Diálogo e encontro para uma humanidade integral: aproximações entre Buber e Papa Francisco, a partir de Laudato Si     
Dialogue and encounter for an integral humanity: approximations between Buber and Pope Francis, based on Laudato Si      

Marcial Maçaneiro*
Maycon Renan S. S. Boni**

*Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG-Roma). Professor de Teologia no Programa de Pós-graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. (PGT PUC PR). Contato: marcialscj@gmail.com 
**Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Contato: 
myconrenan2@hotmail.com 
 

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Resumo

Papa Francisco destaca a cultura do encontro como caminho de realização humana integral, alicerçada no diálogo e na paz. Sua proposta ilumina a releitura de Martin Buber, filósofo do diálogo, para verificar as aproximações entre este pensador judeu e o pontífice latino-americano. Segundo Buber o ser humano é um ser de relação, com três esferas de diálogo: com a natureza, com o ser humano e com os seres espirituais – esfera que inclui Deus. Dentre essas três esferas, a segunda, referida à humanidade, Buber denomina de inter-humano: relação na qual o Eu encontra a resposta do Tu. Papa Francisco, por sua vez, inclui essas três esferas na encíclica Laudato Si’: relação do ser humano com a Terra, com o outro humano e com Deus. Em ambos, a relação do ser humano com o outro caracteriza o diálogo inter-humano, em dinâmica de realização integral. No presente artigo, apresentam-se as noções e as correspondências entre os dois autores quanto ao diálogo inter-humano, na perspectiva da humanidade integral. 

Palavras-chaves: Diálogo; Humanidade integral; Relação; Martin Buber; Papa Francisco  

Abstract

Pope Francis highlights the culture of encounter as a way of integral human fulfillment. His proposal invites us to reread Martin Buber, philosopher of dialogue, verifying the similarities between him and the Latin American pontiff. According to Buber, the human being is a being of relationship, with three spheres of dialogue: with nature, with human beings and with spiritual beings – a sphere that includes God. Among these three spheres, the second one, referring to humanity, Buber calls inter-human: a relationship in which the I finds the answer of the You. Pope Francis, in turn, includes these three spheres in the encyclical Laudato Si’: the relationship of the human being with the Earth, with the other human being and with God. In both, the relationship of the human being with the other characterizes the inter-human dialogue, in a dynamic of integral realization. In this article, the concepts, and correspondences between the two authors regarding inter- -human dialogue are presented, from the perspective of integral humanity. 

Keywords: Dialogue; Integral humanity; Relationship; Martin Buber; Pope Francis 


Introdução

O filósofo e teólogo austríaco-judeu Martin Buber (1878-1965) é conhecido por construir seu pensamento acerca do diálogo. Buber presenciou as duas Grandes Guerras; e sofreu a perseguição nazista, precisando refugiar-se para salvar a própria vida. Desde o seu tempo, tal pensador percebeu como o mundo estava imerso na falta de diálogo autêntico, e constatou que o ser humano fundamenta a sua existência à medida que se relaciona com um Tu. 

O ser humano é ser de relação; e segundo Buber há três esferas de relação abertas ao ser humano: com a natureza, com os demais seres humanos e com os ditos seres espirituais, onde se enquadra o diálogo com Deus. Para o pensador, na esfera da relação dos seres humanos com os seres humanos é que se encontra resposta de um Tu; ao modo de um dar e um receber. Porém, na esfera específica da relação com o outro, chamada por Buber de inter-humano, existem alguns fatores que impedem que o diálogo seja genuíno e autêntico: ser e parecer, imposição e abertura e tornar-se presente da pessoa. Segundo o autor, tais fatores são como barreiras a superar, para que haja a relação Eu-Tu genuína e construtiva. 

No que toca ao Papa Francisco, este publicou uma encíclica chamada Laudato Si’; tal documento se insere no magistério social da Igreja (LS, 15), é um documento aberto, dirigido não apenas para o interno da Igreja, mas para todos os seres humanos, pois todos fazem parte da casa comum, como infere Francisco (LS, 13-14). Nesta encíclica, o Papa assevera que para uma ecologia integral, o ser humano estabelece ou pelo menos deve estabelecer três formas de relação, à semelhança daquilo que propõe Buber: com a terra, com outros seres humanos e com Deus. Francisco, aliás, assevera que tudo está interligado como uma teia no mundo, de modo que não é possível se isolar. 

Assim, o tema da relação dos seres humanos entre si na Laudato Si’ se insere na reflexão mais ampla sobre a ecologia, do Papa Francisco. Ele procura identificar as causas da ruptura das relações por parte dos seres humanos com as três esferas da relação, e explica que o pecado está nas raízes mais profundas de tal ruptura. Com isso, segundo ele, é possível compreender a razão da violência, da exploração, do tráfico humano como num todo, das guerras, e inclusive da pobreza. 

Sendo assim, no presente artigo se abordará em Martin Buber a respeito da relação do ser humano com o ser humano, os elementos do inter-humano (ser e parecer; tornar-se presente da pessoa; imposição e abertura; e a conversação genuína). Em Francisco se abordará a respeito da relação do ser humano com o ser humano e a categoria ‘pobres’ na Laudato Si’. 

