Como no Céu, Assim na Terra: Da Permanência das Coisas que Estão no Alto/
As It is in Heaven, It Shall be on Earth: On The Permanence of the Things Above 

Celia Maria Ribeiro
Mestra e Doutora em Ciências da Religião pela PUC/SP Contato: cmariar@uol.com.br

Maurício Gonçalves Righi
Historiador e Doutor em Ciências da Religião pela PUC/SP Contato: maugrighi@gmail.com


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RESUMO

Este artigo tem por objetivo levantar a questão da permanência de certas questões fundamentais à igreja cristã, sobretudo por meio da exortação paulina “às coisas do alto”, em sua Epístola aos Colossenses. A realidade sempre presente dos poderes totalitários e exploratórios, do apego humano às paixões violentas e desregradas, bem como do apego às distrações rasteiras e à cobiça das coisas materiais, permanece como obstáculo poderoso e deveras resistente à ação cristã no mundo. Sem a fundamentação na fé que vem da Palavra do Deus vivo e encarnado, uma fundamentação rigorosamente mística, esse combate contra essa realidade brutal do mundo, vinculada à linguagem da morte, vira-se contra si mesmo, validando ainda mais os imperativos exploratórios e sua desumana lógica interna. Uma igreja viva e ativa é uma igreja ainda em martírio – podemos dizer, infelizmente –, uma vez que presente num mundo ainda dominado pela linguagem e pelos anseios da carne. 

Palavras-chave: Colossenses, mística cristã, martírio, consumismo. 

ABSTRACT

This article aims to raise the question of the permanence of some fundamental questions regarding the Christian Church, considering mainly the Pauline exhortation “to the things above” in his Epistle to the Colossians. The ever-present reality of totalitarian and exploitative powers, of human orientation to violent and unruly passions, as well as to vulgar distractions and the greed for material things, remains a powerful and obstinate obstacle to Christian action in the world. Without the foundation in the faith that comes from the Word of the living God, a rigorously mystical foundation, the war against the evils in the world, which are associated with the language of death, turns against itself, validating even more the exploitative imperatives and its inhuman logic. A living and active Church is one that is still in martyrdom in this world – we can say, unfortunately –, since this world is still dominated by the language and desires of the flesh.  

Keywords: Colossians, Christian mysticism, martyrdom, consumerism. 


Introdução

O cristianismo compreende, em seus fundamentos, uma reflexão desafiadora, especialmente quando de fato relacionada à práxis de sua mensagem fraterna, absolutamente aberta à contemplação do outro, o irmão, o estrangeiro, conforme comunicada nos Evangelhos. Em nosso caso, hoje, em sua reatualização sempre necessária, porque cabe à Igreja escutar com atenção o tempo em que vive, quando consideramos as múltiplas crises humanitárias instauradas em nosso meio, essa reflexão nos vem como chamamento à reorientação radical de alguns pressupostos modernos, por meio dos quais certa orientação, talvez uma obsessão, por segurança, conforto e enriquecimento privado cresceu absurdamente, colocando-se no trono dos anseios das pessoas. Esse imaginário largamente liberal, no qual se embute uma moral privada, políticas públicas, decisões jurídicas etc., tem de ser reavaliado segundo os critérios fundamentais da reflexão que nos traz os Evangelhos, à luz da qual o humano se revela como inteligência viva, criativa e amorosa, revela-se como doador e coparticipante da criação. Há, todavia, linguagem e práxis próprias à adoção dos termos dessa reflexão, inegavelmente libertadora em seus sentidos de uma só vez antropológico e teológico. O pensamento cristão precisa reaver a autoridade espiritual – e humana –  de sua mensagem singular, de fato salvífica, sobre os pressupostos não raras vezes desumanos de uma mentalidade moderna orientada à mecanização da vida, calcada na linguagem da eficácia produtiva associada aos bens de consumo, aos interesses corporativos e às ideologias totalitárias.   

