Romeu Leite Izidório*
*Doutor em Teologia pela Pontificia Università S. Tommaso D'Aquino. Professor da Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: PeRomeu@gmail.com
Resumo:
A bíblia hebraica apresenta uma grande polissemia quando se trata de palavras que recebem maior destaque. Este é o caso do vocábulo «irmão», que aparece em primeiro lugar na sua acepção de «filho do mesmo pai e/ou da mesma mãe», também pode conter as realidades dos que «são parentes próximos, companheiros, amigos, da mesma raça ou nação e até como sinal de respeito e cordialidade devida àqueles a quem é devido respeito». Quanto à palavra «irmã», ainda que tenha um espectro mais reduzido, também vai além da conotação estrita. A bíblia grega, chamada dos LXX, mostra a diversidade de compreensão ao tentar elucidar alguns textos onde «irmão» poderia ser mal-entendido. Em todo caso, «irmão» tem a ver com «fraternidade, irmandade», seja através de laços sanguíneos ou não. O que se percebe claramente é, em nenhum dos textos estudados, o vocábulo «irmão», na bíblia hebraica, tem uma acepção que não seja clara, ou seja, ele não foi utilizado por falta de outro mais apropriado, e sim porque seu espectro linguístico comporta aquelas acepções.
Palavras-chave: Irmão/irmã; Bíblia Hebraica; Bíblia Grega; polissemia; espectro linguístico
Abstract:
The Hebrew bible shows up a very large polissemy when treat of words that receive greater proeminence. This is the case of the vocable «brother», which appears in the first place in its sense of «son of the same father and/or mother», can also contain the realities of those who «are close relatives, companios, friends, of the same race or nation and even as a sign of respect and cordiality due to those to whom respect is due». As for the word «sister», althourh it has a narrower spectrum, it also goes beyond the strict connotation. The Greek Bible, called the LXX, shows the diversity of understanding when trying to elucidate some texts where «brother» could be misunderstood. In any case, «brother» has to do with «fraternity, brotherhood», whether throug blood ties or not. What can be clearly seen it that, in none of the texts studied, the vocable «brother», in the Hebrew Bible, has a meaning that is not clear, that is, it was not used for lack of a more appropriate one, but because its linguistic spectrum includes those meanings.
Keywords: brother/sister; Hebrew Bible; Greek Bible; polissemy; linguistic spectrum
Para falar sobre o vocábulo «irmão» nas Escrituras Hebraica e Grega, pode-se partir do princípio de que a fé judaica se propõe crer num Deus que cria os humanos por amor, ou dizendo de outra forma, por uma necessidade de amar. Essa mesma fé sugere que tais humanos tenham a missão de imitar a esse Deus nessa capacidade de amar e, assim, amem-se uns aos outros, vivendo como «irmãos».
Há um trecho do Gênesis que põe na boca de Deus a seguinte inferência: “Não é bom que o ser humano esteja só” (Gn 2,18). Essa proposição oferece uma chave de leitura para se compreender a criação dos humanos, que em sentido lato serão considerados irmãos, para terem relações cordiais, viver em concórdia. Continua o trecho afirmando, “vou fazer auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2,18) e, ao apresentar os seres vivos (animais) ao humano, este não encontra entre eles “auxiliar que lhe correspondesse” (Gn 2,20). Somente o humano corresponde plenamente ao humano.
A ligação deve e pode ser tão forte ao ponto de, ainda no Gênesis, assegurar-se que a harmonia une os humanos tornando-os “uma só carne” (Gn 2,22-24). A convivência parece ser o sentido mais básico da existência humana. No ato de conviver harmonicamente está a semente da irmandade no mundo, duas pessoas que começam a se amar e convivem em harmonia. É possível afirmar com Caravias (2015, p. 21-22) que: “Todos os humanos viemos de Deus. Todos somos filhos de Deus. Todos viemos de Adão. Ao criar o gênero humano de um só princípio pôs em nosso coração o desejo da irmandade. Fez-nos para que vivamos como irmãos. Fez-nos sociais”.
