Luis Gabriel Provinciatto*
*Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor da Faculdade de Filosofia Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: lgprovinciatto@hotmail.com
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Se o título já anuncia o tema, é por meio do subtítulo, no entanto, que se percebe, de imediato, as duas balizas norteadoras do trabalho organizado por Elizeu da Conceição e José Aguiar Nobre: a Carta Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, publicada em 2015, e o Sínodo para a Amazônia, do qual decorre a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia (2020). Engana-se, porém, quem imagina que este é um trabalho que se põe a comentar um e outro documento pontifício. Tampouco se trata de uma obra escrita desde única e exclusivamente o ponto de vista teológico. A “cura” da casa comum é um trabalho plural, pois, no que diz respeito às perspectivas de leitura apresentadas, encontram-se as contribuições de especialistas das áreas de teologia, filosofia, medicina, nutrição e relações internacionais. O tema da cura/cuidado da Casa Comum em momento algum sai de foco, logo, ele atravessa a obra como um todo e, cientes do limite das contribuições, os organizadores não esperam que a obra se esgote em si mesma, mas, antes disso, que convide ao diálogo, à percepção de uma necessária mudança paradigmática no modo de relação com a Terra e, enfim, que possibilite “uma esperança geradora de vida” (Conceição; Nobre, 2021: 20).
A obra é aberta com um Prefácio, assinado por Afonso Murad, que fala brevemente das raízes latinas do termo cura, da origem do termo Casa Comum e de uma das principais intuições da Laudato Si’: a simultaneidade entre o cuidado da Casa Comum e o da humanidade, o que evidencia a assunção de um dos principais princípios da deep ecology, a saber, que “cada criatura tem valor em si mesma, e não pela eventual utilidade para os humanos” (Murad, 2021: 9).
Composta por nove capítulos, dispostos em três partes, cada qual com três capítulos, a presente obra pretende, em primeiro lugar, “diagnosticar” a necessidade de curar/cuidar da Casa Comum, não só para sanar “doenças”, mas para mostrar as causas disso de que ela sofre. Posteriormente, o olhar se volta para a presença temática do cuidado na tradição cristã, mais especificamente, em dois padres do período Patrístico, Gregório de Nissa e Agostinho de Hipona, e no texto bíblico do bom Samaritano, lendo-o desde uma perspectiva ecológica. A terceira parte, por sua vez, tem uma preocupação eclesiológica, visando demonstrar, por um lado, a inserção da Laudato Si’ e do Sínodo para a Amazônia na esteira do Concílio Vaticano II e, por outro, destacar a(s) novidade(s) – e o(s) alerta(s) – específicos de ambos os documentos, que reivindicam “uma nova cosmologia do magistério eclesial” (Conceição; Nobre, 2021: 17).
Nutrição e medicina: agrotóxico, riscos e cuidados, de Gisele Farias e Solange Cravo Bettini, é o capítulo inicial e nele as autoras, após apresentarem uma definição técnica de agrotóxico e uma breve descrição dos principais tipos utilizados no Brasil, expõem os riscos e as possíveis consequências de sua ingestão para o corpo humano, classificando-as em agudas, subagudas e crônicas. Aí também se apresentam dados do consumo de agrotóxicos no Brasil, destacando, por exemplo, que “os brasileiros ingerem aproximadamente 7 litros de agrotóxicos por ano” (Farias; Bettini, 2021: 36). Expõem, por fim, seis medidas que auxiliam na prevenção dos danos causados pela ingestão excessiva de alimentos com agrotóxicos e ainda indicam três medidas para reduzir a quantidade de agrotóxicos nos alimentos.
