João Décio Passos
Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: jdpassos@pucsp.br
Resumo: As crises humanitárias acompanham a história da humanização como um antídoto persistente. A “descoberta do humano” como valor e norma de convivência civilizada é uma construção em processo. Posturas e regimes atuais assumem narrativas e políticas de negação do humano que colocam em dúvidas supostas seguranças humanitárias institucionalizadas. A revolução humanitária que gestou uma consciência humanitária cada vez mais global resulta uma percepção milenar de fundo religioso e filosófico. Contudo, ela ainda não conheceu sua conclusão e, de fato, não poderá conhecê-la por se tratar de um projeto em permanente construção. A utopia do humano é um horizonte a ser mantido vivo para além de todas as configurações históricas.
Palavras-chave: Civilização, Crise, Consciência humanitária, Ódio, Tribos.
Abstract: Humanitarian crises accompany the history of humanization as a persistent antidote. The "discovery of the human" as a value and norm of civilized coexistence is a construct in process. Current postures and regimes assume narratives and policies of denial of the human that call into question supposed institutionalized humanitarian securities. The humanitarian revolution that has generated an increasingly global humanitarian consciousness is the result of an age-old perception with a religious and philosophical background. However, it has not yet reached its conclusion and, in fact, it will not be able to do so because it is a project under permanent construction. The utopia of the human is a horizon to be kept alive beyond all historical configurations.
Keywords: Civilization, Crisis, Humanitarian conscience, Hate, Tribe.
Estaríamos, de fato, vivendo uma crise humanitária? A consciência de toda crise tem uma dimensão factual e uma dimensão construída que permitem perceber a insuficiência das referências do passado e a inexistência das soluções futuras que ainda não foram construídas. A famosa anedota do “rei está nu”, indica precisamente a função da construção social da crise. Não basta existir uma crise factual; é preciso percebê-la. Contudo, nem todos percebem que “o rei está nu”, apesar de sua nudez ser real. As ilusões são projeções que podem impedir a constatação de uma crise, quando em nome de uma ideia, de uma imagem ou de uma convicção, a realidade imaginada se sobrepõe aos fatos. A mesma função é exercida pelas narrativas ideológicas que dissimulam a realidade em função de uma ideia afirmada e generalizada como verdade universal. Nessa perspectiva, a afirmação de uma crise humanitária pressupõe uma opção hermenêutica que permita enxergá-la, sobretudo em tempos de relativismo da verdade reproduzido e alimentado pelas bolhas sociais operadas pelas redes virtuais. Trata-se, em suma, de uma opção hermenêutica que afirma o humano como valor universal e que deve ser traduzido em instituições históricas que lhe garantam objetividade e estabilidade como eixo da convivência humana.
A percepção da crise humanitária pressupõe, portanto, uma consciência humanitária, ou seja, a postura que compreende e acolhe o outro como igual a mim mesmo. Trata-se de uma percepção que vem sendo gestada há milênios, mas que se encontra ainda em construção; de uma consciência mundializada, mas não consolidada; de um valor consensuado, mas em permanente afirmação.
A revolução humanitária é um dado histórico, tanto quanto sua negação nas diversas crises humanitárias que a história nos descreve. Os retrocessos humanitários demarcam a historia humana, não somente como afirmação marginal aos valores humanos consensuados, mas também em movimentos que legitimam a morte por meio de ideologias, regimes e governos autoritários. É o que se pode observar em nossos dias pelo planeta afora, como observa o Papa Francisco na sua última Encíclica. A consciência humanitária é um projeto de construção permanente que nos acompanha na escalada civilizacional.
