Giovanni Felipe Catenaci*
Doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo. Professor na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Contato: giovannicatenaci@hotmail.com*
Resumo: Este artigo tem por objetivo situar o conceito de infância que fundamenta a teoria da linguagem em Giorgio Agamben, não obstante identificar seus processos de sacralização. Para isso se dividirá em duas grandes partes principais. Respectivamente, em um primeiro momento, iremos em busca de situar o conceito de infância, trazendo a baila de nosso debate as noções de experiência e Voz. A saber, é com elas, que o autor situa sua teoria crítica acerca da biopolítica. Na sequência, passaremos então à dinâmica de sacralização da linguagem – realizada através do juramento -, e a conseguinte sacralização da vida. Ao fim, esperamos conseguir sustentar a impossibilidade de nos evadirmos por completo das ingerências religiosas sobre cultura humana, uma vez elas operariam em níveis bastante profundos, tal como é o caso da ontologia.
Palavras-chave: infância, linguagem, experiência, biopolítica, Agamben.
Abstract: This article aims to situate the concept of childhood that underlies the theory of language in Giorgio Agamben, despite identifying its processes of sacralization. For this it will be divided into two main parts. Respectively, at first, we will seek to situate the concept of childhood, bringing the notions of experience and Voice to the fore in our debate. Namely, it is with them that the author situates his critical theory about biopolitics. In the sequence, we will then move on to the dynamics of sacralization of language – carried out through the oath - and the consequent sacralization of life. In the end, we hope to be able to sustain the impossibility of completely evading religious interference with human culture, since they would operate at very deep levels, such as the case of ontology.
Keywords: childhood, language, experience, biopolitics, Agamben.
“Valeria à pena rastrear a origem do dogma de sacralidade da vida”
— Walter Benjamin.
“Sua cabeça relativamente longa incorporada em seu corpo, sua pele opalescente, com ligeiros veios cinza no focinho e iluminada de prata e rosa nas excrescências em volta de suas guelras, suas finas patas em forma de lírio e dedos vermelhos como pétalas” (AGAMBEN, 2012, p.27).[1] Eis, um Axolotl. Batráquio albino, hoje sob risco de extinção, encontrado nas águas doces do México, e que muito chamou a atenção dos zoólogos e cientistas evolucionistas, por conta de uma particularida sua. A saber, não bastasse o fato de não crescer, isto é de conservar ao longo de toda sua vida o aspecto infantil dos anfíbios - respiração branquial e habitat exclusivamente aquático -, os axolotls são reprodutivos. Somente mais tarde, após inúmeras experiências em laboratório, descobriu-se que se trata de um caso raro de neotenia. Conforme constatou-se, ao ser submetido a um tratamento com hormônios tireoidos o pequeno axolotl: “perdia as brânquias e, desenvolvendo a respiração pulmonar, abandonava a vida aquática para transformar-se na espécie adulta de uma Salamandra Tigre (Ambystoma tigrinum)” (AGAMBEN, 2012, p.28). Em termos especificos a neotenia ou pedomorfose se explicam como casos de regressão evolutiva. Para axolots a renúncia à fase adulta e a permanência indefinida em estágio larvar que de maneira nenhuma lhes impede de procriar.
É com esta reflexão que Giorgio Agamben retomará aquela tarefa inicada vinte anos antes em Ideia da prosa (1985), de compor uma “Filosofia da infância”.[2] E começará com esses estranhos animais, por conta deles, ao ver de Agamben, fornecerem outras chaves para se pensar a evolução humana. Diante deste infantilismo obstinado dos axolotls o filósofo italiano se pergunta “O que seria, [...], se os seres humanos não tivessem evoluído incialmente a partir de individuos adultos, mas de bebês primatas que, como o axoltl, teriam adquirido prematuramente a capacidade de reproduzir-se?” (AGAMBEN, 2012, p.28). Apesar de insólita, tal especulação se torna pertinente na medida em que Agamben passa a consider alguns dos traços morfológicos do corpo humano, que vão “desde a posição do furo ociptal à forma auricular da orelha, desde a pele sem pelos até a estrutura das mãos e dos pés” (AGAMBEN, 2012, p.28).Traços estes que como lembra ele, não dizem respeito aos primatas adultos mas, sim aos seus filhotes. Seria também a espécie humana um caso de neotenia?
Ao invés de solucionar este problema, Agamben que não é biólogo, está interessado em se deixar atravessar por aquilo que ele dá a pensar. Portanto, mais do que refleti-lo exaustivamente a partir de um ponto de vista estrito, o biológico no caso, o filosofo irá manter o problema em aberto, a fim de aferir até onde ele pode levar o pensamento. E sem amarras, Agamben irá pensá-lo, desde a filosofia da linguagem.
