Uma breve análise exegética de Nm 10,29-32

A brief exegetical analysis of Nm 10,29-32

Leonardo Agostini Fernandes* Luiz Henrique**
*Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG-Roma). Professor de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Contato: laf2007@puc-rio.br
**Doutorando em Direito pela Universidad de Buenos Ares. Contato: 
luizhlbarbosa@hotmail.com


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Resumo: 

O Livro de Números parece não receber a mesma atenção que os demais livros da Torá. Existem bons comentários, mas poucos artigos. Nesse sentido, um estudo sobre Nm 10,29-32 pode trazer alguma contribuição, em particular sobre o tema da súplica com promessa de recompensa que não é estranho ao livro. No texto em foco, encontra-se o diálogo entre Moisés e Hobab, na iminência da partida do Sinai rumo a Canaã. Moisés pede que Hobab sirva de guia na travessia pelo deserto. O vínculo, a denominação do sogro de Moisés e a utilidade a ele atribuída são questões relevantes e trabalhadas na análise, indagando ainda sobre a presença divina como guia pelo deserto através da Arca da Aliança e da Nuvem. Se YHWH já é o guia, por que a súplica para que um membro do clã de Raguel dos madianitas lhes direcione pelas rotas do deserto? Este artigo, adotando abordagens diacrônicas e sincrônicas, subdivide-se em tradução segmentada e notas de crítica textual, delimitação, estrutura e gênero literário, seguido de um comentário às seções adotadas. Nm 10,29-32 atesta que perícia humana não anula a condução divina, mas a integra.

Palavras-chave: Livro de Números; Liderança; Marcha pelo deserto; Mediação; Parentesco.

Abstract:

The Book of Numbers does not seem to receive the same attention as the other books of the Torah. There are good comments, but few articles. In this sense, a study on Nm 10,29-32 may bring some contribution, in particular on the subject of supplication with a promise of reward that is no stranger to the book. In the text in focus, there is the dialogue between Moses and Hobab, on the imminence of the departure from Sinai towards Canaan. Moses asks Hobab to serve as a guide in the crossing of the desert. The bond, the denomination of Moses' father-in-law and the usefulness attributed to him are relevant and crafted questions in the analysis, also asking about the divine presence as a guide through the desert by the Ark of the Covenant and the Cloud. If YHWH is already the guide, why the supplication for a member of the Raguel clan of the madianites to direct them through desert routes? This article, adopting diachronic and synchronic approaches, is subdivided into segmented translation and notes of textual criticism, delimitation, structure and literary genre, followed by a comment to the sections adopted. Nm 10,29-32 attests that human expertise does not nullify the divine conduction but integrates it.

Keywords: Book of Numbers; Leadership; March through the desert; Mediation; Kinship


Introdução

O leitor, ao se deparar com Nm 10,29-32, percebe que essa seção parece interromper o relato dos preparativos para a retomada da marcha pela qual os filhos de Israel, ao deixar o Monte Sinai, chegarão aos confins de Canaã (L’HEUREUX, p. 205). Trata-se de uma interrupção, pois verifica-se a mudança de personagens e de elementos léxico-sintáticos. Ainda que o ambiente geográfico continue o mesmo e, indiretamente, se mantenha a temática da partida, parece haver indícios de que Nm 10,29-32 se trata de uma inserção redacional.

O sogro de Moisés é apresentado em Nm 10,29-32 pelo nome de Hobab, assim como ocorre em Jz 1,16; 4,11. Em Ex 3,1; 4,18 ele é denominado Jetro e em Ex 2,18 por Reuel ou Raguel. Isso dificulta a identificação precisa do personagem. Em Nm 10,29-32 poderia ser o sogro de Moisés ou, talvez, outro parente de Séfora, esposa de Moisés (Ex 2,23; 4,20). 

Contudo, também sobre a esposa de Moisés paira outra dúvida, pois na murmuração de Maria e Aarão contra Moisés, o narrador afirma que se deveu à mulher cuchita que havia tomado por esposa (Nm 12,1). A razão do pedido de Moisés a Hobab parece justificável, visto que seria um guia experiente pelas rotas do deserto.

O pedido de Moisés a Hobab, porém, causa perplexidade, pois os filhos de Israel já estavam sendo conduzidos pela Nuvem de YHWH desde a saída do Egito (Ex 13,21-22). Após YHWH “adentrar” na tenda da reunião (Ex 40,34-35), a nuvem passou a indicar o momento de acampar como o de levantar acampamento (Ex 40,36-38). A ação de YHWH, pela nuvem, não apenas serviria, por certo, para indicar a direção a ser tomada, mas, também, os riscos a serem evitados. Nesse sentido, o pedido de Moisés a Hobab, um não israelita, é bastante estranho, pois cria certa concorrência com YHWH.

Ainda que incoerente, Moisés fez o convite ao “parente” madianita. Mais desconcertante é a recusa de Hobab. Parece inicialmente uma atitude de desprezo à oferta de ser agraciado, mas ao mesmo tempo poderia indicar outras possibilidades, inclusive a literal compreensão de que se sentiria mais confortável retornando para sua parentela e propriedades em Madiã.