Entre o passado e o futuro, a crise se interpõe como espécie de intervalo vazio que busca soluções emergenciais, já que as soluções usuais se revelam superadas ou até mesmo falidas. Nesse sentido, a crise humanitária não se apresenta, por certo, como um consenso. Para muitos, o que seria uma crise, de fato, pode não ser percebida e, até mesmo, se apresentar como uma conjuntura de normalidade, quando não de solução. Os adeptos do nazismo e do fascismo jamais concordaram – e sequer constataram – que na máquina gestora do regime estaria em ação uma política de morte, a crise humanitária mais emblemática da história contemporânea. A eliminação dos inimigos não seria uma crise, mas a legítima solução da crise econômica em que se encontrava a Alemanha da primeira metade do século passado.[1]
A percepção social de uma crise humanitária refere-se, antes de tudo, à consciência sobre o ser humano; é dessa consciência que se desencadeiam a percepção e o julgamento de uma determinada conjuntura histórica marcada por uma suposta deterioração de valores. A pergunta sobre o que é o humano e, por conseguinte, sobre o que é o não-humano ou o desumano coloca-se como o primeiro passo para se falar em crise humanitária; como adoção de um valor fundamental capaz de oferecer a chave de leitura de uma realidade concreta. Os grupos humanos possuem os seus consensos a respeito do humano e com eles orientam e constroem seus projetos políticos. Por conseguinte, o consenso sobre o humano e sobre os seus déficits presentes em projetos históricos, sobre os valores (antivalores) e os costumes hegemônicos de um determinado povo, regime ou liderança fornecem os parâmetros éticos e políticos para os juízos sobre a crise e/ou a normalidade. Essa construção ética tem acompanhado a humanidade em sua marcha histórica, embora de maneira não linear e progressiva e nem sempre universal.
A crise humanitária supõe um consenso sobre o significado do ser humano. O humanitário supõe o humano como realidade comum que supera as visões tribais que separam os humanos dos não-humanos por razões sociais (distinções grupais), políticas (interesses em conflito), culturais (diferenças de visões), o que encontra sempre na justificativa mais básica as distinções biológicas (a raça pura acima da raça impura) e religiosas (os eleitos e os renegados). Com essas fundamentações se constroem as distinções radicais e as supremacias, as rejeições e as intolerâncias, as segregações e as guerras. As crises humanitárias narram a morte de homens e mulheres em nome dos que têm mais direitos: no limite, dos mais humanos e dos menos humanos, dos mais humanos que podem/devem negar a igualdade e eliminar os menos humanos. A vida tribal é a expressão social que estrutura essa percepção comum de um mundo autocentrado, onde o local é entendido como o universal e os que estão de fora do grupo considerados não somente distintos, mas inferiores ou não-humanos. Karl Popper fez uso da categoria social tribo para explicar a ideologia nativista, racista e higienista do regime nazista na década de quarenta em sua obra A sociedade democrática e seus inimigos que nas palavras do autor:
Tenta demonstrar que essa civilização ainda não se recuperou de todo o choque de seu nascimento, da transição da sociedade tribal, ou “sociedade fechada”, com sua submissão às forças mágicas, para a sociedade aberta, que põe em liberdade as faculdades críticas do homem. Procura demonstrar que o choque dessa transição é um dos fatores que tornaram possível o surgimento daqueles movimentos reacionários que tentaram e ainda tentam, derrubar a civilização e retornar ao tribalismo (1959, p. 15).
Naquela década da grande catástrofe humanitária o autor fala em “choque de nascimento” de uma civilização moderna e democrática fazendo a “transição da sociedade tribal”. Constata a existência de uma civilização ainda dando os primeiros passos na busca do humano como parâmetro universal da convivência comum. A crise levaria os povos a um retorno ao tribalismo. Esse retorno significaria que: “A comunidade tribal (e mais tarde a “cidade”) é o lugar da segurança para os membros da tribo. Rodeado de inimigos e de forças mágicas perigosas ou mesmo hostis, ele considera a comunidade tribal como uma criança considera sua família e seu lar...” (1959, p. 194).
Nas sociedades fechadas os indivíduos encontram a segurança maternal/paternal de que necessitam: o grupo tribal dita as regras de vidas e oferece na forma de promessa todas as soluções para os perigos do grande inimigo que ameaça e para a segurança do coletivo. Na comunidade fechada residem os humanos e a humanidade, fora dela residem os inimigos desumanos que ameaçam a humanidade e por essa razão podem e dever ser evitados e eliminados. O consenso tribal sobre a humanidade tem a medida exata do grupo restrito: um grupo = uma verdade = uma divindade = um ser humano. O universal concretiza-se naquele universo particular e tudo o que está fora constitui o diferente que coloca em risco o bem-estar e a própria existência do grupo.
