Uma leitura de David Tracy sobre a análise de modelos teológicos    
A reading of David Tracy on the analysis of theological models     

Jefferson Zeferino* 
Alex Villas Boas**
*Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: zeferino.jefferson@pucpr.br 
**Investigador Principal e Coordenador do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa (CITER UCP). Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC PR. Contato: alexvboas@ucp.pt


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Resumo 

O lugar da teologia no contexto acadêmico, sobretudo na sua relação com as ciências humanas e os estudos da religião, demanda uma reflexão acerca de sua própria voz e sobre seu modo de colaborar com a produção de conhecimento qualificado no conjunto da concepção de conhecimento científico contemporâneo desde a emergência de uma racionalidade pública no século XIX. Em perspectiva interdisciplinar, nota-se que a função teológica de explicitar o funcionamento de um determinado discurso ou modelo teológico pode se configurar em efetiva contribuição para outros saberes que se dedicam ao mesmo fenômeno. Por meio de uma análise bibliográfica, acessa-se o pensamento de David Tracy para ajudar a pensar possíveis critérios para a análise de teologias, como proposta de avanço a um procedimento de análise de tradições teológicas particulares. Na tarefa de um método de correlação entre as hermenêuticas críticas das tradições teológicas e da situação contemporânea, evidencia-se o zelo pela explicitação de suas estruturas de plausibilidade, de seus atores e objetos. 

Palavras-chaves: Epistemologia Teológica; Fenômeno Religioso; Teologia Pública; Modelos Teológicos; David Tracy 

Abstract
The role of theology in the academic context, especially considering its relation to the human sciences and to the religious studies, requires a reflection on theology’s own voice and proper way to collaborate in the production of qualified knowledge in the set of contemporary scientific knowledge understanding since the merge of a public rationality in the 19th century. In an interdisciplinary perspective, the theological function to explicit how a certain theological model or discourse work may be comprehended as effective contribution to other theoretical fields that are occupied with the same phenomenon. Through a bibliographical analysis, David Tracy’s thought is read in order to help thinking possible criteria for the analysis of particular theological traditions. So, concerning the task of a correlational method between critical interpretations of theological traditions and contemporary situation, the text highlights the care for making explicit their plausibility structures, agents, and objects. 

Keywords: Theological Epistemology; Religious Phenomenon; Public Theology; Theological models; David Tracy 


Se […] amamos a Terra, o homem concreto e o futuro que pode ser criado, temos duas tarefas pela frente. Primeira, a de indagar sobre a veracidade da crítica que o humanismo político faz à linguagem da comunidade de fé. E, segunda, a de explorar os recursos positivos que a experiência histórica da comunidade de fé pode oferecer para o trabalho de libertação do homem (Rubem Alves, [1969] 2020, p. 79). 

Considerações iniciais 

Com a autonomia da área de Ciências da Religião e Teologia na CAPES, o campo de estudos de religião tem sido levado a refletir sobre seu lugar e papel no conjunto dos saberes, algo que, como veremos, tem instigado uma série de esforços, em livros, compêndios, dicionários, periódicos e projetos de pesquisa, para se pensar questões de base. 

Nesse contexto, os estudos em teologia pública no Brasil têm se notabilizado pela preocupação com a cidadania acadêmica da teologia e consequente necessidade de uma linguagem apropriada a tal público (i); e pelo estudo das relações entre teologia e espaço público (ii) (ZEFERINO, 2018b; 2020a; 2020b; JACOBSEN, 2011; SINNER, 2012; 2021). Dirk Smit (2013), de modo mais detalhado e a partir do contexto sul-africano, entende que teologias públicas têm lidado, sobretudo, com seis diferentes temas: O lugar e papel da religião na vida pública (i); O impacto da razão pública concernente à academia, a sociedade e a igreja (ii); A questão das teologias contextuais (iii); A correlação entre lutas sociais e movimentos sociais com a teologia (iv); O papel das religiões e da teologia em debates públicos sobre questões como gênero e ecologia (v); O ambíguo retorno da religião que pode ser visto em um crescente interesse em espiritualidade, mas também na efervescência de fundamentalismos e extremismos religiosos (vi). 

Percebe-se, assim, que a emergência de uma teologia pública, como racionalidade crítica a sistemas de crenças (VILLAS BOAS, 2018a), pode ajudar na compreensão do funcionamento de estruturas políticas, na leitura de discursos teológicos no espaço público, bem como a entender variadas formas de dar sentido à vida. Uma teologia crítica, desse modo, opera dentro de regras acadêmicas nas quais cada alegação de sentido e de verdade pode ser testada pela argumentação dentro de uma comunidade de investigação, o que requer uma racionalidade pública (TRACY, 1975; 1981; 2012). 

Ademais, a condição de um saber em âmbito universitário exige da teologia sua elaboração como sendo parte do conjunto de saberes que se denomina Humanidades. Nesse sentido, vale apontar para o questionamento feito por Michel de Certeau em que a emergência das chamadas Ciências Humanas se dá de modo litigioso com a teologia, na medida em que esta tem como primazia de significação de sua produção de sentido o “dogmático” e, ao passo que as também chamadas Humanidades tem sua primazia na significação ética, a fim de sustentar uma racionalidade pública, condição de possibilidade de um Estado laico para todos, e não somente para um grupo privilegiado. Nesse contexto: 

há pelo menos dois tipos de enunciados teológicos no surgimento da Modernidade que devem ser distinguidos: 1) as teologias amalgamadas ao Antigo Regime, responsáveis pela elaboração de uma crítica antimoderna, enfatizando o rigor moral para com o indivíduo, diante de uma suposta decadência da sociedade que se distancia da fé e culpabiliza o liberalismo. Tais teologias, no entanto, não estabelecem uma crítica ao Estado e suas contradições decorrentes da Revolução Industrial, mas, antes, oferecem um suporte religioso por meio de justificativas divinas; 2) as teologias críticas se manifestaram taticamente resistentes às teodiceias, porém, não raro, mais pelas práticas sociais, notadamente pelo catolicismo social, do que pelos discursos teológicos (VILLAS BOAS; ZEFERINO; SERRATO, 2021, p. 225). 

