Oração e transcendência: reflexões à luz do pensamento de Viktor Frankl
Prayer and Transcendence: Reflections in the Light of Viktor Frankl's Thought

Thiago Antonio Avellar de Aquino
Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor do Departamento de Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Contato: logosvitae@hotmail.com

Ana Clara de Andrade Patrício
Mestre em Logoterapia e Saúde pela Universidade Estadual da Paraíba (UFPB). Contato: anaclara.apatricio@gmail.com


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Resumo: O presente artigo abordou o tema da oração na visão antropológica da Logoterapia e Análise Existencial de Viktor Emil Frankl. Seu objetivo foi compreender a visão deste autor acerca da relação entre a oração e a transcendência na vivência do homo religiosus. Para atingir o seu escopo, tratou-se inicialmente sobre a visão de homem religioso para o autor em questão, quem é Deus para o homem religioso, a oração como liame entre o homem religioso e o supra-Ser e, por fim, abordou a compreensão de Viktor Frankl sobre oração e transcendência. Foi percebido que uma das manifestações comum a todas as religiões é a prática da oração, vivenciada tanto por místicos quanto pelo homem religioso comum. Conclui-se que o homem religioso ou espiritual, seria aquele que possuiria uma fé incondicional em um Suprassentido e a oração como uma via de transcendência que possibilita a religação com o supra-Ser, muitas vezes compreendido como um Deus pessoal.

Palavras-chave: Oração; Transcendência; Logoterapia e Análise Existencial; Antropologia; Viktor Frankl

Abstract: The present study starts from the anthropological vision of the founder of Logotherapy and Existential Analysis Viktor Emil Frankl (1905 - 1997). Although its foundations were solidified before the Second World War, it was in the context of Nazi concentration camps and forced labor as a common prisoner that the author in focus experienced his assumptions, when he reported for the first time the phenomenon of prayer. In this vein, the objective of this article was to understand Viktor Frankl's vision about the relationship between prayer and transcendence in the experience of homo religiosus. To reach its scope, it was initially treated about the vision of religious man for the author in question, then, who is God for the religious man and finally it approached prayer as a link between the religious man and the supra-Being. Through this explanation, it was noticed that one of the manifestations common to all religions is the practice of prayer, experienced both by mystics and by the common religious man. Finally, it is concluded that the religious or spiritual man would be the one who would have an unconditional faith in a Suprameaning. Thus, prayer would allow a reconnection by addressing the supra-Being, often conceived as a personal God.

Keywords: Oração; Transcendência; Logoterapia e Análise Existencial.; Antropologia; Viktor Frankl

Introdução     

O presente estudo abordou a oração a partir da visão antropológica do pensador vienense Viktor Emil Frankl (1905 - 1997), psiquiatra existencial que inaugurou uma escola de psicoterapia denominada de Logoterapia e Análise Existencial. Embora seus fundamentos se solidificaram antes da Segunda Guerra Mundial, foi no contexto dos campos de concentração nazista e dos trabalhos forçado como prisioneiro comum que o autor em foco vivenciou seus pressupostos, ocasião em que relatou pela primeira vez o fenômeno da oração. 

Pode-se constatar que uma de suas preocupações teóricas foi a respeito da religiosidade genuína e espontânea. Conforme expressou, sempre tratou o fenômeno religioso em sua teoria como um objeto e não como uma posição teórica ou pessoal. Seguindo a sua própria recomendação, Frankl (1995) compreendeu Deus a partir da relação Eu-Tu vivenciada pelo homem religioso na medida em que este ente busca por um sentido último em sua existência finita. Embora tenha sido um psiquiatra e psicoterapeuta existencial, sua obra transcende a ciência de cura (psicoterapia), apontando para os fenômenos humanos ou noológicos.

Uma das manifestações comum a todas as religiões é a prática da oração, vivenciada tanto por místicos quanto pelo homem religioso comum. A oração poderia ser compreendida como um desses fenômenos encontrados de forma específica no homem religioso. A oração possui várias facetas, pode ser expressa como uma comunicação pessoal ou constituída nos ritos de forma coletiva, por meio de leituras ou cânticos. Além disso, pode ou não envolver a dimensão corporal (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000). Para autores como Spilka e Ladd (2013), de forma geral, a oração deve envolver uma comunicação e uma conversação com um tu transcendente em um sentido relacional, e seria estimulada por emoções ou por costumes e tradições.