O parto da sociedade aberta parecia concluído nas reconfigurações pós-guerra, desde quando as estratégias nacionalistas (tribalistas) se tornaram cada vez mais ultrapassadas e ilegítimas. Do tribunal de Nuremberg à ONU, da Declaração dos Direitos Humanos à globalização, estariam consolidadas as condições históricas (políticas, institucionais e culturais) para que se vigorasse uma ordem mundial assentada na igualdade fundamental de todos os seres humanos. Os retrocessos observados pelo Papa Francisco em sua última Encíclica revelam a crise mundial da vida comum pautada em valores comuns e direitos iguais (FT, 22); uma crise que atinge o humano como valor gestado por milênios na escalada temporal do homo sapiens que foi se planetarizando cada vez em suas relações. Hoje é necessário constatar à nossa frente e de forma desnudada a negação da igualdade radical dos seres humanos como dado biológico, social e ético. As instituições modernas não superaram as posturas e nem mesmo as políticas isolacionistas que negam a humanidade como valor absoluto a ser afirmado em todas as esferas da convivência humana.
A perspectiva popperiana adquire uma atualidade dramática na sociedade atual. O parto das sociedades fechadas para a sociedade aberta apresenta-se mais uma vez historicamente inconcluso. A crise atual traz um inegável componente de retrocesso histórico que coloca a convivência mundial em risco, em nome de novas formas de isolamento, como constata o Papa Francisco: “Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentimentos agressivos” (FT 11). As ideologias e governos de ultradireita capitaneam esses projetos que trazem de volta climas e sentimentos superados pelo valor e a prática dos direitos humanos. Uma retribalização se encontra em curso por dentro da sociedade plural e das estruturas democráticas. As conquistas humanitárias vão sendo relativizadas e corroídas por narrativas isolacionistas e de ódio ao diferente (WILLIAMS, 2021). Manuel Castells observa que se trata de uma crise de legitimidade democrática que geram discursos de medo, discursos que retrocedem a valores e modelos do passado: volta a Estados fortes e isolados, volta aos nacionalismos, volta à fronteira da raça majoritária, volta à família patriarcal, volta a Deus como fundamento (2018, p. 37-38).
Os regimes autoritários que renascem pelo planeta afora brotam do medo e da insegurança e instalam as condições para a circularidade política ativa medo-ódio-segurança: medo do diferente que ameaça, rejeição e ódio do diferente que deve ser evitado e eliminado e segurança oferecida pelos governos e regimes que rompem com as inseguranças e as superam com promessas de solução messiânica por meio da figura de líderes populistas. A lógica do preconceito exposta por Gordon Allport nos anos cinquenta explica essa dinâmica em que a oposição entre o endogrupo e o exogrupo vai sendo construída e tem como resultado a redução do humano ao tamanho do endogrupo sendo o exogrupo o espaço do inimigo a ser difamado, evitado, rejeitado e, por fim, eliminado. É quando a noção e o valor da humanidade perdem sua fundamentação e expressão como categoria universal capaz de garantir a convivência universal.
A antropologia tribal do endogrupo – localizada, isolada, autocentrada e autossuficiente – sustenta as posturas dualistas e supremacistas de um grupo em oposição ao outro, contra o outro e acima do outro. Assim funcionaram os processos de construção dos preconceitos que culminam nas mortes e nos genocídios, explica Allport. Com a sua conhecida escala, explicava o dinamismo do preconceito nos seguintes termos: a) Falar mal (hostilidade verbal contra grupos ou pessoas); b) Evitar o contato (territórios separados que evitam o contato físico); c) Discriminação (exclusão dos membros de grupo de ambientes e de direitos); d) Ataque físico (atos violentos contra individuos e grupos); e) Extermínio (linchamentos e programas de genocídio) (ALLPORT, 1971, p. 29).