O ponto de referência adotado é o da autenticidade originária da mística cristã, fielmente preservada ao longo da história pelo santo apostolado de Jesus Cristo, pelo testemunho dos santos mártires e pelos esforços teológicos dos padres da Igreja, até a constituição de um amplo discipulado cristão, coeso e em ação no mundo. Embora isso responda pelo passado da Igreja, incluindo seus inúmeros seguimentos e correntes, no qual a opção voluntária de participar desse apostolado acarretou inegáveis ganhos civilizacionais, por meio de amplas redes de colaboração fraterna entre as ordens religiosas, as comunidades leigas e os poderes estabelecidos, hoje ainda temos desafios gigantescos para a implementação e adequação, em nosso tempo, dessa mensagem que nos liberta e que expressa, em seu núcleo eternamente vivo, um chamamento às coisas do alto, uma exortação às realidades celestes. Quando Paulo diz aos seus ouvintes e leitores que parassem de se culpar “por questões de comida ou de bebida” (Cl 2,16), que parassem de julgar e de serem julgados segundo prescrições meramente ritualísticas, que parassem de se agarrar em antigos tabus alimentares e comportamentais, ele assim o fez não porque se tornara um hedonista ou um cínico, absolutamente, mas sim porque a perspectiva em Cristo é muito mais alta e ampla, espiritualmente libertadora, segundo os vínculos que essa fé estabelece. Com efeito, logo em seguida, ele exorta a comunidade cristã para que procurasse “as coisas do alto” (Cl 3,1). Ele diz com todas as letras para que pensassem “nas coisas do alto, e não nas da terra” (Cl 3,2). Temos aqui, certamente, o preâmbulo do que seria uma ética cristã, detidamente explicitada logo na sequência em Colossenses. Interessa-nos ressaltar que a exortação paulina “para o alto” continua válida em nosso tempo, talvez especialmente em nosso tempo. 

O que temos de perceber é que essa exortação para o alto, inegavelmente relacionada às realidades celestes, portanto escatológica e mística, embora igualmente compreendida como interiorização profunda, como reconhecimento vivo de nossa criaturalidade em amor fraterno, tem graves consequências existenciais e mesmo políticas. Não poucas vezes na história, sua adoção rigorosa, sua incorporação como orientação primeira de vida, veio ao preço do opróbrio público, como também ao preço do sangue, da tortura e das perseguições. Muitos dirão que esse mundo dos mártires e dos cristãos perseguidos passou há tempos, o que em parte é verdade, mas o fato é que o mundo não passou enquanto estrutura fundamentalmente viciada em métodos opressores, em falsificações, em exploração contínua, em fanatismo, em paixões violentas etc. Cada tempo tem sua forma de expressar essas coisas, e cabe a nós, enquanto legatários da mensagem salvífica dos Evangelhos, enquanto comunidade universal de irmãos em Cristo, identificar os desafios de nosso tempo para a manutenção e ampliação do apostolado. 

Tomando-se as realidades incontornáveis e desafiadoras deste mundo, de uma só vez ainda sumamente violento, preso aos anseios da matéria e de suas paixões correlacionadas, cujo enfrentamento mostra-se inadiável ao cristão, este artigo pretende, por meio de pinceladas absolutamente breves, ainda que  expressivas, mostrar como a Igreja enfrenta hoje, fundamentalmente, os mesmos desafios dos primeiros tempos, quando principiou a converter um mundo tomado de paixões violentíssimas, de faustos luxuosos e de triunfos soberbos ao exemplo de vidas modeladas nos Evangelhos. As  sociedades mudaram muito desde então, mas permanecem, inalteradas, as questões fundamentais, como também permaneceu, inalterado, o antídoto revelado pelo Cristo. Temos assim as questões permanentes das paixões violentas, da opressão exercida por poderes tirânicos e de existências totalmente absorvidas na cobiça material, estas internamente articuladas, correspondendo aos campos do poder ilegítimo e da exploração do outro, da morte violenta e dos prazeres desregrados, domínio e distração, em cujo combate, ao mesmo tempo místico, litúrgico, teológico e pastoral, a Igreja se coloca (ou deve se colocar) desde sempre.

