luta se prolongue ainda por algum tempo. Pode ser que nem todos reconheçam a importância decisiva desta batalha, porém esta já significa a vitória. Contudo, a guerra deverá seguir por um tempo indeterminado, até que se possa celebrar ‘o dia da vitória’. Esta é exatamente a situação do Novo Testamento. Depois de reconhecer a nova divisão do tempo, se é consciente de que a revelação consiste em proclamar que o acontecimento da cruz, seguido da ressurreição, foi a batalha decisiva que ganhou a guerra. E com esta convicção de fé, que tem como consequência o desfrute da vitória, o crente participa na soberania de Deus sobre o tempo” (CULLMANN, 2008, p. 108-109).

Na visão de Cullmann, Cristo seria o centro que daria sentido a toda a história que se desenvolve do tempo. Assim, em Cristo haveria uma coexistência de duas dimensões: “já realizado” e “ainda não”. Ou seja, com a ressurreição de Cristo, a história já teria se realizado (batalha vencida), porém ainda não foi consumada no seu conjunto (vitória final) (CULLMANN, 2008, p. 110). Nesse mesmo sentido, Cristo pregou um reino que já estaria presente nele, mas que deveria ser esperado em plenitude no futuro. No subterrâneo da dialética do “já e do ainda não” estaria a relação entre escatologia e história, que permitiria falar de uma autêntica história da salvação. À luz da fé cristã, haveria uma tensão entre o escatológico e o histórico. Segundo Cullmann, o elemento novo, no Novo Testamento, não é a escatologia, mas a tensão entre o decisivo “já realizado” e o “ainda não completado” entre o presente e o futuro (CULLMANN, 1966, p. 253-254).

A linha escatológica defendida por Cullmann influenciou a reflexão exegética sobre o reino de Deus. Segundo Schnackenburg, apesar do grande influxo que a dimensão escatológica do reino teria conquistado com a pregação e a atividade salvífica de Jesus, a sua dimensão futura conserva seu centro de gravidade e o olhar de Jesus se manteria fixo na esperança vindoura do reino. Jesus não teria proclamado duas espécies diferentes de reino de Deus, mas se trataria de um único reino que já brilharia na presença de Jesus e que logo se manifestaria cosmicamente (SCHNACKENBURG, 1974, p. 145). Ou seja, se trataria de um mesmo reino, porém com dois aspectos diferentes: um já presente e outro ainda não consumado. As ações (pregação, curas etc.) de Jesus mostrariam que o reino de Deus já teria chegado, “já está presente, porém somente provisoriamente, só como uma promessa, só fazendo referência prévia à chegada com poder e glória” (SCHNACKENBURG, 1974, p. 180). O futuro escatológico já teria começado em Jesus. A promessa da ação de Deus já estaria se realizando, porém seu cumprimento definitivo se daria futuramente.

A posição de Cullmann e Schnackenburg sobre o reino anunciado por Jesus representa um equilíbrio e um ponto médio em relação ao futurismo da escatologia consequente e ao presentismo da escatologia realizada. Na realidade, essa posição equilibrada já tinha sido iniciada com Jeremias e Käsemann. Esta visão de Cullmann exerceu um influxo determinante na escatologia da segunda metade do séc. XX e nos dias atuais. A expressão “já e ainda não” se tornou um jargão na linguagem teológica. Como a escatologia perpassa todo o cristianismo e a toda teologia, logo a expressão “já e ainda não” é uma forma de interpretar a fé cristã (a Igreja, a liturgia, a criação, etc.). A escatologia de mediação representa a tensão dialética entre o presente histórico e o futuro absoluto. Essas categorias não são adversárias ou oponentes, mas estão correlacionadas: o futuro absoluto já está sendo gestado no presente histórico; o presente histórico está orientado para o futuro absoluto.     

2.6. A escatologia transcendental

A concepção transcendental da escatologia foi seguida por dois autores protestantes: um teólogo suíço, K. Barth (1886-1968), e um exegeta alemão, R. Bultmann (1884-1976). Barth publicou, em 1919, a primeira edição da famosa obra “A Carta aos Romanos” e, em 1922, a segunda edição dessa obra. Essa segunda edição foi considerada “o texto mais representativo da teologia dialética”, da qual Barth era o principal expoente (GIBELLINI, 1998, p. 20). Nessa segunda edição, Barth conceberia o reino de Deus como uma realidade totalmente Outra. De modo análogo, Deus seria o Deus absconditus, o totalmente Outro. Assim, o primado da realidade escatológica reside na transcendência de Deus, que em sua radical alteridade seria inapreensível para o homem. Segundo Barth, não haveria um caminho (religioso, histórico ou metafísico) que pudesse levar o ser humano até Deus (uma via ascendente). O único caminho possível seria o descendente: de Deus ao ser humano pela mediação de Cristo. A justificação, como relação positiva entre o ser humano e Deus, seria possível como justificação forense, declarada por Deus. A justificação só seria possível por meio da fé, enquanto fidelidade a Deus (GIBELLINI, 1998, p. 20-21).

Na visão de Barth, o eschaton não poderia ser compreendido a partir do tempo, nem como um tempo sem fim e nem como o acontecimento temporal que se colocaria no fim dos eventos últimos, mas como expressão da alteridade de Deus, o confim entre o tempo e a eternidade, o instante eterno. “Incomparável diante de todos os instantes, está o instante eterno, porque é o significado transcendental de todos os instantes. Incomparável a ‘salvação’, o ‘dia’, o reino de Deus está diante de todos os tempos precisamente porque é a plenitude de todos os tempos” (BARTH, 2006, p. 479). Desta forma, “diante, atrás e acima dos dias de nossa vida está o dia de Jesus Cristo que não é um dia, mas o dia de todos os dias” (BARTH, 2006, p. 294). O eschaton estaria relacionado com o sentido dos dias, isto é, dos homens e da sua história. O escatológico seria a presença da eternidade em cada instante da história. 

Essa visão do eschaton joga por terra a concepção da parusia enquanto um evento cronológico e histórico que ocorreria no final dos tempos. A parusia não seria um evento que pertenceria a um tempo, mas seria um evento situado entre os tempos: “Sempre subsiste esta tensão entre o quando do nosso ser que procura seu repouso e a hora da ação perturbante do nosso não ser, sempre subsiste a tensão entre o tempo da revelação já expresso nos atos já realizados, do Deus já conhecido, e os tempos da recordação, da espera, do olhar adiante, através do acontecimento existencial daquilo que presumivelmente já existe, para o instante eterno da aparição, da parusia, da presença de Jesus Cristo” (BARTH, 2006, p. 480). 

O crente que esperaria a parusia de Cristo estaria no limite do tempo, se encontraria diante do juízo iminente de Deus, a negação de todo tempo e de todo conteúdo temporal. O crente estaria diante do dia e da hora que ninguém conheceria. O fim, na visão do Novo Testamento, “não é um acontecimento temporal, não é uma fábula do ‘fim do mundo’, não tem relação alguma com qualquer catástrofe histórica, telúrica ou cósmica, mas é realmente o fim” (BARTH, 2006, p. 481). Somente teria sentido falar em espera do fim para quem se encontra inserido na temporalidade. O retardamento da parusia seria compreensível para quem se encontra do lado de cá, porque do outro lado, do eterno, ela já seria uma realidade em ação. Assim, “não é a parusia que se procrastina, mas o nosso esperar” (BARTH, 2006, p. 481). Esperar a parusia significaria considerar a situação efetiva da nossa vida com toda a sua seriedade, pois, assim, conheceremos Jesus Cristo como aquele é o princípio e o fim.