Nesse sentido, pergunta-se: o fenômeno da oração pode se constituir como a chave de compreensão do autor para apreender a vivência essencial da religiosidade autêntica? A pergunta se torna legítima na medida em que o seu sistema de pensamento (logoteoria) considera a religiosidade como um fenômeno essencialmente humano. Nessa esteira, o objetivo do presente artigo foi compreender a visão de Viktor Frankl acerca da relação entre a oração e a transcendência na vivência do homo religiosus

De forma geral, a pertinência do tema discorrido neste artigo se justifica na medida em que se constata que “(...) universalmente, a essência ou a alma de qualquer religião consiste na oração secreta que se manifesta por uma determinada forma de atividade do espírito” (O PEREGRINO RUSSO, 1986, p. 114). Para atingir o seu escopo, tratou-se inicialmente sobre a visão de homem religioso para o autor em questão, quem é Deus para o homem religioso, em seguida, a oração como liame entre o homem religioso e o supra-Ser, e, por fim, abordou a compreensão de Viktor Frankl sobre oração e transcendência conforme o leitor poderá constatar na sequência. 

1. Quem é o ser humano religioso para Frankl?

Se perguntarmos quem é o ser humano, encontraremos nos escritos que Viktor Frankl que o homem embora se constitua como um ente bio-psico-espiritual, em última instância seria uma unidade indivisível. A ontologia dimensional de Viktor Frankl reconhece a dimensão especificamente humana (noológica). Ademais, admitiu também que dimensão humana seria aberta para a supra-humana, mais ampla e, por conseguinte, abarcadora (FRANKL, 2021). Mas torna-se necessário alertar que “(...) en el léxico de la logoterapia el término espiritual se encuentra ajeno a cualquier connotación religiosa: describe y define (antropologicamente) la dimensión específicamente humana” (FRANKL, 2004a, p. 124). 

Nesse seguimento, concluiu que “(...) si uno há logrado alguma vez ser plenamente humano, puede experimentar la relativa irrelevancia de la confesión explicita de Dios” (FRANKL; LAPIDE, 2005, p. 104). Destarte, todo fenômeno humano se caracteriza por sua abertura para o mundo (autotranscendência) e distanciamento de si mesmo (autodistanciamento). Dessa forma, o ser humano seria aquele ente que se abre para o mundo dos valores assim como seria atraído por eles, além de ser capaz de suportar o sofrimento inevitável quando este se configura como um sentido sacrificial por algo ou por alguém.

Lukas (2012), em sua visão, compreendeu o movimento da autotranscendência em ambas as direções: “para fora”, para o mundo e para o belo da criação, e “para dentro”, endereçado para um Deus inconsciente distinto de si mesmo, o que apenas pode e deve ser compreendido a partir de um movimento de re-ligação a partir da vontade de um sentido último. Por conseguinte, Frankl (2003) apreendeu que o acesso a Deus deveria partir do próprio ser humano. 

Sobre este aspecto, Santo Agostinho (1981) compreendeu que Deus se encontraria no homem assim como o homem estaria em Deus, dessa forma indagou: “Será, talvez, pelo fato de nada que existe poder existir sem Vós, que todas as coisas Vos contém?” e a partir disso concluiu que “(...) não existiriam meu Deus, de modo nenhum existiria, se não estivesse em mim. Ou antes existiria eu se não estivesse em Vós (...)” (Santo Agostinho, 1981, p. 28-29). Em outro momento asseverou: “Por mim quando possível, foi-Vos manifestado tudo o que pude observar no meu interior” (SANTO AGOSTINHO, 1981, p. 285).

Esse movimento de transcendência “para dentro” poderia ser decorrente de uma nostalgia de Deus. Dessa forma, como o ser humano teria uma nostalgia de Deus, também teria de um sentido para a vida. Nessa direção, na medida em que o “(...) nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós” (SANTO AGOSTINHO, 1981, p. 27), também continuaria inquieto enquanto não encontra um Logos na existência. Na visão do autor da logoterapia, o ser humano é um ente em busca de sentido para sua vida, assim, deve ser consciente de cada situação e responsável por suas escolhas, como um ser que constitui sua essência na existência. Por um lado, o sentido, por suposto, seria situacional, cada momento encomenda uma tarefa ou missão, por outro, a pessoa se sente responsável perante algo ou alguém. Dessa maneira, considerou que “una gran mayoría siente esa responsabilidad ante Dios, a Él deben rendir cuentas; son las personas que no se quedan sencillamente en la tarea a cumplir, sino que vuelven la vista hacia quien les há encomendado esa tarea” (FRANKL, 2004a, p. 132).  

