Alonso Gonçalves*
*Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Docente no Mestrado Profissional em Teologia da Faculdade Teológica Sul Americana. Contato: pralgoncalves@yahoo.com.br
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O artigo tem como principal objetivo tratar de três obras que procuraram refletir o atual contexto político- -social brasileiro. Os textos aqui analisados, é fruto de uma percepção de que a polarização inviabiliza o debate razoável na esfera pública. Dessa forma, os autores intentaram elaborar um projeto político que antecedesse ao ativismo político, que, de maneira recorrente, é descaracterizado do aparato teórico-prático refletido. Depois de uma abordagem detida no conteúdo de cada texto, o artigo propõe um exercício crítico dos projetos elencados, apontando algumas lacunas e possibilidades.
Palavras-chave: Política; Evangélicos; Projeto; Ativismo
The main objective of the article is to deal with three works that sought to reflect the current Brazilian political and social context. The texts analyzed here are the result of a perception that polarization makes reasonable debate in the public sphere unfeasible. In this way, the authors tried to elaborate a political project that preceded political activism, which, in a recurring way, is not characterized by the reflected theoretical-practical apparatus. After approaching the content of each text, the article proposes a critical exercise of the listed projects, pointing out some gaps and possibilities.
Keyword: Politics; Evangelicals; Project; Activism
O ativismo político é fruto de um projeto político. Embora o ativismo seja decorrente de um posicionamento diante de um desafio que se apresenta na conjuntura da política nacional, é sempre a consequência de um projeto político. O projeto surge a partir de uma perspectiva mais concreta e, como a palavra sugere, lança para frente algo que já está se trabalhando no presente. A mobilização, nesse sentido, é essencial para que o projeto seja concretizado, daí o ativismo em diferentes setores da sociedade.1
Quando pensamos nos evangélicos, é perceptível o ativismo político de uma maneira articulada em torno de um projeto de poder político-econômico que tem no fundamentalismo religioso o seu aporte. Uma vez que não há um fator político de coesão entre os evangélicos, há diferentes frentes de ativismo político e seus respectivos projetos de atuação na esfera pública. Isso se dá, de acordo com o pesquisador Joanildo Burity (2020, p. 195-196), porque “a política evangélica não é una [...]. Não corresponde a um projeto coeso e estável, que se teria desdobrado ao longo do tempo, em toda a parte. Não é, assim, expressão de uma identidade formada previamente”. Por ser essa miscelânea, os evangélicos não têm um projeto político, antes, o que há são indivíduos e denominações com algum grau de convergência em torno de alguns temas. Por não ter uma identidade definida, é possível dizer que a presença política dos evangélicos brasileiros não é fruto de uma “exteriorização de uma identidade subjacente, plenamente consciente de si, automotivada e estável” (BURITY, 2020, p. 196). Essa característica é tão evidente, que quando a jornalista Andrea Dip entrevistou o então deputado federal Arolde de Oliveira (PSC-RJ), falecido em 2020 como senador, vítima da COVID-19, para o seu livro Em nome de quem?: a bancada evangélica e seu projeto de poder (2019), o então deputado, que já estava na Câmara Federal desde 1983, enxergava o crescimento dos evangélicos como uma vantagem política por estarem se tornando a maioria no tecido social religioso e, como consequência, a possibilidade de eleger uma quantidade maior de evangélicos para cargos públicos. O que é patente na entrevista, é que Arolde de Oliveira em nenhum momento pauta temas de interesse da população brasileira, mas sim dos evangélicos em específico, ou seja, o ativismo político de Arolde estava baseado em um projeto muito claro de poder político-econômico a partir da estrutura político-partidária. Com o aumento dos evangélicos, na sua concepção, esse projeto estava seguindo o seu curso. Disse ele: “O orgulho em ser evangélico vem do fato de que deixamos de ser minoria. Toda a minoria é sempre isolada por suas diferenças e pode ser massacrada pela maioria. Mas a percepção da maioria também mudou sobre nós; fomos nos tornando massa de pessoas, e isso muda as coisas” (DIP, 2019, p. 35). O “isso muda as coisas” significa dizer: “temos mais possibilidades de negociar”. Esse seria o projeto, fisiologismo político.
Uma das principais bandeiras do ativismo evangélico à direita é a questão da “família”. Nesse item, muitos evangélicos estão juntos “defendendo a família brasileira dos ataques que sofre pelos partidos de esquerda” (principalmente do Partido dos Trabalhadores, o adversário principal da direita evangélica). Com esse discurso, há uma confluência de ataques e reivindicações, mas o ponto central se dá no comportamento sexual e no controle dos corpos, o feminino, obviamente. O discurso da “proteção da família” é instrumentalizado com o propósito de alimentar o imaginário evangélico de que a “família” está sendo “ameaçada” e, dessa forma, os evangélicos precisam eleger “irmãos” que possam “lutar” pela família brasileira. Este tema está dentro do que estamos chamando aqui de ativismo, mas o projeto que está por trás desse ativismo é escamoteado. Não há muita clareza quanto aos reais objetivos do ativismo em relação à família ou ao empreendedorismo pessoal para o irmão da periferia, por exemplo. No fundo, o projeto é fundamentalista e neoliberal. Não por acaso, que a grande maioria dos evangélicos que foram eleitos deputados e senadores nas últimas eleições, o mote se deu na narrativa de que precisavam “barrar o avanço de projetos considerados ofensivos à moralidade sexual religiosa” (CUNHA, 2020, p. 31). A interferência social da bancada evangélica no país é pífia. Até o momento, não há nenhum projeto apresentado pela bancada evangélica que buscou contemplar a sobrevivência da família diante da insegurança financeira e alimentar, nem mesmo relacionado ao Bolsa Família que segue sendo um dos programas que, até o momento, melhor procura amenizar a desigualdade gritante da distribuição de renda no Brasil. Nessa pandemia, por exemplo, não houve qualquer movimentação da Frente Parlamentar Evangélica em trabalhar uma articulação política que pudesse minorar o empobrecimento de milhares de famílias brasileiras, ou seja, a “proteção da família” passa apenas pelo aspecto da sexualidade, mas a fome e o desemprego não é um problema de políticos evangélicos. Assim, “é irônico que muitos políticos evangélicos tenham uma retórica de defesa da família e votem diariamente projetos que minam a base de uma vida familiar estável” (FRESTON, 2006, p. 28).