Uma Igreja ainda de Mártires 

Os martírios não cessaram, pois atualmente vistos em ataques realizados contra cristãos em muitas partes do mundo, com certo destaque para as ações perpetradas pelo Estado Islâmico. Há um vídeo, produzido e publicado após o Natal, quando este foi celebrado três anos atrás, em que se vê o assassinato ignominioso de cristãos que se recusaram negar a sua fé. Tampouco cessaram as perseguições menores, como também a censura contra grupos cristãos. Há, igualmente, formas “silenciosas” de agressão e de cerceamento, as quais passam em geral despercebidas em sociedades ora completamente voltadas ao consumo e ao enriquecimento, ora absolutamente cooptadas à retórica do laicismo, mesmerizadas pelos estímulos mais vulgares e pelas promessas mais vãs.

De acordo com a etimologia, martírio significa “testemunho”. Na perspectiva cristã, mais especificamente no contexto do cristianismo dos primeiros tempos, mártir é aquele que se recusa a negar sua fé em Jesus Cristo, mesmo que diante de ameaça de morte, de expropriação de bens, de humilhação pública e de tortura. Muitas pessoas realmente chegaram às últimas consequências em sua resistência pacífica, atravessando os piores insultos e atrocidades impostas por algozes, em virtude da defesa de sua fé, sempre alicerçada na veracidade e na fortaleza espiritual da Palavra revelada; nada estava acima dessa convicção pessoal. Conforme amplamente documentado na história desse cristianismo dos  primeiros séculos, muitos deram a vida pela Boa Nova, testemunhando a Verdade na caridade; ao preço de sangue, de lágrima e, em tudo, suor, as marcas inseparáveis dos mártires. Alguns eleitos receberam, em seu martírio, a santidade reconhecida pela Igreja, tendo a memória celebrada em data específica; outros o fizeram nas circunstâncias do cotidiano. O martírio, guardadas as especificidades histórico-temporais, confere à Igreja o reconhecimento de que esta se volta para a Verdade, voltando-se às coisas do alto, seguindo assim a trajetória de Jesus Cristo, aquele que perdoou seus algozes, assim revelando, ao mundo, a suprema pequenez da injustiça de sua execução, quando comparada ao amor de Deus.  

Alguns nomes nos são caros desse testemunho do recém passado século XX, cujo conhecimento poderá ser aprofundado tomando por base pequenos trechos de suas trajetórias: Maximiliano Maria Kolbe (1894-1941), da Ordem dos Frades Conventuais e padre missionário franciscano na Polônia, foi preso pela Gestapo, polícia secreta oficial da Alemanha nazista, em fevereiro de 1941. Três meses depois chegava a Auschwitz, junto de outros 320 presos, trazidos de Varsóvia. Em julho do mesmo ano, três presos fugiram do local e o subcomandante daquele campo de concentração ordenou que outras dez pessoas fossem levadas para uma cela subterrânea, privadas de luz solar, água e comida, devendo ficar lá até a morte. Um dos homens selecionados era Franciszek Gajowniczek, cujo desespero foi expresso na seguinte aflição extrema: “Minha pobre mulher e meus filhos, que não os volto a ver.” Pe. Kolbe, sensibilizado pelo clamor daquele homem, ofereceu-se para ir no lugar dele. Segundo o secretário, intérprete e coveiro dos oficiais nazistas, Bruno Borgowiec, durante o tempo em que permaneceram na cela, “pe. Kolbe e os presos rezavam o tempo todo”. O sacerdote “celebrava a missa e cantava hinos todos os dias, oferecendo conforto aos outros presos, encorajava-os dizendo-lhes que em breve estariam com Maria no céu”.