O longo caminho de ressignificação teológica desde os movimentos de renovação do âmbito da reflexão teológica que culminariam no Concílio Vaticano II, até a disputa por sua interpretação se inserem ainda no desafio que nasce no século XIX, a saber de pensar desde uma racionalidade compartilhada com a emergência de uma racionalidade pública em que a inteligência teológica é vista não como reflexão de um povo escolhido, mas como expressão de serviço à sociedade, podendo ser entendida como oferta de racionalidade crítica a um sistema de crença, demandando da teologia uma disposição interdisciplinar e autocrítica, para sair de sua autorreferencialidade (cf. VILLAS BOAS; ZEFERINO; SERRATO, 2021). Há ainda que se distinguir as teologias normativas, como forma legítima de produção de sentido em suas esferas confessionais, tradicionalmente conhecidas por doutrina, e no caso católico, conhecida por teologia magisterial e as teologias acadêmicas, que nessa condição são chamadas a interagir com a primazia de significação ética da racionalidade pública (VILLAS BOAS, 2019)1 . Certamente, a perspectiva interdisciplinar da Teologia com as Ciências da Religião, sendo ambas até mesmo entendidas como um conjunto constitutivo dos Estudos de Religião corrobora para esse movimento de saída da teologia, para entender a reflexão epistemológica no conjunto das demais áreas de conhecimento superando a tentação de ter razão sozinha, para um movimento de cada vez maior interação para abordar fenômenos cada vez mais complexos, como é o fenômeno religioso e a interpretação que o próprio fenômeno faz de si, como sua parte inerente e coincidente com expressões da teologia confessional. 

Enfim, com o intuito de pensar a teologia como disciplina acadêmica que compõe as humanidades, bem como integra o conjunto dos saberes que se dedicam ao estudo do fenômeno religioso, o texto aborda aspectos da configuração interdisciplinar dos estudos de religião no Brasil; avalia a conexão entre teologia e os estudos da religião; bem como reflete acerca de alguns possíveis critérios para a análise de construtos teológicos, desde a perspectiva da teologia pública, como pensada por Tracy. 

1. Estado da questão da perspectiva interdisciplinar dos estudos de religião no Brasil

A complexidade das dinâmicas que envolvem o fenômeno religioso no Brasil exige uma reflexão por parte dos diferentes saberes que se ocupam dos estudos de religião, os quais, antes de serem oposições, podem se complementar em interpretações distintas, mas relacionadas (cf. CAMURÇA, 2011). Esta necessidade se dá pelo compartilhamento da religião como assunto, mas também em virtude da autonomia da área de Ciências da Religião e Teologia na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), conquistada em 2016. A área fazia, antes, parte da Filosofia, como subárea. A autonomia proporciona a oportunidade de discutir a epistemologia da área, o que já vem sendo feito de várias formas (SOARES; PASSOS, 2011; PASSOS; USARSKI, 2013; SENRA, 2015; VILLAS BOAS, 2018b). Com a referida autonomia, contudo, o campo de estudos de religião tem sido levado a refletir sobre seu lugar e papel no conjunto dos saberes de modo ainda mais intenso. A título de ilustração, importantes periódicos da área dedicaram dossiês a questões epistemológicas na área dos estudos de religião: os números 23 e 24 do v. 13 da Revista Interações (PUC Minas) (2018); o v. 35, n. 2 da Estudos de Religião (UMESP) (2021); v. 14, n. 1 da Reflexus (UNIDA) (2020); v. 19, n. 2 da REVER (PUCSP) (2019); o v. 16, n. 51 (2018) e o v. 17, n. 53 (2019) da Horizonte (PUC Minas). Passando por temas como teorias da religião, questões de linguagem religiosa, o desenvolvimento da área de Ciências da Religião no país, epistemologia teológica, esses estudos refletem uma tendência da área de reflexão crítica sobre suas próprias autocompreensões metodológicas, epistemológicas, disciplinares e interdisciplinares. 

Outro importante resultado dessas discussões é o recente Dicionário de Ciência da Religião (USARSKI; TEIXEIRA; PASSOS, 2022), reunindo dezenas de verbetes e pessoas autoras de distintos países. Historicamente, nota-se que, no contexto europeu do século XIX, a Religionswissenschaft nasce com o objetivo de estudar outras religiões, que não o cristianismo, configurando-se na aproximação das ciências empíricas e se afirmando na negação da teologia, em especial como razão de recusa da teologia hegemônica institucionalizada. No Brasil, diferente da Europa, na segunda metade do século XX, as Ciências da Religião emergem no contexto acadêmico em um período de renovação teológica, encontrando na teologia uma parceira. Tal perspectiva interdisciplinar é salvaguardada nos documentos da área, já em 2016, quando da conquista de sua autonomia como área de avaliação na CAPES e novamente no documento vigente (2019). Essa via colaborativa (CAMURÇA, 2011) é favorecida por empreendimentos teológicos críticos e investigativos, papel desempenhado pelas teologias das religiões e pela teologia da libertação já desde meados do século passado e, mais recentemente, pelos estudos em teologia pública, reforçando a racionalidade pública da teologia como disciplina crítica para a análise do fenômeno religioso. A área de Teologia e Literatura testemunha desse caráter dialógico, cada vez mais consolidada, ela tem contribuído na explicitação de um modo próprio de articulação de diferentes áreas de conhecimento2 (VILLAS BOAS, 2018b). 