A partir dessa colocação quanto ao ativismo fruto do projeto político, queremos focar em perspectivas que propõe um projeto político para o campo religioso evangélico em pelo menos três autores que procuraram trabalhar uma perspectiva conjuntural da política, por isso um projeto de característica macrossocial. Ainda que o ativismo seja a principal ferramenta de atuação política entre os evangélicos, quer do segmento da direita ou da esquerda, há uma ausência de clareza quanto ao projeto político na atual conjuntura política do país. Isso não significa ausência de pautas, como há, por exemplo, uma proposta sendo levada avante por um segmento evangélico identificado com a direita partidária que contempla a defesa de pautas como o Estado mínimo e a terceirização do trabalho, tendo como consequência a flexibilização das leis trabalhistas (CUNHA, 2020, p. 31). Não por acaso que esse segmento está alinhando ao atual governo e comunga das pautas neoliberais do ministro da Economia. Ainda assim, não há nenhum projeto bem articulado envolvendo a igreja evangélica a fim de encabeçar essas pautas de maneira organizada.2 Por outro lado, há o ativismo do segmento identificado com a esquerda, conhecido como “progressista”, mas não está nenhum pouco “preocupado em desenvolver uma ética do domínio” (ALENCAR, 2019, p. 188). Em ambos, faltam um projeto político que viabilize uma coesão e uma narrativa plausível no espaço público que não precisa passar, necessariamente, pela filiação partidária. Se antes do golpe civil-militar de 1964, os protestantes mantinham um projeto político que foi viabilizado pela então Confederação Evangélica do Brasil (CEB), onde as principais pautas e atuação dos evangélicos se davam “em programas sociais de alívio da pobreza, assistência à saúde, assistência à moradia, alfabetização e educação popular, auxílio à migrantes, enfrentamento da desigualdade regional, entre outros” (CUNHA, 2020, p. 37), hoje não há nenhuma organização protestante do vulto da CEB operacionalizando temas de interesse público na política brasileira.3 Em que sentido? No sentido de haver uma organização em torno das concepções políticas e econômicas que organize a igreja evangélica de maneira propedêutica com pautas de ativismo político fundamentadas no Estado Democrático de Direito e tendo a fé como elemento de coesão e inserção social. Não seria possível surgir algo nos mesmos moldes da CEB, por razões históricas e teológicas. Neste tempo é algo que precisaria ser levado em consideração, uma vez que é latente uma ausência de reflexão teórica que dê subsídios para se integrar politicamente ao sistema político do Estado brasileiro, e assim tomar conhecimento dos tramites, dos desafios, dos conluios, do sistema partidário, dos mecanismos de ações populares frente ao Congresso Nacional e demais ações proativas. É preciso haver iniciativas de evangélicos para pensar e propor ações no debate público.
Nesse texto, iremos observar algumas dessas iniciativas. O critério quanto à escolha dos textos, se deu por serem obras que apresentaram propostas de atuação política, procurando viabilizar um projeto de interação política no espaço público não focando, tão somente, em pautas do ativismo político que já são bem conhecidas, disputadas narrativamente e polarizadas no universo político dos evangélicos. Esses textos procuraram pensar o macro do conjunto político, e por essa razão apresentaram uma proposta de leitura política da realidade a partir da atuação da igreja evangélica. Todos eles foram pensados a partir do ano de 2018, período em que o país viu intensificar a polarização política para além das redes sociais.
No primeiro momento, faremos uma análise de três propostas que tem como principal característica pensar ações de atuação política da igreja no contexto político brasileiro: (i) as estruturas de poder e os evangélicos; (ii) os direitos humanos e a igreja evangélica; (iii) a ação política focada em uma teologia política reformacional.
No segundo momento, faremos uma avaliação crítica das propostas, buscando elencar os desafios que tais propostas contemplam e outros que deixam de fora a partir do contexto político e religioso brasileiro. Assim, esperamos contribuir para fomentar o debate em torno desse importante tema.
O autor Davi Lago tem formação em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Articulista em revistas, palestrante e pastor, escreveu um livro que é fruto de parte das suas pesquisas, trata-se de Brasil polifônico: os evangélicos e as estruturas de poder. Nesse texto, Lago tem uma clara preocupação: oferecer aportes teórico-prático para pensar o mundo e suas complexidades e os desafios políticos e éticos do Brasil. Assim, no primeiro capítulo Crise da nova república, evangélicos e demagogia, Lago dá o tom do que pretende com a sua contribuição a partir de algumas constatações. Uma vez que a voz dos evangélicos é um fato que não se pode ignorar em termos de números do IBGE e da quantidade de políticos evangélicos em todas as esferas do poder público, os evangélicos têm relevância para pensar e atuar no cenário de crise a qual o país está. Mas como seria isso? Nesse primeiro momento, Lago entende que é preciso abrir o debate para a real situação do Brasil e isso implica em qualificar o debate público. De acordo com ele, com o “acirramento do debate político brasileiro contribui para o clima de irracionalidade e a irracionalidade contribui para imposições de ilegitimidades” (LAGO, 2018, p. 44). Por essa razão, a democracia precisa ser valorizada, uma vez que apenas por meio dela é possível “debater ideias, propostas e caminhos para o país” (LAGO, 2018, p. 44). Lago não deixa de observar a conjuntura política do país quando dá o seguinte diagnóstico: “Diante da inaptidão das antigas ideologias em apontar caminhos, da falência ética de velhos políticos, do vasto alcance da corrupção e da ausência de líderes cívicos, é urgente retornarmos ao uso público da razão” (LAGO, 2018, p. 44).
Com o propósito de mostrar como as estruturas de poder se constituem, Lago faz uma pequena análise quanto a configuração do Estado e sua relação com a igreja. No capítulo Estado: Cristo redefine César, o autor traz o debate quanto a separação entre Igreja e Estado, que foi igualmente cara para a Igreja Católica como para os protestantes, embora estes últimos tenham levado até as últimas consequências tal separação. Com este capítulo, Lago procurou deixar claro que a configuração do Estado tem a participação da igreja, no sentido do debate quanto as competências de cada instituição: “Cada instituição é vocacionada para desempenhar um papel distinto na construção de um bom governo para a comunidade” (LAGO, 2018, p. 70). Isso não significa, uma aliança espúria, antes “qualquer tentativa de aparelhamento político da fé ou aparelhamento religioso da política é uma anomalia conceitual e um retrocesso” (LAGO, 2018, p. 71).
Será no capítulo três, Direitos humanos e Estado Democrático de Direito, que o autor irá demonstrar como os cristãos estiveram, ao longo da história, envolvidos com a dignidade humana por meio da busca por direitos que produzissem justiça social. O debate público passa, necessariamente, pela conquista civilizacional dos direitos. Por essa razão, “a compreensão da construção histórica dos direitos fundamentais é basilar, porque dissipa os equívocos e as falácias daqueles que procuram compartimentalizá-los dentro de alguma ideologia política, credo religioso ou doutrina filosófica” (LAGO, 2018, p. 87). Por entender que os direitos são conquistas do gênero humano, o autor quer desvencilhar do debate das ideologias políticas: “Os direitos humanos não são coisa de ‘marxistas’, ‘liberais’, ‘iluministas’ ou ‘cristãos’. As garantias fundamentais não têm orientação religiosa ou não religiosa, cética ou supersticiosa, de direita ou de esquerda, do Norte ou do Sul” (LAGO, 2018, p. 87). A partir disso, Lago faz um apelo, qual seja: “As discussões políticas contemporâneas na sociedade brasileira precisam partir da defesa das instituições democráticas e da garantia pelos direitos fundamentais conquistados” (LAGO, 2018, p. 87).