Ao fazer a pergunta “quem é o homem?”, constatou que ou o ser humano se concebe como imagem do seu criador, ou se vê como uma mera caricatura de si mesmo, ou seja, uma mera projeção da sua própria criação: a máquina (FRANKL, 2011). No primeiro caso, se veria como criatura (homem religioso) e no segundo como criador, que, geralmente, nega a realidade metafísica. 

Ademais, a diferença entre o homem religioso e não religioso seria ténue, enquanto o primeiro, considera a voz da consciência como uma voz transcendente, o segundo concebe a mesma voz como imanente a consciência. Ao compreender que a dimensão mais ampla abarca as demais, Frankl apontou que o mundo religioso-teológico incluiria também o secular (FRANKL; LAPIDE, 2005). Da mesma forma compreendeu um paralelismo entre a relação animal-homem e homem-Deus:

(...) el mundo del animal es un “mundo ambiental” (Umwelt), mientras que el hombre, como dice Max Scheler, “tiene mundo” (Welt); ahora bien, este mundo humano está en relación a un “ultramundo” (Überwelt) de la misma manera que el mundo del animal lo está al mundo de los hombres. Esto quiere decir que, así como el animal no puede estar en condiciones de entender al hombre y el mundo de este último a partir de su propio mundo ambiental, tampoco es posible que el hombre llegue a hacerse una idea clara de ese ultramundo, es decir, a comprender a Dios o a penetrar en sus designios (FRANKL, 1995, p. 91-92).

Assim como o mundo humano abarcaria o mundo animal, da mesma maneira o supra mundo englobaria os demais por ser um mundo circundante. Para ilustrar essa relação de inclusão, o autor cita Carl Ludwig Schleich (1859-1922): “Dios, sentado ante el órgano de las posibilidades, improvisó el universo. Nosotros, pobres mortales, sólo escuchamos la vox humana. La belleza de ésta es un indicio de lo grandiosa que debe de ser la armonía en su totalidad” (Citado por FRANKL, 1992, p. 68).    

O ser humano é um ente constituído para a morte, conforme aventou Heidegger (2006), entretanto, complementa Frankl: “Um ser humano é, de fato um ser finito. Porém, na medida em que ele compreende sua finitude, ele também a supera” (FRANKL, 2021, p. 55). Assim, a partir de uma leitura frankliana, podemos considerar que o homem religioso para Frankl é aquele ser que transcende a realidade tangível e, portanto, não negaria nem a existência de um supra-Ser nem reprimiria os seus sentimentos religiosos.

2. Quem é Deus para o homem religioso? 

Embora Viktor Frankl não tenha se debruçado sobre a perspectiva ontológica de Deus, pode-se afirmar que essa questão está vinculada a crença no suprassentido, ou seja, a problemática da finalidade do mundo e o sentido do destino da existência, daquilo que a vida proporciona de forma irremediável (FRANKL, 1992). Cada vez mais Frankl se encontrava envolto a seguinte tema: “lo que puede considerarse como pura casualidad y cómo detrás de esta aparente casualidad puede encontrarse un sentido superior o más profundo, un sentido final” (FRANKL, 2006, p. 47).

Constata-se que Frankl não parte da realidade ontológica de Deus, mas do anelo e da sede de sentido do ser humano pelo Transcendente. Em sua análise existencial, descreveu um autêntico movimento da pessoa espiritual em direção a um Deus pessoal e inconsciente ou oculto nas situações e desvelado por meio da consciência. Este sentido que se encontra além da lógica e da razão humana, foi denominada de suprassentido, por conseguinte, concluiu: “El logos es más profundo que la lógica” (FRANKL, 2004a, p. 140).

