Resenha      
Diccionario Bergoglio: las palabras clave de un pontificado       

Rodolfo Gasparini Morbiolo*
Ney de Souza** 
*Doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor no Instituto de Teologia “São João Paulo II” da Arquidiocese de Sorocaba/SP. Contato:rodolfo.morbiolo@gmail.com
**Doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG-Roma). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Contato:
 nsouza@pucsp.br  
 

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A Igreja caminha para as etapas finais do papado de Francisco. 

Hoje na altura dos seus 85 anos, após quase 10 anos de pontificado, mostra-se inevitável que perspectivas futuras comecem a desenharse em todos os ambientes da eclesialidade, como ainda o esforço de conservar os princípios com os quais enriqueceu o magistério petrino.  

O Papa Argentino ainda pode permanecer muito tempo ocupando o 266º lugar na sucessão de São Pedro; de fato, a vitalidade e os ideais de governo que foram assinalados pelos documentos universais e particulares já publicados, como pelos inúmeros diálogos e entrevistas, por vezes, aos olhos fundamentalistas, impertinentes, ainda provocam os ânimos dos insensatos, e vida acadêmica ativa em inúmeros centros de conhecimento; além de acrescentar ao ambiente eclesial expressões de efeito, neologismos, que conjugam um novo vocabulário Bergoglio-Francisco, cuja origem remete à sua larga experiência de episcopado. Um episcopado à sombra das referências delineadas pelo Concílio Vaticano II, acrescidas da experiência pastoral e mística de um jesuíta, cuja vida vivida na fé, apresenta-se como a melhor definição de suas crenças e a forma de seu magistério. 

Pautado neste anseio de reunir as expressões chave de Bergoglio-Francisco, Francesc Torralba Roselló (Barcelona, 1967), doutor em filosofia e teologia (pedagogia, história, arqueologia e artes cristãs), e professor de filosofia e antropologia da Universidade Ramon Llull de Barcelona, e consultor do Pontifício Conselho para Cultura, concretizou-o na publicação em espanhol aqui apresentada, o “Diccionario Bergoglio: las palabras clave de un pontificado” (a Editora Vozes, possui hoje em seu catálogo, pelo menos três obras do autor publicadas em português brasileiro; a obra aqui resenhada, porém, não tem previsão de publicação no Brasil, conforme consulta à editora. Um elenco completo das suas publicações e artigos, pode ser verificado em sua página oficial: www.francesctorralba.com).  

O “Diccionario Bergoglio”, como foi apresentado pela mídia vaticana (www.vaticannews.va/pt) em seu lançamento é uma viagem nas palavras do atual Papa para compreender sua profundidade; um verdadeiro itinerário nas expressões cunhadas por Francisco que se tornaram centro epistemológico de seu magistério, nova síntese de conceitos elevados e facilmente acessíveis a todos.

A obra também tem prólogo do jesuíta, jornalista e midiático Antonio Spadaro, diretor de “La Cilvitá Cattolica”, veículo de comunicação italiano que se tornou indispensável na defesa e apoio do Papa Francisco desde os inícios do Pontificado. No prólogo, Spadaro recupera o que depois o próprio Papa Francisco enfatizará na encíclica “Fratelli tutti”, isto é, o desafio atual do esvaziamento do sentido das grandes palavras, e sua contínua abstração formalista, como se não estivessem enraizadas na condição de vida, histórica e real. Tal nominalismo tende a reduzir Jesus Cristo apenas a uma ideia, pervertendo o cristianismo em uma ideologia, “palabras sin peso proprio, palabras que no hacen carne”. Como ressalta Spadaro, este princípio epistemológico do pensamento do Papa tem raízes longínquas na experiência pastoral de Bergoglio como Arcebispo de Buenos Aires (1999). E desafia os estudiosos do Papa Francisco, inclusive o autor do “Diccionario Bergoglio”, a abordar sua prosa com uma análise ao mesmo tempo poética e linguística, que respeite sua sabedoria e espontaneidade na arte da comunicação, levando em conta que o Papa não fala apenas com palavras, mas com toda a sua corporeidade, envolvendo-se com as palavras que anuncia. 

Não obstante a discreta crítica de Spadaro, honestamente transcrita a modo de prólogo, a obra de Torralba apresenta-se como uma espécie de dicionário que reúne alguns neologismos usados pelo Papa Francisco em sua vasta experiência de proclamador do Evangelho de Jesus aos novos destinatários, atuais, da Igreja de Cristo. Como todo neologismo, as expressões bergoglianas não são novas, pois já existem formalmente nas línguas atuais, mas recebem novo conteúdo, próprio do seu ensinamento, histórico e concreto, vivencial e real, jamais guiadas pela mera necessidade de comunicar, mas pela exigência de impetrar por meio das palavras, a fé crida e vivida, primeiro pessoalmente, depois ensinada ao próximo. 