Lago prepara o terreno para introduzir um debate em torno da democracia e sua estreita relação com o cristianismo. Com o tema Democracia: do Areópago à Ekklesia, há uma discussão quanto ao surgimento da democracia começando na Grécia e se consolidando nos EUA. O autor não deixa de mencionar os vícios que a democracia produziu como as oligarquias, bem como o que ele chama de criptogoverno. Usando o conceito de Norberto Bobbio, o autor identifica essa anomalia da democracia na política brasileira, principalmente com as operações da Polícia Federal e Ministério Público Federal quando, no seu entender, escancarou “as obscuras redes de reciprocidade entre autoridades públicas de diferentes escalões, a totalidade dos partidos políticos de expressão e corporações privadas multibilionárias” (LAGO, 2018, p. 103). Com todos os defeitos que a democracia incide, o autor chama atenção para o debate propositivo, racional, calcado na razoabilidade. Assim, para Lago, é preciso cultivar uma cultura democrática e incentivar a tolerância na esfera pública, pela qual é possível saber “priorizar o conjunto e criar um ambiente adequado para a resolução de conflitos” (LAGO, 2018, p. 109).
O penúltimo capítulo, Liberdade religiosa e laicidade: luzes da história para o Brasil, o autor segue argumentando de que o protestantismo é parte da concepção democrática do Ocidente e, como tal, precisa caminhar nas pegadas que outros já trilharam. Trazendo a contribuição da cultura bíblica sobre o tema da política, Lago chega na Reforma protestante como um divisor de águas na cultura democrática. Fazendo uso de autores conhecidos que discutem a contribuição do protestantismo para a democracia ocidental, o autor lembra que o protestantismo e a democracia nunca foram antagônicos, mesmo com fortes tensões. Desse modo, os evangélicos brasileiros têm no lastro histórico exemplos de tolerância, diálogo, mas, sobretudo, respeito à democracia.
No último capítulo, Fé, razão e diálogo, o autor propõe uma síntese ao elencar o lugar da fé (religião), da razão (razoabilidade no debate público) e do diálogo (tolerância para ouvir e convergir em temas comuns com o outro). Com isso, a sua argumentação chega no seu ponto mais importante: “Diálogo democrático no Brasil multiconfessional” (LAGO, 2018, p. 163). O que ele propõe para os evangélicos quando no debate público, é que a partir do reconhecimento da multiplicidade das confissões (pluralidade de ideias), haja um respeito “as regras do jogo democrático” (LAGO, 2018, p. 164). Com isso, o autor espera estabelecer um critério de discussão para o embate de ideias na esfera pública, onde seja possível que nos debates políticos que envolvam a fé, a linguagem seja pública, ou seja, que a tradução seja dentro da razoabilidade do debate público (LAGO, 2018, p. 165). Para o autor, as coisas seriam melhores se houvesse “mais sal e menos ácido; menos olho por olho e mais olho no olho” (LAGO, 2018, p. 172).
A conclusão de Lago reforça o lugar dos evangélicos no debate público, mas também não deixa de destacar que “uma visão superficial sobre o que significa o poder de uma nação por parte de um segmento das lideranças evangélicas não contribui para os interesses nacionais” (LAGO, 2018, p. 174). Em outras palavras, Lago está colocando que os evangélicos precisam se ater a elementos que, de fato, forneça um ambiente de debate e participação política. Esses elementos, segundo o autor, são: (i) O diálogo democrático a partir da Constituição Federal. Nesse sentido qualquer discussão na esfera pública que não tenha como baliza a Constituição Federal é infrutífero e, em alguns casos, ilegítimo (por exemplo, cristãos evangélicos que advogam uma intervenção militar e muitos deles até mesmo reivindicam o Ato Institucional número cinco, o mais antidemocrático e persecutório do regime ditatorial instalado no Brasil a partir de 1964, não tem qualquer legitimidade no debate público, pelo fato da Constituição Federal ser categoricamente contra a qualquer rompimento institucional, violando assim o Estado Democrático de Direito; (ii) O diálogo democrático a partir do respeito, tolerância e racionalidade, a fim de favorecer a troca de ideias e construção política tendo como base o marco civilizatório do debate público. Agindo assim, evita-se que as bravatas, preconceitos e discursos de ódio contaminem o debate na esfera pública. O diálogo racional, “é perceber os pontos convergentes entre grupos que pensam diferentes, é trabalhar consensos equilibrados, é ouvir todos os lados envolvidos, é dimensionar as coisas como de fato são” (LAGO, 2018, p. 176); (iii) O diálogo democrático avança com educação, senso de republicanismo e integridade ética, ou seja, só será possível ter diálogo quando esses marcos estiverem consolidados na cultura democrática brasileira, do contrário, será corriqueiro a corrupção, a falta de justiça e a demagogia política. Lago reforça o ponto fundamental, qual seja, que “diante do recrudescimento dos conflitos políticos no Brasil, não podemos esquecer qual é o objetivo central que interessa a todos nós: construir uma sociedade livre, justa e solidária. O diálogo democrático é uma das ferramentas mais poderosas nessa construção” (LAGO, 2018, p. 177).
O segundo texto objeto das nossas análises, é do então ex-deputado estadual, o médico e pastor, Carlos Alberto Bezerra Jr. O livro, Fé cidadã: quando a espiritualidade e a política se encontram, é o resultado de alguns anos do autor como parlamentar e ativista social em defesa dos Direitos Humanos. Bezerra Jr. deu uma importante contribuição ao estado de São Paulo quando conseguiu aprovar uma legislação de combate ao trabalho escravo, servindo de modelo para o Brasil bem como para outros países, com o devido reconhecimento da ONU. Nesse texto, o autor procura estabelecer um diálogo com os evangélicos na tentativa de fazê-los ver que os direitos humanos e a espiritualidade cristã não são dicotômicas, ao contrário, todo o cristão engajado com a sua fé terá nos direitos humanos uma arena de luta e reivindicações sociais. Diferente do texto de Davi Lago, a construção teórica no texto de Bezerra Jr. não é prontamente discutida. O que nos levou a considerar essa obra para ser analisada aqui, foi sua relevância para o debate político feita por um político evangélico para os evangélicos. Pelo fato do autor ter um vínculo institucional com a política, isso favorece o debate e a temática do ativismo político-social. Com isso, Bezerra Jr. é a demonstração de que é possível fazer política partidária e estar totalmente engajado com um projeto político que está para além do cargo público que ocupa. Por essa característica, o texto não foca tanto na construção teórica quanto a formação política como poderia se esperar, o que em Lago isso já ficou mais demonstrado.