A relação crítica entre os diferentes saberes que se dedicam ao estudo da religião, auxiliam no processo de calibragem epistemológica, de tal modo que a teologia, por exemplo, amadureça sua presença pública, não cedendo à tentação de tentar se afirmar em virtude de uma certa autoridade eclesial ou divina, ou mesmo por sua presença de longa data na universidade. Uma tarefa para essa teologia acadêmica é o mapeamento de distintos modelos epistemológicos da teologia (VILLAS BOAS, 2018b; 2020). 

Para colocar em curso tal tarefa, faz parte a compreensão das condições de possibilidade de construção do conhecimento em cada contexto. Um primeiro movimento de escavação via método arqueológico de Foucault (1966), nesse sentido, identifica diferentes modos de compreensão de Deus no renascimento, no iluminismo e na modernidade. No primeiro, Deus é reconhecido nas coisas do mundo; no segundo, Deus é transportado para os conceitos puros; no terceiro, uma analítica da finitude substitui a metafísica, o humano ocupa o lugar do absoluto. Ademais, uma vez que o conhecimento é limitado, não se torna mais possível um conhecimento total das coisas. Há, com isso, a percepção de rupturas e descontinuidades epistemológicas, mas há, também, por outro lado, a convivência de distintos modos de produção teológica que, não raro, não se conversam (cf. VILLAS BOAS, 2018b; SENRA; PINTO, 2010). Cabe aqui ainda, como tarefa, uma análise comparada dos distintos métodos arqueológicos que se detêm sobre a questão religiosa, o que possibilitaria uma arqueologia do saber teológico em suas práticas discursivas e sociais no contexto das sociedades pós- -seculares.3

2. Teologia e Estudos de Religião

David Ford (2013), ao escrever uma introdução à teologia, partindo do contexto do norte global de língua inglesa, identifica diferentes modos de relação entre teologia e estudos de religião que acontecem em diferentes tipos de instituição. Em instituições confessionais de formação pastoral, a ênfase tende a ser mais eclesial e ligada à mantenedora que as fomentam. Em instituições, como universidades, que oferecem estudos de religião (religious studies), é possível encontrar uma abordagem mais ampla sobre diferentes religiões e a teologia configurará como parte da história de religiões particulares, não existindo um encorajamento para que estudantes produzam alguma espécie de teologia construtiva ou propositiva. Finalmente, também em universidades, a oferta de cursos de teologia e estudos de religião tende a possibilitar o estudo de diferentes tradições religiosas, bem como tematizar descritiva e construtivamente aspectos ligados à verdade, ao belo e à prática nessas tradições. Percebe-se, assim, não apenas a significativa relevância do encontro dos diferentes saberes que se dedicam ao estudo da religião, como a perspectiva de que o fenômeno religioso seja ele mesmo assunto de preocupação teológica. 

No contexto brasileiro, para a perspectiva aqui desenhada, um autor que ajuda a pensar a relação entre teologia e estudos da religião é o teólogo luterano Eduardo Gross. Em um texto que já dista duas décadas, o autor faz um esforço para compreender o lugar da teologia na universidade, atuando, ele mesmo, como um teólogo dentro de um programa stricto sensu de Ciência da Religião. Em suas considerações, aponta para uma necessária diferenciação entre teologia e teologia cristã. Sendo, justamente, uma identificação indiferenciada entre elas, um dos motivos de recusa ao conhecimento teológico no diálogo dos saberes que se dedicam ao fenômeno religioso. As teologias particulares, teologia cristã, teologia judaica, teologia islâmica, entre outras, seriam, assim, objetos a serem analisados. Tal distinção poderia, inclusive, resguardar pessoas teólogas de determinados interesses institucionais. Gross não acredita, nesse sentido, na formulação de uma ciência asséptica como uma teologia das teologias, mas na pluralidade de interpretações das tradições religiosas particulares. A pessoa teóloga, portanto, seria uma especialista que maneja linguagem, mitos e conceitos de uma determinada tradição de maneira competente. Em seu horizonte está a construção de uma disciplina dialógica em que cada teologia particular seria analisada em sua capacidade de lidar com as reivindicações das outras teologias e mitologias4 (GROSS, 2011, p. 331-337). 

Entre as tarefas da teologia no contexto dos estudos da religião, Gross (2001, p. 337-341) enumera (i) a clarificação das terminologias de uma tradição religiosa particular; (ii) a explicitação crítica de elementos teológicos e religiosos pressupostos em discursos; (iii) a compreensão do caráter teológico da tomada de posição de recusa ao religioso, ao sagrado ou ao divino. Esses aspectos buscam auxiliar na superação de superficialidades na análise das religiões ou mesmo na autocompreensão das disciplinas acadêmicas.

Por fim, Gross (2001, p. 341-343) se ocupa em pensar o elemento propositivo da teologia. Reflexão que, segundo o autor, poderia ser considerada também pelas outras disciplinas que se ocupam com religião. A caracterização da teologia exposta por Gross é de perfil técnico, onde ela funciona como uma análise crítica de teologias e mitologias particulares. O caráter propositivo da teologia, por sua vez, se apresenta já em sua apreciação crítica das consequências práticas e impacto no mundo da constatação dos elementos teológicos de uma tradição particular. 

Ora, qualquer proposta de reelaboração do universo simbólico de uma tradição religiosa dada, assim como qualquer questionamento da realidade a partir de uma tradição religiosa é uma forma de teologia propositiva – seja o estudioso da religião que faz tais propostas, teólogo ou não, seja crente ou descrente, seja confessionalmente engajado ou não (GROSS, 2001, p. 343). 