Após duas semanas sob desidratação e fome, somente pe. Kolbe e outros três prisioneiros permaneciam vivos. Os guardas queriam a cela vazia, então, todos receberam uma injeção letal de ácido carbônico, fato descrito por Borgowiec, que de tão impactado diante da frieza do Dr. Boch, médico encarregado das execuções daqueles corpos descamados pela fome e sede, após vinte e um dias de cárcere, recusou-se, mediante uma desculpa qualquer, a presenciar o momento da morte de pe. Kolbe, o último dos presos, “já desnudo, esquelético como um crucifixo romano, ainda sentado na posição dos últimos três dias, a cabeça levemente inclinada para a esquerda, a suavidade do sorriso nos lábios, os braços abandonados sobre o corpo, as costas apoiadas na parede ao fundo”. Portanto, ele ainda via o que acontecia aos que estavam diante dele: um a um, tendo o braço esquerdo amarrado por um laço hemostático e a agulha enfiada na veia. O que Borgowiec conseguiu ver (e ouvir) foi a prece nos lábios de pe. Kolbe, que oferecia ele mesmo o braço ao algoz.

Pe. Zef Pllumi (1924-2007), frade franciscano, encarcerado por 26 anos nas prisões do regime comunista albanês de Enver Hoxha – que perseguia a liberdade religiosa, especialmente a dos cristãos católicos. Tendo sobrevivido à perseguição escreveu o livro no qual conta sua experiência: trabalho forçado, humilhações e torturas sofridas. Em Tirana, Albânia, relatou-nos: “Um dia, após o período das perseguições, um dos meus antigos carrascos veio a esta casa para me pedir ajuda. Precisava se submeter a uma cirurgia e só podia fazê-la na Grécia. Trazia consigo a sua carteira de trabalho, que lhe assegurava o salário de aposentado. Disse-me que queria dar-me esse dinheiro, caso eu lhe pudesse pagar a viagem para que fosse tratar-se no estrangeiro. Resolvi levar isso ao meu conselho paroquial. Todos sabiam que tal homem havia sido meu carrasco. Mas concordamos em lhe pagar a viagem até Salônica, sem nada receber do seu salário de aposentado. Quando ele voltou da Grécia e veio visitar-me, eu lhe disse que ele nada nos devia; caiu, então, em prantos. É necessário perdoar, como pede o Evangelho.”; Pe. Christian de Chergé (1937-1996), monge cisterciense francês, prior da Abadia de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, na Argélia, raptado junto de outros seis coirmãos, os quais foram assassinados por fundamentalistas islâmicos, escreveu pouco antes de sua morte: “Quisera no momento oportuno, ter o tanto de lucidez que me permitisse solicitar o perdão de Deus e dos meus irmãos, assim como eu perdoaria de todo o coração a quem me tivesse atingido.”

A saga continua em pleno século XXI. Levando em consideração dados divulgados pela Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN), o presidente Thomas Heine-Geldern afirmava que 2019 “foi um ano de mártires”. O ápice – continuava ele – foi o ataque a três Igrejas no Sri Lanka, com mais de 250 mortos. Os mais de 230 ataques contra organizações cristãs, registrados na França, também foram lembrados por ele; assim como os dramáticos eventos no Chile, onde 40 Igrejas foram profanadas e danificadas desde outubro. A África é também motivo de suas preocupações ao lembrar “o recente massacre de cristãos na Nigéria”, como o de 2019, ao qual se fez referência. O grupo executor afirmou categoricamente que se tratava de cristãos e a intenção com as execuções foi, segundo um dos islamitas, “uma mensagem para os cristãos do mundo inteiro”. A população nigeriana é dividida quase igualmente entre cristãos e muçulmanos, sendo que estes estão localizados ao norte, e aqueles, ao sul do país. Segundo o Genocida Watch mais de 11,5 mil cristãos foram assassinados na Nigéria desde 2015. Os responsáveis pelas mortes são terroristas islâmicos do Boko Haram, cuja mudança de campo os fez assumir o nome de Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP na sigla em inglês), que almeja a criação de um califado, como aqueles formados no Iraque e na Síria entre 2014 e 2015. O terror que impera contra muitos vilarejos cristãos não é enfrentado pelas autoridades, temerosos em abolir as formas mais vis de crueldade e brutalidade impostas pelos agressores. Um dos motivos para tal omissão é a cumplicidade de oficiais do governo, os quais agem fora do Estado de Direito, agravando ainda mais a situação.

