Antônio Lisboa
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: padre.lisboa@gmail.com
Karolayne Maria V. C. de Moraes
Graduada em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – (PUCSP). Contato: karolaynecamargo18@gmail.com
Resumo: O contexto latino-americano é marcado, há séculos, pela realidade de dominação e exploração dos povos mais vulneráveis. Hoje, apesar de contornos diferentes, essa problemática permanece ferindo a dignidade de muitos povos. A pergunta fundamental que devemos fazer é: como a Teologia pode ajudar a pensar criticamente essa conjuntura e desencadear um processo de emancipação dela? Um dos caminhos avistados trata-se da necessidade eminente de recuperar o sentido e o significado da ação e da prática como mediação fundamental do teologizar latino-americano, essencial para entender o que se desenhou no universo teológico como teologia da libertação e que pode contribuir muito para a vivência da fé cristã na realidade hodierna. Pensar a ação e a prática, defendidas respectivamente por José Comblin e Hugo Assmann, corresponde a um processo de formação da consciência que permite olhar criticamente para a realidade e compreender a situação concreta de povos dominados, como o lugar referencial donde parte e para onde deve retornar à tematização crítica daquilo que se encontra, muitas vezes, num nível de semi-expressão, ou de teorização acadêmica, sem incidência na vida real e concreta dos indivíduos. Objetiva-se, portanto, com essa proposta, uma apresentação expositiva do significado teológico-existencial dos termos ação e prática segundo os respectivos autores José Comblin e Hugo Assmann, a partir de uma análise bibliográfica. Pode-se dizer, desde já, que viver a ação e a prática significa assumir a história como lugar da ação de Deus, por meio do Espírito, que age em cada um de nós e nos impele a viver uma vida de conversão e testemunho.
Palavras-Chaves: Prática; Ação; Libertação; Práxis; Comblin; Hugo Assmann
Abstract: The Latin American context has been marked for centuries by the reality of domination and exploitation of the most vulnerable peoples. Today, despite different contours, this problem continues to hurt the dignity of many peoples. The fundamental question that we must ask is: how can Theology help to think critically about this situation and trigger a process of emancipation from it? One of the paths seen is the imminent need to recover the sense and meaning of action and practice as a fundamental mediation of Latin American theologizing, essential to understand what has been designed in the theological universe as the theology of liberation and that can contribute a lot for the experience of the Christian faith in today's reality. Thinking about action and practice, defended respectively by José Comblin and Hugo Assmann, corresponds to a process of formation of conscience that allows to look critically at reality and understand the concrete situation of dominated peoples, as the referential place from which it starts and where it should go. return to the critical thematization of what is often found at a level of semi-expression, or academic theorization, with no impact on the real and concrete life of individuals. The objective of this proposal is, therefore, an expository presentation of the theological-existential meaning of the terms action and practice according to the respective authors José Comblin and Hugo Assmann, based on a bibliographical analysis. It can be said, from now on, that living in action and practice means taking history as the place of God's action, through the Spirit, who acts in each of us and impels us to live a life of conversion and witness.
Key words: Practice; Action; Release; Praxis; Comblin; Hugo Assmann
Na perspectiva de José Comblin (1923-2011) e de Hugo Assmann (1933-2008), se a teologia pode, de alguma forma, contribuir para a vivência dos cristãos no contexto latino-americano e responder aos seus desafios hodiernos, isso se dá por meio da promoção efetiva da ação e da prática. Segundo esses teólogos, para além de discursos teóricos, a teologia deve inspirar uma ação concreta dos fiéis, a partir da realidade em que vivem e como resposta a ela.