A profundidade do Logos resulta que Deus seria um ente silencioso e oculto. Assim, compreende o pensador vienense: “(...) se há algo como um Céu que acolhe orações, esse Céu se esconderá por trás de uma sequência de fatos naturais” (FRANKL, 2011, p. 43). Aos quinze anos de idade, Viktor Frankl chegou a uma definição operacional de Deus: “Dios es el referente de nuestros monólogos más íntimos. ¿Son éstos realmente monólogos o se trata más bién de diálogos con otro, con el ‘totalmente Outro’? La cuestón sigue abierta” (FRANKL; LAPIDE, 2005, p. 78). 

Em suas observações clínicas, constatou em pessoas não religiosas um relacionamento oculto com um Deus igualmente ignorado e desconhecido e assim concluiu que: (...) en su inconsciente, el hombre es mucho más religioso de lo que se imagina conscientemente” (FRANKL; LAPIDE, 2005, p. 59). Mas se Deus não habita no inconsciente, conforme aventou, onde estaria Deus? Assim respondeu em seu diálogo com o teólogo Pinchas Lapide: “Si no sabemos siquiera donde está el hombre, mucho menos sabremos donde está Dios” (FRANKL; LAPIDE, 2005, p. 106).

O caminho para solucionar essa aporia, seria pela via do amor conforme propôs o autor ao considerar a anterioridade de Deus. Dessa forma, compreendeu que o homem primeiro descobriu Deus e depois o esqueceu. O autor em tela também compreendeu que há tantos argumentos a favor da existência de Deus quanto contra, por esse motivo, a fé, em última instância, seria um ato de decisão (FRANKL, 2003). Como não se pode comprovar a realidade ontológica de Deus, Frankl escolhe uma via existencial, que configura uma vivência dialogal, posto que “hablar con Dios es um hecho que elimina toda necesidad de prueba. Por otro lado, es la única prueba posible de un fenómeno que existe en una dimensión inacesible al hombre” (FABRY, 1990, p. 246).      

Embora o ser humano tenha esquecido ou advogado a morte de Deus, para Frankl (1988) o absoluto permanece na transcendência de maneira inalcançável a razão humana, pois haveria um hiato intransponível entre a dimensão humana e a dimensão divina (FRANKL, 2011), por conseguinte, a única condição necessária e suficiente para o seu acesso seria a sinceridade da busca metafísica do coração do homem religioso, a sinceridade com que se vivencia e professa a sua fé. Em última análise, a via para o suprassentido seria por meio do amor como um fenômeno de autotranscendência (FRANKL, 1992), por esse motivo afirmou: 

Ni mayor ni menor poder de convicción que la tesis: Cogito ergo sum tendría, por lo pronto, oura tesis: Amo (Deum) ergo (Deus) est. Pues del mismo modo que esta tesis deduce de lacto de pensar la realidad del yo como sujeto, también la outra tesis deduce la existencia de Dios de lacto de amor sin limites hacia el objeto (infinito) (FRANKL, 1988, p. 69).   

Madre Teresa de Calcutá (2017) compreendeu em seus escritos que orar para Deus significaria amá-lo. Assim, para chegar a uma compreensão acerca de Deus, precisamos conhecer a visão do amor na perspectiva humana para o autor em foco, já que os atributos divinos são frequentemente antropomorfizados (FRANKL, 2004b). Sobre o este último fenômeno Frankl afirmou:

Por el acto espiritual del amor se escapaz de contemplar los rasgos y trazos esenciales de la persona amada; hasta contemplar también lo que aún es potenciallidad, lo que aún está por desvelarse y por mostrarse. Todavía hay más; mediante el amor, la persona que ama posibilita al amado la actualización de sus potencialidades ocultas (FRANKL, 2004a, p. 134).                   

Nessa esteira, poderíamos dizer que, se Deus é amor – conforme compreende a tradição cristã –, poder-se-ia compreender a mesma relação no amor de Deus para com o homem: Deus contemplaria tanto os traços do ser humano (essência), quanto o possibilita a realizar as potencialidades latentes nas situações (poder-ser). Isso torna-se possível, posto que existiria uma diferença dimensional entre Deus e o ser humano (FRANKL, 2011). O homem seria existência, enquanto Deus, Transcendência. No caso do ser humano, ao menos de forma a priori, haveria um hiato entre existência e essência, já o supra-Ser, coincide essência e existência (FRANKL, 2003). Por conseguinte, segundo o autor, “o homem não pode falar de Deus, mas pode falar a ele. Ele pode orar” (FRANKL, 2011, p. 182). De forma similar, Scheler (1994) compreendeu que a relação do homem com o divino se manifestaria por meio da contemplação, da adoração e da oração. Por outro lado, “Dios es siempre, para el hombre religioso, aquel que siempre calla y, sin embargo, al que siempre se invoca. Aquel con quem uno puede hablar y al que, sin embargo, siempre se interpela” (FRANKL, 1992, p. 345). Sendo Deus um ente silente, torna-se necessário aprofundar o tema acerca da oração como um movimento autotranscendente do espírito humano em uma perspectiva religiosa.  