Sem dúvida alguma, a expressão “alzhéimer espiritual” é uma das mais sonantes. Tal expressão jamais foi usada por seus antecessores. Nos lábios do Papa Francisco, fala da doença do esquecimento e da perda da identidade, que acomete pessoas e grupos, convidando à redescoberta da alma cristã, ao lado das raízes judias e muçulmanas, com seus valores éticos e espirituais, edificadores do humanismo sobre o qual se constrói a civilização. O sentido desta expressão convida à integração dos planos espiritual, ecológico e pessoal da existência, pois os valores éticos e espirituais estão a serviço do cuidado que o ser humano deve ter para com a obra do Criador colocada em suas mãos, a Casa Comum e a humanidade, passando pelo resgate da memória histórica dos antepassados pessoais e coletivos, pais, avós e aqueles que transmitiram com sua vida e exemplo a fé e seus valores, cuja catequese ainda tem vitalidade na fase atual do magistério do Papa Francisco. 

Ao lado do “alzhéimer espiritual”, é possível ler o chamado à saída de si mesmo (“salida de si”), e a ruptura com a doença da autoreferencialidade, pessoal ou comunitária. Uma nota que homenageia o chamado à evangelização “ad extra” do pós-Vaticano II. Uma Igreja menos autoreferencial mostra-se como mãe solidária atenta às necessidades urgentes e atuais de seus filhos e de toda a humanidade. O ser humano menos autoreferencial mostra-se sempre aberto ao próximo na amizade e na fraternidade, sempre solidário. 

De fato, o esforço de Torralba em seu “Diccionario Bergoglio” tem limites, pois a proatividade criativa do Papa Francisco parece sem limites até agora. A obra publicada no espanhol em 2019, prescinde o conteúdo da encíclica “Fratelli tutti” (2020), carta magna que convida à Igreja à amizade social e à fraternidade universal, e dos desenvolvimentos do convite à redescoberta da sinodalidade eclesial. Não obstante este entrave de síntese de um pontificado ainda em processo, as raízes profundas dos conceitos e princípios que pululam o magistério em andamento do Papa Francisco, parecem solidamente nutridas dos neologismos anotados no texto de Torralba; entre eles: a superação da globalização da indiferença pela globalização da solidariedade na Casa Comum da humanidade, expressão de misericórdia para com as periferias da existência e do mundo, nutridora de uma verdadeira revolução da ternura e da cultura do encontro, nas quais o perdão se manifesta como a forma mais edificadora do amor 

Papa Francisco, por vezes, foi incompreendido.  

O desafio de sintetizar o conteúdo da fé em novas formas de linguagem, carrega consigo o risco da incompreensão. Nem sempre é possível explicar tudo nos mínimos detalhes, ainda mais quando se está em um avião de volta para casa, sob o peso do cansaço de viagens apostólicas; cansaço que nunca impediu o Papa de responder aos jornalistas e articulistas, sedentos da sua sabedoria e de uma atenção jamais prestada com tanto esmero na história da Igreja, nesta virada de milênio. Tampouco a mídia oportunista deixou de ser um obstáculo à compreensão da pregação do Papa, publicando e exibindo em manchetes apenas aquilo que chamava a atenção dos ávidos aos espetáculos, verdadeiros redutivismos de suas falas e ensinamentos. 

Para além do risco de incompreensão, o Papa Francisco assume o desafio, com evidente criatividade, e Torralba o ressalta, de repensar e repropor a fé, não pela mudança do conteúdo imutável, mas incutindo seu conteúdo em formas novas, por assim dizer, evangelizando-as a partir de dentro; ou ainda, engravidando-as da fé cristã e recuperando-lhes a identidade humana, de uma linguagem que provém da realidade. Nada mais próximo dos ideais de inculturação próprios da nova evangelização. E o faz com a competência de alguém que se vê guiado pelo Espírito Santo, tirando o novo e o velho, dos tesouros imensos da Igreja, que continua a ensinar sem medo em novas formas, como um filho bom e fiel. 

Referências

RESENHA: TORRALBA, Francesc. Diccionario Bergoglio: las palabras clave de un pontificado. Madrid/ES: San Pablo, 2019 (342p.; ISBN 978- 8428557740).