Relação do ser humano com o ser humano

Segundo Martin Buber “o ser humano é o ente apto ao relacionamento pessoal com a alteridade, é o ser em relação” (BARTHOLO JR, 2001, p. 77). Sim, o “homem é, assim, um ser de relações. [...] A relação não é uma propriedade do homem, mas um evento que acontece entre o homem e o que lhe está em face” (VON ZUBEN, 2003. p. 148). De acordo com Von Zuben (2003, p. 97), o critério de maior valor, dentre as três esferas da relação, sobre a reciprocidade, é o da relação de ser humano com ser humano, pois é nesta que acontece o dialógico, a relação inter-humana na qual a invocação encontra sua verdadeira e plena resposta. Buber diz que “nesta esfera a relação é manifesta e explícita: podemos endereçar e receber o Tu” (2006, p. 55). Das três esferas onde é estabelecida a relação é esta que se destaca, pois aqui a linguagem se dá de forma completa, na interlocução de um discurso com réplica, ou seja, com um dar e um receber. 

Na esfera inter-humana, quando se profere a palavra-princípio, se encontra retorno; existe além da relação, também a integridade1 (BUBER, 2006, p. 142). O ser humano não é apenas uma coisa, nem somente um Ele ou Ela, não pode também ser considerado como algo que se possa descrever, uma qualidade, uma forma de ser. Ele é um Tu que não é limitado. É claro que se pode extrair de tais seres humanos – assim como os seres da natureza –, alguns traços, mas aí ele já não pode ser considerado mais meu Tu. Buber pondera que o ser humano – a quem me dirijo como Tu – não pode ser encontrado em nenhum lugar ou tempo; pois quando o situo já não é mais um Tu (segunda pessoa), mas um Isso, um Ele ou Ela (terceira pessoa), distante já do face-a-face. Tentar situar ou apreender a pessoa em algum lugar ou tempo, já é fugir do encontro, da relação dialogal. 

Pode-se dizer que nesta esfera é que o ser humano pode dizer que existe realmente um contemplar e também ser contemplado, pois se reconhece e também se é reconhecido, pode-se amar e ser amado da mesma maneira. O autor explica que quando existe a relação com o ser humano é a imagem verdadeira da relação com Deus, na qual a invocação possui participação da resposta; claro que quando esta é verdadeira. 

Nota-se, portanto, que é na relação com o ser humano que se reflete a verdadeira imagem da relação que existe com Deus, pois é nesse tipo de relação que a verdadeira invocação tem participação da verdadeira resposta; porém segundo o filósofo, na resposta que provêm de Deus o Todo se revela como uma linguagem (BUBER, 2006, p. 119ss). É na esfera humana que a reciprocidade pode atingir seu grau mais elevado, pois na relação dialógica a palavra da invocação recebe resposta. Nesse sentido, a reciprocidade rompe o imanentismo do Eu lançando-o no encontro face a face, e é aí que o Eu e o Tu se personificam (VON ZUBEN, 2003, p. 152). 

Buber utiliza o conceito ‘dialógico’ para falar da relação de ser humano e ser humano, ou seja, “o dialógico é para Buber a forma explicativa do fenômeno inter-humano. O inter-humano implica a presença ao evento de encontro mútuo” (VON ZUBEN, 2003, p. 92). Para Buber, a existência se revela quando ocorre o dialógico. Von Zuben (2003, p. 155) ainda explica que o dialógico ocorre entre as pessoas envolvidas; além disso, é distinto do psicológico na medida em que este acontece no interior de cada indivíduo. Onde estaria o sentido do diálogo? No intercâmbio, na interação, no ínterim das duas palavras. 

De acordo com o filósofo, para que o diálogo seja autêntico, é preciso que um parceiro da relação tome conhecimento íntimo do outro, esteja interessado pelo outro com quem se está estabelecendo diálogo, relação. Em que consiste tal conhecimento íntimo? Von Zuben salienta que “seria uma compreensão ‘transitiva’ de alguém” (2003, p. 157). 

Elementos do inter-humano

Na obra Do diálogo e do dialógico, Buber desenvolve sua percepção do inter-humano, mediante a contraposição daquilo que o ser humano moderno coloca como oposição ao inter-humano (ideal para o diálogo), que é o social (coletivo). Para o pensador, o inter-humano é a vida entre pessoa e pessoa, e esta parece retrair-se cada vez mais diante do coletivo. O um-com-o-outro coletivo, por outro lado, tem como preocupação em conter dentro dos limites a tendência da pessoa para o um-em-direção-ao-outro. É como se os seres humanos, vinculados num grupo, só devessem juntos estar voltados para a obra do grupo; em encontros de valor secundário, poderiam se dedicar aos parceiros pessoais tolerados pelo grupo. Buber quer esclarecer que o que se pode notar no ser humano moderno é que os vínculos face a face são praticamente sem importância, visto que o grupo, o coletivo, é que tem a primazia. 

Buber salienta, pois, que o domínio do inter-humano se estende muito além do domínio da simpatia. Como, por exemplo, incidentes simples podem já pertencer ao domínio do inter-humano: num bonde superlotado de pessoas, dois desconhecidos podem trocar olhares atentos para que, em seguida, o momento se afunde novamente na conveniência do não-querer-saber-nada-um-do-outro. Também a tal domínio deve-se contar todo encontro entre adversários, por casual que seja, quando ele influencia no comportamento mútuo, ou seja, quando algo ocorre entre os adversários. O mais importante é que um tome consciência do outro, independentemente dos sentimentos aí acarretados ou não. O decisivo é não tomar o outro como um objeto, mas como seu parceiro num acontecimento da vida, mesmo que seja numa luta de boxe. Portanto, o decisivo, segundo Buber, é o não-ser-objeto. Pois o outro deve ser percebido como outro, como aquele que está no face-a-face e não como um objeto. 