3. A oração como liame entre o homem religioso e o Tu eterno 

Com a finalidade de apreender melhor a definição de oração, é necessário adentrar na etimologia dessa palavra. Inicialmente, aborda-se a classe gramatical denominado verbo, a qual indica de forma semântica uma ação. O verbo “orar”, do hebraico “athar”, significa “pedir”, “implorar”, “suplicar”. Uma ação cujo direcionamento se destina a um ser superior e que desvela a relação entre o ser humano e ele, cuja a súplica é confiada (ALVES, 2017). 

Posteriormente, o substantivo “oração” advindo frequentemente da palavra hebraica “tephillar” ou “tahanun” (“misericórdia”, “súplica”) pode ser utilizado a partir de várias motivações, tais como, pedido de resposta, reconhecimento e agradecimento. Todavia, de maneira geral, ele estabelece uma via de comunicação entre o divino e o humano (ALVES, 2017). 

Em vista disso, pode-se afirmar que a oração é uma ação que exige um “eu” e um “Tu”, ou seja, um diálogo entre o ser humano e Deus (BALTHASAR, 2019). Um ato fundamental do homo religiosus, que está presente em todas as tradições religiosas e que pode ser ou não acompanhada de palavras, uma vez que se considera que gestos como ajoelhar-se, postar as mãos, inclinar-se no chão em direção a um local e dançar estão associados a essa atitude orante (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000; TEIXEIRA; PASSOS; USARSKI, 2022).  

Da oração partem dois movimentos: primeiro, um pedido direcionado ao divino; segundo, uma crença de que, de alguma maneira, essa comunicação pode ser estabelecida (TEIXEIRA; PASSOS; USARSKI, 2022). Por isso, segundo Mauss (1909), ela participa ao mesmo tempo do rito, por meio da atitude tomada de se dirigir a divindade, e do credo. 

Além disso, do ato de orar se concretiza, também, uma atitude de escutar a Deus. Um mergulho no interior da alma (TEIXEIRA; PASSOS; USARSKI, 2022). Para Teresa de Ávila, o movimento da oração seria um adentrar no castelo interior (alma), onde no centro estariam os aposentos de Deus. Assim, quando o homem busca escutar a Deus, partindo do preceito de que é Ele quem o procura primeiro, ele deve trilhar o caminho para dentro de si - “A Mim, Me acharás em ti” (verso do poema VIII) (TERESA DE JESUS, 2016, 2019, 2020).

O ato de orar pode acontecer em qualquer local e pode ser realizado de forma individual ou em grupo. Em termos gerais, quando se estabelece no formato pessoal não possui uma estrutura a ser seguida, ou seja, acontece espontaneamente. Já a coletiva, é bem definida podendo ser cantada, lida ou entoada como uma antífona (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000). Todavia, segundo Mauss (1909), mesmo a oração individual expressa um fenômeno social, pois as ideias que permeiam são embebidas de dogmáticas religiosas.  

Na teologia judaica contemporânea, destacam-se duas visões sobre a oração: a de Mordecai Kaplan e a de Abraham Joshua Heschel. Para Kaplan, Deus seria a forma ideal dos valores humanos, assim as características atribuídas ao divino, tais como, compaixão e perdão, seriam as aspirações daqueles que as atribuem. Em vista disso, a oração teria como finalidade colocar o indivíduo diante dos seus ideais e da sua realização atual para que ao confrontar essas tensões, ele pudesse encaminhar a sua existência (STERNSCHEIN; 2020). 

Já para Heschel, a oração e a justiça eram inseparáveis. O ato de orar deveria despertar o compromisso de justiça com o homem e com o mundo, por isso o mais importante da oração não seria a palavra falada, mas a reação que ela provoca em quem a diz. O divino desafiaria constantemente o humano a tornar-se melhor vendo o cotidiano por meio dos Seus olhos: “Na reza como na poesia aspiramos às palavras, não para usá-las como símbolos das coisas, mas para ver as coisas à luz das palavras” (HESCHEL, 1954, p. 53). 