Reconhece-se, assim, que uma teologia crítica não está assepticamente distanciada de seu objeto, mas busca avaliá-lo diante da sociedade concreta da qual ambos, pessoa pesquisadora e objeto investigado, participam. Tal avaliação propositiva faz parte do caráter hermenêutico da teologia e é ampliado pelo diálogo com os demais estudos da religião (GROSS, 2001, p. 343-345). Gross coloca em curso, assim, a problematização da disciplina teológica como disciplina acadêmica, levantando pertinentes questões para uma possível (re)elaboração desse saber. O caminho de preocupação metodológica exposto por Eduardo Gross dialoga com o modo de compreensão do saber teológico conforme exposto por David Tracy.  

3. A tipologia de David Tracy para os modelos teológicos

David Tracy (1975), propõe uma tipologia de modelos contemporâneos de se fazer teologia que visam responder, cada um deles, a seu modo, aos desafios da modernidade. Essa tipologia terá nossa atenção adiante, antes disso, aprofundando a discussão do presente tópico, cabe ainda refletir sobre o elemento da religião como assunto da teologia. Sobre a conexão entre teologia e estudos da religião, vale situar aspectos sobre a teoria teológica da religião desenvolvida por este teólogo católico estadunidense. Com efeito, o modo como ele se dedica ao fato religioso em obras como Blessed Rage for Order: The New Pluralism in Theology (1975), The Analogical Imagination: Christian Theology and the Culture of Pluralism, (1981), Plurality and Ambiguity: Hermeneutics, Religion, Hope ([1987] 1994), permite que se tirem algumas conclusões que podem ajudar a pensar a questão religiosa também no contexto brasileiro em que vai se afirmando uma perspectiva interdisciplinar nos estudos de religião. Sintetizamos aqui cinco pontos5

1. Cada religião particular funciona como espaço para o estudo do fenômeno religioso. Com isso, uma conceituação totalizante da religião é indesejável. Em virtude da complexidade da questão religiosa, as apreciações sobre tal fenômeno são sempre apenas relativamente adequadas. Uma via possível de análise é a preocupação com elementos comuns e compartilhados entre experiências religiosas e em modos de se tentar dar sentido à vida. 

2. O tema do pluralismo é valorizado por Tracy. Isto se desdobra na percepção de uma pluralidade de religiões e de abordagens teóricas sobre a religião, bem como no reconhecimento das ambiguidades presentes nestes âmbitos. Nessa direção, o autor indica a impossibilidade de uma abordagem ingênua ou unidimensional do dado religioso. 

3. Conflitos de interpretações, bem como semelhanças-na-diferença (analogias) estão presentes na análise da religião. Uma imaginação analógica, permite, por exemplo, que a teologia seja pensada em suas particularidades assemelhadas às particularidades de outros saberes. 

4. Religiões particulares possuem interpretações que assumem o status de um clássico. Esses clássicos religiosos resistem à dominação, de tal modo que sempre de novo podem dar origem a desvendamentos de sentido. A conversação com os clássicos, assim, coloca em risco certeza pré-concebidas, bem como ajuda na valorização das diferenças entre distintas tradições e busca evitar reducionismos. 

5. Uma dimensão ético-política compartilhada por distintas tradições religiosas como a judaica e a cristã comunicam de uma força autocrítica presente no próprio fenômeno religioso, informando a possibilidade de revisão crítica de distintas interpretações das religiões. 

Os elementos de análise crítica do fato religioso, de hermenêutica das tradições religiosas e de conversação com os clássicos, já apontam para aspectos constituintes das reflexões metodológicas de Tracy que nos ocupam na sequência. 

3.1 Aspectos do pensamento tracyano  

David Tracy nomeia como suas grandes preocupações o pluralismo religioso e a secularização. Os desafios oriundos da modernidade, fazem com que um teólogo como Tracy não aceite nem, por um lado, uma diluição das religiões numa espécie de mínimo denominador comum, nem, por outro, uma resignação das religiões ao âmbito privado. Teólogos que não aceitam a questão do pluralismo, oferecem suas resistências de modo a ignorá-lo, afirmando, por vezes, toda sorte de sistemas fechados de crenças autorreferenciais. Para aquelas pessoas que assumem o desafio de pensar o pluralismo teologicamente, a questão do lugar das religiões e do próprio pensamento teológico no espaço público se torna um desafio. David Tracy está nessa segunda posição, alguém pertencente à uma determinada tradição religiosa, que faz opções teóricas a partir de dentro dessa tradição, mas que compreende a necessidade de uma publicidade do discurso teológico assumindo o pluralismo religioso como um enriquecimento da condição humana e da questão religiosa na situação contemporânea. A ênfase na pessoa teóloga, é extraída do arcabouço teórico de Tracy, pois ele confere especial atenção ao sujeito pensante que entra no jogo de conversação dos saberes e das religiões. 

Aqui, o interesse em Tracy se justifica tanto pela relevância desse autor para o desenvolvimento de uma teologia pública, bem como por sua constante preocupação com a construção de um modo próprio de se fazer teologia que seja adequado ao contexto acadêmico. David Tracy e suas obras principais são ainda desconhecidas de grande parte do público brasileiro6 , porém, como apresentado no tópico anterior, seu pensamento pode auxiliar a pensar critérios de análise de discursos teológicos. 