O segundo capítulo, O anel de Giges e as superpotências: ética ambiental e Realpolitik no interesse pelos recursos naturais sul-americanos, de Marcos Mueller Portugal, oferece uma introdução às duas principais diretrizes que norteiam o modus operandi das superpotências, a saber, o realismo e o idealismo político, e, com isso, auxilia na compreensão filosófico-política do funcionamento das relações internacionais. Propondo-se a mostrar os interesses políticos das superpotências em relação aos recursos naturais sul-americanos, o autor pretende estabelecer uma analogia com a história do “anel de Giges”, narrada no segundo livro d’A República, de Platão, com vistas a argumentar a favor da hipótese de que “as superpotências, encontrando-se acima da lei internacional, permitem-se agir como um Giges” (Portugal, 2021: 47), que, tendo encontrado um anel que lhe deixa invisível, age moralmente somente por conveniência. Para comprovar o interesse de superpotências no continente sul-americano, Portugal destaca a extração de prata em Potosí a partir do século XVI e, mais recentemente, o interesse na Floresta Amazônica, no petróleo da Venezuela e, por fim, na ainda não explorada mina de lítio presente no Chile.
É a partir desse mapeamento que o autor descreve, em primeiro lugar, o realismo e seu respectivo modus operandi, a Realpolitik, concluindo: “para os realistas, não há na prática isonomia e moralidade internacionais” (Portugal, 2021: 63). As bases para tal afirmação são encontradas nos vários exemplos trazidos pelo autor, sobretudo, na ênfase dada no modo como se concebeu as relações externas da principal superpotência mundial no século XX, os EUA. Posteriormente, o autor também traz uma descrição precisa, embora mais sucinta, do idealismo nas relações internacionais e de como ele “auxilia” no desenvolvimento de uma ética ambiental. Contudo, alerta-se que o idealismo não pode ser entendido como sinônimo de uma pura intenção de salvar o planeta: “ser idealista nas relações internacionais não significa ser incapaz de pensar estrategicamente, mas estabelecer determinados fins ideológicos ou éticos como objetivos de altíssimo valor, aos quais todas as ações se voltam como meios” (Portugal, 2021: 71). Destaca, por fim, que o principal ponto de divergência entre realistas e idealistas está na consideração de “valores extra estratégicos” (Portugal, 2021: 68) no momento das decisões e das ações a serem realizadas, o que, de certo modo, em teoria, inibe que as superpotências ajam como Giges, isto é, moralmente apenas quando lhes convier.
Concluindo a primeira parte, Giovani Meinhardt faz um mapeamento daquilo que denomina de Uma época viral, em contraposição àquilo que Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço, chama de época neuronal. Para tanto, convocando uma literatura atualizada e diversificada que já alertava a respeito da possibilidade da ocorrência de uma pandemia causada por um vírus, o autor relata os vários exemplos – desde a gripe espanhola até o surto de ebola – que justificam essa “época” ser caracterizada como “viral”. Além disso, concentrando-se na pandemia de Covid-19, destaca a ignorância, a defesa das medidas de proteção e a negação do vírus como reações diversas diante de uma mesma situação, mas, o ápice do capítulo está nas lições aprendidas diante do desafio imposto pela pandemia, destacando-se: o reconhecimento de uma visão holística, na qual tudo está interligado, a percepção de que se desconhece a biodiversidade da natureza, insistindo na ideia que ela é um estoque infinito, e o conhecimento do tipo de urgência causada pelo vírus da Covid-19, que não pode ser classificada nem como ordinária nem como extraordinária, mas como extrema, o que, por fim, reivindica que se pense a saúde coletivamente e exige a “construção de uma nova forma de relação mútua entre o humano e a natureza, ou seja, [uma relação] permeada pelo diálogo de convívio” (Meinhardt, 2021: 104).
O saber cuidar entre ortodoxia e ortopraxia, em fragmentos de Gregório de Nissa, de Rodrigo Pires Vilela da Silva, inaugura a segunda parte da obra. Tratase de um texto teológico que apresenta, sucintamente, a exposição de Gregório de Nissa a respeito da ortodoxia e como, a partir disso, é possível perceber, desde o período patrístico, uma concepção teológico-cristã de cuidado, que, entretanto, não aparece trabalhada conceitualmente pelos Padres da Igreja. Logo, não se deve esperar encontrar nesse período nenhum tratado a respeito do tema, mas, antes disso, o seu desenvolvimento por meio de uma ortopraxia. Nesse cenário, interessa a Vilela da Silva pensar como é possível conceber o cuidado em Gregório de Nissa. Para tanto, o autor expõe os “fundamentos epistemológicos de Gregório” (Silva, 2021: 119-123) com vistas a sintetizar um método – composto por três etapas – para a adequada prática do cuidado, alcançada a partir da apreensão das coisas como elas são, ou seja, “como o próprio Deus as fez: boas” (Silva, 2021: 125). Contudo, o autor não se limita a somente expor as etapas componentes do método de Gregório de Nissa, mas a atualizá-las tendo em vista as necessidades hodiernas dos mais pobres – as viúvas e os órfãos de nosso tempo –, mostrando que não há cisão entre o adequado culto a Deus (ortodoxia) e o adequado cuidado com o próximo, o que se mostra, hoje em dia, como uma adequada prática (ortopraxia) em relação aos mais pobres.