Se reiteramos esse trajeto, é sobretudo por conta de que partindo da linguagem, temos melhores condições de entender o que seja o processo de sacralização da vida em Agamben. O que por conseguinte significa dizer que a despeito do elemento religioso presente na crítica, não dispomos do dado necessário à compreensão de sua biopolítica. Em síntese, o que buscaremos demostrar nas seguintes páginas são os laços que unem indissociavelmente a linguagem, a religião e a política neste autor, e sem os quais não temos chances de apreender o cerne de seu pensamento.[3]
Distinto dos outros animais que aferrolhados ao seu próprio corpo, possuem traços biológicos contíguos garantidores de uma determinada voz [vocação] - pensemos no marreco por exemplo, que nasce sabendo grasnar, no leão que desde sempre já sabe rugir e o burro zurrar -, os humanos por mais que nasçam sabendo chorar, explica Agamben, compartilham de uma mudez precípua.[4] Nesse sentido, a criança humana, sem voz [sem vocação], é relativamente livre frente à tirania somática que se abate sobre ela. E considerando que “sua voz está ainda livre de toda prescrição genética, não tendo absolutamente nada para dizer ou exprimir, ela seria o único animal da sua espécie, que como Adão seria capaz de nomear as coisas na sua língua” (AGAMBEN, 2012b, p.90). Ademais, também pelo fato de não ter o que dizer desde sempre, o infante humano pode aceder à linguagem e ao pensamento. De acordo com Agamben é fácil percebermos isso todas às vezes
quando caminhamos no bosque e, subitamente, surpreende-nos a variedade inaudita das vozes animais. Silvos, trilos, chilros, lascas de lenha e metais estilhaçados, assobios, cicios, estrídulos: cada animal tem seu som, nascido imediatamente de si. Ao fim, a nota dúplice do cuco ri de nosso silêncio, divulgando nosso insustentável, o único sem voz no coro infinito das vozes animais. Então provamos do falar e do pensar (AGAMBEN, 2007. Revista Terceira Margem).[5]
Acontece que esse vocabulário de nomes [palavras] com o qual o humano fala e pensa, não poderá ser registrado em seu próprio corpo, resistindo a se sedimentar em uma memória biológica. Não obstante, pelo fato de seu corpo estar fadado ao esquecimento dos nomes [palavras], os humanos terão de adaptar uma espécie de “cartão de memória” exossomático, comum, com o qual possam transmitir em diante os conteúdos necessários a preservação da espécie. Estamos falando precisamente de um veículo de difusão cultural, vazio, que em si mesmo não possui conteúdo próprio, e justamente por não ter nada a dizer a priori é, capaz de dizer qualquer coisa. Referimo-nos a linguagem, que, aliás, tal como sugere Agamben não fora inventada pelos adultos, mas pelas crianças. Conforme explica o nosso autor, foram elas, “e não os adultos, as primeiras a aceder à linguagem; [...]. A aprendizagem da linguagem – permaneceu estritamente ligada a uma condição infantil e uma exterioridade: quem acredita num destino específico não pode verdadeiramente, falar”. (AGAMBEN, 2012b, p.92).
Anteriormente, em Infância e história datado do ano de 1978, seguindo as sendas abertas pelo jovem Walter Benjamin em torno da linguística, o filósofo italiano já havia pensado a infância nos termos de um experimentum linguae que nada teria a ver com a cronológica idade biológica dos seres vivos. Antes, tratar-se-ia daquela experiência de nomear existências que só são reais através da linguagem [tempo, espaço], e que por isso exige ser compreendida a partir da reorientação da noção kantiana de transcendental de acordo com sua estreita vinculação com a língua. “Que o homem não seja sempre já falante, que tenha sido e seja ainda falante, isto é a experiência” (AGAMBEN, 2014, p.62). Experiência vivenciada “lá onde os nomes nos faltam, onde a palavra se parte em nossos lábios” (AGAMBEN, 2014, p.13).
Mas antes de avançarmos é importante ter em vista que a singularidade aterradora que se experimenta na infância, nada teria a ver com um conteúdo especial, metafísico, religioso, sagrado, impossível de ser expresso ou representado, tal como poderíamos pensar com a ideia de inefável. Antes conforme vaticina Agamben, “Onde acaba a linguagem, começa não o indizível, mas a matéria da palavra” (AGAMBEN, 2012b, p.27). Ou seja, “A singularidade que a linguagem deve significar não é um inefável, mas é o supremamente dizível na língua, a coisa da linguagem” (AGAMBEN, 2014, p.10). Portanto, “A coisa mesma não é uma coisa – é a própria dizibilidade, a própria abertura que está em questão na linguagem, que é a linguagem, e que na linguagem supomos e esquecemos, talvez por que ela própria é, em seu íntimo, esquecimento e abandono” (AGAMBEN, 2015, p.18). A coisa mesma, a “matéria da palavra”, o retrato da língua quando criança, não é o indizível, mas justamente aquilo que só pode ser dito. Portanto, a infância a qual nos referimos, é a experiência de uma pura auto referencialidade, que viabiliza a experiência da linguagem em si; não algo que se experimenta através da linguagem, mas exclusivamente na linguagem.
Noutro texto chamado a Ideia de linguagem, escrito em 2002, Agamben irá debruçar-se sobre este experimentum linguae, partindo especificamente da ideia de revelação tal como ela se faz presente na tradição teológica cristã; ao menos em suas diretrizes mais hegemônicas. E logo de início, nosso filósofo afirmará que “o conteúdo da revelação não é uma verdade exprimível sob a forma de proposições linguísticas sobre o existente (mesmo que se trate do ente supremo), mas, antes, uma verdade que diz respeito à própria linguagem” (AGAMBEN, 2015b, p.24). Considerando que o que a revelação busca desvelar é o que de qualquer forma deverá permanecer velado [mistério], Agamben dirá que o que a revelação desvela é no final das contas, nada mais que a própria dinâmica da língua. De tal modo que a coisa em si da revelação, venha dizer respeito não a um objeto exterior, Deus, por exemplo, mas, aos limites estruturantes da própria linguagem. E este é o seu único “mistério”; que o sentido próprio da revelação seja: “mostrar que toda palavra e todo conhecimento humano têm sua raiz e seu fundamento em uma abertura que os transcende infinitamente” (AGAMBEN, 2015b, p.25).