Desde sua tese doutoral, no final dos anos 1960, David Tracy tem se dedicado a questões de base hermenêutica, epistemológica e metodológica em teologia. The Achievement of Bernard Lonergan (1970) é o livro resultado de sua tese, no qual se dedica ao pensamento de seu professor, explorando questões de método. Em 1975, com Blessed Rage for Order: The New Pluralism in Theology e, especialmente, com The Analogical Imagination: Christian Theology and the Culture of Pluralism (1981), o autor postula uma refinada hermenêutica teológica revisionista que concebe uma metodologia de correlação crítica entre a interpretação da condição humana e do fato religioso na situação contemporânea e a interpretação dos clássicos da religião, da arte e da razão. Essa base dialógica e interdisciplinar percorre outras produções do autor que seguem aprofundando elementos-chave de seu pensamento como em Talking about God: Doing Theology in the Context of Modern Pluralism (1983, com John Cobb, uma das principais referências da assim chamada teologia do processo), Plurality and Ambiguity: Hermeneutics, Religion, Hope ([1987] 1994), Dialogue with the Other: The Inter-religious Dialogue (1990) e em On Naming the Present: God, Hermeneutics, and Church (1994, uma coletânea de artigos anteriormente publicados na Revista Concilium, onde Tracy atuou de modo intenso durante décadas). David Tracy, como se vê, é um autor profícuo para se pensar uma teologia pública que abraça o desafio de uma racionalidade pública diante de um contexto multifacetado, fazendo refletir sobre respostas, linguagens e abordagens teológicas adequadas diante de sociedades plurais e com diferentes relações com a secularização. 

Em sua busca por critérios públicos de argumentação, o autor oferece uma série de elementos que podem ser valiosos à pessoa teóloga interessada em referenciais para a análise do fenômeno religioso e de suas expressões teológicas. É possível afirmar que no edifício teórico tracyano há uma preocupação com a transparência dos processos de explicitação e publicização das alegações de sentido e verdade de uma determinada teologia. Mesmo a abertura ao pluralismo como enriquecimento, algo que poderia simplesmente se aceitar como algo dado, para Tracy, carece de que os critérios que suportam tal abertura sejam devidamente externalizados. Somente assim se está no âmbito de critérios teológicos públicos e não privados (TRACY, 1981). 

Cada um dos públicos da teologia – igreja, academia e sociedade – possui suas estruturas de plausibilidade, ao explicitá-las a pessoa teóloga contribui justamente ao clarificar os termos utilizados em cada discussão. Sem ignorar conflitos ou contradições, a pessoa teóloga pode enfrentar as questões de sentido e verdade presentes nos paradigmas válidos nos discursos teológicos eclesiais, acadêmicos e presentes na sociedade. Efetivamente, para cada público teológico, David Tracy propõe uma disciplina teológica referencial. A teologia fundamental, cujo público referencial é a academia, se dedica à questão da verdade, a teologia sistemática, que possui como referência a igreja, ocupa-se da questão do belo, a teologia prática, que tem como primeira audiência a sociedade, desenvolve uma reflexão sobre o bem. Todos os públicos conversam entre si, existindo uma distinção referencial entre eles. Teologias fundamentais, na compreensão de Tracy, baseando-se naquilo que há de comum nas experiências humanas e nas disciplinas acadêmicas, oferecem argumentos razoáveis para pessoas religiosas e não religiosas em um discurso público acessível a qualquer pessoa em virtude de sua referência à experiência, inteligência, racionalidade e responsabilidade humanas (TRACY, 1975; 1981). 

Tornados explícitos, os argumentos teológicos podem ser questionados ou mesmo refutados na conversação acadêmica. Com isso, esse modo de fazer teologia pública tende à interdisciplinaridade e à uma mais profunda percepção da teologia dentro do conjunto ampliado das ciências, em especial as humanidades. Para Tracy, a categoria privilegiada para essa abordagem interdisciplinar é aquilo que ele denomina de clássicos religiosos. Para ele, um clássico, que pode ser uma pessoa, um evento, uma pintura, uma música, um texto, comunica ao humano algo de sua própria humanidade7 . Ao se acessar o modo como determinada teologia interpreta clássicos religiosos, torna-se possível explicitar as alegações de sentido e verdade desta interpretação, sua epistemologia e sua ética. Outro ponto relevante, que coopera para o desenvolvimento de critérios de análise de modelos teológicos é aquilo que Tracy chama de constantes da fala teológica - a interpretação das tradições religiosas e a interpretação da situação contemporânea (TRACY, 1975; 1981). 

Esse tipo de teologia pública pode ajudar a clarificar as distintas formas em que as religiões e os discursos teológicos se desenvolvem dentro de diferentes âmbitos como o social, o eclesial e o acadêmico. Para dar continuidade a esta reflexão, que tem por base a possibilidade de uma teologia crítica acadêmica diante de um contexto de pluralismos, vale atentar para aspectos que compõem a teologia comparativa como disciplina operante no conjunto dos estudos de religião. 

Em verbete escrito por Tracy para a Encyclopedia of Religion (TRACY, [1987] 2005), o autor defende que enquanto disciplina que integra os estudos de religião, uma teologia contemporânea, independentemente de sua tradição, deverá ser uma teologia comparativa, assumindo o pluralismo religioso desde o início também para a apreciação crítica de qualquer autocompreensão teológica. Mesmo que o termo não seja unânime, Tracy defende a validade do uso da teologia para indicar interpretações intelectuais de qualquer tradição religiosa, mesmo quando não se está tratando de uma tradição religiosa teísta. Parte-se da percepção de que uma noção ampliada do próprio termo teologia, como reflexão sobre Deus ou deuses, pode ser útil uma vez que a grande maioria das religiões possuem reflexões mais estritamente intelectualizadas de suas autocompreensões. Entre as questões que uma teologia comparativa levanta estão: o modo como uma religião se dedica à condição humana (como a questão do sofrimento) (i); o caminho de transformação que essa religião oferece, sua compreensão de salvação, libertação, iluminação, e como isso se relaciona com as propostas de outras religiões (ii); a compreensão que esta tradição possui de uma realidade última e como ela se relaciona com as compreensões de outras tradições, podendo ser noções como sagrado, vazio, divino, Deus, deuses, natureza (iii). 