A escatologia não seria uma conclusão linear da história e nem seria um discurso sobre as coisas que ocorreriam no fim cronológico da história. As “coisas últimas” já estariam atuando na vida presente. Elas não se realizariam somente no fim, mas já estariam presentes no “agora”, de modo que cada instante da vida do crente conquistaria uma dimensão escatológica.  Por isso, a existência cristã seria uma existência escatológica. O cristianismo e a teologia seriam sinônimos de realidades escatológicas. “Um cristianismo que não é, em tudo e por tudo e sem resíduos, escatologia não tem nada a ver com Cristo” (BARTH, 2006, p. 295). Mais do que um simples capítulo conclusivo da dogmática, a escatologia seria uma realidade transversal que perpassaria toda a fé cristã.

Também para Bultmann, outro expoente da teologia dialética e da escatologia transcendental, o escatológico seria o instante eterno. Bultmann faz uma teologia em diálogo com a existência: “a teologia de Bultmann é efeito de uma coerente aplicação da interpretação dos enunciados centrais do Novo Testamento: teologia como interpretação existencial” (GIBELLINI, 1998, p. 44). Na visão de Bultmann, o Antigo Testamento (AT) não teria conhecido propriamente a escatologia, como doutrina do “fim” da história, mas apenas uma concepção histórica e teleológica da ação que Deus, que conduziria a história do povo de Israel para um fim, uma meta e um futuro glorioso. A escatologia teria surgido com a tardia apocalíptica judaica, na qual Deus interviria na história determinando o seu fim. 

No Novo Testamento, se registraria a presença de elementos do AT e da apocalíptica, mas com uma primazia desta última. O cristianismo primitivo teria vivido a expectativa do advento da parusia, a iminência do fim do mundo. Paulo e João teriam sido os responsáveis pela superação da questão da não-ocorrência do fim, da não-realização da parusia, defendo uma historicização da escatologia: o acontecimento escatológico já estaria presente na história e, portanto, não seria um evento que ocorreria no fim da história (GIBELLINI, 1998, p. 43). “O paradoxo da mensagem cristã é que o evento escatológico não é compreendido em seu verdadeiro sentido - pelo menos segundo Paulo e João - quando é concebido como um evento que coloca fim no mundo visível através de uma catástrofe cósmica; trata-se de um evento no interno da história que inicia com o surgimento de Jesus de Nazaré e se prolonga no curso da história, não, porém como uma evolução historicamente constatável, mas fazendo-se evento na pregação e na fé. Jesus Cristo é o evento escatológico não como fato do passado ocorrido uma vez por todas, mas como aquele que interpela o crente no aqui e agora da pregação” (BULTMANN, 1989, p. 200-201). O escatológico seria a palavra decisiva e definitiva que Deus teria pronunciado em Cristo. Enquanto interpelação, o anúncio da palavra exigiria uma decisão. O ser humano estaria sempre em situação de decisão no aqui e agora de sua existência. Nesta situação decisional do presente estaria latente a responsabilidade para com o futuro. Nas decisões da vida presente já estaria sendo gestada a vida futura. 

Na visão de Bultmann, o escatológico não se refere a uma realidade futura e nem a um fim absoluto que possivelmente aconteceria no fim da história, mas trataria do que seria decisivo para a existência. O decisivo já teria acontecido em Cristo e acontece todas as vezes em que a palavra seria anunciada e a existência seria renovada. Cristo, a palavra e a existência cristã seriam realidades escatológicas. A escatologia não diria respeito à história do mundo, mas à historicidade da existência individual (BULTMANN, 2001, p. 71-72). O sentido da história estaria relacionado com o sentido da história pessoal: “no seu presente pontual está o sentido da história que você não pode vê-lo como um expectador, mas somente nas suas decisões responsáveis. Em cada instante dorme a possibilidade de ser o momento escatológico. Cabe a você despertá-lo” (BULTMANN, 1989, p. 204). A existência cristã significaria, por antecipação, já estar para além desta realidade mundana. Na vida do crente, o momento presente ganharia um caráter escatológico. “Todo instante tem a possibilidade de ser um instante escatológico e na fé cristã esta possibilidade é realizada. O paradoxo da existência cristã é ser simultaneamente uma existência escatológica, não-mundana, e uma existência histórica, equivale à frase de Lutero: ‘Simul iustus simul peccator’” (BULTMANN, 1989, p. 203-204).

No horizonte de Bultmann, a escatologia consistiria no modo com o qual Deus, em relação à autêntica existência cristã, colocaria fim, em Cristo, ao decadente e fragmentado mundo do pecado e abriria uma possibilidade nova de perdão e de graça. As representações dos eventos “finais” (fim mundo, ressurreição dos mortos, juízo universal etc.) deveriam passar por um processo de desmitologização, ou seja, por uma interpretação existencial (GIBELLINI, 1998, p. 44). A escatologia se referiria a uma interpretação existencial dos conteúdos dos eventos “últimos” da fé cristã. A teologia se tornaria uma antropologia cristã existencial.

A escatologia transcendental de Barth e Bultmann não compreende propriamente o escatológico como uma tensão entre o presente e o futuro ou entre o já e o ainda não, mas enquanto tempo e eternidade. Para ambos, o escatológico se manifesta em cada instante da vida do ser humano. O instante temporal tem um caráter decisional. Diante do anúncio do kerigma, cada ser humano se encontra frente ao eterno, tendo que decidir. O “aqui e agora” tem uma dimensão escatológica. Por isso, viver é estar sempre diante de uma situação escatológica. A existência cristã é uma existência escatológica. Esta posição corre o risco de se degringolar num presentismo e num existencialismo escatológico, negligenciando o futuro absoluto da escatologia cristã.  

2.7. Escatologia e história

A importância teológica, particularmente escatológica, da história emerge com teólogo protestante alemão W. Pannenberg (1928-2014), para quem a teologia da revelação teria o seu ponto de partida nos dados históricos. Pannenberg propõe uma relação entre cristologia e escatologia, passando pela via da história. Segundo o autor (1975, p. 30), “a história é o horizonte mais amplo dentro do qual a teologia cristã se move. Todos os problemas e as soluções teológicas encontram o seu sentido só no contexto da história de Deus com a humanidade e, através desta, com toda a criação, para um futuro que o mundo mantém ainda oculto, mas que já se manifestou em Jesus Cristo”.

Na visão de Pannenberg, a autorevelação de Deus se daria de forma indireta e através de ações históricas. Em razão deste caráter indireto, haveria uma conjugação entre revelação e fim da história. A revelação não se daria propriamente no início, mas no fim da história da revelação. No fim, se revelaria tudo aquilo que já estaria oculto no presente. Somente no fim de todos os eventos históricos se poderia falar de uma automanifestação definitiva de Deus, ou seja, da realização da sua revelação (PANNENBERG, 1969, p. 169-172). Essa revelação de Deus teria um alcance universal, porque, baseando-se em fatos históricos, seria acessível a todas as pessoas. Assim, Deus não se revelaria somente a Israel, mas todas as nações (PANNENBERG, 1969, p. 173-174).

A revelação através da história teria um referimento ao eschaton. Somente no fim, quando se teria uma visão de conjunto das ações históricas de Deus, se daria a revelação de forma plena. Mas enquanto este “fim” não chega, seria possível concebê-lo, por antecipação, em Jesus Cristo: “em Jesus, se atua de modo precedente, como antecipação, o fim de toda a história. Somente em consequência disto se pode dizer que o Deus de Israel se mostrou como o único Deus verdadeiro em Jesus” (PANNENBERG, 1969, p. 173). Em Jesus Cristo, o fim não seria somente observado, mas já agiria nele, por antecipação. A ressurreição seria o evento em que o fim já estaria se realizando: a ressurreição seria um evento que já teria ocorrido com Cristo, mas aconteceria com todos os homens somente no futuro (PANNENBERG, 1969, p. 181). “O fim da história, porém já aconteceu com a ressurreição de Jesus, se bem que para nós ainda não se realizou. Por isso, o Deus de Israel manifestou definitivamente a sua divindade em Jesus e se revelou como o único Deus de todos os homens. Somente o caráter escatológico do evento Cristo garante que não existirá mais nenhuma automanifestação de Deus superior a este evento: também com o fim do mundo ocorrerá de forma cósmica aquilo que já aconteceu com Jesus” (PANNENBERG, 1969, p. 182). 