Tudo isso só é possível, pois como dissemos anteriormente, diferente dos outros animais, o humano que não é o seu corpo, não se configura como uma extensão da natureza, não tem uma voz própria, isto é não tem uma vocação. Pelo contrário, conforme estamos dizendo, a infância “instaura na linguagem aquela cisão entre língua e discurso que caracteriza de modo exclusivo e fundamental a linguagem do homem” (AGAMBEN, 2014, p.63). Por isso, tudo se passa como se entre nós e o mundo, houvesse na realidade uma fratura. Fratura esta que por sua vez, buscamos preencher imprimindo-lhe os mais diversos nomes que inventarmos para cultura. Nomes profanos, que abrem a coisalidade do mundo à dinâmica instauradora da língua, e que desabilita junto de si qualquer possibilidade de sacralização do mundo. Mas que em contrapartida, por isso mesmo, nos abre o mundo como um horizonte de sentidos infinitos em posição de serem nomeados.[6]
Por isso concomitante a face profana da realidade, que se mantém aberta aos mais variados nomes-sentidos, também gozamos de uma espiritualidade. E é com ela, que Agamben dirá ser possível aos humanos experimentarem o caráter não-coisal do mundo, seu mystérion. Como ele mesmo diz
O homem é o ser que, confrontando-se com as coisas, e unicamente neste confronto, se abre ao não-coisal. E inversamente: aquele que, sendo aberto ao não-coisal, está, unicamente por isso, irreparavelmente entre às coisas. Não-coisalidade (espiritualidade) significa: perder-se nas coisas, perder-se até não pode conceber mais nada senão coisas. E só então, na experiência da irremediável coisalidade do mundo, chocar-se com um limite, tocá-lo (AGAMBEN, 2013, p.84).
Assim, da mesma forma que o inefável é a infância, o mistério seria esta experiência “que todo homem institui pelo fato de ter uma infância” (AGAMBEN, 2014, p.62). Nada que nos permita ainda, sacralizar as coisas, afinal o itinerário por hora apresentado, que vai desde infância ao mystérion é taxativo: até mesmo os pensamentos mais abstratos e metafísicos, o mais religioso de todos os sentimentos e todos os êxtases e delírios místicos, encontram-se irreparavelmente ancorados no solo profano da linguagem. Isso fica mais evidente, por exemplo, no caso das crianças, que a todo instante estão colocando-se em jogo, arriscando suas próprias vidas nesses experimentum linguae. E não somente nas crianças, pois a infância como já dissemos também, não pode ser reduzida a uma experiência isolada num passado cronológico, a infância é justamente a Voz do ser do homem, é sua vocação, isto é, o fato de ser abandonado à própria língua.
A seguir, veremos que também por isso, a linguagem quanto tomada desde sua dimensão infantil, acaba instaurando as condições de possibilidade para a experiência do sagrado.
Em A linguagem e a morte (2006), Agamben tratará exclusivamente desta Voz que se apresenta como pátria poético-infantil dos humanos. A fim de pensar a infância como Voz, Agamben recorrerá à Heidegger e à Hegel. Respectivamente, partindo dos § 50 e 53 de Ser e Tempo, ele chamará atenção ao fato de que o Dasein enquanto ser-aí [ser que é o seu aí], se caracteriza pela possibilidade de uma impossibilidade - isso, pois em seu limite, o aí do Dasein é a morte, que lhe circunscreve e indica o fim de toda possibilidade. Sendo assim, irremediavelmente demarcado pela morte, o Dasein será conhecido também como ser-para-a-morte.
Precisamente por isso, trata-se de concebê-lo como aquele que tem a possibilidade de uma impossibilidade, isto é uma possibilidade que não pode se realizar. O que por conseguinte significa dizer que a experiência ontológica da morte remete o Dasein necessariamente para algo que não pode deixar de ser possível, algo que não se consuma jamais, isto é: seu próprio morrer. Conclui-se de forma paradoxal então que é no morrer que o ser-para-a-morte encontra o seu modo mais autêntico de viver: diante do fechamento da morte, a existência se abre enquanto possibilidade de vida autêntica.
Nesse sentido, ao atender ao chamado de ser laçando no mundo, o homem que é o seu aí, e que se deparou com a morte [fechamento] e seu retumbante silêncio, se vê convocado a sabe-se lá o que, e angustia-se por isso; afinal como não há uma missão, direção ou orientação prévia para ele, a angústia seria assim, o salário daqueles que se arriscam a viver autenticamente. E estes por sua vez, seriam os pilares de sustentação de sua ontologia negativa, conforme explica Agamben; que sobre o Dasein, ainda dirá
Se ser o próprio Da (o próprio aí) é o que caracteriza o Dasein (o Ser-aí), isso significa que justamente no ponto em que a possibilidade de ser o Da, de estar em casa no próprio lugar, é assumida, através da experiência da morte, da maneira mais autêntica, o Da revela-se como o lugar a partir do qual ameaça uma negatividade radical. Existe algo na pequena para Da, que nulifica, que introduz a negação naquele ente – o homem – que deve ser o seu Da. A negatividade provém, ao Dasein, de seu próprio Da (AGAMBEN, 2006, 17-18).