Pode-se afirmar que Deus criou o mundo dando as bases para que os humanos complementem sua criação, diz o texto bíblico que a função do humano é dupla: “cultivar e guardar” (Gn 2,15), modificando e mantendo, ao mesmo tempo. Percebe-se, portanto, que há realidades que precisam ser transformadas e outras que precisam ser preservadas, tendo em vista o bem do próprio humano em suas relações paritárias. Pode-se até dizer com Swedenborg (2009, p. 1449) que «irmão» é um termo para amor.
O escopo deste artigo é estudar os sentidos de «irmão» para perceber se esta palavra é utilizada nas bíblias hebraica e grega por falta de outra mais apropriada, ou se a sua utilização está dentro do seu campo semântico e, portanto, está ali porque é a mais apropriada naquele contexto.
A Bíblia hebraica, como todos os escritos religiosos, tem a característica da polissemia. Principalmente nos vocábulos que ganharam força e sentido maior nos tempos de oralidade e/ou escritura, vê-se o quão rico é um povo na sua cultura, aparecendo na sua língua a variedade e multiplicidade de sentidos das palavras. Para adentrar no mundo polissêmico de determinada palavra é de vital importância examinar o contexto para saber o significado preciso dela.
Quando não se leva em conta tal multiplicidade de sentidos, faz-se parecer que há univocidade em relação a como tratar tal ou qual vocábulo. Uma versão (tradução) precisa sempre ter em consideração o contexto, assim como a capacidade de flexibilidade daquela palavra em particular.
Uma das palavras fortes que moldam o imaginário religioso hebraico é אָח, cuja função básica consiste em apresentar o parentesco horizontal, comumente traduzido por «irmão». Num dicionário bíblico é possível encontrar ao menos quatro acepções para este vocábulo hebraico, a saber, «irmão, parente, companheiro do mesmo local, amigo».
Como um homem poderia ter mais que uma mulher como esposa, às vezes fazia-se necessário dar outras informações (como em Dt 13,7: Se teu irmão – filho do teu pai ou da tua mãe …) para que o vocábulo «irmão» fosse compreendido sem equívocos (Wolf, 1998, p. 49).
De acordo com a Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS) (In: Accordance Bible Software), este verbete comparece 630 vezes, sendo 296 vezes no singular, 333 no plural; 1 vez no plural aramaico (Esd 7,18) (Jenni, 1978, p. 167). Cerca de metade dos versículos estão em sentido alterado, representando classes, grupos, famílias; sempre ligados à raça ou parentesco por afinidade.
Como a família era alargada e compreendia mais do que pais e filhos naturais, até mesmo descendentes mais remotos também eram chamados de irmãos. É verdade que havia uma certa hierarquia, pois,“Nas famílias polígamas, os irmãos e irmãs uterinos eram mais próximos uns dos outros do que com os irmãos e irmãs consanguíneos” (McKenzie, 1984, p. 448), o que podia se estender até mesmo para os da mesma tribo ou nação (como em Dt 2,4.8; 23,8; 24,7). É o caso de Gn 9,25, onde há um vaticínio contra Canaã, dizendo que ele será escravo dos seus irmãos, e o vocábulo «irmão» corresponde aqui a «parente, da mesma nação». Também Moisés vai ao encontro de seus compatriotas em Ex 2,11, e as versões BHS e LXX trazem o equivalente ao português «irmão».
É a pertença ao povo de Israel que na maioria das vezes faz ver o aproveitamento de uma palavra que oferece significado translato apropriado, visto que “Um indivíduo torna-se representante de uma tribo ou povo e os relacionamentos entre tribos são descritos em termos de parentela” Ringgren, 1988, p. 401) (é o caso de 1Sm 30,23; 2Sm 1,26; 19,13). Em Jz 1,3, Judá fala a Simeão, seu irmão, o que leva a crer que seja a tribo de um falando à outra tribo. Há membros da mesma nação que são chamados de «irmãos» (Nm 16,10: levitas; Jz 14,3: danitas; Esd 3,2: sacerdotes). É possível até ser encontrado «colega» como versão portuguesa equivalente a «irmão» (2Rs 9,2), interessante que em Is 41,6 e Nm 8,26, mantém-se «irmão», ainda que tenha o mesmo sentido de 2Rs 9,2 (Vine, 2007, p. 142-143).