O presente artigo, tem como finalidade apresentar o significado das expressões ação e prática, segundo a teologia de Comblin e Assmann, além de salientar como, ambas concepções, podem ser uma ferramenta importante para a efetivação de uma Teologia prática, hoje. Num primeiro momento, a reflexão se voltará para a pessoa de José Comblin, cuja vida e pensamento testemunham que a ação humana tem um fundamento teológico, ou seja, corresponde a manifestações da própria ação de Deus na história, pois Deus é ação e continua agindo através de nós. Em seguida, o artigo abordará a figura de Hugo Assmann e como seu pensamento caminha na mesma perspectiva de Comblin, porém defendendo a prática cristã como caminho de resposta teológica às situações de opressão vigentes na realidade latino-americana, concebendo tais situações como lugar referencial donde parte e para onde deve retornar à tematização crítica dos discursos teológicos.
Por isso, a presente proposta reflexiva tem a intenção de analisar criticamente, refletir e compreender como os pensamentos de José Comblin e Hugo Assmann podem contribuir para uma vivência da fé cristã em tempos de crise humanitária e de fé, no atual contexto latino-americano.
Sacerdote, Filósofo e Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain, José Comblin (1923-2011) foi um dos grandes teólogos do século XX e início do XXI. Diz-se isso, não tanto pelas suas elucubrações teológicas, mas por concebê-las e escrever a partir da realidade e como resposta concreta às necessidades da mesma. Na verdade, essa era sua perspectiva seguida no fazer teológico, partir da prática, das experiências concretas e desafiadoras que as pessoas fazem em seu dia a dia considerando aí o espaço privilegiado de encontro com Deus (SOUZA, 2017, p. 241).
Não obstante, segundo Alzirinha, uma análise fiel entre sua caminhada acadêmica e vida pessoal permite constatar uma conversão significativa em sua forma de pensar a realidade. Nas palavras da autora, “o deslocamento geográfico, cultural, histórico e o contexto, ao vir da Europa para a América latina, forma determinantes no processo de mudança teológica que realizou [Comblin] desde suas primeiras publicações” (ibidem, p. 242).
Como já não habitava mais em contexto europeu, mas em uma realidade que clamava por mudanças significativas, entre as décadas 50 e 60, isso favoreceu um aprimoramento de seu senso crítico, bem como posturas criativas. Isso, somado ao contato com professores e formadores que tiveram contato com o processo de mudança da Igreja Conciliar, preparará o caminho para sua proposta original, a saber: de uma Teologia da Ação, ou melhor, do Espírito, que está na origem da história e age nela, através dos seres humanos e neles.
Tratava-se de um Comblin que passou a reler a história, tanto bíblica, quanto contemporânea, na perspectiva da ação do Espírito que ele via agir não de modo esplendoroso e magnânimo, mas discreto, preciso e determinante por meio das pessoas, suas decisões e atitudes. Sempre libertando e cristificando a fim de que a criação chegue a sua plenitude apesar dos contratempos.
Ao longo de suas experiências missionárias, Comblin observa que o século XX é marcado pela ação humana transformadora da realidade, buscando desfrutar de seus recursos, o que ele denominará de operações, que se utilizam de recursos técnicos (SOUZA, 2015, p. 15). São novos ares, que o teólogo belga interpreta como um novo tempo permeado de transformações, tempo este dito moderno, frente ao qual a Igreja e a teologia devem responder de alguma forma. Para Comblin, no que diz respeito à Igreja, trata-se dela efetuar uma mudança de postura, uma descentralização eclesial, para colocar-se a serviço da humanidade e de sua libertação, como ressaltou, segundo ele, o Concílio Vaticano II (1962-1965) (COMBLIN, 1982, p. 14-15).
No que diz respeito à teologia, Comblin é da mesma forma crítico. Ele se preocupa, de modo particular, com o fazer teológico em ambiente latino-americano, onde fez missão a partir de 1958, a fim de que ela responda às necessidades desse território, tão explorado e dominado, pois, para Comblin, a teologia é e deve ser serviço (idem, 2017, p. 243). Seu pensamento se distancia da criação de uma teologia da história, que era tendência entre os teólogos na Europa nesse período. Ele se concentra na necessidade de a teologia afirmar o primado da ação do Espírito, pois é justamente o Espírito a origem da história e o mesmo que se faz presente em seus acontecimentos (COMBLIN, 1982, p. 27). Em suas palavras, apenas ao falar da ação é que “a teologia entra em seu verdadeiro assunto” (ibidem, p. 11).