O quinto capítulo, O mal e a liberdade: do alerta de Agostinho ao hoje, assinado por Danilo Eduardo Vieira, aborda um ponto também muito caro à tradição cristã e às circunstâncias de nosso tempo: a origem do mal. O autor a expõe a partir do percurso agostiniano, destacando não só o tema do mal, mas também o do livre-arbítrio e o modo como eles se implicam. Mesmo não fazendo uso de investigações mais recentes e mais específicas a respeito da obra de Agostinho de Hipona, Vieira faz uma exposição temática bastante coerente no interior do pensamento agostiniano, pondo-a a par – atualizando-a, portanto – da ideia de cura/cuidado da Casa Comum por meio da seguinte pergunta: “como explicar que justamente aqueles encarregados da guarda e do cuidado [da Casa Comum] se tornam os principais destruidores da natureza?” (Vieira, 2021: 135).
Dayvid da Silva, em A parábola do bom Samaritano numa perspectiva ecológico integral, realiza uma hermenêutica do texto bíblico de Lc 10, 30-35 à luz da ecologia integral. Para tanto, em primeiro lugar, o autor apresenta a parábola e suas personagens, oferecendo três interpretações possíveis: uma cristológica, na qual o bom Samaritano é Jesus Cristo e o homem à beira da estrada é a humanidade; outra eclesiológica, destacando a Igreja como a hospedaria como local onde é continuado o processo de cura/cuidado daquele que é socorrido pelo Samaritano; por fim, apresenta a perspectiva escatológica, na qual a vida eterna é “a recompensa da ação misericordiosa” (Silva, 2021: 172): o Samaritano, ao cuidar do próximo, cumpre o que está prescrito na lei, evidenciando que “a vida eterna exige o movimento para o próximo” (Silva, 2021: 172). Posteriormente, o autor propõe a seguinte leitura da parábola: o “próximo” é a própria Terra, como Casa Comum, que, conforme diz o texto bíblico, “sofre em dores de parto” (Rm 8, 22). Em sua abordagem ecológico integral da parábola, Silva evidencia a relação do ser humano com a Terra, constatando, posteriormente, as feridas que há nessa Casa Comum e indicando a necessidade de curar/cuidar, de um cuidado que visa toda criatura e não só o ser humano, pois “toda a criação necessidade de uma redenção” (Silva, 2021: 181). Conclui retomando a perspectiva eclesiástica de leitura da parábola, atualizando-a e mostrando, com isso, a função da Igreja nesse cuidado com a Casa Comum.
A parte final da obra é iniciado com o capítulo Concílio Vaticano II: diálogo e cuidado pela vida na América Latina, assinado por Felipe Cosme Damião Sobrinho. Seu objetivo é apresentar contextualmente o cuidado pela vida como um tema constante e de primeira ordem já desde a Encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, tendo sido enfatizado no Concílio Vaticano II, chegando até à Laudato Si’. O capítulo se desenvolve a partir de uma breve historiologia que culmina na realização do Vaticano II e nas duas principais ideias propostas pelos dois papas que o realizaram: aggiornamento, de João XXIII, e diálogo, de Paulo VI. A partir disso, o autor utiliza os dois conceitos como chave de leitura para ler, entender e apresentar a teologia desenvolvida no contexto latino-americano, destacando que aqui “a cristologia e a eclesiologia apresentam o cuidado com a vida além das instituições” (Damião Sobrinho, 2021: 211). Tem-se, dessa maneira, um capítulo que auxilia no adequado entendimento do contexto de surgimento e da pertinência eclesial da Laudato Si’ e do Sínodo para a Amazônia.