Não estamos longe desse dinamismo, embora ele se encontre sob novas molduras históricas e opere com novos métodos que alimentam as fobias e os ódios, sem escrúpulos éticos e políticos e, muitas vezes, sem mecanismos básicos de controle social. As comunidades fechadas com seus líderes populistas entram na cena política mundial por dentro das democracias, como bem observaram Levtsky e Ziblatt (2018), mas também por dentro da rotina social, através das novas redes de relação sócio-virutual. Por meio dessa nova ordem social em pleno funcionamento o humano fragmenta-se e, em muitos casos se dissolve na força impositiva do padrão grupal sobre o individual. A reprodução das narrativas pelas mídias digintais não constitui apenas uma ferramenta de comunicação – sem dúvidas de indispensavel eficiência para a vida atual – mas, um modo de relacionar e de valorar a vida sob todos os aspectos.
A sociedade mundializada encontra-se em pleno mergulho social, politico e cultural nas redes sociais operadas pelas tencologias digitais. São novos mecanismos de estruturação da vida social que se expandem para todos os âmbitos da vida individual e coletiva como um novo mode de viver, de relacionar e valorar todas as coisas. De modo esquemático, pode-se falar em novas dinâmicas que operam como: a) agregação que vincula de forma indistinta individualidade e coletividade como polos de uma totalidade; b) cognição que configura um modo de representar e transmitir informações como verdades, sem os clássicos mecanismos de verificação lógica ou empírica; c) socialização autocentrada operada nas relações homofílicas (amor ao igual) que suplanta qualquer confronto positivo ou negativo com as diferenças como em outras comunidades; d) fidelização que se mostra na adesão, permanência e militância fiel dos membros em uma relação de confiança inabalável nas mensagens recebidas-transmitidas e na fidelidades aos líderes dos grupos; e) moralização expressa na postura individual-grupal que vivencia e transmite valores próprios, defende a liberdade irrestrita de expressão sem controles sobre os conteúdos veiculados; f) anomização que permite ao grupo sobrevier em um universo paralelo ao mundo social das regras instituídas. Essa cultura em franca expansão conta com uma engenhosa e eficiente base tecnológica que dissolve as relações pactuadas da convivência humana e recria um mundo tribalizado em bolhas autossuficientes (EMPOLI, 2020).
Não seria exagero falar em mundos paralelo estruturados pelos modos virtual e real, mundos que coexistem muitas vezes sem parâmetros sociais, éticos e legais de convivência comum. Modos off-line e o on-line de viver por um mesmo individuo ou grupo instauram uma nova era que ainda não foi digerida pelas regras de convivência humana, ao menos nos termos que haviam sido consolidados pelas sociedades modernas, desde as grandes revoluções que tivaram no seu nucleo estruturante a ideia e o valor de uma humanidade universal. O sociólogo Zygmunt Bauman expõe ao que parece a raiz desse novo modo de viver dentro da lógica do bem-estar:
A vantagem da alternativa on-line sobre a existência off-line está na promessa e na expectativa de se libertar de desconfortos, inconvenientes e agruras que atormentam os habitantes desta região; numa perspectiva de libertar-se das preocupações (...) Tirando-se do caminho as irritações provocadas pela complexidade do mundo, toda tarefa parece bem mais fácil e menos árdua de concretizar. Se a tentativa de realizá-la é considerada um esforço doloroso demais ou se mostra irritantemente lenta no que se refere a produzir resultados, ela pode, sem estresse nem remorso, ser abandonada e substituída por outras... (2017, p. 103).
