O mal e a liberdade humana: considerações a partir da hermenêutica dos símbolos em Paul Ricoeur

Evil and human freedom: considerations based on Paul Ricoeur’s hermeneutic of symbols 

Frederico Soares de Almeida
Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Contato: fredkrav@gmail.com

Daniel Ribeiro de Almeida Chacon
Mestrado em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Contato: daniel.chacon@uemg.br

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Resumo: O presente artigo objetiva realizar uma primeira aproximação à hermenêutica dos símbolos desenvolvida pelo filósofo francês Paul Ricoeur. A problemática central deste escrito diz respeito à questão do mal e da liberdade humana. No decurso de sua proposta filosófica, Paul Ricoeur postula uma dualidade antropológica fundamental, qual seja: o ser humano como, simultaneamente, falível e capaz. Ora, mesmo diante da falibilidade, o ser humano é conclamado a assumir sua humanidade, a viver em liberdade, sendo-lhe facultado fazer o bem e o mal, mesmo sem intenção expressa ou involuntariamente. Dessa maneira, a partir da complexidade dos símbolos religiosos, Ricoeur encontrará pistas para pensar o mal e a liberdade num horizonte existencial, concreto e antropológico.  

Palavras-chave: Mal, liberdade humana, hermenêutica dos símbolos, bem. 

Abstract: This article aims at making a first approach to the hermeneutics of symbols developed by the French philosopher Paul Ricoeur. The central problem of this writing concerns the question of evil and human freedom. In his philosophical proposal, Paul Ricoeur postulates a fundamental anthropological duality, namely: the human being as both fallible and capable. Now, even in the face of fallibility, the human being is called upon to assume his humanity, to live in freedom, being able to do good and evil, even doing so involuntarily or without having an express intention. In this way, from the complexity of religious symbols, Ricoeur will find clues to think evil and freedom from an existential, concrete and anthropological horizon.

Keywords: Evil, human freedom, hermeneutics of symbols, good

Introdução

Em sua trajetória, Ricoeur pensou a filosofia sem absolutos, crítica e sensível à existência humana e seus dilemas. Recorreu à linguagem simbólica como um significativo recurso para compreender o ser humano. Com efeito, é justamente nesse cenário de compreensão do humano no horizonte da linguagem simbólica que a temática da liberdade e o problema do mal surgem na filosofia de Paul Ricoeur. 

Dessa maneira, o filósofo francês utilizou a hermenêutica para auxiliar o seu processo de entendimento sobre o ser humano e foi no decurso de seu proeminente esforço hermenêutico-filosófico que ele se debruçou sobre a questão da liberdade e do mal. Para tanto, ele ocupou-se da interpretação existencial dos relatos míticos, considerando tais narrativas como fontes reveladoras das possibilidades humanas.  

É dentro desse quadro teórico que o filósofo francês pensou a existência humana a partir da ideia de homem falível e, posteriormente, da noção de homem capaz. Dessa maneira, a proposta deste artigo é analisar o mal e a liberdade humana recorrendo ao discurso simbólico para a compreensão do humano.

1. A simbólica do mal em Paul Ricoeur

O aspecto central da tese ricoeuriana sobre o problema do mal coincide com a clássica negação da constituição ontológica do mal. Ora, nessa perspectiva, o mal não é uma coisa em si ou um objeto, mas, conforme Ricoeur, um acontecimento profundamente marcado por um embargo e colapso do sentido da vida, através de uma ordem temporal presente numa trama significante. Ademais, o mal ou a falta é pensado por ele como acidente ou, em outros termos, como a perda da inocência, não se constituindo, assim, numa categoria fundamental da existência.

Para lidar com a possibilidade do erro ou da falha Paul Ricoeur realizou um enxerto da hermenêutica na filosofia. Segundo ele, o problema do erro requeria não apenas um novo método, mas uma nova hipótese de trabalho. Ele compreendia que através da fenomenologia ou mesmo de forma empírica não seria possível compreender a passagem da inocência das estruturas essenciais que caracterizam a reciprocidade do voluntário e do involuntário para a existência efetiva do mal. Nesse sentido, Ricoeur postulou que seria necessário recorrer às fontes não filosóficas da filosofia, através da linguagem simbólica, com o intuito de compreender a problemática do mal e, como consequência, entender o ser humano.

