Igreja e humanismo integral: uma reflexão a partir da Caritas in Veritate      
Church and integral humanism: a reflection from Caritas in Veritate       

Tiago de Fraga Gomes*
Antonio Luiz Catelan Ferreira**

*Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: tiago.gomes@pucrs.br 
**Doutor em Teologia Dogmática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG- Roma). PósDoutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio). Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio). Contato: catelan@puc-rio.br 
 

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Resumo 

A presente pesquisa tem como referencial teórico primário a Encíclica Caritas in Veritate do Papa Bento XVI, na qual Jesus Cristo é a chave de leitura para um humanismo integral que visa o bem de cada pessoa humana e de toda a humanidade, na caridade e na verdade. O amor na verdade – caritas in veritate – é um desafio sempre atual para a Igreja, enquanto perita em humanidade, e para a teologia, enquanto intellectus fidei que reflete sobre o bem da pessoa humana em sua totalidade, à luz da fé e dos valores cristãos. Como objetivo geral, busca-se refletir sobre a Igreja frente a tarefa de colocar-se a serviço de um humanismo que contemple a integralidade da vocação humana. Especificamente, pretende-se trabalhar um humanismo sob três perspectivas: Perspectiva teológica: a verdade mais profunda do ser humano está em Deus que é amor; Perspectiva antropológica e ética: o amor a Deus edifica a pessoa humana e leva necessariamente à prática do amor ao próximo; Perspectiva social: o amor autêntico ao ser humano todo e a todo ser humano, visa o bem comum e a promoção de um desenvolvimento social integral. O método de abordagem utilizado é o teórico-bibliográfico.  

Palavras-chave: Igreja; Humanismo; Caridade; Verdade. Bento XVI 

Abstract 

The present research has as its primary theoretical reference the Encyclical Caritas in Veritate of Pope Benedict XVI, in which Jesus Christ is the key to reading an integral humanism that aims at the good of each human person and of all humanity, in charity and in truth. Love in truth – caritas in veritate – is an ever-present challenge for the Church, as an expert in humanity, and for theology, as an intellectus fidei that reflects on the good of the human person as a whole, in the light of faith and values Christians. As a general objective, it seeks to reflect on the Church facing the task of placing itself at the service of a humanism that contemplates the integrality of the human vocation. Specifically, it is intended to work on humanism from three perspectives: Theological perspective: the deepest truth of the human being is in God who is love; Anthropological and ethical perspective: love for God edifies the human person and necessarily leads to the practice of love for others; Social perspective: authentic love for the whole human being and for every human being, aims at the common good and the promotion of integral social development. The method of approach used is the theoretical-bibliographic.   

Keyword: Church; Humanism; Charity; Truth; Benedict XVI 

Introdução 

A presente pesquisa tem como referencial teórico primário a Encíclica Caritas in Veritate (CV) do Papa Bento XVI.1 Na referida encíclica, Jesus Cristo é a chave de leitura para um humanismo integral que visa o bem de cada pessoa humana e de toda a humanidade, na caridade e na verdade. Bento XVI afirma que “a caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (CV 1). O amor na verdade – caritas in veritate – é um desafio sempre atual para a Igreja, enquanto perita em humanidade, e para a teologia, enquanto intellectus fidei que reflete sobre o bem da pessoa humana em sua totalidade, à luz da fé e dos valores cristãos. Nesse sentido, o objetivo da presente pesquisa consiste em refletir sobre a Igreja frente a tarefa de colocar-se a serviço de um humanismo que contemple a integralidade da vocação humana a partir da Caritas in Veritate. 