Hegel também será atravessado por essa negatividade ontológica. Recorrendo à questão dos mistérios e do inefável, Agamben investigará dois momentos do pensamento hegeliano. Primeiro em um poema intitulado Eleusis (1796), que fora dedicado pelo jovem Hegel ao seu amigo Hölderlin; um segundo em Fenomenologia do espírito, obra de maturidade. Não obstante, aquilo que em Infância e História será chamado de “mutismo”, agora será exposto por Agamben em termos de uma “pobreza das palavras”, expressão esta, aliás, compartilhada pelo filósofo de Jena.
No poema supracitado, tal pobreza diz respeito à experiência vivenciada pelos iniciados no mistério eleusiano: que após terem vivido algo extraordinário devem consentir em calar, haja vista não existirem palavras adequadas para expressar o inefável vivido, sem que este seja empobrecido. De modo diferente, na Fenomenologia do Espírito, cujo primeiro capítulo nos lembra Claudio Oliveira é intitulado Das Meinung um das Diese (“O querer dizer e o isto”), os iniciados para fazerem experiência de tal pobreza não precisariam mais calar, mas exatamente o contrário. De acordo com o velho Hegel, para deixarem de dizer o que pretendiam dizer, bastaria tão somente dizerem isto que estava para ser dito [“das Diese”], afinal “a linguagem conserva o indizível dizendo-o” (AGAMBEN, 2006, p.28). Nas palavras de Oliveira
O mistério, [...], não é senão a experiência da linguagem descrita em Infância e História, a experiência do limite imposto à linguagem pelo fato do homem não ser sempre (todo) falante. A certeza sensível está presa ao que se perde por essa entrada do homem na linguagem, presa a esse perdido sem sabê-lo perdido, sem saber que a linguagem não é senão o processo que instaura esta perda (OLIVEIRA, 2008, p.117).
Adiante Agamben dirá que “Dasein Das diese nehmem significa: ser o ter-lugar da linguagem, colher a instância do discurso”, e que representa tanto para Heidegger como para Hegel, “que a negatividade entra no homem porque o homem tem por ser este ter-lugar, quer colher o evento de linguagem” (AGAMBEN, 2006, p.51). Retomando as reflexões de Infância e história, e considerando que a experiência de linguagem opera na fratura, isto é, na cisão entre língua e discurso, ocorrida pelo fato de sermos marcados pela ausência de uma voz própria, diríamos que este ter-lugar é um “não-lugar”. De tal modo que é precisamente na ausência da voz que dispomos uma Voz - o nosso ter-lugar na linguagem. É onde as palavras acabam que o humano escuta a própria Voz, encontrando-se finalmente com sua derradeira vocação.
Dando prosseguimento a sua reflexão em A linguagem e a morte, Agamben ainda recorrerá à teologia e gramatologia medieval; especificamente às discussões acerca do nome de Deus. Onde “encontrará a ideia de que a predicação de um nome a Deus torna esse nome um pronome. Isso implica que o nome de Deus não significa mais nada, mas torna-se uma indicação que não é nem sensível nem inteligível” (OLIVEIRA, 2008, p.124). יּהּוּהּ para sermos mais precisos: o nome inominável da tradição hebraica do Êxodo, escrito com a abolição de toda voz. Nome que se escreve, mas não se lê. YHWH. Ou como diz Agamben, o puro experimentum linguae, uma “experiência não mais de linguagem, mas da própria linguagem, ou seja, do seu ter-lugar no suprimir-se da voz” (AGAMBEN, 2006, p.49). Deus, a matéria da palavra; nome que a linguagem teológica inventou e que nomeia a infantil vocação humana. E finalmente, à língua que já não tem mais nada a expressar resta expressar-se. Liberta dos ídolos, essa língua “nua”, se encontra finalmente a disposição dos sentidos para dizer qualquer coisa. E já que não há mais nomes sagrados, a língua transparente a si mesma, agora pode falar tudo sem ter nada a dizer. Língua-jogo, língua-brinquedo. Este é o caráter infantil, profano da linguagem: ela é criação de nomes, mundos, histórias, sentidos...
Ocorre que temos instaurado um problema aqui. Pois, mais do que falar, a comunicação humana dependerá do gesto de ligar as palavras às coisas; que a despeito disso, permaneceriam sem nome, nem sentido. Assim, para tudo o que o homo sapiens venha falar seja condizente com a realidade, e para que no fim das contas a realidade mesma se torne viável, ele deve por excelência ser também o homo iustus (AGAMBEN, 2011). Ou seja, mais do que um problema “cognitivo”, a linguagem traz consigo problemas éticos.
Após traçarmos as linhas gerais desta experiência espiritual ocorrida nos limites da língua, não obstante aos seus limites, passaremos agora às análises realizadas por Agamben acerca do sacramento da linguagem e seu correspondente inevitável, a sacralização da vida.