O papa Francisco, sensível ao tema, vem conferindo visibilidade a esse problema gravíssimo, à medida que recorda a coerência e a força de quem chega à confissão de Jesus Cristo até o derramamento do próprio sangue. Em outubro de 2020, durante a audiência com o prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, o sumo pontífice autorizou esse organismo a promulgar vários decretos, entre os quais destacamos: o martírio dos Servos de Deus Leonardo Melki e Tommaso Saleh, sacerdotes professos da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, mortos, por ódio à fé, na Turquia em 1915 e 1917; o martírio do Servo de Deus Luigi Lenzini, sacerdote diocesano, morto, por ódio à fé, em Crocette di Pavullo (Itália) na noite de 20 para 21 de julho de 1945; o martírio da Serva de Deus Isabella Cristina Mrad Campos, fiel leiga, morta, por ódio à fé, em Juiz de Fora (MG, Brasil), em 1º de setembro de 1982; as virtudes heroicas do Servo de Deus Roberto Giovanni, irmão professo da Congregação dos Sagrados Estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo, nascido em 18 de março de 1903, em Rio Claro (SP, Brasil) e falecido em Campinas (SP, Brasil), em 11 de janeiro de 1994; as virtudes heroicas da Serva de Deus Maria Teresa do Coração de Jesus, nascida Célia Méndez y Delgado, em 11 de fevereiro de 1844, em Fuentes de Andalucia (Espanha), cofundadora da Congregação das Servas do Divino Coração de Jesus, e falecida em Sevilha (Espanha) em 2 de junho de 1908.

A unidade papal junto aos martirizados também se fez presente na vídeo mensagem de fevereiro de 2021, por ocasião de sua lembrança à memória dos 21 homens comuns – pais de família, imbuídos do desejo de ter filhos e da dignidade de trabalhadores, forma pela qual procuravam ter o pão em casa – mortos na Líbia, em 15 de fevereiro de 2015. Aqueles homens, degolados pela brutalidade do Estado Islâmico morreram dizendo: “Senhor Jesus!”. A tragédia é inegável, mas da fé simples dessas pessoas, afirmava o papa Francisco, “nota-se o maior dom que o cristão pode receber: o testemunho de Jesus Cristo até o ponto de dar a própria vida”. Isso equivale a lavá-la no sangue do Cordeiro. Eram homens do povo de Deus, do fiel povo de Deus. O EI está entre os grupos extremistas que mais perseguem cristãos ao redor do mundo, fazendo questão de divulgar, publicamente, a crueldade de seus atos hediondos. 

A gravidade dos fatos ligados a esse tipo de violência religiosa tem exigido esforços na construção da paz, pedido comumente feito pelo papa Francisco e explicitado por ocasião da oração para o mês de janeiro, como a de 2019: “A nossa fé leva-nos a difundir os valores da paz, da convivência, do bem comum.” Bem-aventurados os que assim procedem, sobretudo nos tempos difíceis que atravessamos, “porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,10). Atualmente, entre as estruturas formadas nas instituições e a promoção da dignidade da pessoa humana, a escolha recai sobre a primeira e suas respectivas normas com força de “lei”, a qual submete, na maioria das vezes, ao serviço de procedimentos desprovidos de justiça. Tal entendimento soaria vazio de sentido, caso a realidade demonstrasse o contrário, pois “o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais” deveria ser a pessoa humana (Cf. Gaudium Et Spes, nº 25).

É importante assinalar que a valorização da pessoa humana obteve expressão graças ao cristianismo, religião estritamente vinculada à construção dos desígnios do Senhor do amor à humanidade; porém, a receptividade à mensagem cristã vem sendo combatida no mundo altamente secularizado em que vivemos. Em que pese essa realidade difícil, a experiência religiosa cristã tem a capacidade de ir além das dificuldades, porque sempre diretamente envolvida nos acontecimentos próprios de nossa existência. Mas, é preciso ter consciência de que esta existência está alicerçada em Deus, criador de tudo, é preciso reconectar-se constantemente com o alto, com as coisas do alto. Isso faz parte da vontade do Pai, como nos lembra o Filho unigênito. Entendemos que a demonstração fundamental dessa benevolência gratuita para conosco está presente desde o nosso nascimento, porém, expressa de forma genuína em Jesus Cristo.