Antes de entrarmos nos elementos problemáticos do inter-humano que dificultam o diálogo autêntico, é fundamental nos perguntarmos e entendermos o que, afinal, Buber quer dizer por esfera do “inter-humano”? - Buber explica (1982, p. 138): 

[...] por esfera do inter-humano entendo apenas os acontecimentos atuais entre homens, dêem-se em mutualidade ou sejam de tal natureza que, completando-se, possam atingir diretamente a mutualidade; pois a participação dos dois parceiros é, por princípio, indispensável. A esfera do inter-humano é aquela do face a face, do um-ao-outro; é o seu desdobramento que chamamos dialógico.  

Buber ainda explica que, é fundamentalmente equivocado querer compreender os fenômenos inter-humanos como fenômenos psíquicos. Como, por exemplo, dois sujeitos conversam entre si; pertence a tal situação aquilo que ocorre na alma de tais pessoas, o que acontece quando um ao outro escuta, quando ele próprio se dispõe a falar. No entanto, isto é somente o acompanhamento secreto da própria conversação, de um acontecimento fonético carregado de sentido, cujo sentido não se encontra nem em um dos parceiros, nem nos dois em conjunto, mas encontra-se somente entre os dois parceiros. É aquilo que Buber propõe como sendo o “Entre”. 

Nosso pensador adverte sobre três problemas principais para a realização do diálogo no inter-humano: o ‘ser e parecer’ que está ligado a uma vida de aparência; o ‘modo como percebemos os outros’ que está ligado a uma vida de observação analítica do outro, reduzindo-o, portanto, a um objeto; e por fim, a ‘imposição e abertura’, que está ligado a forçar o outro com minhas ideias, vontades etc. Tais pontos serão analisados a seguir. 

Ser e parecer

A primeira problemática que impede com que o inter-humano aconteça é o do ‘ser e do parecer’, que diz respeito ao fato já conhecido de que as pessoas se preocupam insistentemente com a impressão que estão causando nas outras pessoas; tal fato, segundo o filósofo, tem sido até então discutido mais do ponto de vista da filosofia moral do que da antropologia. A questão do ‘ser e do parecer’ pode ser impedimento para que aconteça a conversação genuína. 

Buber procura fazer distinção entre duas formas de existência humana, a fim de clarear aquilo que ele pretende expor sobre o ser e o parecer. A primeira forma de existência é a vida a partir do ser, a qual se mostra aquilo que se é; a segunda forma de existência diz respeito a uma vida de aparência, de uma imagem que é passada para os outros. Segundo nosso pensador, isto seria o querer parecer. 

Para clarificar, Buber procura demonstrar um exemplo de dois homens que se olham, sendo que o primeiro deles se apresenta sendo aquilo que ele é. Esse seria o ‘ser’. O segundo é o que vive de aparências, o ‘parecer’: 

O homem que vive conforme o seu ser e olha para o outro precisamente como se olha para alguém com quem se mantém relações pessoais; é um olhar ‘espontâneo’, ‘sem reservas’; é verdade que, naturalmente, ele não deixa de ser influenciado pela intenção de fazer-se compreender pelo outro, mas não é influenciado por qualquer pensamento sobre a imagem que pode ou deve despertar no outro, quanto à sua própria natureza. É diferente com o seu oposto: já que para ele o que importa é a imagem que sua aparência produz no outro, isto é, o componente mais ‘expressivo’ desta aparência, o seu olhar, ele ‘faz’ este olhar (BUBER, 1982, p. 142).  

De acordo com Buber, no caso do primeiro homem, ele pode ser influenciado em querer passar apenas uma imagem, mas não o faz. Ele se lança de forma espontânea na relação, enquanto o outro se preocupa apenas com a imagem e acaba somente transmitindo aquilo que possivelmente ele não seja. Isso é muito comum nos dias de hoje, tanto na vida real, quanto virtual. Recentemente, nota- -se que nas redes sociais muitas pessoas usam o recurso do avatar ou publicam perfis artificiais, mostrando uma vida que não é sua, não é real, mas aparência e fragmentação. 

Nosso filósofo ainda menciona outro exemplo no qual descreve uma existência de aparências: a que se pretende passar, a que se passa ao outro e como tal aparência é vista por si próprio: 

Imaginemos agora dois homens-imagens, sentados lado-a- -lado e falando um-com-o-outro – chamemo-los de Pedro e Paulo – e contemos as figurações que entram no jogo. Temos de início Pedro como ele quer aparecer a Paulo e Paulo como quer aparecer a Pedro; em seguida Pedro como ele realmente aparece a Paulo, que comumente não corresponderá de forma alguma à imagem de si que Pedro deseja que Paulo tenha e vice-versa; e ainda Pedro como aparece a si próprio e Paulo como aparece a si próprio; e finalmente Pedro encarnado e Paulo encarnado. Dois seres vivos e seis aparências fantasmagóricas que se misturam de maneiras diversas na conversa entre os dois! Onde sobraria aqui ainda espaço para a legitimidade do inter-humano! (BUBER, 1982, p. 143). 

No que toca o inter-humano, o verdadeiro e autêntico sentido da palavra verdade ocorre quando as pessoas que se comunicam são verdadeiras a ponto de dizerem aquilo que de fato são, sem medo, sem reservas, sem fingimento. O ser humano precisa e deve se deixar abandonar diante do outro de maneira espontânea, pois se não for assim, arrisca não realizar sua existência autenticamente. Como observa Von Zuben (2003, p. 171): “O diálogo não acontece se aqueles que estão envolvidos nele são simples aparência, isto é, se estão preocupados com sua imagem, com o modo pelo qual desejam encontrar o outro”. Sendo assim, os parceiros do diálogo precisam ‘ser’, vale a pena dizer, devem apresentar- -se sem reservas como de fato são. 