Retomando o problema deixado em aberto no tópico anterior, ou seja, como é possível a vinculação das palavras às coisas a um ponto tão extremo que tal separação seja simplesmente inconcebível, o filósofo italiano empreenderá uma “arqueologia do juramento” (AGAMBEN, 2011). E na interface entre religião e direito, descobrirá que
Religião e direito tecnicizam esta experiência antropogenética (a da infância) da palavra no juramento e na maldição como instituições históricas, separando e opondo, ponto por ponto, verdade e mentira, nome verdadeiro e nome falso fórmula eficaz e fórmula incorreta. [...]. Assim a experiência performativa da palavra constitui-se e separa-se em um “sacramento da linguagem”, e este, em um “sacramento do poder”. A “força da lei” que rege as sociedades humanas, a ideia de que enunciados lingüísticos que impõem estavelmente obrigações aos seres vivos, que podem ser observadas e transgredidas, derivam desta tentativa de fixar a originária força performativa da experiência antropogenética (AGAMBEN, 2011, p.81).
O juramento revela-se, portanto, como sendo o “nexo ético – e não propriamente cognitivo – que une as palavras as coisas e as ações humanas” (AGAMBEN, 2011, p.81). Diríamos nós: legitimação mágico-política do discurso... Nas palavras do próprio Agamben, “o juramento é, de fato, uma afirmação religiosa” (AGAMBEN, 2011, p.11).
Em sua tese de doutorado publicada em 2018, sob o título Nietzsche e a grande política da linguagem, Viviane Mosé acompanhando a reflexão do filósofo alemão acerca do tema da linguagem, descreve essa tendência da cultura em “dogmatizar” os nomes que ela mesma inventou para si. Isso se dá diante a necessidade que a cultura tem de gerar estabilidade e identidade ao mundo vivido. Ou seja, para que uma comunicação mais “segura” se estabeleça é necessário, diríamos nós, “estancar” a dinâmica produtiva da própria língua. O que por conseguinte, fará com que aquilo que Nietzsche chamava de “potências do falso”, ceda lugar a perspectivas dogmáticas da cultura. Como se através da criação de significados [função denotativa] a língua fosse se perdendo de seu potencial criativo [função conotativa]. Sem abandonarmos a discussão com Agamben, acreditamos que através dessa digressão ao texto da filósofa, as coisas se tornem mais claras para nossos propósitos aqui. Em suas palavras:
Para que a linguagem se tornasse possível, ou seja, para que o ser humano aceitasse se relacionar com o conjunto de signos da linguagem, como representação das coisas, foi preciso estabelecer uma relação com a linguagem onde as palavras não remetessem às coisas, mas a outras palavras. Se a palavra fosse apenas o rastro de uma experiência vivida, se indicasse, pela via do signo, à pluralidade móvel que lhe deu origem, o estatuto da palavra estaria comprometido. O ser humano, a todo instante, perceberia que a identidade da palavra não poderia corresponder ao universo infinitamente móvel e múltiplo das coisas, e a palavra não se tornaria possível, a não como magia ou como arte. Ao contrário, a condição de existência da linguagem, como um sistema de signos de comunicação, é o esquecimento da pluralidade, e toda palavra deve remeter, unicamente, ao universo de sinais. Dito de outra amaneira, as palavras mão se relacionam com as coisas, mas com o universo significativo das próprias palavras, ou seja, as palavras se relacionam com aquilo que está dito que as palavras querem dizer. Uma palavra deve remeter sempre a outra palavra como um efeito cascata que nunca atinge o corpo, as sensações, os sentidos. A linguagem, desde seu nascimento, existe como uma interpretação, uma valoração moral que quer o afastamento do corpo, o esquecimento das sensações, do devir, mas que esconde as condições deste nascimento quando sustenta a crença na correspondência entre as palavras e as coisas. A linguagem gregária é um artigo de fé (MOSÉ, 2018, p. 67).
Voltando à Agamben – sem perder de vista aquilo que Mosé descreve como sendo a necessidade de “tornar a linguagem possível” -, a língua ao se descolar da experiência antropogenética da infância que lhe fundamenta transcendentalmente, isto é, desde a imanência, acaba por se alçada a um registro transcendente. E o logos, então, surgirá da interdição da própria phoné, por meio da mágica do juramento. Eis o começo da história da destruição da experiência, ou a história das interdições da infância e o respectivo triunfo do logos. Resumindo: sem estes sacramentos da linguagem [juramentos], as palavras não significariam nada em si mesmas, e a comunicação por sua vez, e a própria humanidade, seriam inviáveis.
Em termos mais amplos, a religião, tal como sugere Agamben, enquanto uma espécie de operação ontológico copulativa - ligadura das palavras às coisas -, não seria um mero capricho das culturas portanto, tampouco, uma coisa passível de ser superada dependendo da política, economia, ideologia em questão. Para ele, a própria política [linguagem-comunicação-juramento] é [ontologicamente] mágico-religiosa. Por outro lado, só porque a linguagem foi sacralizada religiosamente através do juramento [sacramento da palavra] é que há política. Conforme veremos, na política, não pode deixar de ocorrer como na linguagem. Quer dizer, só porque uma dimensão “animal” foi tolhida, separada, é possível ao Homem existir.
A fim de melhor compreendermos essa dinâmica política da língua, se faz necessário acompanharmos Agamben em seu recuo até a Antiguidade [Grécia e Roma], desde onde o filósofo irá retirar os elementos que compõem sua crítica à biopolítica. Para tanto, iniciaremos pelo conceito de vida.