O caráter escatológico do evento Cristo significaria a antecipação do fim de todas as coisas. A ressurreição de Jesus já teria o caráter de antecipação deste fim. Na ressurreição, teria acontecido a automanifestação escatológica de Deus. O fim teria começado em Jesus porque Deus já teria se revelado nele. O Cristo ressuscitado seria a prolepse do fim, o acontecimento antecipado daquilo que deverá ocorrer no fim como revelação do sentido da história (PANNENBERG, 1969, p. 183-185). Cristo, enquanto prolepse do fim, seria o centro da história. Haveria uma pedagogia na revelação que culminaria em Cristo. Destarte, a revelação em Cristo não seria um evento isolado ou desconectado da história da revelação que o precederia, mas seria a expressão definitiva da trajetória da ação reveladora de Deus: “O caminho de Jesus de Nazaré e o sentido revelatório do seu destino se tornam compreensíveis somente se considerados à luz da história e da tradição de Israel. O Pai de Jesus Cristo era o Deus do Velho Testamento, o Deus dos profetas e da lei que Jesus explicou” (PANNENBERG, 1969, p. 185).

Um fato histórico pode ser considerado absoluto somente se ele fosse capaz de antecipar o fim com a completude que o inserisse, isto é, o eschaton. Seria isso que aconteceria com a ressurreição de Jesus, tornando o eschaton submetível a uma investigação racional válida para todos os fatos históricos. Dessa forma, a ressurreição de Cristo deveria ser vista como um fato “histórico” que estaria sujeito a uma investigação da pesquisa histórica. Esta investigação comprovaria a divindade de Jesus (NITROLA, 2001, p. 55-56).

A posição de Pannenberg, que consiste numa articulação entre escatologia e história, está na contramão da visão a-histórica de Barth e Bultmann. Enquanto Pannenberg considera a história no seu conjunto, Barth e Bultmann consideravam a história a partir da existencial individual de cada sujeito. Contrariamente a Barth e Bultmann, para Panneberg a escatologia trata da consumação da história. A ressurreição de Cristo é o evento que antecipa do fim da história na sua totalidade. A visão de Pannenberg sobre a ressurreição de Cristo como um evento sujeito a uma investigação historiográfica suscitou reações críticas (PONTÍFICIA COMISSÃO BÍBLICA, 1984).

2.8. Escatologia e cristologia

A onda da renovação escatológica depois de passar pelo campo protestante chega ao católico. A teologia católica, anterior ao Concílio Vaticano II (1962-1965), estava imbuída do desejo de um retorno às fontes bíblicas e patrísticas. Este retorno teria que passar necessariamente pelo centro do mistério cristão, que é Cristo. Os primeiros teólogos católicos a conjugar escatologia e cristologia foram os franceses Y. Congar (1904-1995) e J. Daniélou (1905-1974).

Diante da necessidade de se repensar a escatologia presente na teologia dos novíssimos, Congar, em 1949, fazendo uma reflexão crítica sobre o livro A outra vida e as profundidades da alma de R. Garrigou-Lagrange, lamenta que a escatologia tenha se tornado uma espécie de “física das realidades últimas”, um conjunto de “coisas” que aconteceriam depois da morte e não propriamente o termo e a consumação de toda a economia salvífica. “Sem sensibilidade para a escatologia, nos ‘fins últimos’ se viu não tanto o fim e o cumprimento da ordem global, quanto um acúmulo de coisas que se encontram atrás da morte e que podem ser estudadas do mesmo modo como as coisas desta terra. Quem nos pergunta Quid sit ignis purgatorius? Utrum visio Dei sit per speciem? Exatamente como em física nos interroga sobre a natureza do fogo ou em metafísica sobre consciência mediante uma species. Na realidade, se fez uma espécie de física dos fins últimos. A maior parte dos tratados de escatologia dos nossos manuais são deste tipo” (CONGAR, 1949, p. 463)[3].

Criticando a visão fisicista e coisista da escatologia clássica, Congar sustenta a necessidade de um retorno às fontes (ressourcement) bíblicas e patrísticas e de uma relação integrada entre a reflexão teológica e o mistério de Cristo: “Trata-se de renovar a consciência da relação das nossas afirmações teológicas ao mistério único de Cristo, que é no fundo o mistério pascal. A ressourcement, diria, pode consistir materialmente em uma reinterrogação das origens; mas formalmente consiste em tomar uma maior consciência da relação de cada elemento da doutrina com o mistério cristão, considerado por sua vez como centro e como termo de tudo: como centro, e assim evitamos fazer da teologia uma espécie de física das realidades cristãs tratadas como coisas; como termo, e assim restituímos à economia o seu movimento e a sua unidade. O ato de tomar uma maior consciência da relação das doutrinas desta economia com o mistério cristão equivale a contemplar a relação deles com Cristo: relação que se perdeu um pouco de vista, por considerar a igreja, por exemplo, ou a vida moral, e as realidades escatológicas somente em si mesmas” (CONGAR, 1951, p. 333).

Na visão de Congar, seria preciso, novamente, centralizar e orientar a escatologia em sua relação com o mistério cristão, que encontraria sua identidade no mistério pascal e parusíaco de Cristo. Isso proporcionaria uma retomada da dimensão coletiva da escatologia. Esse escopo deveria considerar a centralidade do mistério de Cristo em sua relação com a doutrina, os tratados teológicos e as realizadas escatológicas que, até então, eram consideradas em si mesmas, sem um vínculo direto e explícito com Cristo. Retornar à centralidade de Cristo significaria reconhecê-lo com princípio e fim da história. Cristo esteve no princípio como mediador da criação e estará no fim como mediador da consumação. Ele seria o alfa e o ômega da história. Em Cristo, se condensaria a tríplice dimensão do tempo: passado (Ele veio), presente (Ele está aqui) e futuro (Ele retornará) (CONGAR, 1965, p. 307-308).

Daniélou, também, tratou da relação entre escatologia e cristologia, num contexto reflexivo sobre o concílio de Calcedônia (451). Segundo Daniélou, a definição dogmática de Calcedônia, referente à união das duas naturezas, humana e divina, em Cristo, possibilitaria compreender a realização da escatologia. A união das duas naturezas na pessoa de Cristo, Deus perfeito e homem perfeito, seria uma forma de perceber a realização das profecias relativas à vinda escatológica de Javé, que seriam, também, aquelas relativas à vinda do Messias. A união das duas naturezas em Cristo permitiria ver como essas duas linhas se conciliariam. Seria no mistério da união hipostática que a escatologia encontraria sua explicação última (DANIÉLOU, 1954, p. 273-274). “É a determinação da cristologia que permite compreender a verdadeira significação da escatologia. A relação do dogma de Calcedônia com a escatologia não é um aspecto secundário. É a união das duas naturezas na pessoa de Cristo que é propriamente a realização da escatologia. Esta não é somente conhecimento do eschaton, dos últimos tempos, mas do eschatos que constitui os últimos tempos” (DANIÉLOU, 1954, p. 274).

Na visão de Daniélou, o estudo da escatologia conduz à cristologia. O eschaton não seria somente um peras, um simples fim cronológico, mas um telos, uma meta que seria o cumprimento de um desenvolvimento. O termo deste desenvolvimento não seria um acontecimento, mas uma pessoa. Não seria um evento impessoal, mas uma realidade personalizada. Não seria algo, mas Alguém. Desse modo, ocorreu a passagem do eschaton para o eschatos, das coisas à pessoa de Cristo. Assim, o Verbo encarnado se tornou o termo do desígnio divino. Cristo, como evento último e definitivo, colocaria um termo absoluto na história porque ele seria a realização do plano divino. Cristo seria o eschaton da história (DANIÉLOU, 1954, p. 275; LABOUDETTE, 1954, p. 661-662).