Na primeira parte, Religião e política, o autor chama a atenção para o fato de que o cristianismo sempre esteve envolvido com as questões da cidade. É por meio do compromisso profético dos cristãos, que as coisas precisam ser ditas na esfera pública, tanto por aqueles que se elegem para cargo público, quanto por aqueles que não tem cargo nenhum, mas todos participam do espírito profético que dá impulso à caminhada cristã. É a partir disso que o autor esboça o que deveria acontecer para que a igreja fosse mais proativa na política. Quando diante de um modelo político que já se esgotou, o país espera renovação quanto ao trato com a coisa pública. Assim, é preciso forjar “homens e mulheres que discernem seu tempo e que expressam suas vocações de serviço por meio da política” (BEZERRA JR., 2018, p. 41). Para que algo assim aconteça, é preciso antes favorecer “escolas de formação política em nossas comunidades, aprofundamento em teologia pública e agendas de convergência e serviço em busca de transformação que nos unam” (BEZERRA JR., 2018, p. 41). O autor está consciente de que essa “formação política” é a maior deficiência da comunidade evangélica, ou seja, falta um aparato teórico-prático para desenvolver uma cultura evangélica na política.
Superada as distâncias entre evangélicos e política brasileira desde o período da redemocratização do país, o autor chama a atenção de que a política praticada por evangélicos, principalmente com a bancada evangélica no Congresso Nacional, precisaria se ater a temas que fossem de interesse nacional. Segundo ele, a bancada evangélica, assim como tantas outras frentes no parlamento, não pode “perder de vista as reais necessidades de grande parcela da população brasileira, colocada à margem dos direitos mais básicos, como educação e saúde de qualidade, moradia, emprego, saneamento básico e lazer” (BEZERRA JR., 2018, p. 53). A constatação que o autor chega, é que a grande maioria dos evangélicos envolvidos na política, não tem projeto político para o Brasil e, por essa razão, não se pronunciam de maneira contundente “sobre questões ligadas a temas como violência urbana, sistemas econômicos, racismo, desigualdade social, valores democráticos e combate à corrupção” (BEZERRA JR., 2018, p. 54-55). Enquanto a demanda por políticas públicas é urgente, os políticos evangélicos não acompanham o debate, o que faz surgir a pergunta: “Por que, quando se trata de pautas moralistas, a bancada evangélica é rápida na atuação, mas quando se trata de justiça social, ela se cala?” (BEZERRA JR., 2018, p. 63).
Na segunda parte do seu texto, Religião e cidadania, o autor se dedica a pensar o que lhe é mais caro como cristão, parlamentar e ativista social: justiça social e direitos humanos. O que Bezerra Jr. quer é fazer com que os evangélicos entendam que militar por direitos humanos está para além das nomenclaturas pejorativas, das preferências partidárias e das ideologias políticas que disputam o discurso dos direitos humanos. Cristãos de destaque militaram em favor dos direitos humanos como Martin Luther King Jr. e a irmão Dorothy Stang, um protestante e uma católica. Por essa razão, que igreja precisa olhar para os marginalizados da história e ver a dor e o sofrimento que assola o país (BEZERRA JR., 2018, p. 81). Para que isso aconteça, o autor reforça a centralidade da democracia, da cidadania e da participação da igreja na discussão e implementação de políticas que valorizem o ser humano nas suas necessidades. É dessa maneira que os cristãos estarão inseridos na cidade, quando se envolverem em lutas pela “liberdade, pela igualdade entre todos os cidadãos, contra a exclusão, sinalizando um outro modo de viver” (BEZERRA JR., 2018, p. 93).
Na última parte, Sonhos possíveis, se dá o encontro do autor com aquilo que ele entende como possibilidades de colocar em ação uma fé cidadã. Essa fé cidadã está envolvida com uma cidade invisível, com aqueles que não são no sistema público; a fé cidadã está envolvida com o combate à violência urbana, principalmente nas grandes periferias da cidade; a fé cidadã se importa com os desfavorecidos. Para que uma fé cidadã seja possível em termos de aporte teórico político e prática social, Bezerra Jr. entende que é imprescindível que a igreja estimule e qualifique os cristãos para o debate público, e assim, “possam ter clareza sobre a importância da democracia, da cidadania ativa e de quanto a política influencia [a] vida, até nas questões mais triviais e cotidianas” (BEZERRA JR., 2018, p. 123). O papel da igreja, nesse sentido, é “preparar um espaço de formação cívica, de comprometimento com o outro, de envolvimento com uma abordagem fiel à ética do evangelho, que resulte em permanente diálogo sobre diferentes visões políticas” (BEZERRA JR., 2018, p. 124). A proposta do autor, portanto, passa pela igreja quando esta fomenta um ambiente que visa forjar cristãos atentos a dinâmica político-social da cidade, do estado e do país. Como se trata de um político, Bezerra Jr. sabe muito bem que isso não é comum nas igrejas evangélicas, ou seja, não há um espaço de fomentação de ideias para o debate público. Quando há, são casos isolados e, geralmente, com grupos que já destoaram da grande maioria dos evangélicos no Brasil, sendo, portanto, comunidades alternativas. É por isso, que há um pedido do autor: “Aos líderes das igrejas cabe endossar a educação política de seus membros, para que eles pensem e ajam de acordo com suas convicções e compromissos e façam escolhas conscientes, com base em critérios e valores” (BEZERRA JR., 2018, p. 125). Desse modo, o autor reforça que o debate político se dá com informações, com entendimento do que seja os meandros da coisa pública. A espiritualidade não se dá apenas no seu aspecto subjetivo em ambiente religioso, mas também por meio de uma fé engajada socialmente e uma cidadania politizada. O engajamento político não é feito tão somente pela via partidária, antes é uma “tarefa diária de serviço e de luta pela garantia de direitos em favor dos que mais precisam” (BEZERRA JR., 2018, p. 126-127)
O texto do teólogo, pastor e doutor em filosofia, Pedro Lucas Dulci, procura ser uma contribuição acadêmica para o debate entre fé e política a partir da perspectiva reformada, principalmente a que se desenvolveu entre teólogos e acadêmicos na Holanda. Partindo do pensamento de autores de destaque no contexto reformado holandês como Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd, o autor produziu o livro Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã. O conteúdo do livro é uma importante contribuição acadêmica ao tema, além de explicitar o pensamento reformado quando o assunto é fé cristã e política nacional. O autor, que tem formação em teologia, fez sua caminhada acadêmica na filosofia, pesquisando o filósofo italiano Giorgio Agamben, bem como outros nomes conhecidos da filosofia contemporânea buscando uma interface entre teologia reformada e filosofia política. Com o propósito de dar conteúdo reformado as suas análises, o autor recorre aos conhecidos intérpretes da “filosofia reformada” como James K. A. Smith, David T. Koyzis e Nicholas Wolterstorff.