Diante da recusa de Hobab, Moisés insiste em tom de súplica, ignorando ou dando a entender que a presença da Nuvem não fosse suficiente para guiar os filhos de Israel pelo deserto. Se antes Moisés fora discreto na tentativa de convencer Hobab a acompanhá-los, agora ele é bastante claro em seus objetivos. Hobab é visto como os “olhos” que o povo em marcha vai precisar durante a travessia pelo deserto. 

Para tornar a insistência no convite irrecusável, Moisés promete dar a Hobab os mesmos benefícios reservados aos filhos de Israel. Isso implicaria em presença estrangeira e convivência territorial futura em Canaã.[1]

De qualquer forma, Nm 10,29-32 provoca várias perguntas que este artigo pretende, ainda que de forma modesta, oferecer algumas repostas. Busca-se compreender a narrativa desse breve relato que, por sua vez, contém riquezas literárias e teológicas.

1. Tradução segmentada e notas de crítica textual

1.1 Tradução

E disse Moisés a Hobab, filho de Reuel, 

o madianita, sogro[a] de Moisés: 

29a

וַיֹּאמֶר מֹשֶׁה לְחֹבָב בֶּן־רְעוּאֵל 

הַמִּדְיָנִי חֹתֵן מֹשֶׁה

“Nós estamos partindo para o lugar

29b

נֹסְעִים אֲנַחְנוּ אֶל־הַמָּקוֹם

ao qual disse-lhe YHWH:

29c

אֲשֶׁר אָמַר יְהוָה אֹתוֹ

‘Darei para vós!’

29d

אֶתֵּן לָכֶ֑ם

Vem[b] conosco

29e

לְכָה אִתָּנוּ

e te beneficiaremos,

29f

וְהֵטַבְנוּ לָךְ

porque YHWH falou bem sobre Israel.”

29g

כִּי־יְהוָה דִּבֶּר־טוֹב עַל־יִשְׂרָאֵל׃

Mas [Hobab] lhe respondeu: 

30a

 וַיֹּאמֶר אֵלָיו 

“Não irei,

30b

לֹא אֵלֵ֑ךְ

pois para minha terra 

e para meus parentes caminharei”.

30c

כִּי אִם־אֶל־אַרְצִי 

וְאֶל־מוֹלַדְתִּי אֵלֵךְ׃

Então [Moisés] replicou:

31a

 וַיֹּאמֶר 

“Por favor não nos deixe,

31b

אַל־נָא תַּעֲזֹב אֹתָ֑נוּ

pois [a-sabes onde acamparemos-a][b] no deserto

31c

כִּי עַל־כֵּן יָדַעְתָּ חֲנֹתֵנוּ בַּמִּדְבָּר

e serás nossos olhos[c].

31d

וְהָיִיתָ לָּנוּ לְעֵינָיִם׃

E acontecerá, 

se fores conosco,

32a

 וְהָיָה 

כִּי־תֵלֵךְ עִמָּ֑נוּ

que aquele bem, 

com o qual YHWH nos beneficiar,

32b

וְהָיָה הַטּוֹב הַהוּא 

אֲשֶׁר יֵיטִיב יְהוָה עִמָּנוּ

beneficiaremos a ti’.”

32c

וְהֵטַבְנוּ לָךְ׃

1.2 Notas de crítica 

v. 29a[a]: Onde no Texto Massorético Leningradense TML está חֹתֵן (sogro), a variante sugere ser lido חֲתַן, substantivo que pode ser traduzido por “genro”, “cunhado” ou “algum parente” (BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1907, p. 368; GESENIUS, 1979, p. 315). Não há, no aparato da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHSap), menção a algum manuscrito que apoie a sugestão. Além do mais, a raiz חתן pode ser usada para qualquer relação de afinidade entre o personagem e os parentes da esposa, ou mesmo um genro. Não se tem certeza sobre o possível uso do substantivo para representar um genro ou um cunhado de Moisés, pois Ex 2,21-22; 18,4 se restringem a noticiar que ele teve dois filhos: Gerson e Eliezer, não informando a existência e o nome de alguma filha, tampouco os nomes dos possíveis maridos das outras irmãs de Séfora. A variante traz apenas uma sugestão, sem fornecer base em manuscritos que a sustentem, permitindo que se mantenha a lição presente no TML.

v. 29e[b]: O Pentateuco Samaritano, no lugar de לְכָה, traz לך, forma abreviada do imperativo de הלך. Do ponto de vista gramatical, לְךָ é mais frequente que לְכָה, apesar da preferência por esta forma que seria mais condizente com a gramática (JOÜON; MURAOKA, 2006, §103f). Na verdade, as formas são sinônimas (BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1907, p. 539). A forma mais breve é preferível quando se trata do imperativo no singular (GESENIUS, 1979, p. 439). BHSap fornece apenas uma grafia diferente possível. Visto que o TML traz a forma comum e de acordo com a gramática, não há razão para assumir a variante.

v. 31c[a-a]: Onde o TML traz, “sabes onde acamparemos” (יָדַעְתָּ חֲנֹתֵנוּ), a LXX, considerada original, traz “estavas conosco” ou “eras um de nós” (ἦσθα μεθʼ ἡμῶν). Há, igualmente, uma variante explicativa no Targum e no Targum do Pseudo-Jonatas: “sabias como ser habitante” (KAUFMAN, 2004/2005, n.p). Embora a LXX seja mais antiga que o TML e os dois textos targúmicos também contenham variantes, não há falta de sentido na lição do TML. Além disso, o Pentateuco Samaritano conservou a raiz “acampar” (חנה); e a Vulgata traz “devemos pôr acampamento” (castra ponere debeamus), dados que apoiam o TML, no qual se conserva o contexto do diálogo e seu objetivo.