A eliminação do outro praticada pelo toque digital pode parecer uma brincadeira sem consequências sociais e políticas. Contudo, ensaia modos de isolamento e negação do outro que vai corroendo no âmbito das consciências a dignidade do diferente, afirmando a postura do endogrupo paralelo e contraposto ao exogrupo e, sobretudo, traduzindo-se em posturas polticas e éticas, quando ancoradas em ambientes políticos. Não se trata, portanto, de mero passa-tempo virtual que chega, em muitos casos, às raias da dependência psíquica, mas de um modo de vida que adquire supremacia em relação à vida off-line que segue seus cursos contraditórios e clamam pela consciência humanitária. A normatividade do on-line opera e pressiona o mundo off-line com suas endogenias e valores tribais que reividicam hegemonias. A persistência históricas das desigualdades sociais soma-se, hoje, com novas formas de segregação que separam individuos, grupos e nações e expoem a fragilidade dos pactos mais básicos das convivência humana. Nessa conjuntura “um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós e a duira e lenta marcha rumo a um mundo unido e mais justo sofre uma nova e drástica reviravolta” (FT 16)
A constatação de uma crise humanitária atual tem seu lugar em uma história que “descobriu” a humanidade como condição comum de todos os povos e indivíduos, ainda que em uma lenta e contraditória construção do igual no interior do processo civilizador estruturado cada vez mais pelos princípios da igualdade radical da espécie homo. Francis Wolff sistematiza a construção/formulação da humanidade como dado racional-ético em quatro figuras: o homem racional aristotélico, o homem pensante cartesiano, o homem estrutural das ciências humanas e o homem neural das neurociências. Observa que:
...podemos, por certo, a cada vez inferir o valor de um tranquilo humanismo universalista: todos os homens são igualmente animais racionais; ou substâncias pensantes que compartilham o mesmo bom-senso; ou sujeitos que falam determinadas línguas e pertencem a determinada cultura (todas elas iguais); ou seres naturais que têm todos eles um patrimônio genético semelhante (2012, p. 16).
Essa percepção conceitual e convicção ética construídas na longa temporalidade da racionalidade e da civilização ocidental embora tenham produzido resultados político-institucionais não se impôs como valor universal e definitivo para as tradições, para os Estados, para as ciências e para as religiões. A humanidade vem oscilando entre afirmações da igualdade universal e afirmações tribais nos formatos diversos de endogrupo. Os retrocessos aos isolamentos “tribais” que ganham espaços nos novos modos de relacionamentos on-line colocam, de fato, em confronte a velha questão ética e antropológica sobre a humanidade como grandeza comum anterior (como espécie biológica) e superior (como valor comum) a todo tipo de estruturação local. A crise humanitária não se dissocia de uma consciência humanitária. A consciência localizada nas sociedades fechadas nasce e expressa uma percepção do humano reduzido à sua exata dimensão em oposição aos exogrupos sem status de humano. A lógica da chamada homofilia – amor ao igual - que rege as novas redes sociais expressa essa dinâmica autocentrada que descarta o outro como desnecessário e como ameaça ao bem-estar grupal/individual. Era certo que a espécie construiu os modos de convivência comum em um longo processo civilizatório, como expôs Norbert Elias em sua obra clássica (2018). A busca da consciência humanitária não constitui algo fixo, como uma espécie de patamar conquistado, mas um processo histórico em curso e que deita suas raízes em uma temporalidade mais longa do que se costuma desenhar.
A descoberta da humanidade como condição comum é um avanço progressivo que se desenha em etapas reais e, ao mesmo tempo, limitadas como formulações universais e, sobretudo, como norma comum de cada povo/nação e do conjunto da humanidade. O fato é que a construção de um regime de vida pautado na regra universal da igualdade ainda se encontra em dores de parto, mesmo que, muitas vezes, os mecanismos ideológicos das sociedades modernas liberais tenham insistido em sua plena realização. Os “sonhos desfeitos em pedaços” constados pelo Papa Francisco (FT 10-14) podem ser entendidos, na verdade, como o despertar de um sonho moderno que configurou a ilusão de um mundo humano teoricamente demonstrado e institucionalmente garantido.
De fato, os déficits das promessas modernas já foram constatados por analistas do século passado e do século em curso com as mais diversas ferramentas analíticas. Contudo, o momento histórico parece ter chegado a um ponto agudo de percepção quando os dogmas mais básicos da democracia liberal revelam sua insuficiência na medida em que humanidade se desfigura como valor fundamental expressa nos direitos iguais e nas regras de vida comum entre as nações. Se é verdade que o humano conheceu sua negação prática em plena modernidade centrada nos direitos iguais, de modo visceral nos povos colonizados do sul do planeta, hoje ele expõe seus déficits e seus fracassos por dentro das estruturas supostamente seguras das leis, dos pactos comuns e das instituições consolidadas nos processos de modernização e, sobretudo, nas concretizações mundiais firmadas após a segunda guerra. Nem o trauma nazifascista e nem as saídas universais estabelecidas como antídoto aos riscos da desumanidade parecem ter sido suficientes para garantir uma ordem pautada no humano universal. As fobias se universalizam como medo, rejeição e ódio ao diferente que ameaça o bem-estar de indivíduos, grupos e nações. No fundo de todas elas se esconde a fobia dos pobres – aporofobia - que ameaça o bem-estar dos estabelecidos e dos que sonham com a felicidade oferecida pelo consumo. A constatação certeira de Adela Cortina (2020) expõe a raiz principal dos discursos de ódio ao diferente, embora os mecanismos ideológicos que universalizam o sentimento entre os próprios pobres digitalmente incluídos nas tribos digitais seja um dado contraditório que beira a tragédia ética. O humano vai sendo desfigurado em meio às narrativas de ódio ao diferente que ganham espaços como dado cada vez mais natural da cultura midiática e de projetos de governo populistas. A ascensão política crescente de governos e regimes de ultradireita (KAHHAT, 2019) pelo mundo afora expõe o drama da crise da consciência humanitária que os acompanha e ganha apoio popular na relação direta entre os líderes e seus grupos virtuais.