Para tanto, Ricoeur realizou uma primeira aproximação profundamente crítica da filosofia de Martin Heidegger. Este escolheu, segundo Ricoeur, a via curta dentro do horizonte de fundação da hermenêutica na fenomenologia. Essa via diz respeito a uma ontologia da compreensão. Chega-se, portanto, até a via curta através de uma súbita inversão da problemática:

A questão: em que condição um sujeito que conhece pode compreender um texto, ou a história? é substituída pela questão: o que é um ser cujo ser consiste em compreender? O problema hermenêutico torna-se assim uma província da Analítica desse ser, o Dasein, que existe ao compreender (RICOEUR, 1978, p. 8).

Paul Ricoeur, assim, questiona a possibilidade de se fazer uma ontologia direta, “imediatamente subtraída a toda a exigência metodológica, subtraída, por consequência, ao círculo da interpretação de que ela própria constitui a teoria” (RICOEUR, 1978, p. 8). O filósofo francês, diferentemente de Heidegger, não acredita que a compreensão de si seja adquirida de forma imediata por meio de uma análise do ser no mundo. Isso porque se faria necessária a mediação da interpretação das obras nas quais o ser humano se manifesta. Nesse sentido, a hermenêutica torna-se fundamental para o processo de decifração do símbolo, especificamente, do símbolo religioso, como caminho fundamental para a compreensão da existência humana.

Na introdução da obra La symbolique du Mal, Ricoeur suscita uma importante questão: “como fazer a transição entre a possibilidade do mal humano e a sua realidade, entre a falibilidade e a falta?” (RICOEUR, 1988a, p. 167)[1]. Ricoeur responde que seu caminho será o de buscar captar essa passagem em ato, dentro do tempo, desse modo, almejando repetir em nós mesmos a confissão do mal humano que é realizada por intermédio da consciência religiosa:

Mas, se a “repetição” da confissão do mal humano pela consciência religiosa não funda uma filosofia, essa confissão, no entanto, já contribui para delimitar o seu interesse específico, pois que essa confissão é uma palavra, uma palavra pronunciada pelo homem sobre si mesmo; ora, toda palavra pode e deve ser “retomada” no discurso filosófico. Diremos em breve qual é o lugar filosófico, se é que nos podemos exprimir assim, dessa “repetição” que já não é religião vivida e que ainda não é filosofia. Digamos antes o que diz essa palavra a que chamamos a confissão do mal humano pela consciência religiosa (RICOEUR, 1998a, p. 167). 

De acordo com Paul Ricoeur, a confissão religiosa do mal apresenta simbolicamente um sentido inesgotável, que interpela profundamente a vida do(a) penitente. A confissão do mal e a consciência de culpa vinculam, pois, o ser humano não apenas com seu lugar de manifestação, mas também com autor do mal. Ademais, Ricoeur considera que não existe ação humana que não seja articulada, mediada e interpretada por símbolos.

Ricoeur considera, assim, que a filosofia, ao pensar o mal, sobretudo em intrínseca relação com a liberdade humana, deverá ocupar-se da linguagem dos símbolos e dos mitos. Isto posto, para promover uma espécie de volta do lógos ao mythos, é necessário o desenvolvimento de uma hermenêutica dos símbolos capaz de decifrar a linguagem simbólica, extraindo os recursos disponíveis em seu nível próprio para se pensar a problemática do mal (Cf. Porée, 2017, p. 14)[2]

Os símbolos e os mitos expressam a experiência do mal em linguagem própria, num registro de uma consciência confessante, pautada, pois, no plano religioso. Conforme Pacheco, “na linguagem simbólica da confissão, a consciência religiosa aborda uma compreensão de si, correspondente à compreensão de seus atos dos quais ela se acusa e que são objetivados nos textos bíblicos” (2017, p. 42). 

A reabilitação dos símbolos conduzirá Ricoeur a uma ênfase bastante peculiar nos mitos, interpretados, pois, como uma variante dos símbolos. Todavia, nosso autor reconhece que o mito não compartilha a radicalidade nem a espontaneidade do símbolo em sua significação analógica. O mito seria, assim, uma espécie de “[...] símbolo desenvolvido em forma de narrativa e articulado num tempo e num espaço” (RICOEUR, 1988a, p. 181).

Ricoeur procura a descrição concreta ou empírica do mal, que se encontra nos assim denominados símbolos primários (mancha, pecado e culpabilidade). Posteriormente, o autor ocupa-se dos símbolos de segundo grau (mitos do princípio e do fim). 