v. 31c[b]: O Pentateuco Samaritano, no lugar de “onde devemos acampar” (חֲנֹתֵנוּ) do TML, traz חנתינו. Não há menção a outra tradição que ampare essa variante. No TML, trata-se ainda de um hápax legómenon, não havendo como comparar o uso desse verbo no infinitivo constructo com outros textos. No Pentateuco Samaritano, o uso da mater lectionis (י), na formulação verbal, causa dificuldade ainda maior. Ao se comparar com a LXX (ἦσθα μεθ᾽ ἡμῶν ἐν τῇ ἐρήμῳ) e a Vulgata (per desertum castra ponere debeamus), nota-se que se está apenas diante de uma tradição diferente, mas difícil de ser admitida como possível e sem base nas outras lições textuais. A formulação do TML, ainda que seja um hápax, não causa problemas na compreensão.

v. 31d[c]: Onde o TML trouxe “nossos olhos” (לְעֵינָֽיִם),  a LXX preferiu “ancião” (πρεσβύτης). Talvez a variante queira identificar alguém experiente. Já a Vulgata optou por “condutor” (ductor). O Pentateuco Samaritano, em harmonia com o TML, sugere “por nossos olhos” (לעינים). Não há razão para desprezar o TML, porque não há oposição entre as compreensões do substantivo (antecedido de preposição) em nenhuma das tradições elencadas no aparato: “olhos”, no contexto do v. 31, seria sinônimo ou uso metonímico de “condutor” e até mesmo de “alguém experiente” (um guia), o que atestaria a harmonia de todas as tradições aqui tratadas.

2. Delimitação do texto, estrutura e gênero literário

2.1 Delimitação

O livro de Números é difícil de ser estruturado. Há posições a favor de uma divisão tripartida e outras favoráveis a uma estrutura bipartida (SKA, 2002, p. 48-51). Se adotada a primeira posição, surgiriam as seguintes partes: a) Israel no Sinai (Nm 1,1–10,10); b) Israel em marcha (Nm 10,11–21,20); c) Israel nos territórios de Moab (Nm 21,21–36,13). Dentro da segunda proposta, considerando que o gênero do livro inteiro é o de campanha militar, a divisão seria em duas partes, respectivamente um plano de conquista bélica e a sua execução: Nm 1,1–10,10; 10,11–36,13 (KNIERIM, 2005, p. 22). 

Ao se admitir a última proposta, o livro de Números poderia ser estruturado em duas partes: a) Nm 1,1–10,10: preparação da conquista; b) Nm 10,11–36,13: execução da conquista que, por sua vez, teria dois momentos: Nm 10,11–21,20: a marcha no deserto e Nm 21,21–36,13: o início da conquista (SKA, 2002, p. 50). Assim, Nm 10,29-32 está inserido no macroconjunto de Nm 10,11–36,13 e no microconjunto de Nm 10,11–21,20.

O contexto próximo precedente a Nm 10,11-28 trata dos últimos detalhes antes da partida: a elevação da Nuvem sobre a tenda da reunião e a ordem de marcha das tribos. Os personagens são: YHWH, Moisés e os filhos de Israel. Todo o contexto gira em torno da preparação final para a campanha. Ao final de Nm 10,28 encontra-se uma setumah, que marca a transição para a seção de Nm 10,29-32, onde os personagens centrais são Moisés e Hobab, havendo ainda menção a YHWH e a Israel (CLARK, 2005, p. 5). O tema foge ao contexto estrito dos últimos preparativos, pois a Nuvem já era guia do povo (Nm 9,15-23), mas, mesmo assim, Moisés apela a Hobab para guiá-los pelo deserto (Nm 10,31-32). Por fim, Nm 10,29 começa com um verbo no wayyiqtol, o qual realiza uma transição entre as duas seções: “e disse” (וַיֹּאמֶר).

O contexto próximo subsequente é Nm 10,33-36 e aparece marcado pela partida do Sinai, com o relato que descreve vivamente a função militar da Arca, como guia e protetora de Israel (MILGROM, 1990, p. 373). Nm 10,33-36 fecha o relato da ordem de marcha rumo a Canaã, sendo sucedida por um novo bloco (Nm 11–14), que trata das murmurações contra YHWH e Moisés, fazendo a transição de um estado de obediência e confiança para outro de questionamentos e oposições (LEVEEN, 2008, p. 67). 

Enquanto Nm 10,29-32 destaca Moisés e Hobab, Nm 10,33-36 omite este último; em seu lugar, a Arca da Aliança é a protagonista, tendo Moises por coadjuvante. Moises é quem dirige as preces a YHWH. Nm 10,33 também se inicia com um verbo de transição no wayyiqtol: “e partiram” (וַיִּסְעוּ). Não há uma setumah encerrando Nm 10,29-32, mas esta é colocada após Nm 10,34, separando a narrativa (Nm 10,33-34) da oração (Nm 10,35-36). Ao final de Nm 10,36, é posta uma petuhah, demonstrando o término da seção e início de outro contexto: o das murmurações contra YHWH (CLARK, 2005, p. 5).