A saber, no Ocidente o conceito vida sempre esteve em debate. Ao menos conforme entende Agamben, desde os gregos, passando pelo período medieval até o cientificismo moderno este tema tem ocupado o palco da história da filosofia, com amplas e acirradas discussões. Mesmo assim, a despeito de toda polêmica e esforço por parte dos estudiosos, explica o filósofo italiano, a verdade é que nossa cultura nunca chegou a conhecer uma definição derradeira do que seja a “vida”, que por sua vez, conforme estamos dizendo, é um conceito mutatis mutandis (AGAMBEN, 2017a). Apesar disso, há um ponto de partida compartilhado pela maioria dos especialistas e que de uma maneira ou de outra também se mantém como substrato para as apropriações do senso comum. Referimo-nos ao conceito de “vida nutritiva”, tal como postulado por Aristóteles. Conforme explica Agamben
Na história da filosofia ocidental, essa articulação estratégica do conceito de vida possui um momento crítico. Trata-se do ponto em que no De anima, Aristóteles isola entre os vários modos pelos quais se diz o termo ‘viver’, aquele mais geral e separável dos demais (AGAMBEN, 2017a, p.27-28).
Especificamente falando, foi na obra intitulada Peris psykês, traduzida em edições modernas sob o título De anima (“Sobre a Alma”) que Aristóteles distanciando-se tanto do materialismo naturalista quanto do dualismo platônico, buscou identificar o princípio responsável que faz diferir os seres animados dos inanimados. E considerando que o viver se diz de muitos modos, Aristóteles opondo-se ao que disse Platão acerca da alma possuir diversas partes distintas, afirma que em sua unidade, a psykhê é composta por diferentes potências. A saber, “a nutritiva, a perceptiva, a desiderativa, a locomotiva e a raciocinativa” (ARISTÓTELES, 2006, p.77).
Visando responder o que seja a vida, uma vez que é isso que distinguiria os seres animados dos inanimados, Aristóteles acabará por questionar sobre o estatuto de todo ser vivente. Ou seja, qual destas potências acima aludidas, é a mais genérica, mais comum e universal? Ao que responderá ser a vida nutritiva... Como ele mesmo aduz
Retomando o princípio de investigação, digamos então que o animado distingue-se do inanimado pelo viver. E de muitos modos diz-se o viver, pois dizemos que algo vive se nele subsiste pelo menos um destes – intelecto, percepção sensível, movimento local e repouso, e ainda o movimento segundo a nutrição o decaimento e o crescimento. Por isso, parece inclusive que todas as plantas vivem; pois é manifesto que têm em si mesmas uma potência e um princípio deste tipo, por meio do qual ganham crescimento e decaimento segundo direções contrárias; pois não crescem apenas para cima e não para baixo, mas similarmente em ambas e em todas as direções, e assim é para as que se nutrem constantemente e vivem até o fim, enquanto puderem obter o alimento. E é possível separar este princípio dos outros, mas impossível, nos mortais, separar os demais deste. E isso é evidente no caso das plantas, pois nelas nenhuma outra potência da psykê subsiste (ARISTÓTELES, 2006, p.74).
Com isso, “Aristóteles não define de modo algum o que seja a vida; ele se restringe a decompô-la graças ao isolamento da função nutritiva, para em seguida reelaborá-la com uma série de potências ou faculdades distintas e correlatas” (AGAMBEN, 2017a, p.28). Em outras palavras, o que ele faz é exclusivamente identificar a potência que de acordo com ele, seria o fundamento [arché] por meio do qual o viver pertenceria aos seres vivos. Tecnicamente falando, Aristóteles está se referindo a zoé; “vida nua” que para os gregos antigos “manifestava o simples viver, comum a todos os viventes (animais, homens ou deuses)”, e que é diferente de “bíos, que significava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, 2015, p.13).[7] Ademais é este “simples viver comum a todos os viventes” [zoé] que no Ocidente se constitui como sendo o “ponto de partida” que falávamos há pouco.
Um dado importante aqui precisa começar a desdobrar-se. Estamos falando precisamente do fato de que para Aristóteles o fundamento da vida [zoé] não seja político [bíos]. O que no O uso dos corpos, levará Agamben a afirmar o seguinte:
Não se pode compreender de fato a dialética do fundamento, que define a ontologia ocidental de Aristóteles em diante, se não se compreende que ela funciona como uma exceção no sentido que acaba de ser visto. A estratégia é sempre a mesma: algo é divido, excluído e rejeitado e, precisamente por essa exclusão, é incluído como arché e fundamento (AGAMBEN, 2017b, p.296).
Destarte se faz importante que continuemos acompanhando esse recuo de Agamben até a antiguidade. Foi lá que para além das fontes gregas, ele encontrou a enigmática figura do direito romano arcaico, a qual acabamos de nos referir: o homo sacer; com quem dará prosseguimentos à suas análises da biopolítica. A saber, em Roma não era incomum que determinados tipos de crimes fossem passíveis da seguinte sanção: o indivíduo julgado poderia ter todos os direitos de cidadão cassados.
Curiosamente, este indivíduo que não mais possuía direitos de cidadão e por isso não dispunha mais de sua bíos [vida politicamente qualificada], mas, que fora reduzido através de sua expulsão da cidade à sua zoé [vida nua] era chamado homo sacer [homem sagrado].[8] E uma vez que já não gozava do estatuto de cidadão, tal sujeito poderia ser morto por qualquer pessoa sem que isso significasse crime; e não era pra menos, afinal do ponto de vista legal ele simplesmente não existia enquanto pessoa. No entanto, paradoxalmente, por ser publicamente considerado como sendo sagrado, o homo sacer não podia ser sacrificado em rituais religiosos.