O amor e a verdade são a vocação fundamental da pessoa humana, e expressam a substância teológica, antropológica, ética e social da relação com Deus e com o próximo. Para Bento XVI, “a caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja” (CV 2), e a verdade precisa ser procurada, encontrada e expressa em uma “economia da caridade”; e esta, por sua vez, necessita ser compreendida, avaliada e praticada à luz da verdade (CV 2). Sendo assim, caridade e verdade se implicam mutuamente na busca de um humanismo integral. A caridade é a fonte que inspira o pensar e o agir cristão no mundo (KRIEGER, 2011, p. 114). E a verdade ilumina e dá sentido à prática da caridade; “a verdade de Jesus possui valor permanente (Lc 21,33) e, por isso, ilumina as diversas situações de cada época da história” (GASDA, 2010, p. 804); é o Logos que cria dia-logos (GOMES, 2021b, p. 13); portanto, gera comunicação e comunhão, abrindo e unindo as inteligências no Logos do amor. Bento XVI sustenta que viver a caridade na verdade leva a fomentar um desenvolvimento social que tenha por base um humanismo integral (CV 4). Por isso, a Doutrina Social da Igreja anseia ser caritas in veritatae in re sociali, configurando-se como uma reflexão sobre a dinâmica social de serviço cristão da caridade na verdade (CV 5). 

No seu ser e agir, a Igreja celebra e atua a caridade como promoção de um desenvolvimento integral do ser humano. Paulo VI afirma na Populorum Progressio (PP) que o autêntico desenvolvimento humano diz respeito à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões, pois “o desenvolvimento não se reduz a um simples crescente econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo” (PP 14). Compreendese, assim, o desenvolvimento, tendo como fundamento um humanismo integral, como o coração da mensagem cristã em âmbito social. 

Para tanto, a Igreja precisa renovar sua vocação enquanto enviada por Deus para estar à serviço do ser humano. Prescindindo de todo jurisdicismo eclesiológico, a Igreja é chamada a ser um sacramento do mistério divino, explicitando sua natureza e vocação enquanto age como sinal e instrumento de Deus no mundo (PIÉ-NINOT, 2007, p. 206), articulando, assim, sua dupla dimensão, humana e divina, imanente e transcendente (KLOPPENBURG, 1971, p. 92), visível e invisível, sendo o visível, uma mediação do invisível (PIÉ-NINOT, 2010, p. 30). Conjugando as dimensões de mistério e povo de Deus, a Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG) do Concílio Vaticano II, em seus capítulos 1 e 2, supera uma visão fechada e estática da Igreja, fazendo transparecer seu caráter dinâmico, sua marcha histórica em perspectiva escatológica (HACKMANN, 2003, p. 54). A Igreja é um mistério, é a Ekklesía tou Theou – a Igreja de Deus –, a serviço de um desígnio soteriológico. Enquanto mediadora das graças salvíficas de Deus para a humanidade, existe a partir de Deus e em Deus; não existe por si e para si mesma (HACKMANN, 2005, p. 663). A Igreja é uma realidade voltada para a sociedade na qual deve ser sal, luz e fermento (MIRANDA, 2013, p. 45). 

Desde sua dimensão teândrica, a Igreja tem como princípio fundamental o amor ao próximo (Jo 13,34-35) e como finalidade o Reinado de Deus (LG 9). Enquanto instrumento de salvação, está a serviço – diakonía – da pessoa humana em sua integralidade; sendo assim, “a evangelização pretende atingir a totalidade do homem” (PIEPKE, 1989, p. 131) através de um engajamento social consequente. Contudo, a Igreja realiza esta sublime missão consciente de sua limitação e fragilidade: apesar de, na força do Espírito Santo, portar a dynamis divina, efetua seu empenho missionário em meio aos limites de sua humanidade indigente, que tantas vezes é infiel ao projeto de Deus (GOMES, LORENZETTI, 2021, p. 247). Por isso, há a necessidade, por parte da Igreja, de um processo contínuo de conversão aos planos de Deus, sendo um dos sinais mais significativos deste processo, a interlocução, na obra da evangelização, entre evangelização e promoção humana, pois, como afirma incisivamente o Papa Francisco na Encíclica Evangelii Gaudium (EG), “a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano” (EG 182). Sendo assim, a acolhida dos mais necessitados é um sinal evangélico de autenticidade e credibilidade da ação evangelizadora da Igreja. Como é o caso, por exemplo, da evangelização dos pobres, que, segundo Lc 4,18-19, é um sinal significativo da chegada do Reinado de Deus (RAMOS GUERREIRA, 1995, p. 117-119). 