Como Nm 10,29-32 interrompe uma série de observações quanto à ordem de partida e o repouso do povo (Nm 10,11-28), tema que é retomado em Nm 10,33-36, parece haver a possibilidade de que seja uma inserção entre essas duas seções (precedente e subsequente). Se Nm 10,29-32 fosse suprimido, a narrativa da partida do Sinai ficaria perfeitamente harmonizada e contínua. Destaque-se que Nm 10,28 encerra-se com o mesmo verbo que inicia Nm 10,33: “partiram” (וַיִּסָעוּ). O duplo uso deste verbo no wayyiqtol na terceira pessoa do masculino plural, parece servir como ponte entre Nm 10,28.33. Aliás, o verbo “partir” (נָסַע), de movimento, está presente doze vezes nas seções precedente e subsequente a Nm 10,29-32, que o contém uma única vez. Em lugar de “partir” (נָסַע), em Nm 10,29-32 o verbo “ir, andar” (הָלַךְ) foi usado quatro vezes.

A partir dos argumentos supracitados, Nm 10,29-32 parece ser um texto coeso, sem tensões ou rupturas. Essa coesão textual deve-se, ainda, à presença da conjunção כִּי (“porque”; “se”), concedendo conexão e uma lógica sequência entre as orações (vv. 29g, 30c, 31c e 32a).

2.2 Estrutura

Sob tal coesão, desponta uma possível estruturação para Nm 10,29-32. No v.29, o narrador apresenta o personagem Hobab, dizendo não só seu nome, mas também sua ancestralidade/clã, origem e relação com Moisés. Apresenta também o convite inicial de Moisés e a promessa de bênçãos por parte de YHWH. No v. 30 apresenta-se a reação de Hobab, recusando o convite de Moisés. Nos vv. 31-32, um novo convite de Moisés revela a razão: Hobab conhecia o deserto. A recompensa soa como justa retribuição pelo trabalho.

Se Nm 10,29 traz um convite e uma promessa de recompensa (A), Nm 10,31-32 teria um segundo convite e uma segunda promessa de recompensa (A’). Surge então que Nm 10,30 seria o centro de um quiasmo (B). Neste caso, qual seria a ideia central ao se destacar a recusa de Hobab? Seria a consciência de que YHWH era o melhor guia que os filhos de Israel poderiam ter, algo que (a priori) faltava a Moisés? Aceitar esse quiasmo implicaria dar a Hobab maior grau de fidelidade a YHWH que o próprio Moisés. Mas esse tipo de questão não seria estranho à Bíblia hebraica. Por exemplo, Jn 1 mostra que os marinheiros gentios eram mais fervorosos que o profeta Jonas.

Além disso, Nm 10,29-32 também poderia ser disposto em duas partes: a primeira narrativa e a segunda dialogal, com a devida divisão interna em forma de quiasmo:

  1. Introdução, com apresentação de Hobab (v. 29a);
  1. Diálogo entre Moisés e Hobab (vv. 29b-32);

A: Primeiro convite de Moisés com promessa a Hobab (v. 29b-g);

B: Recusa de Hobab (v. 30);

A’: Segundo convite (súplica) de Moisés com promessa a Hobab (vv. 31-32).

Toda a seção transcorre com verbos que apontam para a ação e reação, tanto de Moisés como de Hobab, gerando dinâmica e interatividade entre os personagens centrais. A fala de Moisés é empregada no passado (vv. 29c.g), no presente (vv. 29b. e 31b-c) e no futuro (vv. 29d.f e 31c-32c), ritmando o nexo causal entre os acontecimentos sob o conteúdo do v. 29c: “ao qual disse-lhe YHWH” (אֲשֶׁר אָמַר יְהוָה אֹתוֹ); “de modo que um sumário histórico contextualiza uma revelação profética” (FERNANDES, 2016, p. 123).

2.3 Gênero Literário

Quanto ao gênero literário, há um entendimento de que Nm 10 seria um capítulo épico, ao lado de Ex 1–20; 32–34; Nm 10–14; 16–17; 20–24; Dt 32–34, que contém grandes seções épicas dentro do Pentateuco. Tanto o livro de Êxodo quanto o de Números seriam obras épicas e relevantes para a fundação dos filhos de Israel como uma futura nação. O ciclo de Balac e Balaão (Nm 22– 24) também se enquadra nesse gênero literário, que envolve apelo, resposta e devida recompensa.[2]

Em Nm 22–24 se encontram dois personagens centrais: Balac (rei de Moab) e Balaão (um profeta mesopotâmico). Balaão é alguém que escuta a voz de YHWH, mas em Nm 22,31 ele se torna um roeh, pois vê o Anjo de YHWH. Balac faz um apelo/súplica a Balaão para que amaldiçoe Israel (Nm 22,6). Balaão, escutando o Eterno, recusa o pedido de Balac (Nm 22,13). Uma nova súplica é feita em Nm 22,16. E uma promessa de recompensa é colocada às claras em Nm 22,17.

Portanto, assim como em Nm 10,29-32 há uma súplica, uma recusa e uma nova súplica com promessa de recompensa, em Nm 22,2-17 igualmente se encontra uma súplica, uma recusa e uma nova súplica com promessa de recompensa. Consequentemente, é possível sustentar que exista, nesses dois episódios, o gênero de súplica com promessa de recompensa.