A re-ligação entre escatologia e cristologia, proposta por Congar e Daniélou, revela um retorno à perspectiva escatológica bíblica e patrística. A centralidade cristológica e a dimensão coletiva da escatologia se perderam historicamente, cedendo lugar a uma visão escatológica individualista e desconectada de Cristo. A escatologia era concebida em e por si mesma de forma que as realidades futuras já estavam predeterminadas, sem uma relação intrínseca com Cristo. A proposta de Congar e Daniélou é recolocar Cristo na condição de evento escatológico por excelência, como o Último (eschatos), de modo que toda realidade escatológica e da fé cristã tenha nele o ponto de partida e chegada.   

2.9. Escatologia e hermenêutica teológica

O tratado De novissimis tinha uma visão geográfica das realidades últimas. A vida definitiva era vista como um prolongamento da vida terrena. Projetava-se para o além a mesma forma de conceber, de modo espaço-temporal, as realidades do aquém. Assim, os eventos últimos (inferno, purgatório, juízo etc.) eram vistos de modo topográfico, enquanto lugares e eventos sucessivos. Havia uma visão fixista e descritiva do além. A vida definitiva era vista sem uma conexão com a vida presente. A vida temporal era vista como um período de provação e não como uma fase antecipadora da vida definitiva. Essa visão do tratado clássico De novissmis precisava passar por uma hermenêutica teológica, purificando-a de sua percepção literal, geográfica, fixista e descritiva. Este empreendimento foi feito por dois teólogos católicos: H.U. von Balthasar (1905-1988) e K. Rahner (1904-1984).

Segundo Balthasar, as coisas últimas (céu, inferno, purgatório etc.) seriam concebidas como “lugares escatológicos”, cuja fundamentação se encontraria numa cosmovisão que compreendia o universo como uma instância possuidora de fronteiras superiores e inferiores que confinariam o mundo divino e o demoníaco. Esta cosmologia dos fins últimos precisava passar com uma desconstrução figurativa. Na visão de Balthasar, seria necessário efetuar uma descosmologização das coisas últimas através de uma interpretação das representações cosmológicas nas quais as realidades escatológicas eram concebidas. As coisas últimas deveriam ser purificadas do quadro figurativo e imaginário no qual elas eram pintadas para se tornarem “acontecimentos últimos” que acampariam o homem, o mundo e a história, relacionando-os com a ação transformadora de Deus (BALTHASAR, 1967, p. 42). “Não são os fins últimos que serão integrados num cosmo (entendido num sentido teológico antigo), mas é o cosmo que é religado à ação divina” (BALTHASAR, 1967, p. 43). Desse modo, os eschata teriam se tornado, numa maneira nova, não-figurativos para o pensamento e por isso “toda a teologia seria religada aos eschata e escatologizada” (BALTHASAR, 1967, p. 42).

Depois de defender uma descosmologização das coisas últimas, Balthasar propõe uma interpretação pautada numa concentração teológica destas realidades. Dentro desse horizonte, no lugar das “coisas” e dos “estados”, Deus se tornaria o “fim último” da criatura (BALTHASAR, 1967, p. 43). Deus seria o eschaton para as suas criaturas. Depois desta vida terrena, as criaturas seriam acolhidas por Deus, seu destino último. “Deus é o ‘fim último’ da sua criatura. Ele é o céu para quem o ganha, o inferno para quem o perde, o juízo para quem é examinado por Ele, o purgatório para quem é purificado por Ele. Ele é Aquele para o qual morre tudo aquilo que é mortal e que ressuscita para Ele e Nele” (BALTHASAR, 1967, p. 44).

Na visão de Balthasar, a concentração teológica das realidades últimas desembocaria numa concentração cristológica. Se Deus é o fim último da criatura, sua revelação em Cristo transforma esse seu Filho no “compêndio dos fins últimos. A escatologia é então, de certa maneira, mais do que outro locus teológico, a síntese doutrinal da verdade religiosa” (BALTHASAR, 1967, p. 45). Nessa concentração estaria a chave para a renovação do tratado e dos eventos escatológicos: “Se os ‘fins últimos’ serão concebidos em termos cristológicos e, mais profundamente, em termos trinitários, compreendemos mais claramente também o juízo, o purgatório, o inferno e o sheol. Então, a escatologia será suficientemente descosmologizada (que não significa desmitologizada) não conterá mais os restos não elaborados de uma filosofia religiosa infra-cristã e se tornará, no seu objeto, parte integrante da obediência pessoal da fé em Jesus Cristo” (BALTHASAR, 1967, p. 62). Cristo, como eschaton, se tornaria a determinação definitiva do homem e do universo. A ressurreição de Cristo e a escatologia seriam conduzidas ao centro da teologia dogmática (BALTHASAR, 1967, p. 48-49). Assim, a escatologia haveria uma estrutura cristológica. Isso seria uma riqueza para toda a teologia. A escatologia teria um influxo sobre toda a estrutura global da teologia.

Rahner, teólogo alemão, é outro autor que ofereceu uma contribuição relevante para a hermenêutica das afirmações escatológicas. Rahner propõe uma interpretação antropológica, passando pela via cristológica, dos assertos escatológicos. A necessidade de uma nova hermenêutica diria respeito tanto ao conteúdo quanto a estrutura da escatologia: “A mudança na visão do mundo da idade antiga àquela moderna comporta indubitavelmente problemas para as asserções escatológicas. Tal função, porém não pode ser adequadamente absolvida, limitando-se a refletir, no curso da exposição das afirmações nem escatológicas nem dogmática, sobre o modo de conciliar com as condições e com as opiniões que o homem de hoje tem a respeito do mundo e do futuro. É necessária uma mediação seja em campo teológico que no campo do conhecimento profano” (RAHNER, 1965, p. 401-402).

Rahner defende sete teses sobre a necessidade de princípios dogmáticos da hermenêutica das asserções bíblicas e eclesiásticas da fé cristã. A primeira tese afirmaria que “na fé cristã e na sua asserção deve existir uma escatologia que entenda verdadeiramente a realidade futura, aquilo que num sentido muito comum e empírico não é temporalmente ainda sucedido” (RAHNER, 1965, p. 404). Como a escatologia trata das realidades futuras, assim a visão do futuro determinaria o modelo escatológico. A segunda tese consiste em precisar que Deus, em sua onisciência, poderia conhecer e comunicar os eventos que, na realidade, representariam o próprio Deus e os quais o homem seria capaz de compreendê-los. O homem não poderia determinar o que Deus poderia nos revelar sobre o futuro. O futuro não seria o conhecido por antecipação, o projetável, o aprioristicamente dado, a descrição dos eventos últimos, o “ainda não” conhecido, mas aquilo que já estaria sendo gestado no presente (RAHNER, 1965, p. 405-409). 

A terceira tese atesta que toda asserção escatológica deveria estar fundamentada em duas dimensões: a primeira seria que toda afirmação escatológica estaria imbuída de um duplo aspecto, enquanto realidade anunciada, mas que permaneceria oculta. A realidade escatológica estaria presente na revelação como mistério. A realidade oculta poderia estar presente através da palavra reveladora de Deus como realidade futura oculta. A realidade futura se apresentaria como alguma coisa incalculável e incompreensível como o mistério de Deus. Nesse contexto, a revelação seria um delimitar-se e um aproximar-se do mistério enquanto tal. Haveria um aspecto de “segredo” na revelação da realidade escatológica (RAHNER, 1965, p. 411-412). A segunda dimensão trataria da historicidade do homem. Os aspectos anamnético (passado) e prognóstico (futuro) pertenceriam à constituição íntima da condição histórica do homem. “O homem possui si mesmo, se dispõe de si mesmo, compreende si mesmo entendendo anamneticamente o seu passado e atualizando prognosticamente o futuro” (RAHNER, 1965, p. 413). Na condição histórica do homem, o futuro estaria latente no passado enquanto promessa.