Tornar-se presente da pessoa

O segundo problema do inter-humano que pode prejudicar conversação genuína é o do tornar-se presente. Von Zuben (2003, p. 171), nota que “o segundo problema diz respeito ao modo pelo qual percebemos os outros. Para Buber, perceber o outro é tomar dele um conhecimento íntimo, diferente da observação analítica e redutora que transforma o outro em simples objeto”. Na compreensão de Martin Buber, esse conhecimento íntimo que se deve ter do outro é o que ele designa como o tornar-se presente da pessoa. 

De acordo com o pensador, para que haja um diálogo puro e verdadeiro é necessário perceber o outro interlocutor como de fato é. Além disso, é preciso tomar conhecimento dele, saber de sua vida, tomar um conhecimento íntimo nos quais não existam atitudes de superficialidade ou aparências. Ao tomar conhecimento de tal parceiro é preciso com toda seriedade dirigir-lhe a palavra. Aceitar a pessoa como ela é não significa que se deva ceder ou declinar ao que está diga ou manifeste. Buber não se refere a qualquer subordinação ou declinação. 

Buber (1982, p. 147) explica em que sentido ele se refere a tomar um conhecimento íntimo do outro: 

Tomar conhecimento íntimo de uma coisa ou de um ser significa, em geral, experienciá-lo como uma totalidade e contudo, ao mesmo tempo, sem abstrações que o reduzam, experienciá-lo em toda a sua concretude. Mas o homem, embora se encontre como ser entre seres e como coisa entre coisas, constitui uma categoria diferente de todas as coisas e todos os seres: pois o homem só pode ser compreendido realmente do ponto de vista do dom do espírito como fazendo parte decisiva da vida pessoal do homem, isto é, o espírito que determina a pessoa. Tomar conhecimento íntimo de um homem significa então, principalmente, perceber sua totalidade enquanto pessoa determinada pelo espírito, perceber o centro dinâmico que imprime o perceptível signo da unicidade e toda a sua manifestação, ação e atitude. Mas um tal conhecimento íntimo é impossível se o outro, enquanto outro, é para mim o objeto destacado da minha contemplação ou mesmo observação, pois a estas últimas esta totalidade e este centro não se dão a conhecer: o conhecimento íntimo só se torna possível quando me coloco de uma forma elementar em relação com o outro, portanto quando ele se torna presença para mim. É por isso que designo a tomada de conhecimento íntimo neste sentido especial como o tornar-se presente da pessoa.  

Aplicando aos dias de hoje a perspectiva de Buber, o que tem acontecido frequentemente é que o olhar analítico entre ser humano e ser humano tem sido muito acirrado, ou seja, as pessoas apenas têm procurado perceber o outro apenas fisicamente, reduzindo o outro a objeto. Muitas vezes o olhar reduz aquilo que realmente a pessoa é, simplificando-a como uma coisa entre coisas. 

Portanto, para que o diálogo seja genuíno é preciso que o ser seja audacioso, ousado para penetrar o outro e conhecer sua interioridade. É preciso ver o outro como aquele que vem ao meu encontro, aquele que é meu singular. É necessário procurar torná-lo presente para mim em toda sua totalidade (BUBER, 1982, p. 147-148). O outro deve ser acolhido, respeitado, bem como precisa receber mais do que um olhar analítico e reducionista, mas ser compreendido realmente como ele é. 

Imposição e abertura

Por fim, o último dentre os três fatores que impedem que aconteça verdadeiramente o diálogo, é denominado por Buber como sendo o mais poderoso e mais perigoso: trata-se da imposição e abertura. Von Zuben (2003, p. 171) explica que “um modo de afetar uma pessoa é impor-se a ela”. A imposição tem como contraposição a abertura. Esta significa estar aberto à relação, estar acessível para o outro que lhe está defronte. 

Buber (1982, p. 150) descreve duas formas básicas existentes, as quais possibilitam que os seres humanos se influenciem uns aos outros na sua forma de pensar e de agir: 

Na primeira, a pessoa quer se impor a si própria, impor sua opinião e atitude de tal forma que o outro pense que o resultado psíquico da ação é seu próprio entendimento, apenas liberado por aquela influência. Na segunda maneira básica de agir sobre o outro, a pessoa quer encontrar também na alma do outro, como nela instalado, e incentivar aquilo que em si mesmo ele reconheceu como certo; já que é o certo, então deve também estar vivo no microcosmo do outro como uma possibilidade dentre outras possibilidades.  

A primeira deu-se de forma mais intensa na área da propaganda e a segunda na da educação. Aquele que é propagandista, segundo Buber, não se importa de forma absoluta pela pessoa à qual pretende influenciar, se importando somente com aquilo que de fato vai lhe oferecer alguma vantagem. 

De acordo com Buber, onde existem seres humanos que mantém relações, sempre existem as atitudes de propiciar abertura ou imposição, seja em menor ou maior escala. Porém, tais atitudes de abertura ou imposição não podem ser confundidas com conceitos bem definidos que são a humildade e o orgulho. Alguém que é orgulhoso, não necessariamente tem que se impor aos outros, mas também pode propiciar abertura a alguém sem precisar ser necessariamente humilde. Buber esclarece que ao se tratar do orgulho e da humildade, é preciso entendê- -los como disposições da alma, ou algo individual psicológico. Já a imposição e abertura são artifícios que ocorrem entre os humanos que na verdade apontam para a ontologia do inter-humano. Dito de outro modo, imposição e abertura não se trata de virtudes individuais, mas algo que acontece na relação do ser humano com o ser humano. 