3. Comentário

3.1 Apresentação de Hobab (v. 29a)  

A relação de Moisés com Hobab não é de parentesco sanguíneo, mas de afinidade legal.[3] No caso de parentesco, há os ascendentes (pais, avós etc.), os descendentes (filhos, netos etc) e os colaterais (irmãos, tios, sobrinhos e primos). No caso de afinidade legal, estão os sogros, cunhados, genros, noras, enteados etc. Esta distinção jurídica é importante na análise da relação entre Moisés e Hobab. 

Hobab é apresentado na narrativa como “filho de Reuel, o madianita, sogro de Moisés” (בֶּן־רְעוּאֵל הַמִּדְיָנִי חֹתֵן מֹשֶׁה), levando a crer que seria seu “cunhado” (MAINELLI, 1999, p. 161). Há, porém, múltiplos nomes atribuídos ao sogro de Moisés: Jetro, Hobab, Queni e Reuel.

O nome Jetro aparece em Ex 3,1; 4,18 e poderia estar relacionado a Jeter, como está citado em Jz 8,20. A raiz יתר tem significados amplos, em geral ligados à esposa (VARO, 2008, p. 96), e se refere a alguém ao qual Moisés se achega, convive, deixa e depois reencontra; há um paralelismo de ação entre o sogro e os irmãos de Moisés no Egito, de quem ele também havia deixado quando fugiu do Egito e a ordem de YHWH que a eles deveria retornar. 

A conveniência do nome de Jetro, no contexto de Ex 4,18, parece bem clara, tendo em vista que Moisés vai até ele pedir para voltar ao Egito. Diferente do faraó, que não deixa Israel partir, Jetro autoriza que Moisés retorne ao Egito, levando sua filha Séfora e seus dois netos, com um augúrio de paz. Assim se estabelece um laço mais forte que o de sangue entre sogro e genro (FERNANDES, 2016, p. 121).

Ocorre que em Ex 18,1-2.5-6.9-10.12 o sogro de Moisés é igualmente denominado Jetro e, em Ex 18,27, está dito que Moisés deixou seu sogro voltar para casa. Assim, se Jetro era o sogro, que retornou para Madiã e nada se afirma sobre um ulterior encontro entre os dois, como poderia ter reaparecido no acampamento dos filhos de Israel em Nm 10,29?[4]

A multiplicidade de nomes que são atribuídos ao sogro de Moisés no Pentateuco e no livro de Juízes traz dificuldades para se estabelecer o real laço de afinidade entre Moisés e Hobab. O substantivo חֹתֵן poderia indicar sogro, cunhado ou outro parente da esposa. O uso da expressão “sogro de Moisés” (חֹתֵן מֹשֶׁה) pode ser uma forma de se referir a dois personagens distintos: o sogro Reuel e o cunhado Hobab. Essa inconsistência de nomes pode indicar também a ocorrência de diversas tradições a respeito do personagem, não sendo suficiente para afetar a mensagem teológica da seção de Nm 10,29-32 (NGUYEN, 2017, p. 144; NOWELL, 2010, P. 48). 

Segundo a tradição bíblica, não há concordância entre os textos que citam o sogro de Moisés. Jetro e Reuel (ou Raguel) são os nomes mais apresentados. Hobab poderia ser o cunhado de Moisés, irmão de Séfora. Mas o problema da definição volta a se agravar quando Jz 1,16 cita Hobab como sendo um quenita e Jz 4,11 diz que se tratava do sogro de Moisés.[5] 

Talvez por isso tenham surgido tentativas de ler genro ou cunhado (חֲתַן) em lugar de sogro (חֹתֵן). Todavia, essa explicação se opõe a Ex 2,18; 3,1, que tratam o sogro como Raguel ou Jetro. A diferença de nomes parece ser fruto das diferentes tradições a respeito do mesmo fato, envolvendo um personagem ligado a Moisés (FERNANDES; GRENZER, 2011, p. 124).[6]

É possível, porém, identificar Hobab com o cunhado de Moisés, pois este encontrou sua esposa e seu sogro pela primeira vez após a sua fuga do Egito (Ex 2,15-22). Em Ex 4,20, depois de ter voltado ao Egito com a família e de tê-la, supostamente, enviado de volta ao seu sogro (Ex 18,2), Moisés, antes de chegar ao Sinai, se reencontrou, graças ao seu sogro, com sua esposa e seus dois filhos (Ex 18,1-6). O sogro aparece então, segundo tradições diferentes, com os nomes de Jetro ou Raguel/Reuel (PITKEANEN, 2018, p. 103-104).

De tudo o que foi apresentado, se pode chegar a algumas possíveis soluções para o impasse dos nomes: 1) Hobab e Jetro seriam a mesma pessoa e Raguel seria seu pai; 2) O substantivo חֹתֵן significaria uma relação em função da noiva, por isso tanto “cunhado”, quanto “sogro’, razão pela qual Reuel se tornaria o pai de Hobab/Jetro e o sogro de Moisés; 3) Reuel seria o nome de um clã, como visto na associação com Madiã (Gn 25,3 segundo a LXX) e Edom (Gn 36,17; 1Cr 1,35-37). Então, חֹתֵן no versículo deveria ser lido חָתָן, “cunhado”, fazendo de Hobab o jovem espião do deserto, do clã madianita de Raguel, cunhado de Moisés.