Em cinco capítulos, Dulci quer tratar do problema da política e suas ideologias e, ao final, apresentar um projeto de formação política que tem na igreja a sua promoção. Assim, no primeiro capítulo, A religião tem importância pública?, o autor procura tratar do processo da secularização e como esse comportamento político, filosófico e cultural não eliminou a noção religiosa, antes compartimentalizou a religião, tratando-a como um dado subjetivo e, como se pretendia, não contar com a religião para tratar de assuntos da sociedade. O que se viu não foi isso. Antes, a política absorveu o conteúdo teológico, secularizando os principais temas da teologia, e isso é demonstrando quando há “a permanência de práticas, posturas e concepções marcadamente religiosas no âmbito político” (DULCI, 2018, p. 26). Dito isso, o autor está bem convicto do que pretende tratar, o que seja: o cristão precisa atentar para as questões políticas a partir da sua fé e, dessa maneira, fazer valer na esfera pública a sua condição de discípulo de Jesus Cristo, tendo a igreja como lugar privilegiado para fomentar as ideias sobre política, não dependendo, necessariamente, de ideologias. Nas suas palavras, “a formação do discipulado cristão é fundamental para dirigir a fisionomia política das democracias ocidentais” (DULCI, 2018, p. 30-31). Partindo desse lugar de fala que o autor destaca, não resta a menor dúvida de que o texto é “sobre militância política centrada no discipulado cristão [...] um tratado de ‘militância eclesiocêntrica’” (DULCI, 2018, p. 31). O projeto político que Dulci (2018, p. 46) quer apresentar, está para além da participação em eleições, antes, trata-se de explicitar o lugar da teologia cristã no debate público que, segundo o autor, é “mais do que eleições, partidos políticos e plataformas ideológicas”. Dulci desconsidera todas as ideologias políticas como válidas.
A fim de colocar o cristianismo no centro do debate público, Dulci assume o seu exclusivismo cristão no capítulo Qual “religião” e em qual “esfera pública”?, e pontua que a religião que interessa para que esse debate aconteça é a cristã. Como foi o cristianismo quem forjou o Ocidente, para o autor nada mais natural ser o cristianismo o promotor de virtudes que favoreça o debate político, uma vez que a igreja sempre desempenhou esse papel em contato com o Império Romano, por exemplo. O seu aporte está no “fato de a fé cristã ter nascido da crença em um Deus que transcendia todas essas estruturas biológicas, sociais e políticas [e isso] foi fundamental não apenas para dar sustentabilidade ao movimento, mas também para fazer com que suas influências fossem sentidas profundamente na sociedade civil” (DULCI, 2018, p. 62).
No terceiro capítulo, O que teologia tem a ver com política?, Dulci acentua o lugar da teologia na política, tema que voltou com força nas duas últimas décadas. Preferindo Agostinho ao invés de Aristóteles para falar de política, o autor pontua a configuração política e econômica da sociedade a partir da relação bem tênue com a teologia. Aqui ele faz uso de Giorgio Agamben, Slavoj Žižek e Walter Benjamin a fim de assegurar que as práticas públicas carregam, invariavelmente, concepções religiosas (DULCI, 2018, p. 74). Isso no campo econômico, político e cultural. O seu argumento chega a uma máxima: “Gastamos a maior parte de nossos esforços intelectuais e práticos acreditando que os problemas públicos são de ordem política (que uma gestão pública conseguiria trazer melhoras), entretanto não percebemos que a maioria dos desafios a que somos submetidos é de ordem pré-política” (DULCI, 2018, p. 80). O autor está convencido de que essa “ordem pré-política”, ou seja, o que antecede a qualquer comportamento, postura e ideia política, está no campo das virtudes, uma vez que são as “virtudes que movem os agentes políticos na esfera pública” (DULCI, 2018, p. 80). Os cristãos não podem ignorar esse dado que é essencial no trato da política, do contrário, permanece superficial qualquer análise política (DULCI, 2018, p. 80).
No penúltimo capítulo, E as outras religiões na esfera pública?, o autor que já colocou suas estacas, passa a entender melhor o lugar do pluralismo na sociedade, seja religioso e/ou político. O cristão é chamado a encarar esse pluralismo e marcar posição a partir da sua doutrina e concepção política fundamentada nesta. Daí o chamamento da igreja para assumir a sua posição que tem a responsabilidade pública de servir a “glória de Deus” (DULCI, 2018, p. 121). O último capítulo, Igreja é lugar de falar sobre política?, Dulci estica mais um pouco essa “responsabilidade pública da igreja”. Para o autor, a igreja funciona como uma espécie de “incubadora de virtudes”, ou seja, não há nenhum outro espaço na sociedade que tenha condições satisfatórias de formar cidadãos politicamente engajados que não seja na igreja. A igreja com sua liturgia centrada em Cristo, promove um contrassenso nas pautas que a sociedade apresenta.4 Isso ocorre porque os cristãos tem outra perspectiva da vida e suas dimensões, trabalha liturgicamente na vivencia da igreja. Assim, “as esperanças do partido político, do projeto de marketing da empresa ou do plano político pedagógico da escola não tem aderência em um coração embebido das liturgias cristãs” (DULCI, 2018, p. 148). Isso significa que o cidadão mais qualificado para atuar na cidade e nas políticas públicas, é o membro de igreja. Isso se dá porque a igreja é capaz de “‘devolver’ à sociedade civil uma comunidade de cidadãos que possuem condições privilegiadas de suprir o capital moral de que nossas cidades plurais necessitam para não se dissolverem em corrupção” (DULCI, 2018, p. 148). Uma vez que a igreja é esse lugar de incubar virtudes, a política que a igreja precisa militar está “em fazer com que as plurais esferas públicas se submetam às ordenanças do Criador, para que todos os povos experimentem já, ainda que não plenamente, o que significa viver sob a dinâmica do reinado de Deus” (DULCI, 2018, p. 153).