Em todo caso, não foi encontrado em nenhum dos versículos uma necessidade de utilização do termo por falta de um mais apropriado. O que acontece em alguns textos é haver a possibilidade de mais que uma interpretação, por exemplo, em Gn 49,5: “Simeão e Levi são irmãos, seus tratados são instrumentos de violência”, Simeão e Levi podem ser os irmãos carnais (sentido estrito) e/ou as duas tribos (sentido translato), as duas possibilidades são admissíveis tanto separadas quanto juntas (Jenni, 1978, p. 169).
Alguns textos mostram a ligação patente entre «compatriota» e «irmão», como é o caso de Gn 13,8; Lv 19,17; 25,25.35-36.39.47; Dt 15,12; 17,15. Nesses versículos “isso é particularmente verdadeiro em leis que lidam com questões familiares, nas quais a tradução parente é preferível a irmão” (Hamilton, 2011, p. 336). Em Am 1,9.11, o problema entre membros de uma aliança é apresentado como sendo de «irmãos». O caso contra o povo de Edom está em conformidade com uma releitura de Dt 2,1-7, onde um povo «os filhos de Esaú» é considerado perigoso, ou, ao menos, deve ser temido. Vê-se em Ab 10 um vaticínio terrível contra esses «irmãos», serão exterminados.
Um exemplo sobre como tratar os compatriotas pode ser vislumbrado em Dt 22,2: “Se teu irmão não for teu vizinho, ou caso não o conheças […]”. É inequívoco que o vocábulo «irmão» está em sentido translato e não pode ser confundido, afinal de contas, tendo por base as relações familiares daquele tempo no Oriente Médio, como poderia alguém não conhecer o seu irmão?
Em Ne 5,8, quando se fala da venda e do resgate dos judeus, estes são apresentados como «irmãos judeus». No mesmo sentido, tem-se Is 66,20 que diz: “e de todas as nações trarão todos os vossos irmãos […]”, assim como Jr 29,16: “[…] vossos irmãos que não foram deportados convosco” (Ringgren, 1988, p. 402).
Ao alargar o conceito de «irmão» para conter toda uma nação ou povo, necessariamente aparecerá o dever de solidariedade (e.g. Lv 25,35-55; Dt 15), ao ponto de haver a exigência de ao menos duas testemunhas para que não haja falsidade contra o «irmão» (Dt 19,15-20) (Ringgren, 1988, p. 406).
Um texto muito conhecido é o que diz respeito à amizade de David por Jônatas e, nele, «irmão» corresponde a «amigo, que merece afeição», 2Sm 1,26: “Que sofrimento tenho por ti, meu irmão Jônatas. Tu tinhas para mim tanto encanto, a tua amizade me era mais cara do que o amor das mulheres”.
É verdade que o contrário também é possível, por exemplo, Jr 9,3 diz: “Que cada um se guarde de seu próximo, e não confieis em nenhum irmão; porque todo irmão só quer suplantar e todo próximo anda caluniando”, e em Jr 12,6 afirma: “Porque até os irmãos e a casa de teu pai, até eles te traíram! Até eles gritaram atrás de ti. Não confies neles quando te falarem coisas boas”. Também Jó 6,15 deixa claro que «irmãos» podem ser traiçoeiros, e Is 66,5 afirma que os «irmãos» que odeiam ficarão envergonhados. Deve-se ser cuidadoso porque o que semeia discórdia entre irmãos prática abominação aos olhos do Senhor (Pr 6,19) (Ringgren, 1988, p. 406-407).
Somente em poucos casos é possível notar que, por diplomacia ou cortesia, foi utilizado «irmão» para com um seu igual de sua ou outra raça (Gn 29,4; 1Rs 20,32-33). É o caso, também, de Gn 19,6-7; Nm 20,14; 1Rs 9,13, nos quais a acepção dá a entender que se trata de «aliados»; o mesmo acontece na Bíblia Grega, 1Mc 12,6; 14,20.40 são textos que apresentam a palavra «irmão» ao fazer menção a povos vizinhos ou aliados. Ao que tudo indica, a maior possibilidade é que estes aliados são do grupo «dos outros», que, naquele momento, é melhor que esteja favorável e não contrário àquilo que o falante deseja.