Para Comblin, recuperar a Teologia do Espírito é voltar-se para aquilo que corresponde à verdadeira identidade de Deus, ou seja, a ação. Deus sempre age, liberta e interfere na história tomando o partido dos pobres. Entretanto, para Comblin, a ação de Deus na história se dá por meio das suas “duas mãos”, conforme a teologia de Irineu de Lion, ou seja, a partir de Jesus e do Espírito, por meio de nós (ibidem, p. 21-22). Comblin salienta que as missões, a do Filho e a do Espírito, são importantes e se complementam, salvaguardando a unidade e a diversidade da Igreja, e a continuação do anúncio do reino pelos cristãos, ao longo da história.
A teologia de Irineu de Lion, base para a reflexão de Comblin, inspira-se no Salmo 33,6, diz Charles, no qual se afirma que “pela sua Palavra, o Senhor fez os céus, e todo o exército deles, com o sopro de sua boca”. Assim, para Irineu, o Pai “planeja e ordena”, o Filho “executa e cria” e o Espírito “nutre e aumenta” a obra planejada e criada, gerando e mantendo a Vida (CHARLES, 2011, p. 72).
Nessa perspectiva, para padre belga, se a missão do Filho foi ter manifestado Deus em uma existência humana, de modo que não podemos imitá-lo, isso não impede que ele seja nossa fonte inspiradora, de modo que “nós nos tornamos capazes de criar atos totalmente nossos [...] e que, ao mesmo tempo, manifestam alguma coisa da plenitude de Cristo” (COMBLIN, 1982, p. 29), por meio do Espírito. Sim, porque Cristo só penetra em nós pelo Espírito, e a verdadeira obediência ao Filho de Deus passa pelo Espírito como
uma força que se manifesta pelo despertar de nossa própria personalidade e vontade. [...]. Obedecer ao Cristo é refazer em um lugar único um ato novo e único que entra no mesmo movimento que é o seu e isso pela fidelidade ao movimento interior do Espírito (COMBLIN, 1982, p. 30).
É com base nessa obediência ao Cristo, pelo Espírito, que Comblin afirma que a ação do homem será, de per si, libertadora e fundante de uma teologia de práxis de libertação. “O Espírito age fazendo agir os homens, movimentando o que é humano, o que existe de mais pessoal, original e único [...]. O modo de agir do Espírito é a ação humana, a ação para ser homem” (ibidem, p. 33). Trata-se de compreender a ação humana como que ligada à “ação do próprio Deus”, em diferente contexto, pois o humano do pensamento combliniano não age de maneira improvisada, mas sim, pelo Espírito Santo, segundo os parâmetros do Filho (SOUZA, 2015, p. 13). Isso, porém, sem que o ser humano seja aniquilado, mas tornando-se livre para servir e anunciar com a própria vida.
Em outras palavras, o que Comblin afirma, corresponde ao movimento de conversão que possibilita ao homem agir segundo os critérios de Cristo, porém em outra realidade e de modo criativo, inspirado pelo Espírito. Justamente por isso, a ação, segundo o pensamento de Comblin, vale em si mesma, independente da eficácia que possa ter.
A ação já é a libertação. O homem se liberta, lutando para se libertar. O essencial da libertação é a própria ação. Pois a libertação total é [...] feita de uma multidão de mudanças elementares. Só existe nos homens. A liberdade [...] está nos homens concretos. Portanto, está sempre por se fazer e já começa a partir do momento em que um homem enfrenta a escravidão (COMBLIN, 1982, p. 60).