A revelação do Deus invisível se dá através da História de Salvação da humanidade, na qual os Patriarcas e os Profetas prepararam o caminho para a plena revelação de Deus, que não é uma ideia abstrata, mas uma pessoa: Jesus Cristo, constituído mediador e plenitude da revelação (DV nº 2). O aprofundado entendimento construído no documento conciliar intensifica a relevância da pessoa humana, perante a qual, o nosso Irmão e Salvador preocupava-se, sobretudo, em três situações: aliviar o sofrimento humano; oferecer possibilidades para a mesa da partilha e restabelecer as relações rompidas. Contudo, estejamos atentos sobre “o risco de tomar Jesus Cristo apenas como um bom exemplo do passado, como memória, como alguém que nos salvou dois mil anos atrás”. É o Cristo Ressuscitado que nos enche com a Sua graça e nos transforma. (cf. Christus Vivit nº 124). A partir do conhecimento aprofundado da pessoa histórica e mística, cujo ensinamento é a base do cristianismo, a nossa percepção da influência dessa religião na atualidade ganha mais sentido, à medida que também capacita o ser humano para o desafio de fazê-lo presente na resolução dos problemas sociais de forma pacífica ou cada vez menos desgastante, pois bem sabemos o investimento laborioso quando o assunto é a promoção do bem comum. Uma consequência imediata observada pelo enfraquecimento do vínculo solidário é o egoísmo exacerbado, cujo foco é a busca desenfreada dos próprios interesses, geralmente impulsionada pelo consumo de bens e serviços e facilitada pelo viés tecnológico, garantindo a satisfação individual o mais rápido possível.

Uma Fé que Ainda Luta contra as Forças do Mundo 

As constatações empíricas sobre o cotidiano têm evidenciado o consumo excessivo de mercadorias ou “hiperconsumo” na sociedade mundial regida pelo sistema capitalista, cuja mentalidade dominante não só prioriza como enaltece o lucro acima de tudo, em ritmos cada vez mais acelerados. As consequências são tão danosas quanto o desagrado sentido para a geração e manutenção da riqueza  (preferencialmente de poucos) como, por exemplo, o desgaste e, por vezes, a extinção de matérias primas esgotáveis, sistemas naturais e do próprio planeta Terra. Tem-se a forte impressão de que houve significativa perda do sentido de pertencimento à casa comum, conforme oportunamente discutido pelo Papa Francisco, na encíclica Laudato Sì.

O século passado, por exemplo, registrou altos índices de fome, peste, guerra e morte. E o início deste não tem sido tão diferente, haja vista a pandemia do coronavírus, a guerra entre Rússia e Ucrânia, as manifestações de retrocesso aos regimes totalitaristas e a insubordinação civil às instâncias governamentais democraticamente constituídas. Segundo Colombo (2014), o “novo companheiro” nesse cenário já bastante conturbado é o consumo ou, ainda em sua expressão, “a loucura do consumo”. Não se trata, portanto, do consumo de bens e serviços indispensáveis à manutenção do ser humano, mas do consumo excessivo, seja qual for a terminologia adotada, consumismo, hiperconsumismo ou a combinação de ambos, ao que o autor considera “uma espécie de loucura contemporânea”, gerando como visto anteriormente o desgaste dos elementos da natureza e das relações humanas, levando às catástrofes observadas hodiernamente.

O consumo praticado de forma compulsiva prejudica inclusive a perspectiva de vida ou sobrevida das gerações futuras pois, “diante do buraco civilizatório, as pessoas  só pensam em comprar e comprar, cada vez mais, com ou sem motivos para tanto” (Colombo, 2014, p. 17). Segundo o autor, “consumidores alienados e condicionados pela Mídia (verdadeiras marionetes, programadas e reprogramadas pela Moda e pelo Mercado)”, não precisam realmente de motivos para agir “como se deve”, capitalistamente falando... (Colombo, 2014, p. 17). De fato, quando o capital está em jogo dificilmente se vê preocupação pela destruição generalizada, inclusive do próprio ser humano.