O projeto político, de acordo com o autor aqui analisado, não concebe qualquer tipo de ideologia política, antes a igreja precisa resistir a militância cristã, principalmente. De acordo com Dulci, há “uma tendência recorrente na ação política cristã: buscar a justiça por meio de caminhos ‘naturalizados’. Em outras palavras, trata-se de uma tendência que permeia diferentes ideologias políticas contemporâneas de convocar a Igreja de Cristo a um projeto social em que Deus não aparece como arquiteto, construtor e exclusivo viabilizador” (DULCI, 2018, p. 183). Como igreja, a sua ação na esfera pública será pautar a glória de Deus na sociedade, transformando cidadãos em homens e mulheres honradas com o maior grau de responsabilidade, compromisso social por meio das virtudes que a igreja tem como incumbência favorecer quando esta celebra a sua liturgia (serviço ao povo).
Quando iniciamos esse texto, ressaltamos a pluralidade evangélica no Brasil e suas mais distintas representações na esfera pública. A Frente Parlamentar Evangélica, por exemplo, é fruto da enorme diversidade de grupos evangélicos no país. Ainda assim, há quem entenda que fala “em nome dos evangélicos”, como costumam se apresentar os diferentes pastores midiáticos.
É dentro desse cenário político evangélico, que observamos haver uma maior participação quanto ao ativismo político. Há inúmeros candidatos nas eleições em diferentes graus no país que reivindicam a “proteção da família” como principal pauta de atuação, mas não há qualquer projeto político voltado para a proteção da família na sua complexidade diária, apenas o ativismo focado na sexualidade. O que mais ocorre em períodos eleitorais, principalmente depois de 2016, é o tema da “família” ser o principal assunto em grupos de WhatsApp e redes sociais, mas apenas com um único viés, o comportamento sexual. Com isso, fica patente que há um projeto político em ação de políticos evangélicos “profissionais” que enquanto ocupa a grande maioria dos evangélicos com esse e demais temas de caráter moralizante, fazem suas alianças com o poder, negociando o suposto “voto evangélico” nos corredores do Congresso Nacional e no Palácio do Planalto. Além do lobby que é feito com o governo e empresas por quem entende que “controla” a massa evangélica porque promove a “Marcha para Jesus” uma vez por ano, os acordos estabelecidos são maquiados com campanhas nacionais de “jejum e oração pela nação brasileira”. Enquanto isso, não há qualquer projeto político específico que promova os valores do cristianismo, uma vez que a grande maioria dos políticos evangélicos agem e pensam da mesma maneira que os demais políticos sem filiação com igrejas. Assim, como estamos sublinhando aqui, há ativismo político entre os evangélicos de diferentes concepções político-ideológicas, mas quanto à projetos claros que sinalizam de maneira bem específica e de forma indubitável o que os evangélicos podem ou querem realmente fazer pelo país na esfera pública, ainda permanece ausente. Em décadas anteriores, esse espaço foi preenchido de alguma forma pelo bispo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Robinson Cavalcanti. Com seus textos na então revista Ultimato, Cavalcanti escreveu inúmeros artigos procurando fornecer elementos para pensar a política como um projeto e não apenas como ativismo de ocasião, embora o segundo derive do primeiro em algum grau. Com o texto Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica, Cavalcanti, que era professor na área de Ciências Políticas da Universidade Federal de Pernambuco, buscou dar suportes teóricos e práticos para que os evangélicos pensassem politicamente e forjassem um projeto político para o Brasil a longo prazo. É mais comum haver teses, dissertações, artigos, livros e blogs que procuram dar conta da atuação dos evangélicos na política, mas não, necessariamente, um elaborado projeto político a partir de bases cívicas e teológicas que dê condições para que a atuação de evangélicos no debate político seja proativo, instigador e provocativo. Paul Freston sempre que era necessário alertava: “As igrejas precisam ir além da conscientização política da comunidade evangélica para a formação política [...]. Promover encontros de formação que inclua base teológica do engajamento político” (FRESTON, 2006, p. 30).
Depois de 2016, com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, a polarização ganhou as ruas e as redes sociais, tendo o seu auge em 2018 com a eleição presidencial, permanecendo até hoje, e dando sinais de que tão cedo irá arrefecer. É dentro desse contexto que os textos que aqui analisamos está inserido. Os autores que aqui elencamos, procuraram ir um pouco mais além do ativismo político evangélico e propuseram um projeto político, ou seja, dar subsídios para que evangélicos tenham propriedade para falar e agir na esfera pública. O que chama a atenção nas três obras analisadas, é que todos estão querendo superar a polarização e apresentar um caminho que seja coerente com a democracia e a teologia cristã. Lago (2018, p. 176), argumenta que esse clima de polarização irracional não faz outra coisa senão camuflar “projetos obscuros de poder”. Bezerra Jr. (2018, p. 61), por sua vez, classifica aqueles que vivem da disputa de narrativas como “seita do espetáculo” e “promotores do business do ódio”. Dulci (2018, p. 86), é categórico ao dizer que “a polarização política [...] é um dos maiores inimigos da vida em comunidade, [e] do bem público”. Todos os autores aqui analisados têm como base essa polarização que varreu o país e obnubilou mentes e corações. Daí que o projeto político precisa passar pela maneira de enxergar a política, assim como entender o cristianismo e sua contribuição histórica, bem como a ajuda da teologia na construção teórica e prática de uma percepção política. Nesse sentido, os autores estão procurando fazer o que entendem faltar no contexto da igreja evangélica brasileira, o que seja: um projeto político que cuide de pensar o ordenamento democrático e jurídico da sociedade (Davi Lago); uma fé cristã comprometida com este tempo, que dê força para atuar em questões que são prementes na sociedade (Carlos Alberto Bezerra Jr.); uma igreja como incubadora de cristãos competentes e comprometidos com uma liturgia no espaço público (Pedro Dulci). Ainda que não haja uma relação entre os conteúdos tratados pelos autores, todos partem do pressuposto de que a igreja está refém de um discurso político, quer de direita ou de esquerda, e, portanto, precisa balizar suas escolhas a partir de parâmetros que sejam sólidos e coerentes com a fé cristã.
A carência de projeto político que contemple os evangélicos na esfera pública é notória. As propostas aqui analisadas têm seus méritos e lugar de fala. São, portanto, muito bem-vindas no atual contexto em que o país vive e carece de um debate centrado e produtivo que envolva as questões que realmente interessam à população brasileira. Ainda assim, os textos que aqui trouxemos para analisar tem suas deficiências, até porque nenhum projeto tem a pretensão de ser definitivo, mas contributivo.