A partir do que foi exposto do pensamento de Comblin, percebe-se a necessidade da ação como fundamento de uma Teologia Prática, em tempos hodiernos, na América-Latina. Dessa ação que muda o mundo, faz o homem mudar-se a si mesmo e mudar os outros. Ação esta que só pode, portanto, provir do Espírito, e que nos torna testemunhas de um Deus que continua vivo, atuante e libertador, diante dos novos contornos de opressão que afligem seu povo.
Contemporâneo de José Comblin e igualmente Filósofo e Doutor em Teologia, Hugo Assmann (1933-2008) contribuiu de modo elementar para o desenvolvimento da reflexão teológica em ambiente latino-americano, sobretudo ao longo do séc. XX. Foi um dos pioneiros na produção da Teologia da Libertação, como novo paradigma teológico, juntamente com Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, entre outros; bem como um dos críticos desse pensamento quanto à relação entre discurso e prática efetiva. Além de ser considerado um dos primeiros a utilizar categorias sociais dentro da reflexão teológica e conceber a relação entre teologia e economia, escrevendo importantes obras contra a idolatria do mercado.
O irrompimento da prática como mediação fundante do teologizar latino-americano é uma variável essencial para compreender o que se desenhou no universo teológico como teologia da libertação. O mais comum, desde os tempos primeiros do discurso teológico, sobretudo com a escolástica, era a construção de arcabouços teóricos enunciadores de conceitos densos de significados, que às vezes, apontavam para a prática em termos orientativos e, outras vezes, se constituía um discurso sobre Deus e a realidade, prescindindo dos meandros concretos da mesma realidade. É relevante a linha de reflexão desenvolvida por Hugo Assmann, nos idos 1976, na qual é preciso apreender a prática que, teorizada, constitui-se em práxis e, no contexto de opressão e exploração, efetiva-se como mediação hermenêutica fundamental para uma teologia da libertação. Sua reflexão entabula um diálogo com o dinamismo do teologizar latino-americano, enquanto produz uma teologia que emerge desde a concreticidade das práxis de libertação. Na leitura de Assmann, a situação concreta de povos dominados é o lugar referencial donde parte e para onde retorna a tematização crítica do que se encontra, muitas vezes, num nível de semi-expressão, latente e até difuso na prática (ASMANN, 1976, p. 29).
O aparecimento do tema “práxis de libertação”, o qual formulou os postulados que foram configurando a teologia da libertação, é visto por Assmann em três fases distintas, mas profundamente interligadas. A primeira fase, a partir do Concílio Vaticano II, emerge uma reflexão mais crítica sobre a realidade, porém muito marcada pela ideologia do desenvolvimentismo, elaborando uma teologia do desenvolvimento, bem presente nos documentos da CELAM, que precederam a Conferência de Medellín, em 1968. Esta perspectiva tinha como pressuposto a teoria da dependência, a qual surgiu na década de 60, esclarecendo que a condição de subdesenvolvimento de muitas nações frente às poucas outras desenvolvidas, não representava um estágio inferior que carregava em si a necessidade de superação dos limites para alcançar o estágio de desenvolvimento, mas correspondia a um processo de implicação recíproca. Assim, o crescimento econômico e social das nações desenvolvidas era acompanhado, necessariamente, pela dependência dos subdesenvolvidos, resultado da exploração e dominação sofrida pelo “progresso econômico”.
A segunda fase se inicia com o aparecimento do tema “libertação”, enunciando a situação de dependência agudizada pelo movimento de conservação desta condição, ou seja, como componente natural do desenvolvimento, a polaridade do subdesenvolvimento e a sua manutenção. A elaboração da teoria da dependência, embora criticasse o mito do desenvolvimento, não parece ter oferecido suficientes subsídios de análise que apresentassem uma perspectiva que não fosse propriamente a do desenvolvimentismo. Por isso, a categoria de libertação é fundamental na proposição de uma análise que possibilite a percepção da relação dialética dos polos desenvolvimento-subdesenvolvimento, caracterizando a efetiva relevância do lugar dos povos dominados e de suas práxis de libertação, desde onde foi sendo formulada uma reflexão analítica referente aos aspectos do fenômeno do subdesenvolvimento e dos mecanismos de sustentação dessas condições, enunciando propostas de superação com a construção de novas modalidades de vida.