A teologia comparativa, desse modo, oferece uma interpretação da autocompreensão de uma determinada religião particular em um contexto de pluralismo religioso com atenção às principais questões e respostas elaboradas por essas tradições. Tracy oferece quatro premissas para o exercício da teologia comparativa: 1. A necessidade de reinterpretação dos símbolos centrais de uma determinada tradição religiosa para dentro do contexto de um mundo plural; 2. A interpretação de uma determinada tradição religiosa precisa estar em compasso com novas exigências epistemológicas que incorporam tanto a tradição como o cenário atual de pluralismo religioso; 3. Pessoas teólogas devem arriscar pensar o pluralismo desde bases explicitamente teológicas; 4. A interpretação das tradições religiosas deve passar por uma hermenêutica de resgate e uma hermenêutica de suspeita. Compreende-se que não há interpretação que seja inocente, não há tradição religiosa sem ambiguidades, assim como não há intérprete sem contexto. Desse modo, o exercício teológico assume o risco da interpretação dos grandes símbolos das tradições religiosas para dentro da situação contemporânea para, então, apresentá-la para a comunidade acadêmica ampliada dos estudos de religião. Esta percepção reverbera o método teológico conforme exposto em Blessed Rage for Order, a saber, que a teologia se dá na correlação crítica entre a interpretação da situação contemporânea e a interpretação de uma tradição religiosa particular. O que, em The Analogical Imagination, recebe o refinamento da noção de clássicos em perspectiva interdisciplinar, na análise dos clássicos da arte, da razão e da religião. 

O processo de interpretação aludido por Tracy aponta para um caráter central do fazer teológico no século XX em sua compreensão como ciência hermenêutica (cf. GEFFRÉ, 1989) e como exercício de compreensão, explicação e aplicação desta interpretação de uma tradição religiosa particular em uma situação particular. Daí que a primeira pergunta levantada pela teologia comparativa será propriamente teológica, sobre como uma determinada tradição lida com questões como o sofrimento, por exemplo. Isso permitirá que sejam explicitados os elementos normativos daquela tradição teológica, quais seus cânones, qual o lugar da tradição em sua fundamentação teórica, qual espaço as pesquisas científicas ocupam na formulação de sua argumentação. Cada tradição teológica, ao tentar pensar questões atuais, acessará sua tradição, bem como terá uma interpretação do tempo presente. O modo como esses recursos são feitos é central na análise do funcionamento desses modelos teológicos. A pessoa teóloga, aqui, deve ter em mente que nem sempre essas tradições religiosas conseguiram dar respostas adequadas às questões levantadas pela situação contemporânea. E que mesmo a percepção das demandas atuais pode acontecer de modo diverso. 

Diante de sua explicação da disciplina de teologia comparativa, Tracy define a teologia como correlação crítica entre as alegações de sentido e verdade de uma tradição religiosa e as alegações de sentido e verdade presentes na situação histórica para dentro da qual aquela tradição religiosa está sendo interpretada. O autor ainda ressalta o ganho que a teologia obteve com a emergência dos estudos de religião, em especial da história das religiões, ao desafiar as teologias, não fundamentalistas, de diferentes tradições teológicas, a reconhecerem-se na relação com outras tradições teológicas. 

3.2 Sobre modelos teológicos

No segundo capítulo de Blessed Rage for Order, intitulado Five Basic Models in Contemporary Theology, o autor reflete sobre o uso de modelos para a análise teológica. A primeira clarificação do autor é sobre a opção por modelos de divulgação (disclosure models), pois o que está em jogo são modos de representação de Deus, da humanidade, do mundo, com diferentes graus de adequação, não imagens rígidas desses objetos. Os modelos de divulgação providenciam termos e relações básicas que ajudam a entender pontos de vista que tiveram lugar em situações históricas particulares. Em consonância, outra definição de saída feita por Tracy é sua atenção ao que chama de sujeito-referente e objeto-referente presentes nos diferentes modelos teológicos analisados, que são, para ele, termos e relações básicas para a compreensão do fenômeno. Ainda outra definição basilar de sua análise é o recurso às constantes da fala teológica, a saber, como que esses modelos teológicos fazem uso de sua tradição religiosa e como acessam a condição humana na situação contemporânea. Finalmente, o autor ainda indica que em cada um desses modelos, deve-se atentar para o modo como se dá a relação com a modernidade e com a tradição cristã. Assim, partindo do cristianismo, Tracy oferece uma abordagem de cinco modelos teológicos: o ortodoxo, o liberal, o neo-ortodoxo, o modelo da teologia radical e o revisionista. 

1. No modelo da teologia ortodoxa a modernidade não desempenha um papel significativo em sua argumentação interna. O que está em jogo é uma adequada articulação das crenças da tradição eclesial da qual a pessoa teóloga faz parte. O objeto-referente, aqui, é uma compreensão sistemática das crenças de uma tradição eclesial, enquanto o sujeito-referente é um teólogo crente localizado dentro da tradição eclesial que estuda. 

2. No modelo da teologia liberal, ou modernista, há uma genuína preocupação da pessoa teóloga cristã com as premissas básicas e com os valores éticos da modernidade secular. A atenção às novas disciplinas filosóficas, históricas e das ciências naturais fizeram com que fosse possível uma nova apreciação crítica da tradição cristã. Há, aqui, portanto, uma dupla fidelidade da pessoa teóloga liberal: com as compreensões e valores fundamentais da tradição cristã e com os valores e compreensões fundamentais da modernidade – o que se traduz numa tentativa de releitura da tradição cristã à luz da modernidade. O sujeito-referente, portanto, é aquele cuja consciência está comprometida com os valores da modernidade, enquanto o objeto-referente é uma determinada tradição cristã repensada de acordo com as críticas da modernidade. 