Dessa forma, Ricoeur articula a mudança do estado de inocência para o estado de culpa, isto é, da possibilidade não necessária do mal para a efetivação do mal na realidade humana. Todavia, a passagem do estado de inocência para o estado da falta recebe uma descrição não empírica, mas concreta e existencial, pautada pelo vivido, ou seja, uma descrição fenomenológica, contextual e carregada de significados. 

De início, Ricoeur analisa os símbolos primários do mal. Considerado o mais arcaico entre eles, a mancha apresenta uma força simbólica em que “o medo do impuro e os ritos de purificação constituem o pano de fundo de todos os nossos sentimentos e dos nossos comportamentos relacionados com a falta” (RICOEUR, 1988a, p. 187). A mancha é uma representação profundamente mergulhada num medo de contaminação, de um ato que desencadeie um mal, uma impureza, algo de prejudicial. O ser humano, assim, teme a mancha, teme a negatividade do transcendente. A mancha possui uma força simbólica presente nos ritos. A expectativa de purificação e de retirada do temor se dá por meio do amor, por meio da passagem da simbólica do mal para uma simbólica da redenção.

O segundo símbolo primário que Ricoeur aborda é o símbolo do pecado. Diferentemente da mancha, que se encontra ligada a algo que infecta e afeta o corpo, o pecado é compreendido como algo que se destina contra Deus. Ora, nesse símbolo, a consciência alcança o nível ético da falta. A partir da personalização do Sagrado, institui-se a passagem fenomenológica da mancha para o pecado (RICOEUR, 1998a, p. 207-208). O que irá caracterizar o pecado é a categoria relacional do “perante Deus” (RICOEUR, 1988a, p. 210). 

A experiência judaica da Aliança é, conforme Ricoeur, um exemplo desse tipo de relação. Dentro desse contexto, o profeta é interpretado como aquele que se levanta contra o pecado, aquele que denuncia a transgressão. Quando o mandamento é quebrado, a relação entre o ser humano e Deus torna-se danificada. Nesse sentido, tal falta, confessada como pecado, é comunitária. O ser humano é, pois, responsável pelo mal e por ele cativo. É, portanto, a força simbólica da confissão do pecado a responsável por conduzir o ser humano à redenção. Irrompe, assim, a ideia de perdão-retorno como libertação humana. A ideia da libertação por meio da redenção alimenta, desse modo, o horizonte de esperança que indica um evento futuro, a Ressurreição.

Por fim, o terceiro símbolo primário analisado é a culpabilidade. Conforme Ricoeur, a culpabilidade é um sinônimo de falta (RICOEUR, 1988a, p. 99). Para nosso autor, a culpabilidade é o momento subjetivo da falta, tal como o pecado é o seu momento ontológico, a situação real do ser humano diante de Deus. A culpabilidade apresenta um movimento de ruptura, que desvela o homem responsável e cativo: “a culpabilidade é a tomada de consciência dessa situação real e, se é que nós podemos expressar assim, o ‘para si’ dessa espécie de ‘em si’” (RICOEUR, 1998a, p. 256). 

A culpabilidade é caracterizada, então, através da interiorização, da subjetivação da falta. A culpabilidade é a forma consciente pela qual o ser humano é impactado pela falta, pelo sentimento da culpa pessoal. O peso da culpa surge através do mau uso da liberdade, aqui o mal é retomado como um ato que surge do ser humano em sua individualidade. É através da culpabilidade que nasce a consciência, forma-se um sujeito responsável que se encontra diante da interpelação profética e da sua exigência de santidade. Nasce aqui, também, a ideia de homem-medida, em que se percebe o realismo do pecado, medido pelo olhar de Deus, que se faz absorvido no fenomenismo da consciência culpada, que se mede a si mesma. Portanto, a culpabilidade enfatiza o momento subjetivo da falta e desenvolve uma revolução em relação à compreensão do mal, a saber: o mal se deve a um mau uso da liberdade, “sentido como diminuição íntima do valor do eu” (GRONDIN, 2015, p. 52).

É necessário destacar que em Ricoeur a experiência da falta conduz a liberdade a assumir a consciência de seu próprio servo-arbítrio. Com efeito: “poderíamos chamar servo-arbítrio o conceito para o qual tende todo o grupo dos símbolos primários do mal” (RICOEUR, 1998a, p. 301), da mancha à culpabilidade. O servo-arbítrio somente pode ser visado como um telos intencional de toda a simbólica do mal. A antropologia do servo-arbítrio, elaborada por Ricoeur, está articulada com a relação entre o bem e o mal que é inseparável de uma filosofia do ser como uma afirmação originária (MONGIN, 1994, p. 215). 