As leis capitalistas “arrebentam com tudo!”. Elas “passam por cima de quem quer que seja, sem maiores solavancos ou barreiras. Até os Estados tombam, como dominós, sob a violência – real e simbólica – do Dinheiro; uma força virtual, apátrida, incontrolável”. E diariamente, “milhões de indivíduos, insatisfeitos, ansiosos e deprimidos, acordam, pela manhã, mais e mais egoístas; patológica e até criminosamente egoístas. O outro não importa, o Bem Comum não importa, a Natureza não importa, a Vida não importa...” (Colombo, 2014, p. 18). Esse cenário não é o fruto imediato da era contemporânea, mas formado a partir do século XX, quando a produção capitalista visava a descoberta de consumidores e o respectivo incentivo às suas necessidades, porém, artificiais.

Uma Igreja Ainda Vinculada ao Espírito 

Há muitas formas de rompimento da lógica determinista firmada apenas na sobrevivência da espécie humana no planeta, e no vultoso aprimoramento observado nesse cipoal, como o olhar de alguém que vê o outro semelhante a si e, a partir disso, busca ajudá-lo em sua necessidade. Hoje somos desafiados a sair do mundo das realidades virtuais, desligar os computadores assiduamente conectados às redes sociais, assim como rever os ativismos, hábitos rotineiros ou olhares distorcidos da realidade humana, para ir ao encontro de pessoas de carne e osso, em sua existência verídica no mundo concreto. Antes, porém, é inevitável passar pelo contato com a própria individualidade, para o conhecimento da condição interior. Para essa jornada, nós precisamos de Jesus Cristo, que se fez ser humano como nós, pela infinita bondade do coração do Pai, apoiado no “sim” de Maria.

A Encarnação do Filho é a trilha espiritual pela qual chegaremos a “olhar” a ação de Deus em nossa história pessoal. Santo Inácio de Loyola já ensinava tudo isto: a Contemplação da Encarnação conduz a pessoa à contemplação da realidade na qual está inserida, levando-a à aproximação e conhecimento do mundo, que está em constante mudança. Portanto, também nós precisamos de discernimento contínuo diante das transformações pelas quais passamos no decorrer de nossa trajetória do ponto de vista cultural, espiritual, físico, psicológico etc.

Trata-se, de fato, do discernimento espiritual mediado pela luz evangélica, sob a orientação dos construtivos ensinamentos inacianos, para o reconhecimento da presença do Espírito Santo na realidade humana, em seus vários aspectos. “A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida e faz encontrar os meios oportunos, que nem sempre se identificam com aquilo que parece grande ou forte.” (FRANCISCO, 2013, p. 5). O seguimento cristão possibilita essa experiência pela qual a alegria e a tristeza, a felicidade e a saudade, a ternura e o desafeto, a compaixão e o sofrimento, o egoísmo e a solidariedade, são integralmente compreendidos por Jesus Cristo, antes que a desesperança produza qualquer ação maléfica ao discernimento do coração humano.

O papa Francisco explicava, em suas catequeses durante as audiências gerais, que o discernimento comporta o esforço – proveniente do convite realizado por Deus – da avaliação pessoal de cada realidade que lhe diga respeito, até a escolha de qual situação é a melhor para si. Mas, afirmava que isso requer sobretudo uma relação filial com Deus, que é Pai, sempre disposto a aconselhar-nos, encorajar-nos e acolher-nos, sem qualquer imposição de sua vontade, pois respeita a nossa liberdade, cuja escolha precisa ser feita por amor à orientação divina e em hipótese alguma por medo dela. Conforme mencionado anteriormente, Deus está sempre aberto a cada pessoa humana e ao encontro, até mesmo no cotidiano de nossa caminhada, cujos sinais do alto são identificados por meio do discernimento, mesmo nos contratempos e situações imprevistas, a exemplo de Santo Inácio de Loyola ferido na perna, durante uma batalha.