A quarta tese salienta que “o conhecimento do futuro é conhecimento da futuridade do presente, o conhecimento escatológico é o conhecimento do presente escatológico. A asserção escatológica não é uma asserção aditiva, complementar, que venha acrescentada à asserção acerca do presente e do passado do homem, mas é um fato intrínseco da autocompreensão do homem [...] Este conhecimento do futuro passa a ser um elemento do conhecimento do seu presente. Já com isso o conteúdo deste conhecimento escatológico ganha um caráter de segredo” (RAHNER, 1965, p. 415-416). Segundo Schillebeeckx, a escatologia não permitiria ter uma visão estranha da realidade presente, “porque é somente na profundidade desta história que a eternidade pode começar a tomar forma” (SCHILLEBEECKX, 1969, p. 71). Para Rahner, a existência (ex-sistir) estaria orientada na direção do oculto e da real futuridade. O futuro se refere ao incalculável e ao indisponível que seria o próprio Deus. A respeito deste futuro, se poderia afirmar que poderá e deverá ser a “realização de todo homem através do Deus incompreensível na salvação, que já nos foi dada em Jesus Cristo” (RAHNER, 1965, p. 418).

A quinta tese admoesta que, do futuro misterioso, o homem poderia saber “somente aquilo que, no seu presente é dedutível da e na sua experiência histórico-salvífica” (RAHNER, 1965, p. 419). Diante desta constatação, a escatologia não poderia ser vista como uma disciplina teológica cuja função seria fornecer antecipadamente informações sobre eventos futuros, mas “o olhar precursor necessário para o homem na sua espiritual e livre decisão na fé, olhar que vai da sua situação histórico-salvífica determinada do evento Cristo na direção da realização definitiva desta sua única situação existencial já escatológica” (RAHNER, 1965, p. 419). As afirmações escatológicas derivariam da experiência da condição presente. “Sabemos da escatologia cristã o que sabemos da situação histórico-salvífica do homem” (RAHNER, 1989, p. 499). 

A condição presente da existência cristã seria já uma condição escatológica. O cristão, aceitando a revelação de Cristo, já viveria antecipadamente uma condição escatológica. “O homem enquanto cristão conhece o seu futuro porque através da revelação de Deus é consciente de si mesmo e da sua redenção em Cristo. A consciência dos escata não é uma informação acrescentada à antropologia e à cristologia dogmática, mas a transposição de ambas na forma de realização” (RAHNER, 1965, p. 420-421). O Sitz im Leben da consciência escatológica, a fonte originária das asserções escatológicas, seria a experiência da ação salvífica de Deus mediante nossa relação com Cristo. A ação reveladora de Deus na história seria a experiência da sua ação em nós na graça de Cristo. Desse modo, a revelação dos escata seria a ação na qual Deus, na verdade, já teria realizado o seu início em nós (RAHNER, 1965, p. 423).

A sexta tese apresenta algumas consequências das teses anteriores. Em primeiro lugar, considerando que Cristo se tornaria o princípio hermenêutico de todo discurso escatológico e que a fonte das afirmações escatológicas seria a experiência salvífica, logo a salvação e a condenação não se encontrariam no mesmo plano escatológico. A fé cristã não ofereceria, de forma simétrica, dois destinos eternos diferentes, mas um único destino: a salvação. No entanto, do ponto vista antropológico, os dois destinos seriam possíveis em razão da liberdade humana. Mas não seria possível, de forma antecipada, afirmar qual destino se realizaria (RAHNER, 1965, p. 427-430). Em segundo lugar, a escatologia apresentaria o mesmo dualismo não-eliminável das asserções antropológicas sobre o indivíduo. Assim, escatologia deveria ser individual e geral porque o homem é simultaneamente um ser individual e social (RAHNER, 1965, p. 431). O futuro definitivo do homem “nasce realmente da sua vida individual e social presente” (RAHNER, 1989, p. 500). 

Em terceiro lugar, não haveria um antagonismo entre expectativa próxima e remota. A escatologia seria uma afirmação referente a uma tendência do presente da salvação orientada para um futuro, que seria velado, então ela deveria ser essencialmente atualizada, uma expectativa, ao mesmo tempo, próxima e remota, isto é, seria a condição de ser afetado na experiência presente da salvação futura, oculta em seu estado de indisponibilidade (RAHNER, 1965, p. 432-433). Em quarto e último lugar, partindo na relação entre escatologia e experiência de salvação, se poderia afirmar que Cristo consistiria no “princípio hermenêutico de todas as asserções escatológicas” (RAHNER, 1965, p. 434). Desta forma, toda afirmação escatológica seria uma afirmação cristológica.

A sétima e última tese trata do uso de imagens na abordagem das asserções escatológicas. Não seria possível falar das realidades escatológicas sem usar imagens. A representação de conceitos através de imagens seria uma necessidade antropológica. Todo pensamento ou ideia estaria associado a uma representação imaginativa. Como a escatologia trata de realidades que não seriam físicas e nem descritíveis, logo se faria necessário o uso de imagens. “Não é possível em nenhum caso, nem mesmo naquele das asserções escatológicas, pensar se liberar do modo da asserção figurada da Escritura, para passar a um campo no qual se pode admirar a coisa diretamente em e por si, abandonando toda figura, todo meio expressivo que indica só indiretamente a coisa, toda alusão puramente parcial e incompleta” (RAHNER, 1965, p. 437). Não seria possível passar da imagem à coisa imaginada. Não seria possível haver uma distinção clara entre a coisa e a imagem que a representa. Nesse sentido, uma abordagem escatológica por mais moderna que deseja ser não poderia se libertar complemente da abordagem anterior. Uma abordagem escatológica moderna dependeria e seria uma tradução e “interpretação retrospectiva da velha” (RAHNER, 1965, p. 438). No que tange ao uso de imagens para falar dos eventos últimos, “não podemos esperar que na maneira de expressar deva haver diversidade muito clara entre apocalíptica e escatologia como essa é realmente entendida no cristianismo” (RAHNER, 1989, p. 500).

A posição de Balthasar e Rahner está em sintonia com Congar e Daniélou. Os primeiros defendem uma reinterpretação de uma visão escatológica concebida como cosmológica, topográfica e descritiva dos eventos futuros. A reinterpretação seria uma desconstrução geográfica e jornalística das realidades futuras e uma concentração teológica da escatologia. Cristo seria o princípio hermenêutico das afirmações escatológicas. Para Balthasar seria uma concentração cristológico-trinitária e para Rahner uma concentração cristológica-antropológica. Enfim, toda afirmação escatológica, e consequentemente teológica, deve passar pelo crivo de Cristo. A escatologia não pode ser considerada em e por si mesma, mas enquanto está relacionada com Cristo. 

2.10. Escatologia e práxis

Entre teoria e práxis não há uma relação externa. A teoria eclode de uma práxis. A prática clama não só somente por uma elaboração teórica, mas também por uma realização e uma consumação num futuro absoluto. Nesse sentido, as linhas teológicas que têm uma impostação prática (teologia da esperança, política, da libertação etc.), também trazem em seu bojo um horizonte escatológico. A eclosão destas linhas teológicas proporcionou uma concreta impostação na dimensão escatológica da fé cristã, em termos de esperança. “Os teólogos da prática defendem uma ideia de escatologia modulada substancialmente no registro da função social. De um lado, a escatologia cristã possui a força e a responsabilidade de ser a voz crítica em relação à sociedade humana. Ela exprime permanentemente a própria reserva crítica, ou a própria denúncia, em relação à pretensão da sociedade de se emancipar unicamente com base nas realizações humanas e mundanas; entre as promessas escatológicas e as realizações sociais há uma distância criada, em geral, por sistemas sociais repressivos e injustos. De outra parte, a escatologia cristã possui um poder construtivo. Ela provoca e obriga a sociedade a construir o presente histórico na lógica das promessas escatológicas. A prática teológica, neste sentido, é caracterizada pela qualificação prático-política da esperança cristã” (ANCONA, 2013, p. 220-221).