Em Brasil polifônico, o autor trata o ordenamento do Estado Democrático de Direito com um certo ufanismo. Com o propósito de lançar as bases para que a igreja evangélica se encontre dentro da “cultura democrática”, Lago em nenhum momento chama a atenção para o fato de que a igreja evangélica não apenas apoiou, como também participou do golpe civil-militar em 1964 que promoveu uma ruptura institucional sem precedentes no país. Essa igreja ainda não debateu esse lado obscuro da sua história de maneira honesta e ampla. É bom recordar que o apoio das igrejas ao regime de exceção teve como base a defesa da “liberdade religiosa”. Em nome da “liberdade religiosa”, que acreditaram estar ameaçada pela suposta tomada do país pelos “comunistas”, igrejas deram o aval de maneira contundente à ditadura militar. Não por acaso, que a igreja evangélica brasileira conviveu muito bem com a ditadura militar, porque nutria interesses comuns, os quais ainda hoje são patentes.5 E mesmo depois da Constituição Federal de 1988, há muitos pastores e membros de igrejas defendendo regimes de exceção em “nome de Deus”, desconsiderando completamente o esforço de muitos em fazer com que o país respirasse novamente ares democráticos. Isso demostra, que não basta ter a letra da lei e os códigos necessários para o bom ordenamento político e jurídico, se ainda impera uma visão distorcida e equivocada do que realmente foi o período mais sanguento da história do país. Assim, não é razoável que os evangélicos não tenham uma clara percepção do que foi o dia cinco de outubro de 1988. Se ainda há evangélicos que não entendem que é preciso respeitar o diferente da sua fé e as minorias, não é possível promover uma “cultura democrática” a partir da igreja. Lago quer um projeto político pautado pelo diálogo da igreja com a sociedade a partir dos caros pressupostos da democracia. Faltou ao autor pautar o passado e o presente dessa igreja, que ainda não está plenamente convencida das implicações equitativas que a Constituição Federal impõe à sociedade brasileira. Basta olhar as relações espúrias entre igreja e governos nos últimos anos. Embora seja salutar a inciativa de Lago, é preciso encarar o fato de que a igreja evangélica, em algum momento, se desviou do caminho do diálogo democrático e ainda não se encontrou com ele.
Com Fé cidadã, ficamos contentes em saber que há pessoas como Carlos Bezerra Jr. que fazem da política uma vocação para ajudar quem mais precisa. Ele é a prova de que é possível mudar, basta querer fazer o certo não se importando com as consequências de ganho ou perda de prestígio político. Bezerra Jr. é um crítico do sistema político evangélico que busca benefícios próprios, quer individuais ou corporativos. O que salta no seu projeto político que tem os direitos humanos como carro-chefe, é a tentativa do autor em se desvencilhar da pecha de ser chamado ou reconhecido como um “marxista” por isso. Com esse receio, o autor busca pautar a sua conduta política e o seu ativismo político em prol dos direitos humanos sem levar em conta qualquer aparato teórico de análise da realidade. Mesmo sendo filiado a um partido que tem um histórico de pautas da social-democracia, Bezerra Jr. entende que precisa discutir o capitalismo quando pensa em um projeto político que envolve os menos favorecidos. Mas quando faz isso, não apresenta as causas da má distribuição de renda; não critica o acúmulo de renda por poucos; não identifica que a falta de direitos é consequência da ausência sistemática de recursos e bens. A fim de escapar dessa encruzilhada, o autor faz o jogo que estamos acostumados a ver recorrentemente, qual seja, demonstra onde está a falha, mas não apresenta um argumento satisfatório para enfrentar a causa dessa falha. E assim, o autor não consegue mirar no problema de maneira concreta. Não por acaso argumenta: “Criticar o capitalismo não é automaticamente elogiar seu pretenso opositor, o socialismo. Até porque, como disse o ativista cristão [norte] americano Shane Claiborne, ‘quando nós de fato descobrirmos como amar o próximo como a nós mesmos, o capitalismo não mais será possível e o socialismo será desnecessário’” (BEZERRA JR., 2018, p. 88). Enquanto muitos ainda não descobriram “como amar o próximo”, as condições de vida dos menos favorecidos continuam sendo motivo de ações paliativas e o problema que está por trás do dano não é colocado. Como já disse Dom Hélder Câmara: “Se dou comida aos pobres, eles me chamam de santo. Se pergunto por que os pobres não têm comida, eles me chamam de comunista”. A falta de uma leitura teórica da realidade inviabiliza um projeto político mais coerente com a realidade mostrada. Desse modo, o discurso de que é preciso “intensificar a produção de projetos e ideias que valorizem as pessoas, disseminem uma cultura de paz, lutem por justiça e igualdade de oportunidades para todos” (BEZERRA JR., 2018, p. 90), mas não apresenta os meios para que essa produção e disseminação aconteça, o projeto político fica deficitário. Para que algo assim seja mais crível, é preciso sim focar em problemas concretos como o autor focou em relação ao trabalho escravo e produziu uma das melhores legislações sobre o tema, mas também se faz necessário questionar a estrutura que dá suporte para que direitos e dignidade sejam anulados.
No texto Fé cristã e ação política, há uma construção teórica elaborada. Como ressaltamos, o autor tem formação em filosofia e está disposto a pensar filosofia política e fé reformada. Um exercício interessante, uma vez que é quase escasso o debate sobre esse tema no Brasil vindo do contexto reformado. Como vimos, Dulci recorre aos pensadores holandeses que, de modo muito diferente do contexto brasileiro, a relação envolvendo política, igreja e universidade foi de grande relevância para o país. Abraham Kuyper, por exemplo, foi o responsável por criar a Universidade Livre de Amsterdã, bem como liderou um movimento de reforma da igreja e, como não sendo o suficiente, entrou na política, criando um dos mais modernos partidos da política holandesa. O principal autor que Dulci faz ressoar suas ideias e ensinos, conseguiu um feito na Holanda quando atuou e fez valer os princípios cristãos no parlamento holandês, não apenas propondo leis que favoreciam os trabalhadores, como também fazia questão de divulgar seu projeto político por meio de um jornal de identificação cristã (FRESTON, 2006, p. 71). Com Dulci, há o objetivo de fugir das polarizações e ideologias políticas, e por isso o autor se concentra apenas na igreja como lugar de transformação política, quando esta vive liturgicamente na sociedade. Sendo uma preocupação latente, Dulci (2018, p. 103) está convencido de que a igreja precisa estar fora de qualquer influência político-ideológica, o que significa dizer que “um cristão não pode ser de direita nem de esquerda, ele precisa ser de fora de tais esquemas organizacionais”. Dulci (2018, p. 130), está tão concentrado na igreja como incubadora de virtudes para o espaço público, que admite que pastores televisivos, ainda que não tenha uma linguagem adequada na esfera pública, ao assumirem certas pautas públicas, ecoam os valores cristãos no debate político. O autor não menciona que são esses mesmos pastores televisivos, que já foram capturados pela ideologia política há muito tempo, é que fazem, sempre que podem, negociatas com o poder público em troca de apoio político em eleições nas diferentes esferas de poder. São essas igrejas desses pastores que Dulci entende que são o lugar privilegiado para formar cidadãos no espaço público? Ao que parece não. Ele pensa na igreja de linha reformada, aquela igreja que tem uma liturgia centrada e muito bem-organizada onde a pregação, a adoração e a ética seja a tônica para o profissional liberal, o professor, o empresário e o médico (DULCI, 2018, p. 152). E quanto a uma igreja onde a denominação é centrada em um personagem e o culto é direcionado para aspectos tão somente espiritualistas e a teologia divulgada é de caráter individualista, alimentada por uma teologia do domínio e da prosperidade, é possível haver uma incubação de virtudes que tenha relevância na esfera pública? Dulci (2018, p. 157) entende que não, uma vez que nessas igrejas “a fé cristã foi reduzida a um emocionalismo alienante, que faz de Deus uma força impessoal com o propósito de ‘me agradar’”. Então, o projeto político que Dulci (2018, p. 160) apresenta passa primeiro em “ensinar” a igreja a ser igreja no Brasil, uma tarefa que demanda tempo, principalmente quando a própria igreja que o autor integra, tem, hoje, ministros pastores compondo o alto escalão do atual governo, cooptados ideologicamente pelo segmento político da extrema direita. De qualquer modo, não cabe a igreja querer lutar para ver aumentar a liberdade, a igualdade entre homens e mulheres ou até mesmo o fim da opressão econômica. Para o autor, essas questões são irrisórias diante de uma igreja que está “esperando o rei com novos céus e novas terras” (DULCI, 2018, p. 189).