Subtraído da esfera do direito humano sem que isso significasse estar inserido na esfera do direito divino, o homo sacer está incluso na sociedade através de uma exclusão inclusiva: excluído por ser insacrificável e incluído por ser matável. Trata-se, portanto de uma espécie de vida rebaixada a sua nudez, animalidade, isto é, à sua condição de meramente vivente, de ser biológico e mortal.[9] Afirma Agamben
Festo, no verbete sacer mons no seu tratado Sobre o significado das palavras, conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal. Logo após ter definido no Monte Sacro, que a plebe, no momento de sua secessão, havia consagrado a Júpiter, ele acrescenta: At homo sacer is est, quem populos iudicavit ob maleficium; neque faz este eum immolari, sed qui occidi, parricidi nun damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur “si quis eum, qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit”. Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appellari solet (AGAMBEN, 2014, p.74).[10]
Esta é a vida nua do homo sacer, alguém que pode ser morto por qualquer um, mas que de forma alguma pode ser oferecido em louvor aos deuses por meio de sacrifícios religiosos. Conforme explicam as palavras de Eduardo Tergolina Teixeira “Por meio da consecratio, faz-se passar algo da esfera do humano para a esfera do divino. De fato, não é o que ocorre com o homo sacer, sujeito à sacratio. A sacralidade determina uma expulsão deste do âmbito humano, todavia sem passar para o divino.” (TEIXEIRA, 2015, p.33).
Desta forma, para além da tradição antropológica que, mormente pensou [pensa?] o sacro a partir da clássica ambivalência da sacralidade [puro / impuro; sagrado / profano etc.] - tal como Freud com seu conceito de tabu, Durkheim e sua reflexão sobre o fasto e o nefasto, Otto e a dinâmica entre o fascinante e o assombroso -, Agamben chama-nos atenção para fato de que o sacro dilema do homo sacer, liga-se, sobretudo à exceção e violência dela oriunda, a qual ele está exposto. Por isso,
Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ele abre uma esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana, e que se trata aqui de tentar compreender (AGAMBEN, 2014, p.84).[11]
Por isso sagrada é a vida que foi desnudada religiosamente por este poder. Separada das demais potências da psykhê, a vida que fora reduzida a sua nudez, agora se exibe sem mais embaraço, claramente, como fundamento último do poder soberano.
Tudo isso, para retomarmos nossa reflexão sobre a linguagem, e dizer que para Agamben, a ontologia aristotélica que vigora até hoje no Ocidente, é tributária daquela mesma lógica vigente na relação entre phoné e logos. Precisamente, trata-se da operação de exceção [inclusão via exclusão] coincidente com o gesto de manter a vida natural [zoé] que foi separada da vida política [bíos], submetida como fundamento [arché] de todo viver. Se na linguagem, a infância que fundamenta a língua [inclusão] foi tolhida [excluída] para que a história, o logos pudesse surgir, aqui é a vida nua que cumprirá às vezes de fundamento. Para Agamben, é esta forma de vida que amparará a biopolítica moderna, cuja uma das características principais é a cisão entre a zoé da bíos, ou para ficarmos com Aristóteles, a divisão entre potência nutritiva das potências da psykhé.
Enfim, para que não fiquemos presos a uma dicotomia estéril - armadilha que facilmente incorreríamos, acaso não compreendêssemos o elemento mágico-religioso constitutivo da linguagem e cultura humanas - que fundamenta ontologicamente a biopolítica, e que não obstante nos levaria a apostar em saídas secularizantes da religião -, Agamben quer nos chamar atenção à cisão em si mesma. Mais do que buscar, inutilmente, diga-se de passagem, resolver esse dilema relativo à condição ontológica / mágico-religiosa da biopolítica, lhe é importante não a perder de vista. Ou seja, é justamente por conta do dispositivo religioso de inclusão via exclusão, permanecer operando no interior de nossas democracias, em um nível mais profundo ainda no interior de nossa própria língua – sobre o qual não há nada que possamos fazer para suprimi-lo totalmente -, é que nós devemos estar atentos aos seus limites.
Para tanto, a fim de recobrarmos o estatuto profano dos nomes da cultura, até para que quem sabe com isso, consigamos evitar incorrer nos mais diversos dogmatismos e violências – como é o caso do homosacer -, se faz necessário mantermos a fissura da linguagem. Desta forma, arriscando-se no vazio que separa no humano, o humano do animal, quer dizer, investindo na vida mesma, mesmo que nua, Agamben pensa contrapor às trevas contemporâneas a potência infantil da língua.
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AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012b.
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MOSÉ, Viviane. Nietszche e a Grande Política da Linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
OLIVEIRA, Cláudio. A linguagem e a morte (1982), 2008, in: Nove abraços no inapreensível: Filosofia e Arte em Giorgio Agamben. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
TEIXEIRA, Eduardo Tergolina. O estado de exceção a partir da obra de Giorgio Agamben. São Paulo: LiberArs, 2015.
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[1] O texto original em italiano é de 1996, as demais citações dele são traduções nossas feitas da edição espanhola de 2012.
[2] O texto que traduzimos do espanhol, data originalmente do ano de 1996.
[3] De acordo com Agamben: “A pergunta: ‘de que modo o vivente possui a linguagem?’. Corresponde exatamente àquela outra: ‘de que modo a vida nua habita polis?’. O vivente possui o logos tolhendo e conservando nele a própria voz, assim como ele habita a polis deixando excluir a própria vida nua. A política se apresenta então como a estrutura em sentido próprio fundamental, da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre ser vivente e logos” (AGAMBEN, 2014, p.15).