É possível que as relações de vassalagem tenham criado a ligação com o termo «irmão» com a acepção de inferioridade, o «irmão» aqui é o «vassalo» (2Sm 8,13-14; 1Rs 11,15-16; Gn 25,21-23). Fishbane (1970, p. 315) afirma que “A subjugação de Edom como vassalo de David em 2Sm 8,13-14, ou de Salomão em 1Rs 11,15-17, pode ser o pano de fundo do termo אָח (vassalo) em conexão com Edom, tanto quanto para a etiologia retroprojetada nas narrativas patriarcais (Gn 25,21-23)”.
Pode-se dizer com Ringgren (1988, p. 406) que “Quando o conceito de irmão se amplia até abraçar todos os membros da tribo e do povo, alarga-se também o dever de solidariedade”. Por esse motivo, é possível afirmar que o conceito mais próprio e alargado para o vocábulo «irmão» é «parceiro» e seus correlatos.
Há uma expressão hebraica, אִישׁ אָחִיו (Gn 9,5; Jl 2,8; Zc 7,10); tem-se também אִישׁ מֵעַל אָחִיו (Gn 13,11), אִישׁ לְאָחִיו (Gn 26,31; Jr 34,17), אִישׁ אֶל־אָחִיו (Gn 37,19; 42,21; Ex 16,15; 25,20; 37,9; Nm 14,4; 2Rs 7,6; Jr 13,14; 23,35; 25,26; Ez 24,23), אִישׁ אֶת־אָחִיו (Ex 10,23; Lv 25,14; Jr 31,34; Ez 33,30; Zc 7,9), אִישׁ כְּאָחִיו (Lv 7,10; Ez 47,14); אִישׁ בְּאָחִיו (Lv 25,46; 26,37; Ne 5,7; Is 3,6; 19,2; Ez 38,21; Ml 2,10), אִישׁ וְאָחִיו (Dt 25,11; Ez 4,17), אִישׁ אֶת־אָחִיהוּ (Mq 7,2), אִישׁ מֵאָחִיו (Ne 4,13), אִישׁ בְּאָחִיהוּ (Jó 41,9); assim como no feminino, אִשָּׁה אֶל־אֲחֹתָהּ (Ex 26,3.5s.17; Ez 1,9; 3,13) (Jenni, 1978, p. 171), que na versão em português não é apresentada como contendo «irmão», e que pode ajudar a compreender a extensão do vocábulo, onde simplesmente torna-se «homem, vizinho, um e outro».
A exceção está em Gn 13,8, sem o sufixo (אֲנָשִׁים אַחִים), onde a versão portuguesa traz «irmão» e não «homem», representando «aliado». A título de informação, é possível que as passagens de Mt 5,22; 18,35 tenham essa mesma acepção de «simplesmente um humano» (McKenzie, 1984, p. 448).
O modo mais distante daquele original de fraterno carnal é apresentado quando comparado com figuras não humanas, por exemplo, em Jó 17,14: “[…] ao verme: ‘Tu és minha mãe e minha irmã’”; em 30,29: “Tornei-me irmão dos chacais […]” (Jenni, 1978, p. 171). É possível perceber o valor totalmente simbólico para a acepção e compreensão do vocábulo «irmão» no livro dos Provérbios, onde se lê: “O homem preguiçoso no seu trabalho é irmão do destruidor” (Pr 18,9).
A Bíblia grega Septuaginta (LXX) de Ralphs (In: Accordance Bible Software), utiliza o lexema ἀδελφός 851 vezes. Nem sempre havendo correspondência com o אָח hebraico (faz-se necessário dizer que cada língua possui a sua versão, e o transportar de uma língua para outra, pode ser chamado de tradução).