No Islamismo, a sura de abertura do alcorão apresenta uma oração que sintetiza alguns dos fundamentos a serem praticados pelos fiéis, por exemplo, a crença em um Deus único e a confiança em seguir o Seu caminho e Seus preceitos. A doutrina islâmica expressa com clareza os atos que são permitidos e os que não são permitidos, a fim de unificar a prática religiosa (MOQUENCO, 2021). 

Em nome de Allah, O Misericordioso, O Misericordiador Louvor a Allah, o Senhor dos mundos. O Misericordioso, O Misericordiador. O Soberano do Dia do Juízo! Só a Ti te adoramos e só a Ti imploramos ajuda. Guia-nos à senda reta, À senda dos que agraciaste; não à dos incursos à Tua ira nem à dos descaminhados (ALCORÃO; 1:1-7).

Ademais, para os mulçumanos, a oração é um dos cincos pilares de práticas básicas e obrigações. É oferecida a Deus cinco vezes por dia. Deve ser realizada direcionada para Meca e pode ser efetivada em qualquer local, desde que este esteja em condição para a execução. Antes de iniciar a oração, como um símbolo da purificação da alma, o fiel deve lavar o seu corpo por meio da ablução seja ela parcial ou completa (MOQUENCO, 2021). 

Para a tradição cristã ocidental, na perspectiva de Teresa de Ávila, referência da prática da oração, o ato de orar é uma viagem para dentro de si a fim de encontrar a Deus, pois não é possível conhecer a Ele sem se conhecer. À medida que o ser humano adentra nas moradas do castelo interior (alma), o ensino gradual da oração o permite se aprofundar em si, em Deus e se desdobrar de amor ao próximo (TERESA DE JESUS, 2016, 2019, 2020).

Ademais, de acordo com Ratzinger, a oração possui um aspecto especial no cristianismo, pois foi um ato praticado pelo próprio Cristo e que leva o ser humano que reza como Ele a conhece-Lo. A oração é uma chave que abre a pessoa humana para uma relação com o divino (RATZINGER, 1986, 2007). 

Diante desse contexto, pode-se perceber que o ato de orar está presente em todos os homens de todas as denominações religiosas. Representa a expressão mais singela da fé humana e que brota, de forma simples, do coração. É o homem todo que ora, sua faculdade intelectual, sentimental e corporal em busca do transcendente unificando o ser humano em sua unidade antropológica bio-psico-espiriitual.  

4. Oração e transcendência no pensamento de Viktor Frankl

Viktor Frankl foi sobrevivente do Shoah (Holocausto), em seu relato se encontram várias referências a oração. Inicialmente, afirmou que aprendeu o Kaddish, oração em memória dos mortos, por ocasião do falecimento do seu pai em Terezin e a noite, nos campos, costumava ler os Salmos (FRANKL; LAPIDE, 2005). Ademais, abordou o tema da oração quando os cativos se impactavam com a profundidade da crença religiosa: “cuando los prisioneiros sentían inquietudes religiosas, éstas brotaban de lo más íntimo y sincero que cabe imaginar” (FRANKL, 2004a, p. 62). Outro momento que mencionou a oração dos prisioneiros foi durante o enterro dos seus companheiros que padeceram nos campos: “(...) rezamos por los muertos antes de echar tierra sobre ellos. Tras la tensión de los dias y las horas pasadas, las palabras de nuestras plegarias rogando por la paz fueron tan fervientes como las ardorosas que voz humana musitado jamais” (FRANKL, 2004a, p. 86).    

Em seu manuscrito sobre a sua estada nos campos de concentração a palavra oração aparece quando relata quando encontrou o Shemá Israel, arrancada das páginas de um livro hebraico e que se encontrava no bolso de sua roupa de prisioneiro que recebeu ao chegar em Auschwitz. Frankl (2004a) denominou esta oração como a mais sublime da religião judaica. Também se encontra em sua indagação sobre quem é o homem: “Es el ser que siempre decide lo que es. Es el ser que inventó las cámaras de gas, pero también es el ser que entró em ellas com passo firme y musitando una oración” (FRANKL, 2004a, p. 110). Por fim, no dia de sua libertação salmodiou: “Llamé al Señor desde mi estrecha prisión y Él me contestó desde el espacio em libertad” (FRANKL, 2004a, p. 111).