O Papa Bento XVI convida a “caminhar pela estrada do desenvolvimento com todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência, ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade” (CV 8), a fim de passar de condições menos humanas para condições mais humanas, e buscar o desenvolvimento do ser humano inteiro. Retomando os ensinamentos do Papa Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio a respeito do desenvolvimento integral, Bento XVI os enfatiza e aprofunda, consciente de que a Igreja não possui soluções técnicas a oferecer, mas que se coloca em atitude de serviço à verdade, a fim de edificar uma sociedade à medida do ser humano e da sua dignidade e vocação. Para Bento XVI, a fidelidade à verdade, missão irrenunciável da Igreja, é a única garantia da liberdade e da possibilidade de um humanismo integral (CV 9). 

Na presente pesquisa, pretende-se abordar o tema da Igreja e o humanismo integral a partir da Caritas in Veritate sob três perspectivas, as quais irão compor o movimento de argumentação subsequente: Perspectiva teológica: parte-se do pressuposto que a verdade mais profunda do ser humano está em Deus que é amor; Perspectiva antropológica e ética: o amor a Deus edifica a pessoa humana e leva necessariamente à prática do amor ao próximo; Perspectiva social: o amor autêntico ao ser humano todo e a todo ser humano, visa o bem comum e a promoção de um desenvolvimento social integral. 

1. Perspectiva teológica 

Em uma perspectiva teológica, a verdade mais profunda do ser humano está em Deus que é amor (1Jo 4,16). Em nível pessoal, Bento XVI afirma categoricamente na Encíclica Deus Caritas Est (DCE) que “o reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à dele une intelecto, vontade e sentimento no ato globalizante do amor” (DCE 17). Contudo, enfatiza que esse é um processo sempre inconcluso, um caminho permanente, uma busca contínua, como um projeto pessoal de vida que precisa ser constantemente renovado para que possa, de fato, se efetivar. 

Em nível comunitário, citando Santo Agostinho – que afirma no De Trinitate “se vês a caridade, vês a Trindade” (VIII,8,12) – para o Papa Bento XVI, a caridade da Igreja, enquanto “comunidade de amor”, é uma epifania do amor trinitário. Por isso, fundamentando-se no amor divino, “toda a atividade da Igreja é manifestação de um amor que procura o bem integral do ser humano” (DCE 19). De modo geral, como expressão ortoprática do kerygma e da leiturgia, a grande diakonia exercida pela Igreja é o serviço da caridade, como epifania de sua própria essência (DCE 25). 

Em nível social, “além do crescimento material, o desenvolvimento deve incluir o espiritual, porque a pessoa humana é um ser uno, composto de alma e corpo, nascido do amor criador de Deus e destinado a viver eternamente” (CV 76). Nesse sentido, Bento XVI afirma que “a alienação social e psicológica e as inúmeras neuroses que caracterizam as sociedades opulentas devem-se também a causas de ordem espiritual” (CV 76). Sendo assim, conclui que “não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem espiritual e moral das pessoas, consideradas na sua totalidade de alma e corpo” (CV 76), ou seja, em sua integralidade sócio-psíquico-espiritual. 

Bento XVI enfatiza que é preciso “superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e entrever no desenvolvimento um ‘mais além’ que a técnica não pode dar. Por este caminho, será possível perseguir aquele desenvolvimento humano integral que tem o seu critério orientador na força propulsora da caridade na verdade” (CV 77). A base teológica dessa convicção funda-se no fato de que “sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja”, pois, “o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar um verdadeiro humanismo” (CV 78). 