A LXX em relação à BHS, incluiu ἀδελφός em: Gn 29,1; 33,1.14; 43,16; 46,20; Ex 7,7.9.19; 8,1; 29,5; Lv 25,49; Jz 5,14; 2Sm 13,16; 15,34; 1Rs 16,22; 2Rs 1,18; 1Cr 4,12; Ne 12,12; omitiu uma versão para אָח em: Gn 27,44; 50,18; Ex 28,4; 37,9; Lv 7,10; Dt 25,6; 1Sm 1,17-18.22.28; 30,23; 1Cr 1,19; Ne 4,17; 11,13.17; 12,9; Jr (BH 29,16); 41,9 (BH 34,9).17 (BH 34,17); Ez 18,18; Est 10,3; Pr 18,24; entendeu אָח como πλησίον (vizinho) em: Gn 26,31; Lv 25,14; Mq 7,2; como αὐτός (ele) em: Gn 50,17; como ἕτερος (outro) em: Ex 16,15; Nm 14,4; como ἀλλήλων (uns aos outros) em: Ex 25,20; como πατήρ (pai) em: 1Cr 4,11; como ἀδελφιδός (irmãozinho) em: Ct 8,1; como ἐγγύτατοι (próximos) em Lv 19,17; Jó 6,15; como Αχισαμαι (nome de pessoa) em 1Cr 2,32; entendeu outros vocábulos hebraicos como ἀδελφός: רֵעַ em Gn 43,33; בֵית אָבִיו em Gn 50,22; עַם em Ex 22,24; אַחְיוֹ em 2Sm 6,3.4; 1Cr 8,14.31; 9,37; 13,7; אֶחָד em 2Sm 14,6; אֲחַזְיָה em 2Rs 11,2; אֲחִיָּה em 1Cr 2,25; כֹּהֵן em 2Cr 35,14; דּוֹד em Ct 5,1; אָחוֹת em Ez 16,45; דֹּדָתוֹ como θυγατέρα τοῦ ἀδελφοῦ τοῦ πατρὸς αὐτοῦ em Ex 6,20; e, אֲהַרְהֵל como ἀδελφοῦ Ρηχαβ em 1Cr 4,8.
Embora não haja sempre uma correlação linguística literal, pode-se perceber na maioria dos versículos um intercâmbio de ideias que geram semelhanças, ou de outra forma, há grande analogia da versão grega dos LXX com a hebraica da BHS interpretando «irmão» de modo mais extensivo.
Em diversos casos há uma tentativa da versão grega de elucidar algum mal-entendido que a versão hebraica podia suscitar, por exemplo, quando a BHS utiliza אִישׁ אֶל־אָחִיו (um homem ao seu irmão), a LXX apresenta ἄνθρωπος τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ (Is 9,19), ἀνὴρ πρὸς τὸν ἀδελφὸν αὐτου (2Rs 7,6), ἄνδρα καὶ τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ (Jr 13,14), ἕκαστος πρὸς τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ (Gn 37,19; 42,21; Jr 23,35; 32,26; Ez 24,23), πρὸς ἀλλήλους (Gn 42,28), ἕτερος τῷ ἑτέρῳ (Ex 16,15; Nm 14,4), εἰς ἄλληλα (Ex 25,20).
A própria BHS, em alguns casos, para diferenciar de um sentido mais amplo, acrescenta uma especificação, como em Gn 27,29: teus irmãos, filhos de tua mãe; 37,27: nosso irmão, da mesma carne que nós; 42,13: irmãos, filhos de um mesmo homem; 42,32: irmãos, filhos de um mesmo pai; Dt 13,7: teu irmão, filho do teu pai ou da tua mãe; Jz 8,19; Sl 69,9: meus irmãos, filhos de minha mãe; Sl 50,20: teu irmão, filho de tua mãe (Jenni, 1978, p. 168).
No livro Cântico dos Cânticos, há um caso especial para fazer versão da palavra hebraica דּוֹד. Percebe-se que na versão grega, o amado pode ser caracterizado como um irmãozinho, um irmão querido.
Em 27 versículos, por 33 vezes, o hebraico correspondente a «amado, דּוֹד» é vertido ao grego como «ἀδελφιδός, irmão mais novo, amado», e ao português com «amado».
Somente num versículo, Ct 8,1: “Ah! Se fosses meu irmão, amamentado aos seios a minha mãe! Encontrando-te fora, eu te beijaria, sem ninguém me desprezar;”, o grego «ἀδελφιδός» corresponde ao hebraico «אָח». Nesse caso específico, não deixando dúvidas para o fato de que no contexto, a palavra «irmão» é a mais apropriada, pois o que a amada está apresentando é uma relação com o amado que, por algum motivo alheio à sua vontade, não está sendo aceita; com suas palavras, “se fosses meu irmão […] eu te beijaria, sem ninguém me desprezar”.
