Editorial do Dossíê


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A religião é lembrada geralmente quando se está diante de uma situação preocupante ou sem resolução aparente, seja pela complexidade real do problema, seja pela condição específica de quem está envolvido nessa circunstância. Em tempos difíceis como por exemplo os da pandemia do coronavírus, cujos efeitos fizeram milhões de vítimas no mundo, incluindo o Brasil, questões ligadas à religião são apresentadas na tentativa de obter uma explicação para tanto sofrimento e, sobretudo, para suaviza-lo, haja vista os limites circunstanciais das medidas de combate à doença. Paradoxalmente, também se observa egoísmo, indiferença e a consequente falta de solidariedade entre as pessoas, os povos e as nações, agravando a crise humanitária, já afetada pelas catástrofes climáticas, economias instáveis e a guerra entre Rússia e Ucrânia. Embora o cenário esteja corretamente observado, porque indubitável aos nossos olhos, o presente Dossiê busca ir além desse lugar-comum, propiciando uma reflexão coerente e ao mesmo tempo comprometida, tanto pela caótica situação hodierna como pelo teor do próprio cristianismo e a consequente visibilidade profética do discipulado cristão.

O desafio não está circunscrito apenas ao âmbito da resposta premente, mas é extensivo à experiência cristã, portanto, sem oposição à fé e, ao contrário disso, tornando-a clara a partir da abertura dada pela história em curso. O artigo  de Célia M. Ribeiro e de Maurício G. Righi, “Como no Céu, Assim na Terra – Da Permanência das Coisas do Alto”, é uma mostra de que o cristianismo é profundamente ligado às realidades humanas e as transforma segundo o reconhecimento do vínculo indissociável às “realidades celestes” que anuncia. A unidade coletiva é construída em direção a Jesus Cristo, cujo domínio se já antecipado pela qualidade de Filho – Imagem do Pai –, agora domina permanentemente como o responsável designado e unido pelo Senhor, nessa nova criação: (...) “pregando-o na cruz, na qual despojou os Principados e as Autoridades, expondo-os em espetáculo em face do mundo, levando-os em cortejo triunfal” (Cl 2,15). Libertados desses “elementos do mundo” (Cl 2.8.20) pela união a Cristo, os cristãos são chamados a sair da tirania deles, pois seguirão orientados pela Cabeça, o único Mestre e Senhor. A vasta quantidade de problemas da modernidade é uma demonstração do distanciamento das coisas do alto, assinalado pela falta de memória àqueles personagens que ao seu modo, tempo e lugar ainda são exemplos da fidelidade, por vezes martirizada, ao testemunho cristão; porém, oportunamente lembrados em nosso texto. Por fim, não poderíamos ser indiferentes ao fenômeno do consumismo exacerbado, haja vista a intensidade de sua prática e as consequentes alienações humanas por ele provocadas. Em que pese o escândalo provocado e até mesmo a violência contra a mística presente no cristianismo, é notável a sua resistência, constituindo-se como força impulsionadora para o “alto”, senso de nossa existência, direcionada ao céu enquanto peregrina na terra. 

Tendo-se em vista este nosso tema, apresentamos nesta edição:

O artigo intitulado “Crise Humanitária e Consciência Humanitária em Construção”, de João Décio Passos, no qual se discute a “descoberta do humano”, desde a perspectiva de que é possível uma convivência civilizada baseada no valor e norma que garantam essa aprimorada condição em sociedade, ainda e em permanente processo de construção.

O artigo sob o título “A urgência da Ortopráxis: condição para resgatar o Humano”, de Tiago Cosmo da Silva Dias e Ney de Souza, que fazem a discussão em torno da urgência do resgate da fé cristã como modo de vida de quem se coloca no seguimento proposto por Jesus Cristo, do que para a preservação do conjunto de verdades da fé que se propaga de forma normativa e ritualística, portanto, o embate entre ortopráxis e ortodoxia. Amparados na perspectiva de José M. Castillo, os autores discorrem sobre as incongruências interpretativas da relação entre Deus e o humano, e a consequente ideia de que Deus não está presente nessa mesma relação. À medida que elucidam as bases desse pensamento, também apresentam os caminhos norteadores para o resgate do humano e a vivência do cristianismo na atualidade.

Agradecemos de maneira particular os autores que conosco colaboraram para a apresentação do referido Dossiê, nesta edição da Revista de Cultura Teológica. Se o entendimento de que “o cristianismo é para poucos” tem ou não o fundo de verdade não é a nossa questão, mas sim debater que o desafio temático explicitado até então é bastante exigente, e disso já temos uma amostra. Desejamos a todos boa leitura, nessas reflexões que leem a experiência humana repleta de sentido proporcionado pelo “cristianismo, em tempos de crise humanitária”.

 

Celia Maria Ribeiro

Maurício Gonçalves Righi