A culpabilidade resgata a linguagem simbólica pela qual se compõe a experiência da mancha e a experiência do pecado. É através da culpabilidade que essas duas experiências são transportadas para a interioridade do ser humano. A mancha se transforma no símbolo puro a partir do momento em que já não pode ser vista como uma verdadeira nódoa, mas somente o servo-arbítrio. O sentido simbólico da mancha é, assim, plenamente realizado através das retomadas que podem ser feitas dela. 

Há no símbolo da mancha três intenções que constituem o esquematismo do servo-arbítrio (RICOEUR, 1988a, p. 304). O primeiro esquema é o da positividade: o mal não é o nada, não é uma pura privação, ele precisa ser compreendido como uma posição, como algo que se põe ao ser humano e precisa ser retirado. O segundo esquema é o da exterioridade: por mais que a culpabilidade seja interpretada como algo interior, ela somente irá refletir no símbolo de sua própria exterioridade. O mal vai ao ser humano como o fora da liberdade, como outro por meio do qual a liberdade está envolvida. O terceiro esquema é o da infecção: “esse esquema da infecção decorre, em primeira instância, do símbolo que o precede, o da sedução: o que ele significa é que a sedução que vem de fora é, em última instância, uma afecção do si por si mesmo” (RICOEUR, 1988a, p. 305). 

O presente esquematismo do servo-arbítrio diz-nos que, num horizonte ético, há no ser humano uma sobreposição e uma coabitação do mal radical e de uma bondade original. A natureza da liberdade não pode ser encontrada, assim, no mal radical. A liberdade, permanecendo inalterado seu estado original, será ocupada e infectada pelo próprio pecado, havendo, assim, a necessidade de desamarrar-se. A liberdade é, pois, vulnerável, capaz de falhar, ou seja, ela é, desse modo, simultaneamente responsável e cativa (GREISCH, 2001, p. 110). 

A mancha, tornada linguagem do servo-arbítrio, comunica seu objetivo derradeiro, as implicações do esquema da infecção somente são transmitidas por intermédio de todas as camadas simbólicas que ainda precisam ser percorridas, os símbolos míticos e os símbolos especulativos. É necessário, portanto, incluir o mal dentro de uma realidade significante. Para isso, analisaremos de forma separada o mito adâmico, como o mito antropológico por excelência.

2. O mito adâmico e o problema do mal

Primeiramente, é necessário destacar o acento que a filosofia ricoeuriana concede ao problema da relação dos símbolos da falta com a experiência humana. Conforme Ricoeur, o significante que circunscreve a experiência da falta é postulado pela diversidade dos mitos de origem e fim do mal. Paul Ricoeur assume a narrativa mítica como uma forma de discurso que eleva uma pretensão ao sentido e à verdade (RICOEUR, 2013, p. 237). Portanto, no âmbito do discurso, o mito é uma sequência de enunciações ou de frases carregadas de sentido e de referência. Na perspectiva ricoeuriana, o mito consiste, assim, numa linguagem pré-científica, que constrói uma narrativa a respeito das origens. Diferente do lógos e da linguagem científica, que operam com conceitos abstratos e dados empíricos, o mito é constituído, pois, a partir de imagens e símbolos.

Com efeito, compreender o mito em sua natureza é “compreender aquilo que o mito, com seu tempo, o seu espaço, os seus acontecimentos, os seus personagens, o seu drama, acrescenta à função reveladora dos símbolos primários” (RICOEUR, 1988a, p. 310). O mito, portanto, é uma narrativa da história da humanidade, que expressa uma realidade universal do ser humano através de uma trama que se desenvolve em um passado originário, arquetípico.

O mito apresenta ainda uma segunda função: ao narrar o princípio e o fim da culpa, ele confere a essa experiência uma direção, uma marcha, uma tensão e um desenlace. É através do mito que a experiência é perpassada pela história essencial da perdição e da salvação do ser humano (RICOEUR, 1988a, p. 311). 