Para o nosso filósofo, o ser humano não é um ser feito para o isolamento, mas para a relação com outros seres humanos, isso faz parte de sua natureza. Contudo, nada deve se opor a essa relação, principalmente à questão da aparência, pois é preciso tornar o outro presente como também já foi relatado. É fundamental que os parceiros da relação não se imponham um sobre o outro para que de fato possa haver uma abertura entre eles. Como se pode notar, com palavras firmes, Buber (1982, p. 152) salienta o que realmente acontece quando existe abertura entre os parceiros no diálogo genuíno: 

É a função de abertura entre os homens, é o auxílio ao vir a ser homem enquanto ser-próprio, é a assistência mútua na realização do ser-próprio da natureza humana conforme a criação, é isto que leva o inter-humano à sua verdadeira altura. É somente quando há dois homens, dos quais cada um, ao ter o outro em mente, tem em mente ao mesmo tempo a coisa elevada que a este é destinada e que serve ao cumprimento do seu destino, sem querer impor ao outro algo da própria realização, é somente aí que se manifesta de uma forma encarnada toda a glória dinâmica do ser do homem. 

Aquilo que ocorre com o inter-humano quando vive na mutualidade, quando a relação acontece sem imposição de um para com o outro, é que este é levado à verdadeira altura. É aí que o sentido da criação da existência humana se completa (BUBER, 1982, p. 152). 

A conversação genuína

Depois que Buber esclarece sobre os elementos do inter-humano e os três problemas que podem afetar a conversação ou diálogo, ele explica o que de fato compreende por conversação genuína. Nosso pensador assevera que quando acontece a conversação genuína um parceiro se volta para o outro numa totalidade, sem reservas. Quando se fala com o outro é preciso tê-lo em mente e isso implica retornar o conceito abordado anteriormente, o ‘tornar-presente’. Ter alguém em mente, pois, significa tornar o outro presente no momento. 

Na conversação genuína quando um fala com o outro, se percebe esse outro e também o aceita como parceiro, isso quer dizer que ao aceitar esse outro da relação também há uma confirmação dele. Então, para que aconteça a conversação genuína os parceiros devem ser o que são e se apresentarem como são. Ainda no momento da conversação é fundamental colocar o que se tem em mente sem negar ou esconder nada, é preciso colocar tudo aquilo que está sendo pensado em tal conversação, sem reservas. 

É preciso ter em mente que, para Buber, a conversação genuína pertence à esfera ontológica que faz parte da autenticidade do ser. Aquilo que é somente aparência pode prejudicar tal conversação – a qual invoca a autenticidade do que é dito. Segundo Buber, isso é superar as aparências nas quais já se falou anteriormente. Autenticidade é uma palavra adequada para descrever o tipo de atitude que se deve ter entre os que participam da conversação. A conversação realiza-se de forma verdadeira e profunda quando os parceiros verdadeiramente voltam-se um-para-o-outro. Buber infere que, estes se expressam de forma franca e sem nenhuma intenção de parecer, de se mascarar tentando mostrar aquilo que não é. Esse voltar-se para-o-outro acontece muitas vezes quando o diálogo é a dois, mas nada impede que aconteça entre várias pessoas. 

Quando acontecer entre várias pessoas esse diálogo, que também é chamado de conversação genuína, cada um deve dizer aquilo que tem a dizer, sem omitir ou esconder nada. Caso permaneça calado não há problema, desde que não tenha nada o que falar, porém se tiver algo em mente é preciso dizer. 

Vale recordar que em Buber a conversação genuína é o diálogo, e não simplesmente bate papo sem interesse algum pelo parceiro que lhe está defronte. Sobre isso, Von Zuben (2003, p. 175) esclarece: 

A relação inter-humana no diálogo não se reduz a uma conversa, um meio de comunicação entre dois indivíduos. O diálogo é uma ação recíproca entre dois seres concretos e bem determinados. O Eu não se relaciona com ‘alguém’, mas com um outro bem determinado. Esta ação recíproca encerra não só a afirmação ou a aceitação da alteridade do outro mas também a confirmação deste outro.  

Martin Buber nos faz notar que nos dias de hoje é difícil encontrar a conversação genuína, em sua essência, pois a publicidade faz com que se façam propagandas, se esquematize diálogos para vender aos públicos interessados. A conversação genuína acontece de forma espontânea, nela não existe uma estruturação do que vai ser conversado, nada é determinado. Porém, propagandas, debates públicos, não podem ser considerados conversação genuína, porque não acontecem de forma espontânea, e nem de forma direta (BUBER, 1982, p. 153- 156). Nos dias de hoje, os riscos da midiatização da cultura são evidentes, sobretudo com as redes sociais e seus perfis; a midiatização interfere nas relações, agiliza a interatividade, mas traz ambivalências como fragmentação do sujeito e os perfis artificiais. 

Tendo exposto elementos da filosofia buberiana no que diz respeito à segunda esfera de relações que o ser humano pode estabelecer, a esfera com seres humanos, adiante abordaremos alguns elementos daquilo que também o Papa Francisco apresenta na Encíclica Laudato Si’, sobre a mesma esfera de relações que o ser humano pode estabelecer. 

Relação do ser humano com o ser humano na Laudato si’

A questão acerca do ser humano na Laudato Si’ (LS) inclui-se na reflexão sobre a ecologia que, segundo Francisco, engloba não só a relação com a Terra (natureza), mas também a relação com o ser humano e com o Criador. Além dessas três relações, o Papa Francisco assinala que é fundamental estar em harmonia consigo mesmo. No que toca à harmonia em todas essas esferas, o Papa toma por exemplo a Francisco de Assis, que “era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os homens, com a natureza e consigo mesmo” (LS, 10). Com efeito, a “síntese franciscana do Cristianismo” (MARTÍ-VELASCO, 1997, p. 92) atravessa toda a encíclica como perspectiva espiritual-existencial. 