Enquanto indivíduo e comunidade – e membro da família de Deus – o ser humano é chamado a edificar “um verdadeiro humanismo integral” (CV 78). Para Bento XVI, o humanismo cristão reaviva a caridade e se guia pela verdade, como uma grande força que proporciona um humanismo genuíno, aberto ao Absoluto e à promoção de formas de vida social e civil que não capitulam prisioneiras das modas do momento (CV 78). Do amor cheio de verdade – caritas in veritatae – procede o desenvolvimento autêntico que implica na atenção à todas as dimensões da vida humana: social, individual e espiritual (CV 79). Estas dimensões da vida humana são iluminadas pela perspectiva teológico-trinitária. 

Teologicamente, é possível partir não apenas da imanência das relações inter-humanas, mas também, da própria transcendência de Deus, revelada na história. Da dinâmica amorosa intradivina, manifesta-se, na economia da Revelação, uma referência fundamental para as relações de igualdade e diferença, as quais dão suporte para pensar o ser humano enquanto imago Dei e imago Trinitatis que se realiza como pessoa e como relação, ou seja, como ser individual e social. Sendo assim, a chave da questão está no ser que sustenta a relação. Percebe-se, assim, que antes de tratar de temas propriamente sociais, é preciso refletir sobre o substrato antropológico e ético da vida humana em sociedade. 

2. Perspectiva antropológica e ética 

Nas parábolas da misericórdia, em Lc 15, quando Jesus fala do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a moeda, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, afirma Bento XVI na Deus Caritas Est, mas de atitudes que expressam o próprio ser de Deus (DCE 12). Nesse sentido, no caso específico de Deus, pode-se seguramente aplicar o axioma aristotélico “o agir segue o ser”. Afirmar que “Deus é amor” reforça ainda mais a convicção de que “aquele que não ama não conheceu a Deus” (1Jo 4,8). Isso significa que o Deus cristão, não só é amoroso, mas é paradigma antropológico e ético da prática do amor que inspira a “amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11). Imita-se o ser Deus – sua santidade – quando se segue o seu agir – sua amabilidade. 

Em perspectiva antropológica e ética, o amor a Deus edifica a pessoa humana e leva necessariamente à prática do amor ao próximo, pois, “aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16); por isso, “se alguém disser: ‘amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). Seguindo por este viés, Bento XVI afirma “o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao próximo”, sendo o amor ao próximo “uma estrada para encontrar também a Deus” (DCE 16). A Igreja, seguindo por essa direção, não pode deixar de anunciar o caminho do amor como verdadeira redenção das relações humanas tantas vezes fragmentadas pelo ódio e pelo egoísmo, os quais são questões antropológicas e éticas, mas que geram prejuízos socioestruturais. 

Nesse sentido, segundo o Papa Bento XVI, “o tema do desenvolvimento dos povos está intimamente ligado com o do desenvolvimento de cada indivíduo” (CV 68). Por isso, é urgente uma formação para a responsabilidade ética (CV 70) antes mesmo da proposição de uma elaboração conceitual a respeito das estruturas e sistemas que envolvem a vida humana. Porém, sabe-se que ambas – pessoa humana e estruturas socioestruturais – se implicam mutuamente, mas que são as pessoas individuais, enquanto protagonistas da vida individual e social, que precisam se conscientizar a respeito da necessidade de edificar formas mais humanizadas de se relacionar, sendo necessárias mudanças de mentalidade e de atitudes, e novas maneiras de colaborar em prol de uma sociedade mais justa e fraterna. 

Segundo Brustolin, “a sociedade de consumo e a busca do bem-estar ensinam que só vale a pena viver se há o máximo de satisfação e prazer. O doente, o agonizante, o indesejado e tantos outros sujeitos humanos são excluídos dessa lógica” (2006, p. 455). No contraponto à mentalidade preponderante na sociedade atual, Bento XVI propõe a cultura do dom de si e da gratuidade, como elemento novo perante o cálculo do mundo e do mercado. Nessa perspectiva, é preciso “dilatar o amor por meio da gratuidade e o dom de si, além de qualquer cálculo” (SANTORO, 2008, p. 952), pois “a caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência da gratuidade” (GASDA, 2010, p. 815). Nesse caminho, “Cristo ilumina e enriquece a experiência humana” (SANTORO, 2008, p. 953). 