A hermenêutica ricoeuriana destaca ainda uma terceira função do mito: em sua simbologia própria, operando com e sobre imagens, pois o mito é um pensamento por imagens, ele procura alcançar o enigma da existência humana. Os mitos que buscam retratar, assim, o começo e o fim do mal conferem sentido à própria experiência do mal. O mito versa sobre o estatuto ontológico do ser humano, visto como um ser criado de forma boa e destinado à felicidade, porém que se encontra em uma condição existencial sob o signo da alienação. Como o próprio Ricoeur afirma, “de todas estas formas, o mito faz da experiência da falta o centro de uma totalidade, o centro de um mundo: o mundo da falta” (RICOEUR, 1988a, p. 311). 

Isto posto, iremos expor a reflexão ricoeuriana sobre o mito adâmico. O referido mito, a exemplo de outros, apresenta um movimento do início e do fim, uma passagem da inocência humana para seu estado de culpa. O mito adâmico é, pois, descrito por Ricoeur como o mito antropológico por excelência (Cf. RICOEUR, 1988a, p. 374). 

Em sua análise do mito adâmico, nosso autor destaca a existência de três traços fundamentais. O primeiro é o etiológico, que nos revela que a origem do mal está relacionada com um antepassado da humanidade, nominado Adão, cuja natureza e condição é igual à nossa. O segundo está relacionado com a perspectiva de que o mito etiológico de Adão “é a tentativa mais extrema para desdobrar a origem do mal e do bem; a intenção deste mito é dar consistência a uma origem radical do mal distinta da origem mais originária do ser bom das coisas” (RICOEUR, 1988a, p. 375). No último traço, atreladas ao homem primordial, existem outras figuras que são responsáveis por um processo de descentralização adâmica da narrativa, sem, contudo, eliminar o primado dessa figura. Nesse mito, outros arquétipos aparecem (Eva e a serpente) juntos com a figura de Adão, repartindo, assim, a responsabilidade pela origem do mal.

O pecado de Adão é descrito na narrativa bíblica do livro de Gênesis a partir de uma concepção contingente da realidade do mal (Cf. Gênesis, 3). Conforme o relato, o ser humano se depara com o mal na própria realidade, ainda que, de algum modo, o próprio humano seja, pois, responsável pelo mal. Não obstante, é necessário postular que, a despeito da responsabilidade humana diante do mal, “ninguém é o iniciador absoluto do mal” (PELLAUER, 2009, p. 60). 

Paul Ricoeur postula, portanto, que:

É na medida em que a confissão dos pecados implicava essa universalização virtual, que o mito adâmico foi possível: O mito, ao nomear Adão como o homem, explicita essa universalidade concreta do mal humano; através do mito adâmico, o espírito de penitência encontra o símbolo dessa universalização (RICOEUR, 1988a, p. 382).

O mito adâmico expressa que a origem do mal é distinta da gênese de toda ordem criatural, que, por sua vez, é descrita como originalmente boa. Ora, não podendo, pois, ser atribuído a Deus, Supremo Bem e Pura Bondade em seus atos e realizações, o mal recai sob a responsabilidade humana. Assim, “se a criação é o início absoluto das coisas, o homem é o início do mal com seu ato livre” (PACHECO, 2017, p. 82). Portanto, o relato mítico adâmico prolonga sobre a humanidade a tensão entre as noções de condenação e misericórdia com que os profetas de Israel percebiam o destino do povo eleito.

Na confissão de seus pecados, o ser humano se reconhece como autor do mal e refém de um drama, anterior, assim, a qualquer ato singular. De acordo com Olivier Mongin (1994, p. 217), a origem do mal é indissociável do momento simbólico que separa o tempo de inocência do tempo de maldição. A narrativa do desvio nos diz de um poder de defecção em relação à liberdade humana, que encontra um paralelo na visão trágica do mundo e na identificação do mal como um drama cósmico. 

Desse modo, na perspectiva do mito adâmico, o ser humano é causa do mal, ilustrada pelo símbolo da queda. Tal símbolo comunica que o ser humano perdeu seu estado de inocência, gerando, pois, uma fissura em seu relacionamento com a divindade. A noção de um estado de inocência perdida implica que o pecado não é a realidade humana primeira, mas, na verdade, a sua perda. 

Assim, a queda humana está relacionada com o desvio. Nesse evento narrativo, o tempo da inocência é encerrado, dando lugar ao tempo da maldição.  O relato implica, portanto, uma antropologia da ambiguidade: o ser humano carregaria em si sua própria grandeza assim como sua própria miséria e culpabilidade. Ademais, o mito adâmico destaca uma ruptura entre a ontologia e a história, considerando-se que, a priori, o ser humano é criado bom e, a posteriori, sucumbe ao mal.     