J. Moltmann (1926), teólogo alemão protestante e representante da teologia da esperança, se destaca como um autor que dá uma ênfase prática ao seu labor teológico. Na visão de Moltmann, a concepção clássica da escatologia tratava as chamadas “coisas últimas” como acontecimentos (juízo universal, ressurreição dos mortos, consumação do mundo, da história e da humanidade etc.) que irromperiam de fora para dentro da história e colocariam fim à história universal. Como esses eventos eram vistos enquanto realidades que aconteceriam no fim, em sentido cronológico, eles teriam perdido sua significação crítica e animadora para o período histórico anterior ao fim. A escatologia teria perdido sua força mobilizadora e sua ação revolucionária diante do passado e do presente. A fé cristã teria proporcionado um divórcio entre a vida presente e a esperança futura, transferindo essa esperança para a vida pós-mortal. A esperança futura seria vista em descontinuidade com a vida presente e passada. Assim, o tratado escatológico foi relegado à condição de apêndice e de asserções estéreis que ocupavam as últimas páginas da dogmática cristã (MOLTMANN, 2005, p. 29-30).

Segundo Moltmann, “o cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva e tendência para frente e, por isso mesmo, renovação e transformação do presente” (MOLTMANN, 2005, p. 30). A escatologia não seria uma promessa de vida nova para o mundo, a humanidade e o homem somente na vida pós-mortal, mas já para esta condição de vida presente. A esperança na vida futura deveria levar a uma transformação e responsabilização com a vida presente. Já se deveria colocar em prática no presente o que se esperaria para o futuro absoluto. Entre o futuro prometido e esperado e a realidade presente, marcada pela morte, pelo pecado e pelo mal, haveria uma contradição. “Presente e futuro, experiência e esperança se contradizem na escatologia cristã, de modo que, por meio dela, o ser humano não chega à correspondência e à harmonia com o presente, mas é impelido para o conflito entre esperança e experiência” (MOLTMANN, 2005, p. 33). A fé na esperança cristã, movida pelo desejo de transformação da realidade, deveria encurtar ao máximo a distância entre o futuro esperado e o presente vivido. Essa mudança de perspectiva de modo que o futuro esperado seja antecipado no presente vivido suporia uma modificação na forma como a teologia concebe a escatologia: “a teologia correta deve ser pensada a partir de sua meta futura. A escatologia não deve ser seu fim, mas seu princípio” (MOLTMANN, 2005, p. 31).

Na visão de Moltmann, a escatologia cristã não poderia se dar ao luxo de simplesmente interpretar o futuro, mas deveria torná-lo real na situação presente. O futuro deveria se tornar uma realidade concreta e inserida no seio da história. Assim, “nós não seriamos somente intérpretes do futuro, mas colaboradores do futuro, cuja força na esperança e na realização é Deus” (MOLTMANN, 1971, p. 204). Desse modo, a esperança cristã seria vista como criadora e combativa. Seria uma esperança em ação na história. O presente seria concebido como prenhe de escatologia. O futuro não seria algo simplesmente esperado, já operante na história. O futuro de Deus e da libertação definitiva do mundo não poderiam ser passivamente esperados, mas se deveria procurar o futuro absoluto, “suspirá-lo e torná-lo operante aqui em baixo na ativa renovação da vida e das suas condições” (MOLTMANN, 1971, p. 204). O futuro não teria somente uma dimensão teológica, mas também social e política.

A escatologia cristã não teria uma concepção genérica do futuro, mas histórica e concreta, fundamentada em Cristo. “A escatologia cristã fala de Jesus e de seu futuro. Conhece a realidade da ressurreição de Jesus e anuncia o futuro do ressuscitado. Por isso, para ela, a fundamentação de todas as afirmações sobre o futuro na pessoa e na história de Jesus Cristo é a pedra de toque para todos os espíritos escatológicos e utópicos” (MOLTMANN, 2005, p. 31-32). A esperança cristã seria uma esperança de ressurreição. A ressurreição de Cristo seria a antecipação do futuro de Deus. A ressurreição do Crucificado se tornaria a antecipação do futuro de Deus para aqueles que viveriam sem esperança e sem direito, na condição atual da existência. Os crucificados e os injustiçados no curso da história seriam restituídos em seus direitos, justiça e esperança na ressurreição de Cristo. Para a esperança cristã, Cristo seria um sinal de contradição diante de uma realidade presente perpassada pelo sofrimento, pelo mal e pela dor: “Cristo não é somente um consolo em meio a uma vida ameaçada e condenada à morte, mas também a contradição criada por Deus contra o sofrimento e a morte, contra a humilhação e a ofensa, contra o mal e a maldade. Cristo, para a esperança, não é consolo em meio à dor, mas também protesto da promessa de Deus contra o sofrimento” (MOLTMANN, 2005, p. 36). A fé, também, participaria desta contradição como insatisfação e inquietude enquanto as promessas de Deus não se realizassem.

Um outro autor que elabora uma teologia fundamentada na prática cristã é teólogo alemão católico J.B. Metz (1928), representante da denominada “teologia política”. Segundo Metz, a teologia política seria uma forma de fazer teologia que consistiria numa correção crítica à teologia transcendental, existencial e personalista, isto é, à teologia metafísica clássica, que teria conduzido a teologia moderna a uma privatização, a uma a-politização e a uma redução da práxis da fé a uma questão pessoal. O escopo da teologia política seria uma tentativa de formular “a mensagem escatológica dentro das condições de nossa sociedade moderna” (METZ, 1969, p. 107). A função da teologia política seria a de desprivatizar a teologia clássica, com seu acento demasiadamente antropológico, proporcionando uma “relação entre a religião e a sociedade, entre a Igreja e o público social, entre a fé escatológica e a praxis social” (METZ, 1969, p. 111). Dessa forma, a teologia política elaboraria uma mensagem escatológica sem ignorar as condições presentes e sociais. Segundo Schillebeeckx, a escatologia não suporia uma conquista já agora das realidades futuras sem uma transformação da realidade presente (SCHILLEBEECKX, 1969, p. 71).

Dentro desse horizonte, a salvação, defendida pela fé cristã, segundo a própria tradição bíblica, não seria privada (da alma individual ou ressurreição individual da carne), mas coletiva e pública (de toda a carne). Essa noção soteriológica desenvolveria no cristianismo uma responsabilidade pública. A salvação preconizada por Jesus se relacionaria com o mundo, no sentido “político-social enquanto elemento crítico-libertador do mundo social e do seu processo histórico” (METZ, 1969, p. 113). As promessas escatológicas da tradição bíblica (liberdade, paz, justiça e reconciliação) não seriam privatizadas, mas exigiriam um renovado compromisso com a responsabilidade social. Estas promessas não poderiam se identificar com nenhuma situação social. Elas teriam uma função crítico-libertadora em relação às condições sociais do presente (METZ, 1969, p. 113-115). Por isso, toda “teologia escatológica” deveria se tornar uma “teologia política” no sentido de uma “teologia crítica (social)” (METZ, 1969, p. 115). A fé cristã, na medida em que estaria orientada pelas promessas escatológicas, seria revestida de uma posição crítica em relação ao mundo social no qual cada pessoa se encontraria inserida.