A história expõe de modo inequívoco a passagem de um mundo tribalizado para um mundo das grandes civilizações que finalmente se encontra globalizado. Nessa passagem, o humano foi sendo construído como dado e valor que explica e eleva a condição da espécie ao status de valor comum. Foi precisamente na busca do humano que as civilizações se constituíram desde os seus primórdios e alcançaram patamares concretos e eficientes de superação das mais cruéis desumanidades, ou seja, das práticas legitimadas e legisladas de violência que matavam seres humanos. O neorocientista Steven Pinker expos de modo magistral esse processo, mostrando a gradativa superação da violência na história humana e a emergência do que denominou “revolução humanitária” (2013, p. 194-269). A hominização caminhou para a humanização em um lento processo de gestação da consciência da igualdade radical dos seres humanos em meios a processos históricos de profundas contradições. Essa consciência, por sua vez, ainda não parece concluída, mas, ao contrário, caminha em busca de consenso e de modos concretos de se impor universalmente. A emergência da consciência humanitária se mostra como um fenômeno construído na longa temporalidade e tem seus germes na passagem do mundo tribal para o mundo das civilizações (POPPER, 1959) quando a busca de consenso transpôs gradativamente as endogenias locais na direção das configurações universais. Foi precisamente aí que a consciência do comum emergiu como realidade a ser pensada simbólica e racionalmente. A igualdade humana configurada pela via religiosa nas grandes tradições mundiais e pela via filosófica inaugura não somente a constatação de nossa humanidade comum, mas do humano como valor estruturante da vida comum. O filósofo Karl Jaspers designou essa fase como “era axial”. A ensaísta inglesa Karen Armstrong testou essa hipótese em sua obre de fôlego, A grande transformação, cujo subtítulo expressa com exatidão a consciência da igualdade humana pelas vias religiosas e filosóficas: o mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias (ARMSTRONG, 2008). É dessa fase a formulação da chamada “regra de ouro” que estabelece o imperativo categórico mais primordial das relações humanas na relação equitativa entre o eu e o outro: a regra universal faz equivaler o bem de si com o bem do outro e vice-versa (KÜNG, 2002, p. 100-106). O humano se identifica com a ética enquanto definição de um bem comum a todos. Na última trincheira da construção do humano, o cristianismo se apresentou como antropologização do divino, sendo o humano o parâmetro radical para a vida religiosa, antes, acima e posterior a toda doutrina e a todo ritual que queira definir a natureza do religioso. Da fé na humanização de Deus decorre um valor ético absoluto na elevação máxima da dignidade humana: divinização do humano (CASTILLO, 2010).