Também Kuzma e Tisi, ao discutirem sobre as relações segundo a Laudato Si’, destacam a necessidade de constatar a hodierna condição do planeta, para discernir e promover “uma nova forma de relação do ser humano com o mundo onde vive, com a natureza e com as pessoas que o cercam, para as quais devemos nos colocar em atitude de responsabilidade e cuidado” (2020, p. 309). Aliás, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto ela se relaciona, quando sai de si mesmo para viver em comunhão com Deus, com os outros e com as outras criaturas todas. Com isso, assume na própria vida, na própria existência aquele dinamismo que a própria Trindade imprimiu nela desde a criação. Com isso, clarifica a compreensão de que tudo está interligado (LS, 240). 

Souza (2016, p. 145) salienta que a Laudato Si’, é uma reflexão ampla, de perspectiva antropológica, mas centrada na questão ecológica pela qual o Papa dimensiona a vida humana na Terra. Zampieri (2016, p. 21) explica que a encíclica é uma provocação ao debate e uma provocação para sair do estado de crise ecológica na qual a humanidade se encontra; em suma, é um estímulo ao diálogo. 

O Papa Francisco recorda que todos os seres humanos e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estão unidos por laços invisíveis e formam uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que os impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde (LS, 89). Nesta perspectiva “tudo está interligado” – como ele diz reiteradamente (LS, 42, 91, 117, 138, 142). Logo, “não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência” (LS, 119). Em todas as relações, ensina Francisco, é preciso “a abertura a um ‘tu’ capaz de conhecer, amar e dialogar” (LS, 119). Isso “continua a ser a grande nobreza da pessoa humana” (LS, 119). 

Assim como Buber, o Papa apresenta o ser humano como um ser de relação e de diálogo. Trata-se de uma característica própria da humanidade, segundo a Imago Dei que faz das pessoas sujeitos abertos à relação – inclusive com o Transcendente: “para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao Tu divino” (LS, 119). 

Sendo ser de diálogo, o Papa procura explicar as causas da crise ecológica em termos de fechamento ou ruptura do ser humano para com o outro ser humano, com a decorrente falta de diálogo, de relação, de reciprocidade. Tal ruptura e fechamento denotam a condição de pecado, que fragmenta o ser e impede o diálogo (cf. LS, 66). O pecado causa fechamento e egoísmo, ou como diria Buber, o egótico. Nesse sentido, Francisco evoca a narração de Caim e Abel, e comenta sobre a inveja que levou Caim a cometer a injustiça contra o seu irmão. Isto provocou uma ruptura da relação entre Caim e Deus, e entre Caim e a terra, da qual foi exilado (LS, 70). De acordo com o Papa: 

o descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o relacionamento interior consigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra. Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda vida está em perigo (LS, 70).  

Buber, na obra Imagens do bem e do Mal, a qual não está discutindo sobre ecologia, mas que aborda sobre a questão do bem e do mal, como alude o nome da obra, coloca-nos pontos que se adequam bem à nossa reflexão sobre a ruptura das relações, sobretudo do ser humano com ser humano: 

Este fala de um crime propriamente dito. [...] e assim, é-nos ditos, o “conhecimento do bem e do mal” pleno e humano produz seus efeitos nas gerações vindouras – não como “pecado original”, mas como o pecado específico só possível em relação a Deus que, só Ele, torna possível o pecado genérico contra as co-criaturas e, assim, novamente, contra Deus como protetor delas (BUBER, 1992, p. 21). 

O pecado de Caim contra o seu irmão, torna-se pecado contra Deus, e contra as criaturas todas. A partir do pecado de Caim contra o seu irmão – o primeiro fratricídio –, estabelece-se uma desordem na criação, e consequentemente, em todas as relações. De acordo com Francisco (LS, 70), aquilo que o ser humano faz com a natureza, sua falta de respeito, dominação, destruição e etc., é inseparável da relação de fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros. 

Ao falar sobre o enorme poder que a humanidade tem sobre si mesma, o Papa recorda as bombas atômicas lançadas em pleno século XX, bem como a exibição de tecnologia ostentada por vários regimes como o nazismo, comunismo, regimes totalitários; esta serviu apenas para exterminar milhões de pessoas, sem esquecer que nos tempos atuais a guerra dispõe de instrumentos cada vez mais mortíferos (LS, 104). O próprio Martin Buber, quando morava na Alemanha, precisou fugir, pois Hitler desencadeou uma política de extermínio dos judeus. Essa questão, portanto, elencada pelo Papa, de tanto poder do ser humano e de tudo isso usado para matar pessoas, é eco do que acima foi mencionado, ou seja, o pecado que trouxe desarmonia para as relações, bem como não perceber os outros seres humanos como “outro”. Trata-se, assim, de vê-los como Isso e não como Tu. 

Nesta mesma direção, o Papa salienta que, quando o pensamento cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar acima dos outros seres criados, suscita o valor de cada pessoa humana, e, portanto, estimula o reconhecimento do outro. Se abrir a um “tu” capaz de conhecer, amar e dialogar, continua a ser a grande nobreza da pessoa humana (LS, 119). Aqui o pensamento de Francisco e de Buber se aproximam: para ambos o ser humano é ser de relação. Aqui, Francisco assegura que a relação dialogal é de grande nobreza; Buber explica que o diálogo é uma questão existencial, aliás, fundamenta uma existência. 