Uma outra referência a oração durante os tempos da II Guerra Mundial foi o caso de uma mulher atormentada por uma psicose maníaco-depressiva. Em fases de mania ela se envolvia em promiscuidade junto a soldados da Schutzstaffel (SS). Quando foi enviada para campos de concentração, junto a outros psicóticos, em meio as fezes, se encontrava com o olhar para o alto e murmurava o Shemá Israel, apesar da sua desorientação espacial e sua exaustão mental, unicamente o que sabia fazer naquela circunstância era orar (FRANKL, 2011, p. 173).    

Almejando a tolerância e a paz, Frankl (1988) propôs a seguinte adaptação do Shemá Israel: “’Escucha, Israel, nuestro (de cada uno) Dios (personal) es uno’ tendría que ampliarse en: Escuhad todos los pueblos (todas as confissões monoteístas): nuestro (de cada uno) Dios (confesional) es uno y único” (FRANKL, 1988, p. 74). Quando foi indagado pelo teólogo hebreu, Pinchas Lapide, como ele orava, Frankl respondeu: 

La oración apenas necessita palabras. De igual modo que existen canciones sin letra, hay también oraciones sin palabras. Una oración puede también ser un suspiro y durar segundos o fracciones de segundos; cuando comienzo una frase no sé como voy a seguir, y entoces recurro a aquel “material’ em el que he aprendido a rezar (FRANKL, 2005, p. 141).   

Sua resposta foi ao encontro do poema Canto da Alma de Kahlil Gibran (1883 - 1931) que também abordou acerca da oração sem palavras: “No fundo de minha alma existe Uma canção sem palavras: uma canção que reside na semente de meu coração (...) Quem se atreve a dizer em voz alta as palavras que o coração deve pronunciar? Que ser humano se atreve a cantar com a voz o canto de Deus?”. Já os símbolos que o ser humano utiliza para efetivar essa comunicação seriam aqueles herdados por sua tradição cultural religiosa (FRANKL, 2004b). Mas quem recebe as orações quando o homem religioso ora?

Conforme aventou Madre Teresa, Deus falaria no silêncio do coração do ser humano, assim, “o mais importante não é o que dizemos, mas o que Deus nos diz por meio de nós. Nesse silêncio, Ele nos ouve; Ele fala com nossa alma e aí ouviremos Sua voz” (DE CALCUTÁ, p. 22-23). No princípio era o monólogo e o monólogo se fez diálogo. Esse caráter dialogal com um Tu transcendente foi manifesto por outros religiosos conforme se encontra no livro A oração: “Mesmo que Deus se cale e permaneça oculto, quase como se estivesse morto, no fundo do coração percebemos Sua presença” (BERGOGLIO; SKORKA; FIGUEROA, 2013, p. 44).

Os autores debateram acerca do silêncio de Deus e asseveram que há algo Nele que não seria passível de compreensão. Para Frankl (2011), como Deus seria silencioso e oculto, o homem religioso nem sempre receberia um retorno de suas preces, pois a oração deve atingir ao infinito, portanto, a sua resposta não poderia ecoar de volta.  Em suas palavras: “Das alturas infinitas do que chamamos céu (e diz-se que os caminhos de Deus estão muito acima dos caminhos do homem, assim como o céu está acima da terra), das alturas infinitas, nenhuma luz se reflete; e das profundezas infinitas, nenhum som ecoa de volta” (FRANKL, 2011, p. 191). 

Nos momentos de sofrimento o ser humano religioso lança o seu olhar confiante para as profundezas para o seu Criador, mesmo que seja apenas para indagar um canto de lamentação, como o fez Jesus na cruz: Eli, Eli, lama sabbaktani.  Lapide apontou que haveria um erro de tradução do aramaico, em vez do porquê me abandonastes (razão, causa inicial), deveria ser interpretado como “para quê” (causa final), leva o olhar para o futuro. O sentido mais profundo permaneceria inacessível a razão humana (Frankl & Lapide, 2005). Ademais, “cuando el hombre se dirige aparentemente al vacio, a la nada, entoces habla con el Tú eterno” (FRANKL, 2003, p. 286). 