Na Caritas in Veritate, Bento XVI enfatiza que é necessária uma reflexão sobre o ser antes do agir, a fim de sustentar uma autonomia da ação humana ante o fascínio inebriante da técnica (CV 70). Sem um referencial antropológico e ético consistente, o desenvolvimento social declina em desumanização. Bento XVI afirma que “o desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum” (CV 71). Por isso, o sentido e a finalidade do desenvolvimento social têm um fundamento radicalmente antropológico e ético que abre a possibilidade de fomentar um autêntico humanismo integral em perspectiva social. 

3. Perspectiva social 

Em uma perspectiva social, o amor autêntico ao ser humano todo e a todo ser humano visa o bem comum e a promoção de um desenvolvimento social integral. Tendo em vista isso, o Magistério da Igreja se ocupou intensamente, nos últimos tempos, com a questão social. O Papa Leão XIII afirma na Rerum Novarum (RN, 1891) que o progresso social deve considerar os princípios da justiça e da equidade (RN 1). O Estado deve servir o interesse comum, dando uma atenção especial à classe operária que proporciona tantos bens à sociedade com seu trabalho (RN 18). O governo é para os governados e não vice-versa (RN 19). Para que isso aconteça, na promoção dos direitos civis, o Estado deve preocupar-se, em especial, dos fracos e indigentes, pois esses, têm menos recursos para se protegerem das injustiças sociais (RN 20). A solução definitiva para a vida social é a caridade (RN 35). Isso é particularmente enfatizado pelo Papa Bento XVI nas suas encíclicas Deus Caritas Est e Caritas in Veritate. 

O Papa Pio XI, no contexto da crise econômica de 1929 e do 40º ano da Rerum Novarum, publica a Quadragesimo Anno (1931), reafirmando que as relações entre capital e trabalho devem acontecer sob o signo da colaboração, e que nas relações com o setor privado, o Estado deve aplicar o princípio da subsidiariedade. Já o Papa João XXIII, busca reafirmar na Mater et Magistra (1961) a importância da comunidade e da socialização, e na Pacem in Terris (1963), ressalta que toda a comunidade cristã deve se comprometer com a justiça social, em especial, com a promoção da dignidade humana. 

O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes (GS, 1965), vai afirmar que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1), pois toda realidade humana encontra eco no coração da Igreja. O olhar samaritano da Igreja (Lc 10,25-37) não passa ao largo das necessidades e indigências da humanidade. A Igreja não foge da realidade, mas compartilha com a humanidade a mesma situação, sendo, por assim dizer, a alma do mundo, como afirma a Carta a Diogneto. O enfoque da Gaudium et Spes é a pessoa humana: todo desenvolvimento social, todo empenho político, deve visar o aperfeiçoamento da pessoa humana (GS 25). 

O Papa Paulo VI na Populorum Progressio (1967) aborda o tema do desenvolvimento econômico e social como a passagem de condições de vida menos humanas para condições mais humanas. O desenvolvimento favorável de todos responde a uma exigência de justiça que torne possível a realização de um humanismo total. Na Octagesima Adveniens (1971) reflete sobre a sociedade pós-industrial com toda a complexidade de problemas que daí emergem, em especial, as questões advindas da urbanização, como a migração, o desemprego, a discriminação, o incremento demográfico, o influxo intenso nos meios de comunicação social e a questão ambiental. 

O Papa João Paulo II com a Laborem Exercens (1981), aborda a questão do trabalho como bem fundamental para a pessoa humana e fator primário da atividade econômica e social. Com a Sollicitudo Rei Socialis (1987), o tema do desenvolvimento é retomado, e são sublinhados dois elementos fundamentais: a situação dramática dos países subdesenvolvidos e as condições e exigências para um desenvolvimento digno do ser humano. Faz-se uma distinção entre progresso e desenvolvimento, tendo em vista que o desenvolvimento não pode se limitar a multiplicar bens materiais, esquecendo-se do ser humano. O verdadeiro desenvolvimento é aquele que envolve a edificação da própria pessoa humana. Na Centesimus Annus (1991) reforça que a solidariedade é uma expressão significativa da caridade social, a qual propicia a construção de uma nova sociedade sobre as bases dos valores do Evangelho. 