Vale a pena fazer notar que, nas diversas aparições de ἀδελφιδός (Ct 1,13-14.16; 2,3.8-10.16-17; 4,16; 5,2.4-6.8-10.16; 6,1-3; 7,10-12.14; 8,5.14) tem-se o «amado» sendo apresentado com diversos adjetivos que vão detalhando o carinho da amada para com ele.
Com relação ao verbete «irmã», na BHS comparece 114 vezes e tem como correlação básica no hebraico o verbete «אָחוֹת», sendo 105 vezes no singular e 9 no plural (Jenni, 1978, p. 167), e no grego «ἀδελφή», que na LXX tem 109 ocorrências.
Além de «irmã», pode também corresponder a «parente, amada» (e.g. Pr 7,4: no sentido de parente próxima, amiga achegada). Particularmente, em Cântico dos Cânticos, corresponde como paralelo a «noiva, esposa, amada» por cinco vezes (e.g. Ct 4,9-10.12; 5,1-2). Não somente em Cântico dos Cânticos, mas também no livro de Tobias (Bíblia Grega), pode-se ver irmã como esposa, “[…] irmã [nestes textos] é reconhecidamente um termo afetuoso – novamente encontrado em Tb 5,21; 7,15 [; 8,4.7], em que Tobias e Raguel dirigiram-se às suas esposas Ana e Edna como irmãs. Comparar também com as adições a Ester nas quais o rei confortou Ester com as palavras: ‘eu sou teu irmão, tenha bom ânimo’ [Est 5,1f]” (Hamilton, 2011, p. 343).
Tanto «irmão» quanto «irmã» quando utilizados nos lamentos fúnebres, possivelmente têm a função primária de exprimir a afeição ao defunto (1Rs 13,30: “Depositou o cadáver no seu próprio túmulo e pranteou-o dizendo: ‘Ai, meu irmão!’”; Jr 22,18: “Por isso assim disse Iahweh a respeito de Joaquim, filho de Josias, rei de Judá. Não o lamentarão: ‘Ai meu irmão! Ai minha irmã!’”) (Ringgren, 1988, p. 404).
Dentre as muitas possibilidades, há o sentido translato utilizado para cidades, como, por exemplo, em Jr 3,7 (Israel e Judá são chamadas «irmãs») e Ez 16,46 (Jerusalém é chamada irmã de Samaria e de Sodoma). Também em Ez 23 há a metáfora de «irmãs» para Israel e Judá (Hamilton, 2011, p. 343).
Um dos derivativos de «אָח» é «irmandade / fraternidade, אַחֲוָה», um hapax legomena em Zc 11,14: “[…] para romper a fraternidade entre Judá e Israel”. A versão dos LXX entendeu essa palavra em outra acepção, como «relação, κατάσχεσις» (nas outras 67 vezes que este termo grego é utilizado, sua acepção é de «possessão, patrimônio»).
Outro vocábulo formado a partir de «אָח» é «Ιααιμ, אַחְיָן», também hapax legomena em 1Cr 7,19, versionado no português como “[…] Ain […]”, nome próprio.