Embora não dê a devida relevância da contribuição das religiões da era axial para a construção da revolução humanitária, Steven Pinker oferece um quadro rico dessa virada histórica. A localização da revolução humanitária na era iluminista é feita pelo autor não por exposição de ideias políticas que, de fato, formulam gradativamente a centralidade do ser humano universal e igual, mas, sobretudo, na mudança drástica das práticas desumanas para práticas humanizadas. A passagem de uma sociedade que legitima e legaliza as políticas e as práticas mais cruéis de violência contra os considerados perigosos e criminosos para uma sociedade que, no polo inverso, rejeita e proíbe tais práticas é um dado histórico que demarca uma mudança radical de comportamento e de valores sociais. Nas sociedades pré-modernas, a tortura executada com os métodos mais sarcásticos, a técnica de mutilações, os linchamentos públicos e as penas de morte executadas na praça pública eram não somente consideradas normais como também de grande apreço popular. Do mesmo modo, as práticas da escravidão, da servidão e da colonização persistiram como direitos de uma nação sobre outras, em nome de teorias da guerra justa e de civilização dos incivilizados (PINKER, 2013). Na perspectiva da longa temporalidade, trata-se de uma revolução recente, não linear e não homogênea, mas que caminha efetivamente para políticas de institucionalização cada vez mais globalizadas. A percepção do humano há dois séculos ainda se dava, na maioria das nações e culturas, no marco da norma tribal: do humano identificado com o grupo em oposição aos desumanos dos exogrupos. O humano foi “descoberto” faz alguns milênios e institucionalizou-se progressivamente como valor civilizado, ao menos pelos povos considerados civilizados e mesmo que sob a moldura do etnocentrismo europeu. Bartolomeu de Las Casas, ainda no século XVI, antecipava em suas posturas anticolonizadoras, os contornos de uma consciência humanitária que haveria de eclodir ao menos dois séculos depois (JOSAPHAT, 2000). As desumanidades naturalizadas, legalizadas e apreciadas do passado foram perdendo suas legitimidades e em sua maioria tornaram-se condenáveis como “crimes contra a humanidade” a partir do século XX. Contudo, as desumanidades do presente se mostram tão legítimas como aquelas e ainda necessitam ser percebidas como imorais e ilegais. A pobreza do sul do planeta e os sujeitos LGBT+ são exemplos emblemáticos de marginalidades justificadas respectivamente por dogmas econômicos e religiosos. Em plena era dos direitos humanos constituem sujeitos aos quais são negados os direitos comuns da humanidade e, muitas vezes, são proscritos como aqueles que podem ou devem ser excluídos, odiados e, até mesmo, mortos. E não se trata apenas de um clima cultural tribal que vai sendo ressuscitado, mas, como bem detecta Achille Mbemb, de necropolíticas que persistem como estratégia de regimes e governos atuais (2018).
A redução do humano à dimensão do endogrupo vai sendo superada pela consciência da humanidade por vias religiosas, filosóficas, científicas e políticas na direção da universalidade ode humano. Os estrangulamentos se mostram inerentes a esse processo de afirmação humanitária: a perspectiva um tanto espiritualizada das regras de outro formuladas pelas religiões mundiais, a abstração teórica da natureza humana definida filosoficamente pelos gregos, os déficits modernos dos direitos humanos inerentes ao processo de modernização, a naturalização da pobreza e da divisão social etc. Abaixo e nas margens dessa percepção vítimas humanas continuaram sendo feitas e clamaram por dignidade e mínimas condições de vida. Na verdade, nenhuma conquista do humano conheceu sua execução coerente e sequer se universalizou efetivamente, embora tenha, sem dúvidas, alcançado patamares significativos na cultura dos povos e nas institucionalizações políticas, sobretudo nos tempos modernos. Nesse sentido, haveria de afirmar que uma “crise humanitária” acompanha a caça de nossa humanidade como princípio, caminho e meta da convivência comum no decorrer do tempo. Tais déficits e contradições podem ser mapeados nas: desumanidades escondidas (por dentro dos processos de modernização, de modo emblemático nas colonizações e expressões variadas de etnocentrismo e nas guerras em continua execução), nos resíduos de desumanidade (nas penas de morte, nos imperialismos econômicos legitimados e legalizado) e nos retrocessos (as fobias e narrativas de ódio que separam os que são portadores de direito e os que não são e, no limite os que podem e não podem morrer).