[4] Importante nos atentarmos ao conceito de voz, pois, conforme explica Claudio Oliveira (2008), em A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade (1982), Agamben a substitui pela noção de infância presente em Infância e História: destruição da experiência e origem da história (1979). Nesse sentido, o tomaremos como equivalentes.
[5] AGAMBEN, Giorgio. O fim do pensamento. Revista Terceira Margem, do Programa de Letras (Ciências da Literatura), da UFRJ, número 11, p.157-159.
[6] Assim, como diz Agamben, “com sua voz livre de todo direcionamento genético, com absolutamente nada a dizer nem expressar, a criança poderia, ao contrário de qualquer outro animal, nomear as coisas em sua linguagem e, deste modo, abrir-se anti a si mesmo uma infinidade de mundos possíveis” (AGAMBEN, 2012, p.29).
[7] “Os gregos não tinham um termo único para exprimir o que entendemos pela palavra vida. Serviam-se de dois termos semântica e morfologicamente distintos: zoé, que manifestava o simples fato de viver, comum a todos os viventes (animais, homens ou deuses), e bíos, que significava forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, 2015, p.13). Tal informação é importante, pois a biopolítica se configura justamente pela operação que consiste na politização da vida nua – redução da zoé em bíos.
[8] Em O Espírito do Direito Romano, Rudolf von Jhering diz as seguintes palavras - que citamos na integra, mesmo que em desacordo com a atual regra gramatical, tal como estão dispostas no livro cujo tradução em mãos data de 1943: “não era qualquer espécie de culpa considerada como um ultrage aos deuses, que tinha como conseqüência converter em sacer a quem a cometia. O delito, em geral, ultrajava os deuses; mas só certos delitos, segundo textos que nos foram legados, imprimiam èsse carater a seus autores; por exemplo: a sevicia cometida pelos filhos contra seus pais, a traição do cliente para com o seu patrão, o desrespeito às lindes (?235) . Quando os historiadores posteriores atribuíam êsses casos às leis romanas (25C), eqüivalia designar os costumes da mais remota antiguidade. A República acrescentou outros casos nas leges sacra- /se; a ameaça de converter em sacer foi empregada, nêsta época, como simples meio de obter um objetivo político, e, particularmente, para evitar, pelo temor que devia produzir, violação das concessões outorgadas aos plebeus” (JHERING, 1943, p.202).
[9] Para Jhering “O homo sacer vivia em estado de proscrição religiosa e civil. Sujeito à vingança da divindade, a quem havia ultrajado com a sua má ação (254) (sacer), e excluido, por conseqüência da comunidade humana, era privado de todos os seus bens em proveito dos deuses, podendo até ser morto pelo primeiro que assim o quizesse. Ser sacer era haver incorrido em uma pena? Ao nosso vêr, não. Certamente, se se entender por pena um mal que se segue à perpetração de um delito, tornar-se sacer era a pena mais grave que imaginar se póde, porque não há mal que esta situação não fizesse suportar; ela, de facto, constituía o último gráu da perseguição e da humilhação. Ao inimigo, também, se privava do direito; mas o que agravava a posição do homo sacer era o elemento psicológico, ou seja a convicção de ser para os deuses e para os homens objeto de maldição, de execreção e de aversão; um sêr nocivo, a quem se arremessava da comunidade dos homens às bestas féras, evitado por todos. podendo julgar-se feliz se se encontrava com alguém que não considerasse, como ato meritório, tirar-lhe a vida; em uma palavra, era o sentimento da maldição que sobre ele pesava, e o estigma da proscrição que tornava a sua posição tão miserável quanto possível. A pena, segundo a idéia originária anteriormente indicada, não somente era um simples mal, mas tinha por fim purificar o delinquente, afim de reconciliá-lo com os deuses e os homens. No homo sacer, ao contrário, ainda que durasse a sua horrível situação por toda a vida, não conseguia nunca semelhante fim expiatório. Quem assim era maltratado, morria tal como vivia, homo sacer, irreconciliado com Deus e com os homens; a espada da justiça manchar-se-ia ao contacto de seu sangue, e como estava fora do direito, a lei penal dêle não se ocupava. O estado do homo sacer não se podia definir de outro módo, ao nosso ver, senão como o de um facínora, de um sacrílego, sem esperança de entrar na comunidade dos homens e da religião” (JEHRING, 1943, p.201-202).
[10] “Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida’. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado de sacro” (AGAMBEN, 2014, p.186).
[11] Por habitar esse limiar “dentro-fora” do estamento jurídico-religioso, a condição de homo sacer possui estreita vinculação com o poder soberano. Sob a insígnia do bando, o Soberano por um lado está submetido ao ordenamento jurídico, tendo por isso de fazer passar todas as suas decisões e ações pelo crivo legal da lei, ao mesmo tempo em que por outro lado, lhe está autorizado, mediante realidades que ameacem a integridade de seu poder, de abandonar o Direito e em “nome da lei” praticar ilegalidades legais. Em outras palavras, como sugere a já clássica formulação de Carl Schmitt o “soberano é aquele que decide sobre o estado exceção” (SCHIMITT, 2009, p.7). Ou, conforme explica Agamben, “Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável é a vida que foi capturada nessa esfera” (AGAMBEN, 2014, p.85).