É apresentada agora uma lista com os diversos nomes próprios e a referência a seus respectivos textos: «אֲחִימַן, Aimã» (Nm 13,22; Js 15,14; Jz 1,10; 1Cr 9,17); «אֲחִיסָמָךְ, Aquisamec» (Ex 31,6; 35,34; 38,23); «אֲחִיעֶזֶר, Aiezer» (Nm 1,12; 2,25; 7,66.71; 10,25; 1Cr 12,2); «אֲחִירַע, Aíra» (Nm 1,15; 2,29; 7,78.83; 10,27); «אֲחִירָמִי / אֲחִירָם, Airam / Airamita» (Nm 26,38); «אֲחִיהוּד, Aiud» (Nm 34,27); «אֲחִיָּה, Aías» (1Sm 14,3.18; 1Rs 4,3; 11,29-30; 12,15; 14,2.4; 15,27.29.33; 21,22; 2Rs 9,9; Ne 10,26; 1Cr 2,25; 8,7; 11,36; 26,20; 2Cr 9,29); «אֲהִיָּהוּ, Aías» (1Rs 14,4-6.18; 2Cr 10,15); «אֲחִטוּב, Aquitob» (1Sm 14,3; 22,9.11.12.20; 2Sm 8,17; Esd 7,2; Ne 11,11; 1Cr 5,33-34.37-38; 6,37; 9,11; 18,16); «אֲחִינֹעַם, Aquinoam» (1Sm 14,50; 25,43; 27,3; 30,5; 2Sm 2,2; 3,2; 1Cr 3,1); «אֲהִימָעַץ, Aquimaás» (1Sm 14,50; 2Sm 15,27.36; 17,17.20; 18,19.22-23.27-29; 1Rs 4,15; 1Cr 5,35; 6,38); «אֲהִימֶלֶךְ, Aquimelec» (1Sm 21,1.2.8; 22,9.11.14.16.20.26; 26,6; 30,7; 2Sm 8,17; Sl 52,2; 1Cr 24,3.6.31); «אֲחִילוּד, Ailud» (2Sm 8,16; 20,24; 1Rs 4,3.12; 1Cr 18,15); «אֲהִיתֹפֶל, Aquitofel» (2Sm 15,12; 15,31.34; 16,15.20-21.23; 17,1.6-7.14-15.21.23; 23,34; 1Cr 27,33-34); «אֲחִיאָם, Aiam» (2Sm 23,33; 1Cr 11,35); «אֲחִישָׁר, Aisar» (1Rs 4,6); «אֲהִינָדָב, Ainadab» (1Rs 4,14); «אֲהִיקָם, Aicam» (2Rs 22,12.14; 25,22; Jr 26,24; 39,14; 40,5-7.9.11.14.16; 41,1-2.6.10.16.18; 43,6; 2Cr 34,20); «אֲחִי, Ai» (1Cr 5,15; 7,34); «אֲחִימוֹת, Aquimot» (1Cr 6,10); «אֲהִישָׂחַר, Aisaar» (1Cr 7,10).
Nos livros de Macabeus, por 7 vezes (1Mc 12,10.17; 4Mc 9,23; 10,3.15; 13,19.27), faz-se notar o vocábulo «ἀδελφότης, fraternidade, afeto fraterno». Utilizado no primeiro livro de forma metafórica para indicar vínculos estreitos que unem os povos, e no seu sentido estrito de afeto fraterno carnal no quarto livro.
Uma única vez, no quarto livro dos Macabeus (4Mc 13,9), surge o advérbio «ἀδελφικῶς, como irmãos, fraternalmente». Assim como o advérbio «ἀδελφοπρεπῶς, como convém a um irmão», formado pela junção com «πρέπω» e que aparece somente em 4Mc 10,12. Unido a «φίλος» tem-se: «φιλαδέλφος, amigo do irmão, laço fraternal» (2Mc 15,14; 4Mc 13,21; 15,10) e «φιλαδελφία, amor fraterno» (4Mc 13,23.26; 14,1). Há também Sb 10,3, onde o vocábulo «ἀδελφός» é ligado a «κτείνω» e faz surgir o adjetivo «ἀδελφοκτόνος, fratricida».
Como acontece em qualquer língua, palavras, ou melhor dizendo, entidades linguísticas, são utilizadas tanto em sentido estrito quanto extensivamente. No caso de «irmão, irmã», a Sagrada Escritura em suas versões hebraica e grega, oferece recursos para se perceber que este vocábulo tem acepção normal, significando, do mesmo ventre, da mesma raça, da mesma nação; também, alguém que naquele momento tem a ver com o falante.
Desde há muito que se tenta inculcar que não havia palavras suficientes para representar as diversas manifestações familiares e, por isso, a palavra «irmão» (אָח) seria uma espécie de palavra coringa. Poder-se-ía dizer com os Provérbios: “Em toda ocasião ama o amigo, um irmão nasce para o perigo” (Pr 17,17). Este é um tipo de texto que mostra a multiplicidade de sentidos de uma palavra tão comum como «irmão». Um versículo como este mostra que é possível saber quando a palavra está sendo utilizada de modo conotativo ou ficar na sua denotação. «Irmão» aqui tem sentido translato sem sombra de dúvidas.