Na visão de Metz, a Igreja se encontraria inserida no mundo enquanto uma realidade social imersa num processo histórico. A Igreja não estaria nem “acima” e nem “ao lado”, mas “dentro” da realidade histórica como uma “instituição crítico-social” com uma “tarefa crítico-libertadora” (METZ, 1969, p. 115). “Como instituição, a Igreja está sujeita à ‘reserva escatológica’. Ela não existe por si mesma, não serve a sua auto-afirmação, mas à afirmação histórica da salvação prometida a todos. A esperança que a Igreja anuncia não é a esperança na Igreja, mas no reino de Deus” (METZ, 1969, p. 117). A tarefa crítico-libertadora da Igreja se concentraria em três pontos. A primeira, em razão de sua reserva escatológica, consistiria em refutar uma concepção materialista e instrumentalista do ser humano em vista da construção de um futuro tecnologicamente racionalizado. O ser humano não poderia ser sacrificado em prol de um futuro tecnológico. A segunda consistiria em sublinhar, diante dos sistemas políticos, que toda a história estaria sujeita à reserva escatológica de Deus. A terceira seria uma valorização e uma interpretação do amor cristão em sua dimensão social (METZ, 1969, p. 118-119).

Na relação da Igreja com o mundo, a fé cristã deveria justificar sua relação com o mundo em termos de esperança que, por sua vez, estaria orientada para o futuro. No entanto, não se trataria de uma visão do futuro meramente contemplativa e idealizada, mas dinâmica e ativa (METZ, 1969, p. 81). Esta ideia de futuro seria marcada pela novidade, ou seja, aquilo que ainda não é. A crença no futuro geraria uma compreensão do mundo como história. O mundo estaria orientado para o novo. Não se trataria de uma novidade desconectada do passado e do presente, mas em íntima relação com ambos. A ideia de futuro e a compreensão do mundo como história estariam fundamentadas na crença bíblica da promessa. Na revelação bíblica, a palavra dominante seria promessa. “A palavra dominante da promissão indica o futuro. Ela inaugura a aliança como solidariedade dos que têm esperança e para os quais o mundo, pela primeira vez, surge como história orientada para o futuro” (METZ, 1969, p. 85).

O futuro, em termos de esperança cristã, não seria uma possibilidade que emergiria da liberdade humana, nem de uma realidade que seria fruto de uma evolução puramente histórica e nem seria produto de um otimismo militante. Não se trataria de uma visão imanentista do futuro. Mas, o futuro estaria fundamentado na transcendência de Deus. “A sua transcendência revela-se como força do nosso futuro que se fundamenta em si próprio e pertence a si próprio, um futuro que não nasce das possibilidades da liberdade e da ação humanas, mas que chama a nossa liberdade para as suas possibilidades históricas” (METZ, 1969, p. 86). Se o futuro fosse simplesmente uma possibilidade latente na liberdade humana e na história, o “novo” seria o excedente ou resultado do desdobramento do presente. A novidade autêntica do futuro estaria fundada em Deus que prometeria um futuro absoluto que já determinaria a forma de se viver no presente. A promessa bíblica estaria contida no novo absoluto que seria algo revolucionário.

O futuro preconizado pela fé cristã não teria um foco puramente antropológico, mas também eclesiológico e cosmológico. “A esperança na qual a crença cristã se relaciona com o futuro não se pode realizar à margem do mundo e do seu futuro. Ela tem de responder e responsabilizar-se pelo único futuro prometido e, consequentemente, pelo futuro do mundo. Quer a fé quer a Igreja não tem esperanças apenas para si próprias. A sua esperança visa o futuro do mundo” (METZ, 1969, p. 89). Esse futuro seria algo que estaria para nascer, que estaria em vista. O futuro escatológico não seria algo já pronto e acabado que estaria num fim longínquo, mas uma realidade que ainda surgiria.

A escatologia cristã não teria uma visão presentista ou puramente passiva da esperança escatológica, mas operativa, produtiva e crítica. Uma fé escatológica e uma atividade comprometedora e responsável com a realidade histórica não se excluiriam. Uma esperança escatológica não poderia se isentar de uma relação crítica com as condições sociais e políticas nas quais o ser humano estaria inserido. “A esperança criadoramente crítica que a [teologia política] conduz relaciona-se essencialmente com o mundo como sociedade e com as forças a esta inerentes que transformam o mundo” (METZ, 1969, p. 92).

Um outro teólogo que conjuga teologia e práxis é o brasileiro J.B. Libânio (1932-2014), representante da teologia da libertação. Segundo Libânio, a escatologia clássica, estruturada numa visão pré-científica do mundo, baseada numa leitura fundamentalista da Escritura e repleta de descrições e imagens das realidades últimas (inferno, purgatório, juízo etc.) que imprimiam medo nas pessoas, não responderia aos anseios do homem moderno com sua visão de mundo pós-galileana e desejoso de que a esperança escatológica pudesse se transformar em esperança humana e social (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 19-27). Seria necessário se afastar de uma visão escatológica comercial, cujas ações humanas na terra garantiriam juros na vida eterna, com o escopo de “redescobrir o definitivo já presente no atuar humano. Os juros não são simplesmente de amanhã. Há já traços de definitividade no agir presente. Esse atuar se faz em comunhão com outros numa caminhada histórica de povo” (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 30-31). A escatologia clássica dispensaria o homem de preocupar-se com as utopias, porque sua verdadeira pátria seria a celeste e a não a terrestre. A preocupação com as realidades terrenas e com a transformação da realidade social e política seria geradora de desconfiança e demonstraria um demasiado apego ao mundo imanente. “O crescente interesse pelo compromisso social e político, pela relevância social das utopias no processo histórico, recoloca o problema escatológico da salvação” (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 33). A utopia como força transformadora da realidade e projeto criativo de uma nova sociedade questionaria a escatologia clássica que teria uma visão do mundo definitivo perfeito e pronto que seria inaugurado com a morte. “A utopia agride a escatologia tradicional pelo flanco da inércia operativa de tal ensinamento” (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 34). O ativismo da esperança utópica teria uma posição crítica diante da passividade da escatologia tradicional. Na realidade, deveria haver uma articulação entre as esperanças humanas da utopia e as esperanças definitivas da escatologia. As esperanças humanas deveriam ser uma antecipação e concretização das esperanças escatológicas.

Segundo Libânio, alguns movimentos populares, como, por exemplo, o Movimento de Canudos, na Bahia, e a Guerra Santa, em Santa Catarina, teriam um caráter escatológico. Estes movimentos desejariam que o esperado para o reino celeste (justiça, igualdade, vida nova etc.) se realizasse no reino terrestre (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 41-54). Nas comunidades eclesiais de base, através de suas lutas, ritos, cantos e símbolos, também, haveria um apelo escatológico. Os movimentos populares e as comunidades de base teriam um clamor de libertação. “Não é a razão iluminista nem a existência humana como expressividade que constituem a maior pergunta à escatologia, mas as camadas populares que rompem seu caminho de libertação por dentro das teias opressivas da realidade presente. Elas deixam atrás de si, sobretudo quando no meio desses movimentos populares estão cristãos e comunidades de cristãos, a pergunta do significado escatológico de todo esse esforço e do sentido de esperança dessa caminhada” (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 56-57). Haveria no interno dos movimentos de libertação um apelo escatológico de realização do reino transcendente no reino. Este clamor escatológico, também, estaria presente nas procissões, nas promessas, nos ritos, nos cantos e nas bênçãos da piedade popular. Haveria uma escatologia na religiosidade do cotidiano (LIBÂNIO; BINGEMER, 1985, p. 76-81).