Quanto ao fato de Hobab ser chamado de quenita, sendo um madianita, é possível esclarecer que Madiã era uma confederação de povos, da qual os quenitas eram um dos grupos integrantes (MILGROM, 1990, p. 78).

Outra questão seria a idade de Jetro: se ele já era avançado em anos, como poderia servir de guia a um povo numeroso nas estradas perigosas do deserto? Se Moisés tivesse ao menos oitenta anos nessa época, seu sogro talvez tivesse muito mais. Assim, se vivo, não teria condições físicas de fazer tamanha empreitada (apesar de que, pela fé, para o autor bíblico nada é impossível aos olhos de Deus). Nesse sentido, Hobab em Nm 10,29 não poderia ser Jetro de Ex 3,1 ou Raguel de Ex 2,18, mas talvez filho deste ou daquele, dependendo da tradição.

Surge assim outra explicação possível para a inserção de Nm 10,29-32 entre as duas seções confrontantes. Muito além da questão dos nomes do sogro de Moisés, esse breve episódio destaca um pensamento teológico importante após a partida do povo e antes da menção à Arca: a escolha de Moisés de um guia para a viagem no deserto (NGUYEN, 2017, p. 144). Como em Ex 18,13-27 ouviu os conselhos de Jetro e os executou, de igual modo apresenta a sua confiança na destreza de Hobab para ajudá-lo na marcha pelo deserto.

3.2 Diálogo entre Moisés e Hobab (v. 29b-32)  

Moisés, ao dizer a Hobab, “Nós estamos partindo para o lugar” (נֹסְעִים אֲנַחְנוּ אֶל־הַמָּקוֹם), parece querer transparecer que os filhos de Israel irão imediatamente para a Terra Prometida. Mas essa jornada, pelo que seguirá na narrativa, não será tão curta quanto se imaginava. O episódio catastrófico que decorreu após o retorno dos espiões (Nm 13–14), por certo, não poderia ter sido previsto por Moisés; menos ainda a séria consequência: quarenta anos no deserto, além da condenação de quase toda a geração dos líberos do Egito, com exceção de Caleb e de Josué (MILGROM, 1990, p. 79).

3.2.1 Primeiro convite de Moisés com promessa a Hobab (v. 29b-g)  

Até este momento Moisés convidara Hobab a acompanhá-lo na bondade de YHWH para com os filhos de Israel, sem apresentar sua real intenção. Talvez se valesse de laços de afinidade para convencer Hobab a segui-los. A missão do eleito, no caso Moisés, deve envolver toda a sua família. Algo parecido com o que ocorreu em Ex 4,19-23, pois sem a família: “a vida dos demais e suas agruras não recebem a devida atenção. Contar com a presença e o apoio da família é de fundamental importância para o eleito, mesmo sabedor de que os perigos se tornam maiores” (FERNANDES, 2016, p. 138). 

A fé de Moisés, porém, não dispensa o uso da prudência. A atitude intransigente do faraó demonstrou a ele que não se pode ser inflexível diante da vontade de YHWH. Para pensar no sucesso da missão, que trará bem aos outros, é necessário não renunciar a tudo de bom que a família representa. E Hobab, ainda que por afinidade, é um membro da família de Moisés por parte de Séfora.

A expressão “falou bem “ (דִּבֶּר־טוֹב) é idiomática e exprime uma promessa e uma garantia para o futuro da parte de YHWH (NGUYEN, 2017, p. 144). Mas, quando Moisés promete a Hobab que ele e o povo lhe farão bem, não diz abertamente do que se trata. Poderia ser uma promessa de recompensa ou apenas a garantia de que seriam amigos na Terra Prometida.

A presença de Hobab no meio dos filhos de Israel, em teoria, não seria um problema, pois segundo Ex 12,38 subiu com Moisés e os libertos uma mistura de gente numerosa. Este dado permite dizer que entre os filhos de Israel estavam pessoas de outros povos que se beneficiaram do feito libertador de YHWH (PRIOTTO, 2014, 232-233).

3.2.2 Recusa de Hobab (v. 30)

A recusa de Hobab poderia soar como um ato de orgulho da parte do parente de Séfora, mas também é possível entender que Hobab sabia não fazer jus àquela recompensa prometida por YHWH aos filhos de Israel. Ele era estrangeiro e não destinatário da bênção. O benefício aludido por Moisés, porém, o colocaria dentro da promessa que fora feita a Abrão (Gn 12,1-3).

O motivo da recusa parece ter sido o desejo de voltar para casa, para estar perto de seus bens e de seus parentes. Hobab assim se reconheceria ligado a Moisés e ao seu povo apenas de modo indireto, pela relação de afinidade através de Séfora. Não sendo herdeiro da promessa, não poderia fazer jus a uma tal recompensa, ainda que fosse vista como um justo pagamento pelo serviço prestado.

Por outro lado, se Hobab reconheceu que YHWH já se apresentara como guia para Israel, através da Nuvem, sua atitude demonstra notável humildade e piedade. Seria ele mais sensato e fiel a YHWH que o próprio Moisés, vendo em YHWH o condutor por excelência da marcha.[7] A resposta de um madianita, recusando seguir Moisés com os filhos de Israel, mas sendo colocado como participante da bondade de YHWH, amenizaria a visão exclusivista presente em Dt 18,9, transformando-a numa visão inclusiva (ADAMCZEWSKI, 2020, p. 161-162).