O Pontifício Conselho Justiça e Paz no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (2004) confirma essas perspectivas magisteriais em âmbito social organizando uma reflexão que parte de um humanismo integral e solidário, até o anseio por uma civilização do amor. Trata da missão da Igreja em âmbito social, da pessoa humana e seus direitos numa perspectiva personalista a partir da imago Dei, da família como célula vital da sociedade, do trabalho humano, da vida econômica, da comunidade política, da comunidade internacional, da salvaguarda do ambiente e da promoção da paz. Ressalta como princípios da Doutrina Social da Igreja: o bem comum (n. 164-170), a destinação universal dos bens (n. 171- 184), a subsidiariedade (n. 185-188), a participação (n. 189-191), a solidariedade (n. 192-196) e valores fundamentais da vida social como a verdade, a liberdade e a justiça (n. 197-203), culminando com a via cristã da caridade (n. 204-208). 

Em perspectiva social, o Papa Bento XVI retoma os temas da caridade e da verdade nas encíclicas Deus Caritas Est (2005), Sacramentum Caritatis (2007) e Caritas in Veritate (2009), sendo esta última, sua encíclica social por excelência. Na Verbum Domini (2010), Bento XVI desenvolve brevemente a relação entre Palavra de Deus e compromisso social pela justiça e com a caridade ativa. No contexto das implicações sociais do mistério eucarístico, Bento XVI afirma na Sacramentum Caritatis (SCar) que a eucaristia, enquanto alimento da verdade, leva a denunciar as situações indignas do ser humano; e, enquanto sacramento da caridade, estimula a um empenho solidário no mundo (SCar 90). Na Verbum Domini (VD), sustenta que “a Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em profundidade a própria vida” (VD 99), impelindo as pessoas a empreenderem “relações animadas pela retidão e pela justiça” (VD 100). Chama a atenção “para a importância de defender e promover os direitos humanos de toda a pessoa, que, como tais, são ‘universais, invioláveis e inalienáveis’” (VD 101). Sendo assim, para o Papa Bento XVI, “o amor do próximo, radicado no amor de Deus, deve ser o nosso compromisso constante como indivíduos e como comunidade eclesial local e universal” (VD 103). 

Diante das crises humanas e sociais atuais, de uma economia de consumo de bens e serviços, muitas vezes desligada de seu fundamento antropológico, Bento XVI defende na Caritas in Veritate que é preciso promover um novo discernimento que conscientize sobre a necessidade de edificar um desenvolvimento humano e social que contemple uma nova síntese humanista (CV 21) que sirva à pessoa humana em sua verdade integral. Segundo Schneider, a Caritas in Veritate “considera que um dos riscos e dos mais graves equívocos, hoje, para o verdadeiro desenvolvimento do homem é a tecnocracia, ou ‘o absolutismo da tecnicidade’” (2010, p. 776), uma questão desafiante para a ação evangelizadora da Igreja, que exige dedicação e atualização. 

Perante graves problemas sociais, como a exclusão do trabalho, Bento XVI afirma que é preciso renovar os sistemas econômicos e sociais do mundo tendo em vista que “o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade” (CV 25). A falta de caridade gera carência para uma multidão de pessoas que passa fome, muitos Lásaros famintos, que não podem sentar-se à mesa dos ricos avarentos. Por isso, ressalta que “dar de comer aos famintos (cf. Mt 25,35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja” (CV 27). Sendo assim, um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento atual é o tema do respeito à vida, que não pode ser separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos (CV 28). É preciso trabalhar pelo verdadeiro bem do ser humano como um todo. Em toda ação em prol de um humanismo integral, a verdade ilumina a ação e a caridade dá fecundidade à mesma. Se faz necessária uma caridade inteligente e uma inteligência caridosa. 