A posição dos teólogos da teologia prática consiste numa crítica à visão transcendentalista e extrincista da escatologia clássica. O desejado e esperado para o futuro já deve ser experimentado no presente na existência. A teologia prática deve converter o futuro absoluto em realidade presente. Esta perspectiva desenvolve na teologia prática um caráter dinâmico, operativo, transformador e de insatisfação com as condições sociais e políticas do presente. O risco da visão escatológica da teologia prática é descambar para um imanentismo, um horizontalismo e um militantismo, convertendo o futuro transcendente num futuro simplesmente temporal. No entanto, é legítima a crítica ao transcendentalismo escatológico da visão clássica. A escatologia deve possuir também uma dimensão ativa e transformadora do real, de modo que o futuro absoluto e idealizado seja uma realidade atuante no presente marcado pelas suas contradições sociais e políticas. Esperar uma vida plena somente para uma suposta vida pós-mortal sem operacionalizá-la nesta condição presente seria ignorar esta condição de vida se degringolando numa postura anti-cristã.

Meditações conclusiva

Esta visão panorâmica sobre a escatologia do séc. XX possibilitou perceber uma oscilação: ora se enfatizou a dimensão futura e transcendente (Weiss, Schweitzer), ora se enfatizou a dimensão presente, realizada e existencial (Dodd, Bultmann). A ênfase numa dimensão presente ou futura não responde pela totalidade do discurso escatológico. Privilegiar um aspecto do discurso escatológico é parcializá-lo e mutilá-lo. Nesse sentido, a proposta de Cullmann consiste numa verdadeira síntese dialética das duas dimensões entorno das quais a reflexão escatológica do século XX oscilou: escatológico já está presente, já foi iniciado em Jesus Cristo, mas ainda não está consumado, porque há uma dimensão de futuro absoluto. Cristo é a personalização do eschaton. O futuro escatológico já está sendo gestado no presente temporal. Na encarnação, Jesus Cristo fecundou a humanidade, a história e a criação com o germe do eschaton. Pela mediação de Cristo, o criado se tornou uma realidade perpassada pelo escatológico. Em Cristo, o mediador da criação, o criado está orientado para uma consumação escatológica.

Dessa forma, a recuperação da dimensão cristológica da escatologia com Pannenberg, Congar, Daniélou, Rahner e Balthasar significa recolocar Cristo como núcleo e centro do discurso escatológico. A cristologia é escatológica. Um discurso escatológico que prescinda de Cristo está destituído de fundamento e termina por degringolar um discurso apocalíptico. Cristo está no princípio como mediador do criado e estará no fim como consumador. Cristo é a realidade transversal que perpassa todo o discurso escatológico e teológico em geral.

A recuperação da centralidade cristológica do discurso escatológico é uma forma de dialetizar a escatologia clássica com sua percepção de cima para baixo, própria da teologia dos novíssimos. Essa defendia uma visão escatológica “do alto”, por seu caráter metafísico e transcendente, de modo que as realidades futuras eram pré-determinadas, já fixadas por antecipação, porém sem um vínculo com a realidade histórica, reduzida a um período de provação (mérito ou demérito). A restituição do caráter cristológico possibilita uma recuperação da dimensão escatológica da história e do criado. Assim, se desperta para a uma compreensão escatológica do presente. Isso possibilita uma compreensão ativa e dinâmica da escatologia, como fizeram os teólogos da prática (Moltmann, Metz e Libânio). O discurso escatológico não pode ser indiferente ao presente e à história. Uma escatologia que oferece uma vida plena somente na vida pós-mortal seria irresponsável. Assim, uma visão escatológica que não se esforce para oferecer já nesta vida presente o que se espera na futura não pode ser chamada de cristã.  

Referências

ANCONA, G. Escatologia cristã. São Paulo: Loyola, 2013.

Balthasar, H.U. von. I novissimi nella teologia contemporanea. Brescia: Queriniana, 1967.

BARTH, K. L’Epistola ai Romani. Milano: Feltrinelli, 2006.

BULTMANN, R. Storia ed escatologia. Brescia: Queriniana, 1989.

BULTMANN, R. A escatologia do Evangelho de João. In: ID. Crer e Compreender. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 62-79.

CONGAR, Y. Bulletin de théologie dogmatique. Fins dernières. Revue des Sciences philosophiques et théologiques, v. 33, 1949, p. 463-464.

CONGAR, Y. Le Purgatoire. In: ID et al. Le mystère de la mort et sa célébration. Paris: Cerf, 1951, p. 279-336.

CONGAR, Y. Sacerdoce et laïcat. Paris: Cerf, 1965.

CULLMANN, O. Cristo y el Tiempo. Madrid: Cristiandad, 2008.

CULLMANN, O. Le salut dans l’historie. Paris: Delachaux & Niestlé, 1966.

Daniélou, J. Christologie et eschatologie. In: Grillmeier, A; Bacht, H. (Ed.). Das Konzil von Chalkedon. Würzburg: Echter, 1954. v. 3, p. 269-286.

DODD, C.H. Le parabole del regno. Brescia: Paideia, 1970.

DODD, C.H. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Teológica-Paulus, 2003.

GIBELLINI, R. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998.

JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas 1980.

Labourdette, M.M. Problèmes d’eschatologie. Revue Thomiste, v. 54, 1954, p. 658-675.

LADARIA, L. Fim do homem e fim dos tempos. In: SESBOÜÉ, B (Dir.). O homem e sua salvação. São Paulo: Loyola, 2003. v. 2, p. 345-397.

LIBÂNIO, J.B; BINGEMER, M.C.L. Escatologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985.

KÄSEMANN, E. Saggi Esegetici. Casale Monferrato: Marietti, 1985.

METZ, J.B. Teologia do mundo. Lisboa: Moraes, 1969.

MOIOLI, G. L’“escatologico” cristiano. Milano: Glossa, 1994.

MOLTMANN, J. Religione, rivoluzione e futuro. Brescia: Queriniana, 1971.

MOLTMANN, J. Futuro della creazione. Brescia: Queriniana, 1993.

MOLTMANN, J. Teologia da esperança. São Paulo: Teológica-Loyola, 2005.

NITROLA, A. Trattato di escatologia. Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2001. v. 1.

PANNENBERG, W. Tesi dogmatiche sulla dottrina della rivelazione. In: ID et al. Rivelazione come storia. Bologna: Dehoniane, 1969, p. 161-195.

PANNENBERG, W. Questioni fontamentali di teologia sistematica. Brescia: Queriniana, 1975.

PONTIFICIA COMMISSIONE BIBLICA, Bibbia e Cristologia, Vaticano, 1984, 1.2.6.1-1.2.6.2: Disponível:http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_20090608_bibbia-cristologia_it.html - Acessado em 16/11/2015.

RAHNER, K. Principi teologici dell’ermeneutica di asserzioni escatologiche. In: ID. Saggi sui sacramenti e sulla escatologia. Roma: Paoline, 1965, p. 399-440.

RAHNER, K. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989.

SCHILLEBEECKX, E. Riflessioni sull’interpretazione dell’escatologia. Concilium, v. 5, 1969, p. 58-73.

SCHNACKENBURG, R. Reino y Reinado de Dios. Madrid: Fax, 1974.

SCHWEITZER, A. Storia della ricerca sulla vita de Gesù. Brescia: Paideia, 1986.

WEISS, J. La predicazione di Gesù sul regno di Dio. Napoli: D’Auria, 1993.

------------

Notas 

[1] As obras mais significativas da teologia liberal são: A essência do cristianismo de Adolf von Harnack e A absolutidade do cristianismo de Ernst Troeltsch.  

[2] Esta denominação foi dada por Moltmann, para quem Cullmann conseguiu reunir as visões futurista e presentista da escatologia, propondo uma “escatologia da história da salvação”.

[3] Estas observações críticas de Congar foram compartilhadas por outro teólogo: cf. M.M. Labourdette. Problèmes d’eschatologie. Revue Thomiste, v. 54, 1954, p. 658.