A consciência humanista é uma tarefa de construção permanente que pressupõe maturidade e decisão de ruptura com as seguranças autoritárias e infantilizadoras que garantem proteção plena para os atormentados pelo medo da crise (FROMM, 1980, p. 138-149). A cada crise povo e nações retrocedem ao seio da autoridade protetora que se apresenta como provedora e salvadora. Talvez a revolução humanitária ainda tenha dado os seus primeiros passos e se mostra ao olhar realista como um processo que, não somente se inscreve nas esferas dos ideais comuns da humanidade ainda não concretizados, mas, antes disso, se mostra como reserva utópica a ser afirmada e antecipada permanentemente, sem jamais alcançar uma etapa conclusiva. É nessa perspectiva que o Papa Francisco observa que
cada geração deve tornar suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, assim como, aliás, o amor, a justiça e a solidariedade, não alcançam de uma vez por todas; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado... (FT 11).
De fato, a humanidade há que ser entendida como reserva utópica que não poderá ser esgotada em formulações legais, em conjunturas históricas ou em um determinado regime político. A identificação do impossível com o possível é uma ameaça histórica que pode sustentar e legitimar dominações (HINKELAMMERT, 2013, p. 398-399). O conteúdo humanitário presente nos ideais cristãos se apresenta, nessa chave hermenêutica, como fonte que tensiona a história na busca de patamares mais coerentes, porém como um dado que alimenta as consciências na vivência do amor ao próximo, imperativo que não se esgota, mas que impulsiona à perfeição que se encontra no divino definido como Amor.
A geração atual tem conhecido retrocessos na consciência humanitária onde o outro habita naturalmente como valor e parâmetro de convivência para além do eu fechado em si mesmo. As crises humanitárias são filhas das crises que ameaçam os grupos e nações em suas estabilidades, hoje em suas possibilidades de bem-estar imediato e sem limites. O que é compreendido como ameaça vai sendo construído como perigo e risco por meio de narrativas que culminam na legitimação da morte do outro. As narrativas de ódio que hoje circulam pelas redes sócio-virtuais e por governos autoritários se tornam cada vez mais socialmente legitimas como estratégia de proteção das estabilidades. A consciência autocentrada – individual e socialmente – alimenta-se e, ao mesmo tempo, produz as posturas desumanas. A cisão radical entre o eu e o outro, entre o igual e o diferente cria os muros físicos, psíquicos, políticos e legais que separam os humanos dos não-humanos, os que devem viver e os que devem morrer.
A crise humanitária atual pode ser a portadora de uma demitização das conquistas éticas e políticas entendidas como definitivas, seja por imaginários religiosos, seja por imaginários políticos. O fato é que, em ambos os imaginários humanitários o ódio acomoda-se e busca fundamentos: como guerra santa contra os impuros e perigosos e como políticas nacionalistas e nativistas. As lutas políticas entre projetos progressistas e conservadores que hoje configura cenários polarizados em pontos diversos do planeta carregam em suas bases a luta entre o humano e o desumano. Essa luta deixa a mínima consciência humanitária estarrecida e ascende o alerta para os riscos da retribalização da humanidade. O que parecia estar muito distante no tempo e no espaço atinge o nosso dia a dia e a nossa convivência imediata: o ódio naturaliza-se sem retoques nos endogrupos que vão sendo configurados por dentro das democracias, das tradições, das famílias e das religiões. O Papa Francisco fala em “sonhos desfeitos em pedaços”. O que os povos e nações consideravam conquistados mostra sua fragilidade de forma que ser desumano já não causa indignação e nem temor. O parto da civilização humana ainda não foi concluído e os endogrupos conspiram contra todos os que se apresentam como diferentes, em princípio ameaçadores. As regras de ouro das grandes tradições religiosas se mostram urgentes (KÜNG, 2002, p. 105-106) assim como as instituições de direitos humanos. A revolução humanitária exige novos pactos humanitários. O cristianismo terá que repetir o significado (espiritualizado, individualizado, esquecido?) de seu ethos fundante: o amor ao próximo. O amor ao inimigo proposto pelo cristianismo radicaliza a igualdade humana para além de todas as endogenias e autocentramentos justificáveis pelo medo da crise. O inimigo não somente não pode ser eliminado, mas deve ser amado. Essa inclusão do outro na consciência não conhece limites e nem se conclui, mas mira em uma meta inatingível que é a perfeição divina: “Sede, portanto, perfeito, como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
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[1] Cf. ARENDT, Hanna. Erichmann em Jerusalém; um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.