Ainda segundo o pontífice, o antropocentrismo desordenado gera um estilo de vida desordenado (LS, 122); de acordo com Francisco, “quando o ser humano se coloca no centro, acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o mais torna relativo” (LS, 122). O antropocentrismo desordenado é unilateral, irresponsável e desconexo da Criação. Segundo o Papa, com esta questão, se insere uma cultura do relativismo que, segundo Francisco, é uma patologia que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra ou tratar tal pessoa simplesmente com objeto, obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo essa pessoa à uma vida escrava por causa de uma dívida (LS, 123). Também aqui, segundo o pensamento buberiano, é fazer do outro um Isso, um objeto. 

Nessa mesma lógica de exploração, Francisco lembra da exploração sexual de crianças, o abandono de idosos que não servem os interesses próprios, também o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados, etc. Tal lógica, questiona o Papa Francisco, não é a mesma lógica relativista que justifica a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de vender ou utilizar para experimentos, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? (LS, 123). Como já dissemos: isso é fazer do outro um Isso, algo experienciável, utilitário, como diria Buber. 

Outra denúncia feita na Laudato Si’, é a de que para os habitantes de bairros periféricos e precários, bem como a experiência diária de passar da superlotação ao anonimato social das metrópoles, pode provocar uma sensação de que as pessoas estejam desenraizadas – o que pode dar espaço a comportamentos antissociais e até agressivos. Recordando que o amor é mais forte do que tais situações, Francisco observa que “muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo” (LS, 149). 

O Papa Francisco também traz à tona a questão da aceitação do outro como ele é. Assim, ele explica do nosso corpo que nos põe em relação direta com o meio ambiente e com os outros seres vivos, e da necessidade de aceitá-lo, reconhecê-lo, a fim de reconhecer a si mesmo quando se encontrar com o outro que é diferente. Desse modo, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra que também é obra de Deus, e assim enriquecer-se de forma mútua (LS, 155). Quando Buber trata do diálogo, sobre a conversação genuína, explica que é preciso tomar conhecimento íntimo do outro, ter interesse por ele, respeitar quem ele (ela) é. Por isso, é muito próximo do que o Papa Francisco propõe em relação ao respeito, acolhida e também ao se reconhecer no outro que também é humano como eu, 

Ainda na reflexão sobre o outro, mas claro, no debate com perspectiva ecológica, o Papa Francisco comenta sobre a possibilidade que sempre se tem de sair de si rumo ao outro. Sem esse movimento, é impossível reconhecer o valor que as outras criaturas possuem, não se sente impelido a cuidar dos outros. É preciso, portanto, se auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade, pois esta é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros bem como do meio ambiente (LS, 208). 

O Papa Francisco alerta para o desaparecimento da humildade, num ser humano que vive excessivamente entusiasmado com a possibilidade de exercer domínio sobre tudo, sem limite algum; isso só pode acarretar em prejuízo para a sociedade e meio ambiente (LS, 224). Também Buber alude sobre a imposição e abertura nas relações inter-humanas. O desejo de dominação citado por Francisco corresponde à imposição mencionada por Buber; e a humildade referida por Francisco corresponde à abertura ao outro descrita por Buber. 

Para as relações serem autênticas e fraternas, o Papa Francisco indica o amor que, segundo ele, nunca pode ser uma paga a outrem, mas deve ser sempre gratuito; também o amor não pode ser um adiantamento por algo que ainda espero que o outro me faça (LS, 228). Para Francisco “é necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade com os outros e com o mundo, que vale a pena ser bons e honestos” (LS, 229). 

A fim de exemplificar a ideia do amor que deve ser praticado, Francisco cita Santa Teresa de Lisieux que convida a colocar “em prática o pequeno caminho do amor, a não perder a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso, de qualquer gesto que semeie a paz e a amizade” (LS, 230). A questão trazida pelo Papa Francisco a respeito do amor, se aproxima da proposta do filósofo do diálogo quando também explica que o diálogo acontece na espontaneidade, no dia a dia, sem ser pensado e programado. O diálogo acontece nas coisas e atitudes simples, num olhar, num sorriso. 

Categoria pobres na Laudato si’ do Papa Francisco

Dentro da questão da relação do ser humano com o ser humano, o Papa Francisco alude diversas vezes sobre a questão social. Menciona que o pobre, em meio à exploração de tudo pelos poderosos, são os mais prejudicados e continuam à margem e são os mais vulneráveis. 

Todas as criaturas foram criadas por Deus, são fruto das mãos dele, porém Francisco recorda que isso não significa igualar todos os seres vivos e tirar do ser humano aquele valor que lhe é peculiar que, ao mesmo tempo, implica responsabilidade. O Papa recorda que as vezes é possível notar a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se a uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos. 

É verdade que é necessário ter a preocupação de que os outros seres humanos vivos não sejam tratados de forma irresponsável, porém deveriam nos indignar principalmente as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos que outros. É possível perceber, denuncia o Papa Francisco, que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais de melhorias, enquanto outros não sabem o que fazer com aquilo que tem, de modo que ostentam uma superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício muito grande. Na prática, infere Francisco, continuamos a admitir que algumas pessoas se sintam mais humanas do que outras pessoas, como se elas tivessem nascido com maiores direitos (LS, 90). Souza (2016, p. 151) salienta que “[...] o que importa é verificar a causa da injustiça e da falta de amor em relação aos mais vulneráveis. Em outras palavras, Francisco propõe uma nova hermenêutica que interprete a doutrina da criação sob a ótica do cuidado”. 

O Papa Francisco explica que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos (LS, 49), e que, ao invés da resolução dos problemas dos pobres, se limita a propor uma redução da natalidade (LS, 50); sem contar que, a desigualdade não atinge somente os indivíduos, mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais (LS, 51). 