3. O modelo da teologia neo-ortodoxa, segundo Tracy, deve ser pensado no contexto maior da teologia liberal. Localizada já numa crítica à modernidade, mas não como recusa da modernidade nem como anti-modernidade. Sua crítica consistia, sobretudo, em não perceber a proposta liberal como adequada a aspectos negativos da vida, como a questão do sofrimento, bem como há uma recusa da interpretação liberal do evento de Jesus Cristo. Neste modelo, o sujeito- -referente é alguém consciente dos limites do otimismo ilustrado e em busca de uma autêntica fé cristã na dialética relação com Deus, o que denota uma ênfase experiencial, diferindo do crente do modelo ortodoxo. O objeto-referente, por sua vez, é o totalmente Outro, compreendido como Deus de Jesus Cristo. 

4. O modelo da teologia radical, cuja representante mais significativa é a teologia da morte de Deus, parte da premissa de que aquele Deus totalmente Outro outrora reivindicado não possui mais espaço, devendo sair de cena para que o homem livre possa viver. O sujeito-referente, aqui, é a pessoa teóloga comprometida com valores da intelectualidade secular, contemporânea e pós-moderna. O objeto-referente, por sua vez, é a reformulação do cristianismo tradicional à luz da morte de Deus, concebendo Jesus como paradigma ético de uma vida vivida em favor das outras pessoas, ou como modelo de uma humanidade autenticamente livre. 

5. O modelo revisionista é aquele eleito por Tracy para sua própria proposta de teologia construtiva. Ciente dos limites, mas também dos alcances dos modelos liberal, neo-ortodoxo e radical, o modelo revisionista, à luz de avanços filosóficos e científicos mais recentes e que não estavam disponíveis quando da formulação de outros modelos, pretende uma reinterpretação da tradição cristã e da consciência pós-moderna. O sujeito-referente do modelo revisionista possui uma dupla fidelidade: com uma revisão dos valores e crenças de uma autêntica secularidade e com uma revisão dos valores e crenças de um autêntico cristianismo. Tanto cristianismo como secularização devem ser avaliados com base em critérios públicos de argumentação acerca de suas pretensões de sentido e verdade. O objeto-referente, a seu turno, é a correlação crítica entre os sentidos manifestados nas experiências humanas comuns e os sentidos presentes nos temas centrais da tradição cristã. 

Todos esses modelos teológicos possuem uma variedade de propostas teológicas particulares que podem atender seus escopos, bem como figuras referenciais como Friedrich Schleiermacher para a teologia liberal ou Karl Barth para o modelo neo-ortodoxo (que na versão católica, para Tracy, poderia incluir autores como Karl Rahner), John Cobb para a teologia do processo como exemplo do modelo revisionista, ou ainda Paul van Buren como representante da teologia da morte de Deus para o modelo da teologia radical. Esse exercício tipológico pode auxiliar na explicitação das bases epistemológicas de cada modelo, ainda por se aprofundar, contudo. Ainda assim, ajuda a oferecer uma visualização panorâmica das permanências e incidências desses modelos no contexto atual, bem como permite uma leitura crítica desses modelos a partir das semelhanças, tensões, diferenças e controvérsias existentes entre eles. 

Como classificação elaborada por Tracy em meados da década de 1970, vale indicar a ausência, por exemplo, da teologia da libertação e de um possível modelo de teologias contextuais. Com Scannone (1982; cf. VILLAS BOAS, 2018b), pode-se pensar numa classificação da teologia latino-americana em quatro ramos caracterizados pelo método indutivo: Teologia Pastoral; Teologia da Revolução; Teologia da Libertação; Teologia da Cultura (Teología del Pueblo). Rudolf von Sinner (2018) detecta o que denomina de algumas tendências no cenário teológico latino-americano (não restrito ao âmbito acadêmico), no qual fala sobre uma teologia sob o signo da libertação, nomeadamente a teologia da libertação; uma teologia sob o signo da interculturalidade, com especial atenção às teologias das religiões; uma teologia sob o signo do Espírito, onde se destacam os pentecostalismos; e uma teologia sob o signo da prosperidade, dando ênfase para o fenômeno do neopentecostalismo e da teologia da prosperidade8 . Percebe-se, assim, uma tarefa constante de compreensão e caracterização de movimentos teológicos que vão se afirmando tanto em contextos eclesiais, como acadêmicos.   

Considerações finais

A epígrafe de Rubem Alves que saúda o leitor deste artigo é oriunda de sua tese doutoral, na qual critica os limites da linguagem teológica diante das demandas de uma humanidade que se compreende como histórica. Se a linguagem teológica afasta o humano da realização de sua liberdade, condenando-o à passividade diante de um Deus que a tudo justifica (teodiceia) e protegendo-o dentro dos limites de uma linguagem tradicional, ela se distancia do desejo incorporado por outros atores, como aqueles das ciências humanas e representantes de um humanismo político. Duas tarefas teológicas então emergem: considerar seriamente tais críticas e reler as tradições teológicas em busca de suas contribuições para ajudar a pensar o humano em seus processos de libertação oriundos das agendas do século XX, e sua crescente complexidade emergente no século XXI, em que o referencial dialético parece ser insuficiente. Poderíamos, então, indicar alguma aderência ao projeto tracyano? 

A reflexão desenvolvida nas páginas anteriores, localizada no âmbito dos estudos de religião no Brasil, percebe a exigência de se problematizar o lugar e o papel da teologia no diálogo interdisciplinar, de tal modo que essa disciplina não se recolha emudecida em seu pátio particular protegida em sua autorreferencialidade, nem se imponha como Regina Scientiarum deixando afônicos outros saberes cuja interlocução só é permitida de modo ancilar uma vez reconhecido seu caráter sui generis. Para tanto, ocupamo-nos do saber teológico em seu potencial analítico, a partir do qual pode desenvolver apreciações críticas em sua leitura de mundo, seja na investigação da condição humana e da questão religiosa na situação contemporânea, seja no recurso às tradições teológicas. 