A teoria da dependência subjacente à teologia do desenvolvimento, proporcionou, numa terceira fase, uma sofisticação da análise da realidade; daí, então, o irrompimento da categoria de libertação que deslanchou uma prática de conscientização, proporcionando um deslocamento do eixo de significado da linguagem (ibidem, p. 31). No entanto, a noção de libertação representa a formulação do juízo sobre a realidade de liberdade ausente. E isto não foi um processo sem conflitos, pois justamente pelo fato de se tratar do âmbito do discurso, foi patente a enunciação de uma palavra enfática que, em muitas situações concretas, foi parceira de uma ação fraca, explicitando uma tensão entre o discurso e as condições históricas. De tal modo, que o conteúdo sócio-analítico e semântico da teologia da libertação esclarece que a liberdade é ausente da realidade dos povos dominados e explorados e, por isso, a libertação é práxis que visa tanto “recuperar” como “adquirir” liberdade. E isto tem sido sempre marcado por um “enfrentamento conflitivo” (ibidem, p. 31).
Partindo desta constatação, Assmann aduz que o deslocamento semântico proporcionado pela práxis de libertação enuncia a libertação como uma categoria correlativa do conceito de dependência, pois o conteúdo que subjaz uma terminologia, define o seu caráter. A apreensão dos mecanismos mantenedores da dominação e exploração marcou a emergência da consciência histórica que, para este autor, é a elevação de uma experiência concreta ao nível da consciência. Este é um fato fundante: os povos dominados, apoiados pelos movimentos sociais e eclesiais e pelos intelectuais inseridos e/ou ligados a estas experiências, tomam consciência de sua própria condição, passam a conhecer a sociedade que fazem parte e, assim, vislumbrar modalidades diversas de sociedade, onde possam superar a situação de dominação e exploração (ibidem, p. 33).
Não obstante os elementos formais expressos neste estado de consciência destes povos, enquanto engendram uma práxis de libertação, parece incompatível não reconhecer as frustrações que foram aparecendo no desdobramento dos fatos históricos, principalmente no que concerne aos processos de militarização, a configuração de um colonialismo imperial, cada vez mais dominador, e a estruturação de um sistema econômico de âmbito global. Neste sentido, o que Assmann diz é que as experiências de frustrações foram propiciadoras do surgimento das críticas de oposição e isso tornou eminentemente relevante o “critério de distinção”, que exigiu da teologia da libertação uma maior precisão da linguagem, principalmente, uma maior auto-criticidade e uma melhor definição do conceito de libertação. Para ele, o que é efetivamente inovador na teologia latino-americana, é a concepção de um novo contexto e de uma nova metodologia da práxis cristã, onde a fé emerge como práxis histórica bem localizada (ibidem, p. 34). Segundo Assmann, os cristãos deste sub-continente evoluíram na consciência da originalidade de sua própria experiência de povos dominados, inclusive, pelos discursos teológicos do universo colonial dominador (ibidem, p. 36).
O eixo de articulação da Teologia da Libertação é, portanto, a experiência de subjetivação de dominação, que emerge no bojo da própria experiência de fé (ibidem, p. 37). Portanto, é imperativo a superação do cinismo dos discursos des-localizados que, no nível deste estudo, implica em ajudar a libertar a teologia de seu próprio cinismo (ibidem, p. 40). Assmann destaca que os conceitos possuem uma carga ideológica, a qual não pode ser ignorada. Por isso, as formas do fazer teológico latino-americano são marcantes na função política de seus discursos e práxis (ibidem, p. 50).