É importante o conhecimento do que se passa consigo próprio e o que diz respeito ao coletivo, no caso em questão, à Igreja, comunidade de fiéis leigos e de pessoas consagradas. Em quaisquer dos casos, a base do discernimento espiritual é a oração, porta de acesso ao diálogo regado na simplicidade e familiaridade com Deus. Obviamente que há outros elementos constitutivos em se tratando de discernimento espiritual, cujo aprofundamento certamente enriquecerá a experiência no assunto. Porém, a nossa intenção é a de vinculá-lo à discussão sobre o cristianismo, haja vista a relevância de Lc 11,1-4, quando um discípulo de Jesus lhe faz o seguinte pedido: “Senhor, ensina-nos a orar...” A resposta foi o “pai-nosso”, a oração que aproxima cristãos de todas as igrejas e comunidades, de todas as tradições, idades, línguas e nações. Uma vez direcionada para o alto, porém sincronizada às realidades terrestres, mostra a sua força inabalável desde então.

Nesse sentido, destaca-se ainda mais o ministério do papa Francisco, especialmente pela forma como ele compreende a Igreja, apresentando por meio dela, de forma despojada, humana e simples, o rosto acessível de Jesus Cristo. Desde o dia da sua eleição e antes do momento da bênção Urbi et Orbi, já com a estola devidamente posta, o bispo de Roma faz um pedido às milhares de pessoas presentes na Praça São Pedro: que rezassem por ele, em silêncio. Depois, este pedido se fez bastante comum em suas atividades públicas. Ressalta-se que em outra catequese, papa Francisco afirmava que “a Igreja é mestra e uma grande escola de oração; nela tudo nasce na oração e tudo cresce graças à oração.” E tão real quanto essa afirmação é o fato assinalado por ele de que “a vida dos que rezam não é mais fácil do que a dos que não rezam”, por vezes, são “vítimas de zombaria e oposição”. Entretanto, finaliza o papa Francisco: “Aos olhos do mundo, podem contar pouco, mas são tais pessoas que o sustentam, não com as armas do dinheiro e do poder, mas com as armas da oração.” Lembrando que Jesus ensina que “é preciso rezar sempre sem nunca se cansar”, é possível concluir que “a lâmpada da fé permanecerá acesa na terra, enquanto houver o azeite da oração”. O que transforma a humanidade é a fé, o que alimenta a fé é a oração, e a oração gera o discernimento do espírito, ainda presente na igreja mística que somos nós. Se para o bem ou para o mal já depende do comprometimento de cada pessoa com as coisas do alto.

Conclusão

Sabemos que o “Pai Nosso”, conforme disposto em Mt 6, 9-13, foi originalmente anunciado, provavelmente, em aramaico galileu. Ao lermos essa oração na tradição peshitta, ou seja, siríaca e, portanto, organicamente associada ao mundo aramaico, nos damos conta de que, em vez de proclamar “na terra, como no céu”, proclama-se o contrário, “como no céu, também na terra” [aykano d-bashmayo oph bar ‘o]. Embora essa inversão não comprometa, em absoluto, o sentido da oração, ela tem a vantagem de promover, igualmente em sua estrutura, a ênfase dada às coisas do alto, cujo modelo superior e santo devemos seguir.  A biblista britânica Margaret Barker afirma que essa anterioridade estrutural enfatizada na oração em aramaico é fundamental para uma compreensão realmente afinada da antiga teologia mística hebraica por trás do “Pai Nosso”. Adotando-o como nosso horizonte temático, buscamos discorrer sobre a validação permanente das “coisas do alto” na mentalidade cristã. “Como no céu” tem de vir antes, tanto em nossa teologia como em nossa ação no mundo, uma vez que o nosso alimento fundamental, enquanto cristãos, vem do espírito, o verdadeiro pão da vida. Os principais desafios da Igreja continuam basicamente os mesmos de sua fundação, o que não deveria nos surpreender, absolutamente, caso apreendêssemos, com o cuidado necessário, os discursos escatológicos de Jesus, tendo-se em vista sua base na apocalíptica. O compromisso com a “Palavra” é o compromisso com o Espírito que a fundamenta, afiançado nas realidades do alto, para que, como é no céu, também seja – mesmo que aos poucos, ao longo dos laboriosos, difíceis e angustiantes caminhos da história –, na terra.  

Referências

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