No entanto, a figura da serpente introduz um elemento paradoxal na narrativa. Ora, ainda que o ser humano seja descrito como responsável pelo mal, a presença da serpente nos diz da exterioridade do mal, que se constitui anterior à própria ação pecaminosa humana. Nesse sentido, a serpente surge na narrativa mítica como agente sedutor capaz de despertar o desejo que induz ao desvio. A serpente é, assim, o símbolo do desejo, da tentação que cativa o ser humano. 

Outro importante aspecto é a tensão escatológica presente no mito adâmico.  Neste particular, a literatura mítica insere a ideia de uma promessa. A narrativa do início é compreendida, portanto, sob a ótica dos símbolos do fim. Com efeito, postula Pacheco (2014, p. 84): “[...] o perdão supera a imagem jurídica do pagamento, para conquistar o sentido de remissão no processo escatológico. De tal modo, o perdão é algo mais que um simples fato psicológico ou de uma relação dual, pois torna-se um fato comunitário e cósmico”. O perdão procederia, assim, de um núcleo escatológico, interpretado sob o horizonte da teologia cristã. 

Na percepção do nosso autor, a Bíblia aborda a temática do pecado no horizonte libertador da salvação. A simbólica do mal, por si mesma, não é capaz de responder definitivamente o problema do mal, cujo mistério persiste e resiste. Com efeito, “a única coisa que poderia dissolver o prestígio dessa gênese absoluta do ser e dessa hipóstase do mal numa categoria do ser, seria uma cristologia” (RICOEUR, 1988a, p. 461). Por cristologia Ricoeur destaca a doutrina que acrescenta na própria vida de Deus, numa dialética do próprio ser divino, a figura do servo sofredor.  Tal imagem evoca o sofrer humano e sua redenção escatológica.  

Nesse contexto da problemática do mal, um caminho é apontado como um possível norte para afirmar a liberdade do ser humano, que, conforme postulamos, encontra-se reiteradamente marcada pela falibilidade e pelo mal. Em 1947 Ricoeur publica com Mikel Dufrenne a obra Karl Jaspers et la philosophie de l’existence, na qual desenvolve dois temas da filosofia da existência de Jaspers, a saber: I) a ideia de existência e II) a concepção de transcendência. I) A existência empírica é conceituada por Jaspers como Existenz e Dasein (PACHECO, 2017, p. 31). De acordo com ele, o conceito de existência se refere a um ser possível, assim, a ideia de existência empírica diz respeito ao ser humano, ao mundo e aos objetos. II) A expressão transcender apresenta o significado de ultrapassar o Dasein: em outras palavras, transpor a direção do mundo é o ato de estar além dos limites humanos e, assim, transcendê-los (Cf. RICOEUR; DUFRENNE, 1947, p. 237-247). Logo, “o acesso à Transcendência é fornecido por aquilo que se pode chamar de abordagens da justificação” (PACHECO, 2017, p. 32).

Na perspectiva da filosofia ricoeuriana, pensar o fim do mal seria possível apenas se postulássemos a contingência do mal dentro de um quadro significante que lhe atribuísse certa necessidade. Nesse sentido, a ideia de esperança entra em jogo, por ser ela a única capaz de reconciliar a visão moral e a visão trágica da realidade em uma história coerente que vai da queda à redenção. Segundo David Pellauer, “a coisa mais importante que Ricoeur toma de Jaspers é a questão de como é possível pensar tal Transcendência, embora Ricoeur esteja mais disposto que Jaspers a relacioná-la à ideia de Deus tal como encontrada no judaísmo e no cristianismo” (2009, p. 22). 

Ora, é notório que Ricoeur, em sua trajetória, dedicou muito esforço no desenvolvimento de uma abordagem filosófica dessa transcendência, enfatizando, pois, a relação desta com a liberdade e a ação do ser humano. Paul Ricoeur, assim como Jaspers, intencionou conferir sentido à transcendência, sem transformá-la, contudo, em um objeto ou mesmo num sujeito no sentido cartesiano.  

Ademais, a partir da noção de homme faillible, nosso filósofo desenvolve a ideia do ser humano como radicalmente aberto à transcendência. Ainda que seja marcado pela falibilidade e pelo mal, o humano apresenta uma capacidade de reordenar sua existência e de agir construindo novas possibilidades de atuação no mundo. Ora, o conceito aqui de homme faillible nos aponta, portanto, mesmo que de forma incipiente, a ideia de um homme capable[3]. Nesse particular, ambos os conceitos são pensados como formas de experiência e de determinação da existência e dos existentes. Assim, ainda que o ser humano seja marcado pelo mal, permanece a afirmação de sua constituição originária para o bem. 