Ainda que com limites no que diz respeito à problematização de uma análise das condições de possibilidade da emergência de modelos epistemológicos, David Tracy oferece interessantes contribuições para o avanço do debate da teologia com a racionalidade pública. Em síntese, compreende-se a proposta tracyana de construção da teologia como a interpretação dos sentidos presentes nas experiências e linguagens humanas comuns em correlação crítica com a interpretação dos sentidos manifestados nos clássicos da arte, da razão e da religião. Nesse processo, ao máximo possível, devem ser explicitadas as estruturas de plausibilidade de cada objeto investigado, esteja ele no âmbito eclesial, social ou acadêmico. Por mais que o fato religioso seja algo mais amplo, os textos religiosos permitem uma abordagem significativa das pretensões de sentido e verdade de uma tradição religiosa particular. Esses textos religiosos, por sua vez, configuram-se em grandes desafios hermenêuticos para qualquer abordagem teórica, ao que o autor compreende ser necessária uma dupla apreciação de textos religiosos, fazendo com que se coloque em curso uma hermenêutica de resgate (revisionista) da tradição acompanhada por uma hermenêutica da suspeita (cf. RICOEUR, 1970). Uma teologia fundamental, nesse horizonte, pode operar como plataforma de testagem de hermenêuticas possíveis do fato religioso, de tal modo que é o próprio fenômeno religioso, em virtude de sua complexidade e caráter multifacetado, que se impõe como desafio às tentativas de interpretação. Essa mesma dinâmica metodológica, como indicado no tópico em que se refletiu sobre critérios para a análise de modelos teológicos, pode ser acessada como em um exercício de teologia comparativa em que, ao se dar um passo para trás, operacionaliza-se esse instrumental para a análise de teologias presentes e atuantes no contexto atual. Entretanto, o próprio modelo fundamentacional em que são elaboradas as teologias fundamentais também exige sua problematização após o estabelecimento da crítica ao modelo kantiano de fundamentação, modelo esse que incorre no risco de corroborar na autorreferencialidade das teologias fundamentais. 

Entre as tarefas remanescentes, portanto, está ainda a problematização daquilo que se pode colocar em curso como hermenêutica crítica da situação contemporânea e das tradições teológicas incluindo seus sujeitos epistemológicos9 para que as abordagens aos modos de construção de conhecimento e suas condições de possibilidade integrem a configuração de uma teologia crítica como disciplina acadêmica desde a interação com uma racionalidade pública, categoria que também demanda sua problematização, mas que, entretanto, Tracy aponta caminhos de aproximação. 

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Notas

[1]  Tal distinção é defendida inclusive por um nome insuspeito da defesa da Tradição teológica, nomeadamente aqui nos referimos à pessoa de Joseph Ratzinger (cf. VILLAS BOAS, 2019). 

[2]  O v. 11, n. 24, da Teoliterária – Revista de Teologias e Literaturas, por ocasião da celebração dos 10 anos do periódico, reúne uma série de artigos que expressam matrizes teóricas e epistemológicas de diferentes grupos de pesquisa que se dedicam a esta articulação.   

[3] Projeto em andamento coordenado por Alex Villas Boas no Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER) na Universidade Católica Portuguesa, intitulado “Archaeology of the theological knowledge: theological-political discourses issue in post-secular societies”.  

[4] Para Gross (2001), enquanto discursos produzidos no interior de uma religião particular, a teologia privilegia uma linguagem mais conceitual, enquanto a mitologia se caracteriza por uma linguagem narrativa, não existindo uma hierarquia entre elas. 

[5] Para a discussão mais ampliada que leva aos cinco pontos aqui livremente reproduzidos veja: A teoria teológica da religião de David Tracy (ZEFERINO; SINNER, 2019). 

[6] Ao se buscar no catálogo de teses e dissertações da CAPES, encontram-se três teses que fazem referência ao trabalho de Tracy (HERRERA RODRIGUEZ, 2014; MELO, 2017; LOPES, 2019). Elas destacam o elemento da conversação com os clássicos religiosos, a apreciação tracyana sobre um falar de Deus e a possibilidade de se haurir da teologia tracyana para o diálogo com a bioética. 

[7] Para uma apresentação mais detalhada sobre a noção tracyana de clássicos veja: Hermenêutica e teologia pública: elementos para a construção do discurso teológico em interlocuação com os clássicos desde a Literatura a partir de David Tracy (ZEFERINO, 2018a); O sofrimento dá o que pensar: teologia pública em diálogo com a literatura marginal (ZEFERINO; FERNANDES, 2020). 

[8] Uma obra referencial de sistematização da então efervescente teologia da libertação foi a tese doutoral de Clodovis Boff (1993) em 1976, publicada em português em 1978 e com nova edição incluindo prefácio autocrítico em 1993, onde o autor comenta a possibilidade de se privilegiarem ainda outras mediações do que as ciências sociais, com especial destaque à mediação filosófica. Uma continuação dialógica do projeto tracyano na relação com a teologia latino-americana, poderia haurir de autores como C. Boff, mas também Juan Luís Segundo que, em obras como Liberación de la Teología (1975), oferece uma apreciação crítica da teologia de Tracy (cf. HAWKS, 1990).  

[9] Em Blessed Rage for Order, Tracy apresenta a relevância tanto da fenomenologia, para investigar a experiência humana, como da hermenêutica, no trabalho de interpretação de textos religiosos (cf. também FREI, 1992, p. 30-34).