Com este artigo, buscou-se apresentar as três obras que, no nosso entender, tomaram corretamente a iniciativa de abrir o debate político com a igreja de maneira mais razoável, quando perceberam a necessidade de apontar caminhos para se pensar política e sua relação com a fé cristã que não ficasse dentro dos aspectos polarizados que o universo evangélico, assim como boa parte do país, está desde 2016 e de maneira mais intensa em 2018. Nesse sentido, tal iniciativa é muito bem-vinda, até porque o cenário político envolvendo os evangélicos não é dos melhores, principalmente quando os meios de comunicação atrelam de maneira acrítica e, não poucas vezes, indiscriminada a figura do presidente da República aos evangélicos de um modo geral, colocando esse segmento do cristianismo como a principal base de apoio do atual presidente, como também a porcentagem a ser disputada nas eleições de 2022.
Um debate pautado em questões que envolvem o Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal, as demandas sociais e a relevância da igreja nesse processo, são muito pertinentes. Até porque, a grande maioria das análises tratando dos evangélicos na política estão marcadas por descrições e ativismo político, poucas trazem os projetos por trás desse ativismo. Por essa razão, entendemos que ampliar o debate é de interesse para a esfera pública, mesmo que seja permeado por tensões internas.
ALENCAR, Gustavo de. “Grupos protestantes e engajamento social: uma análise dos discursos e ações de coletivos evangélicos progressistas”. Religião e Sociedade, n. 39 (3), p. 173-196, 2019.
BEZERRA JR., Carlos. Fé cidadã: quando a espiritualidade e a política se encontram. São Paulo: Mundo Cristão, 2018.
BURITY, Joanildo. “Itinerário histórico-político dos evangélicos no Brasil”. In: PÉREZ GUADALUPE, José L.; CARRANZA, Brenda (Orgs.). Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020, p. 195-215.
CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica. Viçosa: Ultimato, 2002.
CUNHA, Magali do Nascimento. “Religião e política: uma visão protestante”. In: TOSTES, Angelica; RIBEIRO, Claudio de Oliveira (Orgs.). Religiões e intervenções políticas: múltiplos olhares. São Paulo: Recriar, 2020, p. 23-46.
CUNHA, Magali do Nascimento. Do púlpito às mídias sociais: evangélicos na política e ativismo digital. Curitiba: Prismas, 2017. DIP, Andrea. Em nome de quem?: a bancada evangélica e seu projeto de poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
DULCI, Pedro. Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã. Viçosa: Ultimato, 2018.
FRESTON, Paul. Religião e política, sim; igreja e estado, não: os evangélicos e a participação política. Viçosa: Ultimato, 2006.
LAGO, Davi. Brasil polifônico: os evangélicos e as estruturas de poder. São Paulo: Mundo Cristão, 2018.
MARTINS, Yago. A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria. Rio de Janeiro: Record, 2019.
ROSA, Wanderley Pereira da. Por uma fé encarnada: uma introdução à história do protestantismo no Brasil. São Paulo: Recriar, 2020.
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[1] Ativismo político é um conjunto de fatores sociais e subjetivos que gera movimento. Assim, consideramos ativismo político quando há “mobilizações em torno de insatisfações de grupos sociais que se organizam para expressar suas reivindicações no espaço público” (CUNHA, 2017, p. 178).
[2] O teólogo Yago Martins integra o Instituto Ludwig von Mises Brasil. No seu livro mais conhecido, tratou de como a ajuda aos moradores de rua aumenta a pobreza. O livro, A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria (2019), é o resultado do tempo em que o pastor se disfarçou de mendigo a fim de demonstrar que a ajuda aos moradores de rua prejudicava-os e não ajudava tanto, pelo fato de terem a colaboração dos outros (ONGs e igrejas) para permanecerem no exercício da mendicância.
[3] “Foi no seio da Confederação que se gestaram as mais importantes ações de protestantes brasileiros que se lançavam à tarefa de pensar o Brasil e o papel do protestantismo nacional na construção do país. Por outro lado, devemos nos lembrar de que debaixo desse guarda-chuva que era a CEB conviviam as forças progressistas e conservadoras desse protestantismo. De modo geral, pode-se dizer que até o início da década de 1950 esses dois grupos conviveram com razoável tranquilidade e cooperação” (ROSA, 2020, p. 93).
[4] O autor tem em Nicholas Wolterstorff a sua compreensão de liturgia: “No grego clássico, a palavra [leitourgia] era empregada para se referir a um serviço realizado por um indivíduo em benefício público [...]. A palavra leitourgia nunca quis dizer ato do povo. Ela significa ato ‘em benefício do povo’. A liturgia era uma espécie de serviço público” (WOLTERSTORFF apud DULCI, 2018, p. 141).
[5] “As igrejas geralmente vivem bem com ditaduras de direita, porque estas garantem a liberdade religiosa, entendida como o direito de reunir-se nas igrejas e de propagar a sua mensagem em público e pelos meios de comunicação, bem como a ausência de restrições sobre a ocupação de qualquer cargo por pessoa com convicções religiosas. Se isso é garantido, o regime pode ter a política que quiser quanto a direitos humanos e distribuição de renda” (FRESTON, 2006, p. 99).