Cabe sublinhar, por fim, que é fundamental analisar o pecado original como o símbolo do racional, ou antes, o seu conceito, associado ao esforço do intelecto de pensar um mal de raiz, ou seja, transmissível por hereditariedade. Ricoeur considerou o tema do pecado original a partir de Santo Agostinho. Na obra O conflito das interpretações, mais especificamente no capítulo “O ‘pecado original’ estudo de significação”, Ricoeur procurou “refletir sobre a significação do trabalho teológico cristalizado num conceito como o de pecado original” (RICOEUR, 1978, p. 264-265).

De fato, para Ricoeur, o conceito de pecado original deve ser deixado de lado, visto que sua gênese agostiniana na forma do peccatum naturale não passaria de um equívoco, uma concessão à velha gnose. No entanto, cabe à reflexão filosófica conservar a experiência da vivência do mal, da culpa, pelo fiel penitente, expressa, pois, no ato de confissão do pecado. Segundo o filósofo francês:  

O conceito de pecado original é um falso saber e deve ser suprimido como saber, saber quase jurídico da culpabilidade dos recém-nascidos, saber quase biológico da transmissão de uma tara hereditária, falso saber que bloqueia numa noção inconsistente uma categoria jurídica de dívida e uma categoria biológica de herança (RICOEUR, 1978, p. 265).

O pecado original é considerado, assim, por Ricoeur, em sua origem, antes mesmo de ser conceitualizado e racionalizado. Em outras palavras, é interpretado como um símbolo verdadeiro de algo que somente ele próprio poderia transmitir. O contexto do desenvolvimento do conceito é o do início da cristandade, das heresias e da necessidade de combatê-las. Especificamente, é diante da ameaça do gnosticismo que, segundo Ricoeur, a teologia cristã, no intuito de combater a gnose, foi levada a se alinhar com o pensamento gnóstico. O pecado original seria, portanto, fundamentalmente um conceito antignóstico, conquanto quase gnóstico no enunciado (RICOEUR, 1978, p. 266). Ricoeur acredita, no entanto, que foi Santo Agostinho, ao discutir o problema do mal, quem levou a questão mais longe, elaborando, assim, toda a problemática referente ao conceito de pecado original. 

[...] para combater a tese de Pelágio de uma simples imitação de Adão por toda a sucessão dos homens, será preciso procurar na “geração” – per generationem – o veículo dessa infecção, com o risco de reavivar as antigas associações da consciência arcaica entre mancha e sexualidade. Assim se cristalizou este conceito de uma culpabilidade herdada, que bloqueia numa noção inconsistente uma categoria jurídica – o crime voluntário punível –, e uma categoria biológica – a unidade da espécie humana por geração. Não hesito em dizer que, considerado como tal, quero dizer do ponto de vista epistemológico, este conceito não é de uma estrutura racional diferente da dos conceitos da gnose: queda pré-empírica de Valentino, império das trevas segundo Mani, etc. Anti-gnóstico na sua origem e por intenção, visto que o mal permanece integralmente humano, o conceito de pecado original tornou-se quase gnóstico à medida que se racionalizou; ele constitui daí em diante a pedra angular de uma mitologia dogmática comparável, do ponto de vista epistemológico, à da gnose. Foi, com efeito, para racionalizar a reprovação divina – que em são Paulo era apenas o anti-tipo da eleição – que santo Agostinho construiu aquilo a que me arrisquei a chamar uma quase-gnose. (RICOEUR, 1978, p. 275-276).

Além disso, Ricoeur afirma que:

Mas esse enigma da potência do mal [...] é colocado na falsa claridade de uma explicação de aparência racional: confluindo no conceito de pecado de natureza, duas noções heterogêneas, a de uma transmissão biológica por via de geração e a de uma imputação individual de culpabilidade, a noção de pecado original surge como um falso conceito que se pode relacionar com uma gnose antignóstica. O conteúdo da gnose é negado, mas a forma do discurso da gnose é reconstituída, isto é, a de um mito racionalizado (RICOEUR, 1988b, p. 34).     