Francisco, evidentemente, alarga bem as denúncias daquilo que prejudica principalmente os mais pobres, mas ao mesmo tempo ele é profeta da esperança que elenca várias propostas para a ética do cuidado com o outro. Fala de uma ecologia humana que os pobres conseguem desenvolver, mesmo que em meio a tantas limitações (LS, 148), que a ecologia humana não é separada da noção de bem comum, princípio que desempenha um papel central e unificador na ética social (LS, 156). Essa questão dos mais pobres e vulneráveis trazido por Francisco é tema que faz parte da teologia da aliança: “Não afligirás o estrangeiro nem o oprimido, pois vós mesmos fostes estrangeiros no país do Egito. Não afligireis nenhuma viúva ou órfão. Se o afligires e ele gritar por mim, escutarei o seu grito” (Ex 22,21-22). 

Recorda também que nas condições atuais da sociedade mundial, em que existem tantas desigualdades e que são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, bem como privadas de direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como sendo consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. De acordo com Francisco, tal opção é uma exigência ética fundamental para a realização do bem comum (LS, 158). 

O pensamento de Francisco e de Buber também se aproxima muito neste quesito de pensar no outro. Apesar de que Buber não esteja escrevendo para falado de pobreza e tal, mas em O Caminho do homem, ele salienta que o ser humano precisa conhecer a si mesmo, precisa começar o seu caminho em si mesmo, mas o fim do ser humano não é para si mesmo para o outro (BUBER, 2011, p. 38). 

Segundo o filósofo aquele ser humano que pensa em si mesmo, ainda que seja da maneira mais elevada, é orgulhoso; porém, aquele que sempre pensa no mundo (no outro), é humilde. O orgulhoso terá sua salvação quando se curvar à submissão, pois quando ele for salvo é que o mundo poderá ser salvo (BUBER, 2011, p. 41-42). Com isso fica claro que somos à medida que somos para os outros, e fazemos da vida dom. Esta é a lógica do Papa Francisco que também é o modo de pensar buberiano. 

Considerações finais

As aproximações do pensamento do filósofo e teólogo Martin Buber com o do Papa Francisco na Laudato Si’ são bem evidentes; a herança judaico-cristã aproxima o pensamento de ambos em vários aspectos. Aqui destacamos alguns. 

Tanto em Buber como em Francisco é possível perceber a questão do ser humano que é ser de diálogo, ser de relação, e que realiza sua existência através da relação dialogal. Buber infere que o ser humano pode estabelecer diálogo com a natureza, com o ser humano e com os seres espirituais (Deus se enquadra aqui). Em Francisco, o ser humano pode estabelecer diálogo com a terra, com outros seres humanos e com Deus. É muito próximo o pensamento de ambos sobre as três esferas da relação. 

Tanto em Buber quanto em Francisco, tudo está interligado. Ambos falam das esferas da relação, pois todas as coisas estão interligadas. Não há como o ser humano querer dialogar só com o ser humano, ou só com Deus, ou só com a natureza (terra). É preciso relação, diálogo e respeito por tudo o que existe no mundo, inclusive com Deus, o Criador. 

No que toca ao diálogo de ser humano com ser o humano, tema do presente trabalho, Buber explica sobre a relação Eu-Tu, que é o diálogo autêntico e genuíno. O ser humano se realiza quando diz Tu, quando está aberto à relação. Tal pensador alerta sobre problemas que podem ser empecilho para o diálogo genuíno que é o ‘ser e parecer’, ‘tornar-se presente da pessoa’ e a ‘imposição e abertura’. Num diálogo autêntico não se deve fingir ser o que não é; não se deve olhar de forma analítica o outro, mas aceita-lo como é; não se deve impor a própria verdade sobre o outro. Desse modo, não se pode fazer do outro um objeto, um Isso, segundo Buber. 

Francisco está convencido de que a quebra das relações se dá por causa do pecado. Segundo ele não se deve impor sobre o outro as próprias ideias ou uma verdade que lhe é própria. De acordo com o Papa, a busca pelos interesses próprios de modo a se esquecer dos outros, sobretudo dos mais pobres se dá por causa do egoísmo, por causa do pensar em si mesmo. Numa linguagem buberiana, é tratar o outro como um Isso, como objeto. 

Nos dois pensadores fica claro que é preciso restabelecer o diálogo autêntico em todas as esferas da relação; é necessário ter a capacidade de pensar no outro como meu próximo, como meu Tu. Muitos acontecimentos passados, segundo ambos, mostram as tantas destruições e catástrofes que o ser humano é capaz de provocar quando visa os interesses próprios e deixa de pensar no outro. 

 

Referencias

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BUBER, Martin. Imagens do bem e do mal. Trad. Edgar Orth. Petrópolis: Editora Vozes, 1992. 

BUBER, Martin. EU e TU. Trad. Newton Aquiles Von Zuben.10. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2006. 

BUBER, Martin. O caminho do homem: segundo o ensinamento chassídico. Trad. Claudia Abeling. ed. São Paulo – SP: Realizações Editora, 2011. 

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SOUZA, J. N. A Laudato Si’ na perspectiva do método: “ver, julgar e agir”. Perspectiva Teológica. v. 48. n. 1. p. 145-161, 2016. Disponível em: http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/3482/3587 . Acesso em: 09 de out. 2021. 

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Notas

[1]  O termo original alemão é redlichkeit : honestidade ou integridade; com a mesma raiz de reden (falar) e rede (fala ou discurso), conforme BUBER, 2006, p. 142.