Laudato Si’: reflexões e interações, de José Aguiar Nobre, o penúltimo capítulo da obra, é o única que lida exclusivamente com a Carta Encíclica de 2015. O autor, no entanto, não a lê de ponta a ponta, mas destaca o capítulo intitulado O Evangelho da criação, realizando um diagnóstico amplo do que está acontecendo com a Casa Comum e já indicando a necessidade de uma mudança de paradigma: do tecno-econômico para o do cuidado. O paradigma do cuidado, porém, não nega os avanços tecno científicos, tampouco parte da oposição entre ciência e religião. De acordo com Nobre, O Evangelho da criação ensina a todos que “a ciência e a religião, que oferecem diferentes abordagens da realidade, podem e deve entrar em um diálogo intenso e frutuoso para o bem de toda a criação” (Nobre, 2021: 223). Essa mudança paradigmática, por sua vez, só poderá ocorrer vinculada a um tripé sustentador: uma nova antropologia, uma nova educação, pautada na relação entre as pessoas e a Casa Comum e que seja capaz de promover um “olhar de conjunto, uma vez que a falta de um sentido de totalidade gera a fragmentação do saber” (Nobre, 2021: 236), e uma ecoespiritualidade.
O capítulo final, assinado por Elizeu da Conceição, O Sínodo da Amazônia e a ética do cuidado: a Amazônia clama por uma resposta concreta e reconciliadora, traça um panorama do Sínodo, apontando, inclusive, as posições contrárias à sua realização por parte do governo brasileiro e de membros da própria Igreja. A intenção do autor, no entanto, é destacar o foco do Sínodo: ir em direção “à escuta do grito das populações, o grito da Igreja local e o grito do território” (Conceição, 2021: 254). Para tanto, “não se pode fazer somente uma descrição dos povos e da realidade, mas escutar aquela realidade deixando-os falar” (Conceição, 2021: 254). Por isso, o principal mérito do capítulo está na articulação feita entre o Sínodo e uma “nova ótica” – a de Francisco –, que dá origem a uma “nova ética” no interior da Igreja, a do cuidado. É a partir dessa nova ótica que são propostos alguns princípios teológicos para a evangelização na Amazônia: a missio Dei ao invés da missio ecclesiae, a atenção teológico- -pastoral à ministerialidade e, por fim, “a necessidade de adotar um modelo antropológico, aquele vocacional, porque, através de sua compreensão, entende-se que a relação com o outro não pode ser instrumentalizada” (Conceição, 2021: 260). Diante desse cenário, entende-se o porquê de o Sínodo não só clamar por respostas, mas reivindicá-las, sendo, portanto, um importante instrumento na defesa da vida e na promoção de uma ética do cuidado.
Os organizadores, por fim, apresentam uma palavra conclusiva, destacando novamente a importância da ética do cuidado como parâmetro necessário para as decisões das ações humanas no interior da Casa Comum, algo retomado por Joana T. Puntel no Posfácio, sinteticamente. Do ponto de vista orgânico da obra, porém, ficou ausente justamente um trabalho ou até mesmo uma parte dedicada à ética do cuidado, que deveria ter sido tematizada objetivamente e não apenas transversalmente em um ou dois capítulos. Infelizmente, aqueles que não estão familiarizados com o termo ou até mesmo com o cuidado como categoria teológica, filosófica e/ou antropológica podem ficar sem uma baliza mínima para entender o que é, quais as características e o porquê de uma ética do cuidado frente aos desafios impostos pelo nosso tempo. Do ponto de vista teórico, essa é uma ressalva a ser considerada no que diz respeito à economia da obra, mas não é algo que impossibilita a leitura e a compreensão dos capítulos, tampouco desqualifica o trabalho organizado por Elizeu da Conceição e José Aguiar Nobre, do qual se recomenda a leitura e a análise.
Resenha do livro: CONCEIÇÃO, Elizeu da; NOBRE, José Aguiar (org.). A “cura” da casa comum: ano especial da Laudato Si’ e os desafios do Sínodo para a Amazônia. São Paulo: EDUC; Paulus, 2021. 286p.