A caridade na verdade coloca o ser humano diante da lógica do dom – que exprime e realiza sua dimensão de transcendência (CV 34) – e, ao contrário da lógica do mercado, focada na atividade econômica (CV 36), tem como finalidade o bem integral da pessoa e da comunidade. Para que funcione corretamente, a economia tem necessidade de um humanismo integral que corresponda às exigências morais mais profundas do ser humano (CV 45). Sendo assim, é preciso ter presente que “nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana” (CV 47). Além disso, a lógica do dom faz ver também a necessidade de uma nova ecologia humana que contemple o cuidado com os dons da criação, em sentido lato, estreitamente ligados à cultura que molda a convivência humana (CV 51). 

O Papa Francisco dará sequência a essa abordagem social do Magistério recente, especialmente com as encíclicas Evangelii Gaudium (2013), que dedica o capítulo 4 à dimensão social da evangelização; Laudato Si’ (2015), que trabalha o cuidado da casa comum; e Fratelli Tutti (2020), que aborda a fraternidade e a amizade social, especialmente no capítulo 3, onde incentiva a pensar e a gerar um mundo aberto, e no capítulo 5, onde provoca à edificação de uma política melhor como uma das formas mais preciosas de caridade, onde trata também da questão da proteção do trabalho. 

Conclusão

Tendo em vista a crise atual, pós-secularista, de esvaziamento das metanarrativas, onde há um déficit de significado dos símbolos da fé, faz-se necessário, por parte da Igreja, um esforço inédito em uma formação mais intensa sobre os conteúdos fundamentais da fé, com um olhar especial sobre a Doutrina Social da Igreja, no intuito de motivar ainda mais as pessoas para o protagonismo da fé em prol da vida em suas várias dimensões (KASPER, 2012, p. 125-126). Relevando a majoritária heteropraxia dos cristãos em âmbito social na esfera pública, é preciso suscitar nos mesmos “uma rede de colaboração que promova uma nova consciência da fé e atitudes práticas em favor da vida” (GOMES, 2021a, p. 351), a fim de que o Evangelho possa influir profundamente na vida social, transformando os cristãos em testemunhas credíveis diante da sociedade (HACKMANN, GOMES, 2015, p. 289). Em uma “época carente de referências sólidas, o testemunho pessoal e comunitário adquire um valor excepcional na evangelização” (MIRANDA, 2013, p. 128). 

O Magistério recente da Igreja, em especial a Encíclica Caritas in Veritate do Papa Bento XVI, fornecem elementos para que se possa afirmar que, tanto em perspectiva teológica, quanto em perspectiva antropológica, ética e social, a caridade na verdade é a força propulsora que edifica um humanismo integral. A partir da Caritas in Veritate, percebe-se que um autêntico desenvolvimento social só pode ser edificado a partir de um humanismo integral na caridade e na verdade, a fim de contemplar e realizar a natureza profunda e a vocação pessoal e social da pessoa humana em todas as suas dimensões constitutivas. O ser humano, “ser social por natureza”, definitivamente “não pode encontrar-se plenamente senão por um dom sincero de si mesmo” (KLOPPENBURG, 2005, p. 683), no encontro, gratificante e edificante, com o outro. Nesse sentido, a reflexão sobre a relação entre Igreja e humanismo integral traz importantes elementos para a vida cristã, pessoal e comunitária, necessitando ser melhor aprofundada nos níveis acadêmico, social e pastoral. 

Referências

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Notas

[1]  A presente pesquisa foi ampliada a partir de um trabalho apresentado e publicado no ST 12 do VIII Congresso da ANPTECRE, em 2021, e constitui parte da pesquisa de estágio pós-doutoral em teologia sistemático-pastoral na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUCRio, do professor Tiago de Fraga Gomes, com bolsa CAPES, sobre Eclesiologia e Pastoral, sob a supervisão do professor Antonio Luiz Catelan Ferreira.