3.2.3 Segundo convite (súplica) de Moisés com promessa a Hobab (vv. 31-32)

Uma das questões centrais de Nm 10,29-32 é a insistência de Moisés junto a Hobab para servir de guia do povo na travessia pelo deserto. Por que Moisés teria apelado tanto? A Nuvem de YHWH não lhes seria suficiente?

Moisés, por certo, não ignorava os caminhos do deserto, conhecia as principais rotas. Haveria, então, uma razão maior para que ele ousasse depender da ação de Hobab? Talvez seja possível inverter a questão e dizer que Hobab, aceitando ser o condutor no deserto, poderia ter uma mais profunda experiência de fé em YHWH. A primeira recusa de Hobab e a insistência de Moisés seria como uma porta aberta para a sua conversão (LIENHARD; ODEN, 2001, p. 211). 

Ainda que essa opinião seja sustentável, parece difícil de ser comprovada senão fazendo apelo, novamente, a Gn 12,1-3. Sentir-se indispensável seria motivo suficiente para um madianita deixar seus bens e parentes a fim de prestar um serviço que certamente não lhe seria conveniente? Acrescente-se a isso o fato de que Hobab tinha conhecimento das maravilhas que YHWH operara por Moisés, desde o Egito até o Sinai, pois estava junto ao povo. Ele jamais poderia ser o melhor guia para Israel, competindo com YHWH, um Deus capaz de prover tudo. A intenção mosaica de converter Hobab a YHWH parece mais fideísta que teológica.

Ao se perceber, porém, “o valor de ter um guia que conhece o terreno e a localização das fontes de água, Moisés pede a Hobab, seu sogro, para servir nessa função” (BAILEY, 2005, p. 450). Desse modo, é possível harmonizar a existência de Hobab como guia e de YHWH, pois assim como a libertação foi um feito de YHWH através da mediação de Moisés, a condução pelo deserto poderia ser, igualmente, outro modo de evidenciar o papel da mediação, inclusive através de um madianita. Essa causalidade dupla, humana e divina, é igualmente observada quando do envio dos espiões para explorar Canaã: em Nm 13,2 é YHWH quem ordena, enquanto em Dt 1,22 são os homens que o propõem (NGUYEN, 2017, p. 145).

Além disso, a Arca, sinal visível da presença de YHWH, também era uma espécie de guia para o povo. Hobab, então, não seria um guia no sentido estrito, mas continuaria sendo conselheiro de Moisés como foi no passado (Ex 18,17-24). 

Nesse contexto, o uso de “sabes” (יָדַעְתָּ) adquire sentido especial no v. 31c: Hobab conhece mais que as estradas do deserto; ele é experiente nas estradas da vida e pode continuar colaborando com Moisés. Caso contrário, haveria um paradoxo teológico: como Israel poderia admitir um guia humano se já possuía um divino, simbolizado na Arca e visível na Nuvem? (MILGROM, 1990, p. 80). 

Assim, é sustentável reconhecer a possibilidade da existência de duas tradições acerca da condução do povo pelo deserto. A justaposição destas, um guia humano e um divino, está presente tanto no tema do deserto quanto nas tradições da conquista da Terra Prometida.

O argumento inicial de Moisés pode ter sido os laços entre ele e Hobab, além de uma recompensa disponível a ser compartilhada num futuro brilhante. Apenas quando Hobab declina da oferta, Moisés expressa a necessidade mais profunda e realista de seus serviços.

Então, um estrangeiro madianita, aceitando guiar, estaria em conformidade com YHWH e a Torá, servindo de olhos para Moisés e o povo que lhe fora confiado. No momento em que a divindade repousava no Tabernáculo e o povo, liderado por Moisés, retomava as murmurações, que olhos extras seriam necessários? Os “olhos” de Hobab, isto é, de quem possuía uma qualidade visível aos olhos de Moisés e dos filhos de Israel, era característica que aquela geração não possuía (GRYLAK, 1988, p. 190).

Ainda que em tradições diferentes, o conselho de Jetro em Ex 18,17-24 e o pedido de Moisés em Nm 10,29-32 se entrecruzam. Como Jetro não se deixou amedrontar com os desafios da vida nômade pelos caminhos do deserto, Moisés reconhece o valor de Hobab. Para além da diferença dos nomes, está Madiã representado em uma recíproca relação com os filhos de Israel. Este, apesar da força libertadora de YHWH, quando em marcha só sabia murmurar e recordar o que deixara no Egito. A figura do parente, aceitando ser guia, testemunhava o valor e o peso da liberdade.

Se Hobab não se considerou merecedor da recompensa de YHWH, isto é, tornar-se partícipe dos bens destinados aos filhos de Israel, revelaria que “a indefinição da promessa talvez reflita a condição anômala dos quenitas que residiam com Israel” (MILGROM, 1990, p. 78-79). O critério usado, “porque YHWH falou bem sobre Israel” (כִּי־יְהוָה דִּבֶּר־טוֹב עַל־יִשְׂרָאֵל׃), muito provavelmente queria expressar os benefícios oriundos da fidelidade à aliança e, pelo texto, Moisés estaria propondo inserir Hobab e seus descendentes nesse pacto.