Na concepção de Frankl apesar de que Deus seria um ser silente, responderia por meio da própria vida, nas situações ou coincidências. Dessa forma formulou que os fenômenos naturais poderiam ser portadoras de um sentido sobrenatural ou de um suprassentido, mas este, por sua vez seria discreto, podendo passar desapercebido (FRANKL; LAPIDE, 2005).

Apesar dessa característica do silêncio, a oração permitiria ao homem religioso falar com um Deus pessoal de forma mais íntima, o tratando como um tu, por tanto ela “és el único acto del espíritu humano que puede hacer presente a Dios como um tú. La oración presentiza, concreta y personifica a Dios como un tú” (FRANKL, 2003, p. 292). 

Ademais, segundo o autor do sentido, assim como as ruínas fazem com que o ser humano eleve o seu olhar para os céus, as situações trágicas o ensinariam a orar (FRANKL, 2003). Por esse motivo afirmou: “yo prefiero la religión que se professa cuando a uno le van mal las cosas (em los Estados Unidos se llama la Fox Hole Religion) a la religión que sólo se professa cuando le van bien (y la llamaria Bussiness men Religion)” (FRANKL, 2003, p. 292-293). Esse movimento do espírito humano permitiria o ser humano encontrar sentido no trágico o que ajudaria a dizer sim à vida, conforme expressou Frankl: “La oración es para mí más bien una consagración, ver las cosas em una perspectiva que les confiere potencialmente un sentido, a pesar de todas las atrocidades” (FRANKL; LAPIDE, 2005, p. 140).     

Conclusão

De forma geral, pode-se considerar que a oração proporcionaria a realização do valor vivencial entre um eu (religioso) e um Tu (transcendente), dessa forma, seria uma via de compreensão da religiosidade genuína. Pode ainda ser compreendida a partir das três colunas propostas pela logoteoria: liberdade da vontade; vontade de sentido e sentido da vida. A primeira poderia ser relacionada com a dimensão livre e espontânea de uma comunicação com o Tu eterno para ser genuína ou autêntica; a segunda poderia ser referida a vontade de um sentido último como o centro gravitacional da oração e, por fim, a dimensão do sentido da vida, como a fé incondicional apesar da barreira dimensional entre o mundo humano e o divino.  

A oração foi abordada ao longo do texto como um liame entre o homem religioso e o Ser último, assim, pode-se compreender que de profundis irrompe uma confiança incondicional no suprassentido e já não mais precisaria de uma prova da realidade do totalmente Outro. Apesar do silêncio e da diferença dimensional, Deus seria, segundo Frankl (2003), o ente que estaria simultaneamente longe e perto segundo a vivência fenomenológica do homem religioso. A chave da compreensão da oração seriam os símbolos e os solilóquios íntimos e autênticos. Dessa forma seria uma condição necessária para que o homem religioso se torne consciente o Deus oculto ou inconsciente. Entretanto alertou que “lo absoluto no se apreende ‘con’ el símbolo, sino ‘en’ el símbolo” (FRANKL, 2003, p. 293).

Para a cosmovisão religiosa, o mundo humano estaria sobrepujado pelo mundo supra-humano., o que seria, por sua vez, inacessível a razão humana. Já o homem religioso ou espiritual, seria aquele que possuiria uma fé incondicional em um Suprassentido. Assim, a oração permitiria uma religação ao se dirigir ao supra-Ser, muitas vezes concebido como um Deus pessoal. A oração, como um ato espiritual humano, seria dessa forma, a menor célula da religiosidade, presentificaria por meio da linguagem simbólica ou do silêncio uma dupla consciência: a de ser amado e a de amar um tu transcendente, muitas vezes reprimido ou oculto.

Por fim, a oração poderia ser considerada um movimento de autotranscendência. Por meio dela, o homem religioso transcende a esfera do mundo humano para a esfera do mundo supramundo, o que proporcionaria, por consequência, uma sensação de um sentido incondicional em qualquer circunstância, inclusive na dor, no sofrimento e na morte. Por suposto, Deus prescindiria de orações, pois conheceria todas as necessidades humanas, mas o ser humano, por ser finito, necessitaria orar para expressar o seu anseio por um sentido último, apesar da sua incapacidade de contemplar a totalidade e dos mistérios da existência.     

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