Conforme o estudo de Assmann, a TdLib assume o amor como práxis histórica de libertação do ser humano e como variante animadora da experiência de fé (ibidem, p. 91), numa atitude concreta de escutar mais e falar menos. No entanto, enunciando com relevância o que possa alcançar as consciências dos que têm e dos que não têm fé (ibidem, p. 74), caminhando para um empreendimento teológico cada vez mais autônomo (ibidem, p. 76). Todas as mediações institucionalizadas da fé são relevantes na medida em que estão conectadas com o momento atual das práxis históricas dos povos subalternos. Os esforços de libertação emergem no interior das práxis, mas não podem prescindir dos critérios de análises e dos discursos concernentes a estas práxis (ibidem, p. 102).
Certamente, muitos elementos a respeito do pensamento de José Comblin e Hugo Assmann ficaram de fora, pois estes autores elaboraram suas reflexões sobre a ação e a prática a partir de uma observação apurada da necessidade dessas categorias nas situações concretas que os circundavam. A crítica desses teóricos refere-se à falta de incidência do discurso teológico na prática, pois, para eles, é esse o locus teologicus a partir do qual a discussão teológica deve ser elaborada e com base na qual se deve avaliá-la.
Na perspectiva combliniana, a ação corresponde à definição por excelência de Deus. Deus é ação, e continua agindo, libertando e conduzindo seu povo a partir de Jesus e do Espírito, por meio dos cristãos. Jesus e o Espírito, para Comblin, correspondem às duas mãos pelas quais Deus age na história. A missão de cada um é igualmente importante. Contudo, como Jesus manifestou a face de Deus em uma existência humana concreta, não é possível imitá-lo, nem deve ser essa a finalidade da vida cristã para quem a assume. Mas, segundo o teólogo belga, o cristão deve agir com base nos princípios seguidos por Jesus, nos seus parâmetros, e ele somente o faz quando se deixa guiar pelo Espírito.
Desse modo, segundo Comblin, cada cristão manifestará a própria e contínua ação libertadora de Deus na história e testemunhará a vivacidade e a pertinência do Deus bíblico nos tempos atuais. Afinal, a ação dos cristãos, dirá Comblin, corresponde a uma mudança de si mesmo por parte do indivíduo, da realidade e dos demais que o circundam. Em última instância, trata-se do movimento de conversão, de uma mudança de mentalidade, o qual é válido, não pelos seus resultados obtidos, mas em si mesmo, ao passo que a própria ação já é libertação e sua plenitude corresponde a uma vida inteira rumo à humanização.
Com outra perspectiva de análise mas aproximando-se do pensamento de Comblin, Hugo Assmann defende a necessidade de apreender a prática que, tornando-se teoria, constitui-se em práxis e, no contexto de opressão e exploração, efetiva-se como mediação hermenêutica fundamental para uma teologia da libertação. Afinal, segundo ele, como já expresso aqui, a situação concreta de povos dominados é o lugar referencial donde parte e para onde retorna a tematização crítica do que se encontra, muitas vezes, num nível de semi-expressão, latente e pouco incidente na prática. Então, para que uma teologia seja edificada a partir de práxis de libertação, o que ela nunca poderá perder será a base da experiência como referência, seres humanos subjugados empenhados em sair do subjugo, como desdobramentos de práticas emancipatórias.
Nossos autores desenvolveram seus pensamentos teológicos assumindo posturas permanentes de críticas e autocríticas. A vida de fé, para eles, é uma prática que não deveria ser assumida tacitamente, mas sempre numa perspectiva dialética de percepção, desconstrução e reconstrução. É possível que esta performance compartilhada por ambos se constitua num recurso metodológico de abordagem teológica das práxis eclesiais, profundamente relevante para o fazer teológico latino-americano hodierno.
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