É necessário pontuar que, mesmo vindo de tradição calvinista, Ricoeur apresenta uma enorme resistência à ideia de pecado original como uma explicação racionalizada sobre a origem do mal. Ricoeur desenvolve sua reflexão sobre o símbolo do mal enfatizando, dessa maneira, o horizonte da existência prática. Em outros termos, o sujeito, ao reconhecer sua própria falta, por meio da confissão de seus pecados (nível prático), assume a responsabilidade por aquilo que realizou, mesmo que tenha sido coagido em seus atos e condicionado pelas circunstâncias. 

Essa questão permite a Ricoeur operar a articulação prática das contradições determinismo/liberdade e contingência/necessidade, guardando, no entanto, o sentido de mistério em relação à experiência do mal e do pecado. Logo, o problema do mal não apresenta uma solução teórica, somente uma resolução prática.

Dessa forma, Paul Ricoeur se distancia de Agostinho e se aproxima de Kant, que, no ensaio sobre O mal radical, pensou o dilema do mal sem, contudo, postular um pecado original ou uma natureza caída e corrompida do ser humano. Kant alocou o problema no campo da ação, propondo uma solução ética (prática), afirmando a necessidade da lei moral e da história para o aprimoramento humano. Em Kant, o mal radical está relacionado ao problema da liberdade, mais especificamente a uma predisposição natural do ser humano a inclinar-se a ceder às suas apetições (Cf. KANT, 1992). 

Nisso, Ricoeur concorda com Kant e postula novamente que Agostinho caiu na armadilha da gnose ao formular o conceito de pecado original. Ricoeur postula, então, a necessidade de abandonar o conceito de pecado original, afirmando sua falta de respaldo coerente nas Escrituras, desenvolvendo, assim, sua interpretação não no campo estritamente teológico, mas, sobretudo, moral e filosófico.

Portanto, através do método fenomenológico-hermenêutico, Ricoeur percebe que o sentido profundo do mal (pecado) é um mistério para o qual a análise hermenêutica oferece confirmação ao invés de decifração. Conforme Ricoeur, a impossibilidade de esgotar racionalmente o problema do mal é estendida aos limites absolutos da própria razão humana diante da existência, em cuja raiz encontra-se o hiato vivido/pensado, que, todavia, nem a hermenêutica, nem a fenomenologia conseguem superar, demarcando, assim, os limites da própria filosofia.  

Conclusão

O problema do mal e da liberdade humana é central na filosofia de Paul Ricoeur. O pensador francês compreende que existe uma desproporção que assola a existência humana. Para ele, a falibilidade decorre da fragilidade do ser humano de mediar sua constitutiva desproporção entre finitude e infinitude. Todavia, mesmo marcado pela possibilidade do mal, o ser humano seria ontologicamente originário do bem.

Com o objetivo de compreender a existência humana, Paul Ricoeur recorre à linguagem simbólica para ampliar a sua percepção. Diferentemente de Heidegger, que trilhou a via curta, o filósofo francês optou pela via longa para realizar o enxerto hermenêutico na fenomenologia no intuito de lidar com a problemática do mal.   

Dessa forma, Ricoeur entende o ser humano como falível e capaz. Essa dualidade da antropologia ricoeuriana revela que o homem, em sua própria origem, é marcado pelo mal, mas, simultaneamente, também pela bondade. Isto posto, mesmo diante da falibilidade, o ser humano é chamado a assumir sua humanidade, a viver em liberdade, sendo-lhe facultado fazer o bem e o mal, mesmo sem intenção expressa ou involuntariamente. 

Referências

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Notas

[1] Esta obra especificamente está citada em tradução nossa.

[2] Na hermenêutica ricoeuriana: “Le symbole donne à penser : cette sentence [...] dit deux choses ; le symbole donne ; je ne pose pas le sens : c’est lui qui donne le sens ; mais ce qu’il donne, c’est à penser, de quoi penser”(RICOEUR, 2013, p. 177).

[3] O ser humano capaz é descrito como aquele que apresenta a capacidade de falar, agir, narrar e de ser responsável pelos seus atos. Não podemos esquecer que o ser humano capaz também é falível, a possibilidade do mal se encontra inscrita dentro da própria constituição do ser humano. Paul Ricoeur entende o ser humano como um ser inconcluso, marcado pela falibilidade e pela capacidade. Essas duas noções devem ser entendidas como conceitos complementares, mesmo percebendo que a ideia de capacidade irá ser central para o filósofo francês pensar o ser humano.