Nas pesquisas, na Bíblias Hebraica e Grega, não há corroboração para tais ideias. Pelo contrário, a palavra «irmão» é utilizada de modo inequívoco como correspondente a filhos de um mesmo casal, ou de um dos cônjuges, assim como aqueles que são próximos por consanguinidade, ou até mesmo por afinidade. Embora sendo tão aberto o espectro semântico -salvo raríssima exceção como é o caso de Jz 1,13 onde Judá e Simeão são apresentados como «irmãos», o que pode significar tanto irmãos de sangue quanto de tribo- não deixa margem para dúvidas ou discussões.
Pode-se fechar esse estudo com uma palavra sobre a pergunta de Cain: “Acaso sou guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). Neste mundo, chamado de casa comum, os cristãos creem que o seu Deus é Pai de todos, o que faz dos humanos irmãos entre si. Nesse sentido, uma resposta possível para a interrogação do Cain torna-se admissível quando é do tipo: “Sim, com certeza!”. Uma fraternidade universal faz parte do projeto maior de humanidade, a corresponsabilidade é exigência basilar para uma vida plenamente vivida.
O ideal do iluminismo francês de liberdade, igualdade e fraternidade, apresenta o triângulo que se torna imprescindível para uma ética libertadora que incida na realidade concreta. Foi apresentada a fraternidade através do vocábulo «irmão» que pode despertar as consciências para uma superação das ideologias que tentam enclausurar o «irmão» e não se abrir para a superação das divisões que as sociedades propõem.
Que fique nas mentes e corações a máxima de Paulo em Rm 13,8.10: “Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois que ama o outro cumpriu a Lei. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude de Lei”. Que o «irmão», chamado aqui de «o outro», «o próximo» e o seu bem, seja a baliza para a convivialidade.
Para terminar, que valha a máxima evangélica do “todos vós sois irmãos” (Mt 23,8). O bispo Cipollini (2022), diz: “O mandamento central do cristianismo é o mandamento do amor, deixado por Jesus e vivido por Ele. O amor se traduz na vida cotidiana em fraternidade e solidariedade. A fraternidade é a essência da vida cristã! É olhar e cuidar do próximo, acolher sem julgamento, doar sem interesse e sentir a dor do outro como se fosse própria. A fraternidade se baseia na fé de que Deus é pai de todos, por isso somos todos irmãos”.
Accordance Bible Software, Version 13.3.2.
Bíblia de Jerusalém. Nova ed. rev. e ampl. 2. impr. São Paulo: Paulus, 2003.
Caravias, José Luis. Vivir como Hermanos. Reflexiones bíblicas sobre la hermandad, Madrid: PPC, 2015.
Cipollini, Pedro Carlos. Educar para a Fraternidade. Disponível em: <https://www.diocesesa.org.br/2022/03/17/educar-para-a-fraternidade>, acesso em 25 mar. 2022.
Fishbane, Michael. The Treaty Background of Amos 1:11 and Related Matters. In: Journal of Biblical Literature, vol. 89, nº 3, pp. 313-318, sep. 1970. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/3263501>. Acesso em 23 nov. 2015.
Hamilton, Victor P. אָח. In: VanGemeren, Willem A. (Org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. v. 1.
Hamilton, Victor P. אָחוֹת. In: VanGemeren, Willem A. (Org.). Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. v. 1.
Jenni, Ernst. אָח. In: Jenni, Ernst; Westermann, Claus (Eds.). Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978. v. I.
McKenzie, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 19846.
Ringgren, Helmer. אָח. In: Botterweck, G. Johannes; Ringgren, Helmer (Orgs.). Grande Lessico dell’Antico Testamento. Brescia: Paideia, 1988. v. I.
Swedenborg, Emanuel. (1688-1872), Arcana Cœlestia. The heavenly arcana contained in the Holy Scripture or Word of the Lord unfolded, beginning with the book of Genesis (Numbers 2145-2893), Pennsylvania: Swedenborg Foundation, 2009. v. 3.
Vine, W. E. Diccionario Expositivo de palabras del Antiguo y Nuevo Testamento exhaustivo de VINE. Nashville: Grupo Nelson, 2007.
Wolf, Herbert. אחה. In: Harris, R. Laird; Archer Jr., Gleason L.; Waltke, Bruce K. (Eds.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.