Não se sabe qual foi a última resposta de Hobab. O texto silencia. Talvez tenha sido positiva, razão pela qual se fez referência em Jz 1,16; 4,11 (L’HEUREUX, 2007, p. 205; VARO, 2008, p. 97). Em contrapartida, a omissão pode ser devida a um fator excludente, de modo que, uma vez entrados em Canaã, os descendentes de Hobab não se julgassem no direito de reivindicar uma propriedade entre os filhos de Israel. (MILGROM, 1990, p. 80). No conjunto, porém, a omissão atestaria a convicção de que Moisés e os filhos de Israel ainda podiam contar com a presença da Arca e a ação da Nuvem como guia, importando pouco a resposta de Hobab. 

Conclusão

Nm 10,29-32 interpela quem se aproxima academicamente do livro de Números ao se deparar com uma seção de apenas quatro versículos, servindo de aposto no relato da partida, com mudança de personagens, de gênero literário, de léxico e até mesmo de natureza verbal. 

A intenção, por detrás desse breve trecho, não parece evidentemente clara. Nota-se que há um pêndulo entre a destreza prática, sinal de sabedoria de quem conhece o deserto, e a certeza da presença divina, condutora da história (MAINELLI, 1999, p. 161). Então, o que foi acima apresentado no comentário é uma posição dentre tantas possíveis e válidas. É assim, porém, que a pesquisa bíblica progride, pois não há como colocar um ponto final.

Ao se considerar que o livro de Números se enquadra no gênero literário de campanha militar (SKA, 2002, p. 49), Nm 10,29-32 serviria como um oásis de paz contido em um diálogo de súplica, réplica e promessa de recompensa. Diante da liberdade da oferta está a liberdade da resposta positiva ou negativa. Se os bens prometidos aos filhos de Israel podem ser oferecidos a um madianita, abre-se ao estudioso das Sagradas Escrituras possibilidades de continuar encontrando tesouros literários e teológicos. Se os filhos de Israel, por vontade de YHWH e na obediência da fé, podem se tornar um reino de sacerdotes e uma nação santa, nada impede que um madianita experimente os benefícios sendo, ele mesmo, um benefício.

Hobab poderia então ser identificado como exemplo de estrangeiro que reconhece o Senhorio de YHWH e que se coloca como servidor aos seus propósitos, ainda que se julgue incapaz desse encargo e indigno de receber uma recompensa destinada aos filhos de Israel. 

De qualquer forma, Nm 10,29-32, ainda que coeso, não é mera continuação narrativa, mas uma provável lição a ser percebida, assimilada, refletida e recordada pelas gerações futuras. A travessia do deserto da existência se faz na presença de YHWH, aceitando as mediações que oferece, sem as quais não se experimenta a largueza e a universalidade dos seus benefícios.

Referências

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Notas

[1] Este elemento pode ter ocorrido de forma pacífica até o início da monarquia e, assim, teria a sua base nesse episódio aos pés do Sinai (PITKEANEN, 2018, p. 104).

[2] O gênero épico é uma história que versa sobre o destino nacional e as unidades legais completariam o quadro da identidade e missão dos filhos de Israel. Existe no gênero épico um herói nacional, o que parece ocorrer no livro de Números com Moisés (RYKEN, 2015, p. 46).

[3] “São parentes as pessoas que descendem umas das outras ou de um tronco comum; no caso da afinidade, importa o que aproxima cada um dos cônjuges aos parentes do outro” (MADALENO, 2020, p. 864).

[4] Visto que a rebelião de Maria e Aarão contra Moisés deu-se por causa da sua mulher cuchita, pode-se pensar que Hobab seria seu sogro a partir de um novo casamento. O problema é que Hobab também é um madianita (OLSON, 2006, p. 69).

[5] É possível que o nome de Hobab venha da raiz “amar” (חבב), significando alguém amado, amigo ou predileto. Só aparece no Pentateuco e é citado uma vez em Jz 4,11 (NGUYEN, 2017, p. 144). Na Bíblia de Jerusalém (1995, p. 375) usou-se Hobab; já na nova edição (2002, p. 349), em Jz 1,16 o sogro de Moisés é chamado de Queni (קֵינִי), mas parece mais adequado acreditar que Queni não se refira a um nome próprio, e sim a uma etnia: a dos quenitas (Jacob Malgrom lê como “cainitas” ao dizer que “Enock era quenita ou filho de Caim” (1990, p. 77), que eram um subgrupo dos madianitas. Em alguns manuscritos gregos está Hobab em Jz 1,16 e em Ex 2,18 o mesmo personagem é chamado de Reuel ou Raguel. Na Bíblia do Peregrino (1997, p. 423) está Hobab em Jz 1,16.

[6] Os antigos rabinos tinham clareza do problema e procuraram explicá-lo de diferentes modos. Numa tentativa de harmonizar os nomes Jetro e Hobab, o rabino Simón ben Yohay afirma que ambos eram nomes da mesma pessoa. Jetro porque foi citado na Torá e Hobab porque amou a Torá (VARO, 2008, p. 96).

[7] A comparação dessa opinião com o episódio de Jonas e os marinheiros pagãos (Jn 1) parece indicar mais uma precisa consciência da salvação universal, mitigando o exclusivismo de Israel (FERNANDES, 2010, p. 32-33).