A Hermenêutica Bíblica de Paul Ricoeur Aplicada às Bíblias laicas

Paul Ricoeur's Biblical Hermeneutics Applied to Lay Bibles

Francisco Benedito Leite
Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Contato: ethnosfran@hotmail.com

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“O caráter inesgotável da mensagem bíblica encontra sua verificação nas ramificações da interpretação” (RICOEUR, 2006, p.99).

Resumo: No presente artigo realizamos a abordagem de uma reflexão teológica realizada por Paul Ricoeur sobre a relação da comunidade cristã com o texto sagrado. Por meio de um processo de afunilamento, passamos da abordagem geral de seu pensamento teológico para uma abordagem mais específica, a qual é feita por meio da leitura de seu breve ensaio: “O texto ‘sagrado’ e a comunidade”. Por fim, aplicamos a perspectiva da hermenêutica bíblica que Ricoeur desenvolve nesse texto às Bíblias laicas, cuja importância pode ser compreendida à luz de seu pensamento, apesar de sua existência não ter sido presumida pelo pensador.

Palavras-chave: Ricoeur; hermenêutica; Teologia; Bíblia; Bíblia laica 

Abstract: In this article, we approach a theological reflection carried out by Paul Ricoeur on the relationship of the Christian community with the sacred text. Through a funneling process, we move from the general approach of his theological thought to a more specific approach, which is done through the reading of his brief essay: “The ‘sacred’ text and the community”. Finally, we apply the perspective of biblical hermeneutics that Ricoeur develops in this text to lay Bibles, whose importance can be understood in the light of his thought, although their existence was not presumed by the thinker.

Keywords: Ricoeur; hermeneutic; Theology; Bible; Lay Bible


Introdução

Sabidamente Paul Ricoeur foi um dos intelectuais franceses mais influentes dos últimos tempos, pois transitou em várias áreas do saber e teve a conciliação e a superação das fronteiras existentes entre as disciplinas das ciências humanas como suas características destacadas. Isso fez com que diversas obras do intelectual francês fossem tomadas como referência em diferentes cursos superiores e de pós-graduação no Brasil e no mundo.

Entre suas extensas e volumosas obras contêm-se uma importante reflexão sobre temas relacionados com a Bíblia. Apesar de serem ensaios que estão inseridos em coletâneas não muito extensas de textos breves (se comparadas ao restante de suas obras), os textos de Ricoeur produzidos sobre esse tema são de grandíssima relevância para nós hoje em dia para se pensar o cristianismo na contemporaneidade.

Para Ricoeur a Bíblia tem tanto o papel de fundadora da cultura ocidental, ao lado de obras do mundo Greco-Romano; quanto o valor de revelação, no sentido que esse termo tem para a Teologia. Apesar de sua abordagem da Bíblia ser acadêmica e inteirada dos procedimentos críticos mais recentes que eram realizados na academia durante a época de sua vida, nota-se que o pensador também teve preocupações religiosas muito intrincadas em sua pessoa quando abordou o livro sagrado dos judeus e dos cristãos. Isso não ocorreu por acaso, uma vez que recebeu educação protestante e foi um cristão engajado ao longo de sua vida. Além disso, ele próprio assumiu que a experiência religiosa influenciou sua trajetória no mundo das humanidades.

De acordo com isso, seus conhecidos textos sobre hermenêutica bíblica estiveram empenhados no que ele chamou de superação do esquecimento do sagrado na modernidade. Com esse propósito foram escritos ensaios sobre interpretação da Bíblia e discussões com teólogos conhecidos de seu mundo. No entanto, como recorrentemente acontece de a obra de um pensador destacado superar sua própria época e seus próprios propósitos, nota-se que ainda hoje os textos de Ricoeur que foram escritos há aproximadamente quarenta anos têm muito a contribuir para a compreensão da importância da Bíblia na sociedade secularizada em que vivemos.    

No conteúdo que se segue, em primeiro lugar, apresentaremos brevemente a relação de Ricoeur com a Bíblia Sagrada, a inserção de sua hermenêutica bíblica no projeto hermenêutico mais amplo que compõe a sua obra; em seguida, discutiremos o conteúdo de um ensaio particular de Ricoeur: “O texto sagrado e a comunidade” (2006) e, por fim, aplicaremos a proposta hermenêutica que Ricoeur desenvolveu nesse artigo nas chamadas bíblias laicas, na compreensão de que, apesar da existência concreta dessas edições seculares da Bíblia – por assim dizer – não serem presumidas pelo intelectual francês, seu conteúdo, como ideia abstrata, é contemplado pela extensão de seu pensamento.    

1. Paul Ricoeur, sua relação com a Teologia e com a Bíblia 

Não é fácil apresentar em termos introdutórios o pensamento tão complexo de um intelectual amplamente estudado e reconhecido como é o caso de Paul Ricoeur (1913, Valence – 2005, Châtenay-Malabry), nem os especialistas se sentem confortáveis o bastante para tal empreendimento, pois, de acordo com Grondin (2015), a ausência de uma obra mestra do referido autor permite que várias sejam as possibilidades de contato inicial com o pensamento desse célebre estudioso. 

Sobre isso, lemos o seguinte: 

Paul Ricoeur foi um dos mais importantes filósofos franceses do século XX, certamente um dos mais lidos no estrangeiro. Seu pensamento teve e continua a exercer uma profunda influência sobre todas as ciências humanas, das quais ele foi também um dos mais brilhantes teóricos. Sua obra rica e complexa se desenvolve em uma sucessão de trabalhos frequentemente imponentes, nos quais nem sempre é fácil encontrar um único fio condutor (GRONDIN, 2015, p.9).

Sobretudo devido à multiplicidade de disciplinas com as quais suas obras dialogam, Ricoeur merece ser reconhecido como um pensador das ciências humanas, pois certamente estudantes que se formaram nas últimas décadas nas áreas de Filosofia, História, Letras, Ciências Sociais, Teologia, Ciências da Religião e suas especialidades passam em algum momento por uma leitura obrigatória que tem como autor o intelectual francês. 

Grondin afirma:

Não se pode reduzi-lo a um único tema sem violentá-lo, mas pode-se dizer, em uma primeira aproximação, acerca de todo o seu pensamento que ele foi uma acolhedora filosofia das possibilidades do humano enraizado na tradição reflexiva francesa, o personalismo e o existencialismo, seu primeiro (e talvez seu constante) canteiro de obras foi o de uma filosofia da vontade que desembocou, em seus últimos trabalhos, em um pensamento do homem capaz, ao termo de um itinerário que nunca deixou de levar em conta a contribuição de todos os campos que tinham algo a dizer acerca das possibilidades do homem (2015, p.10). 

De modo modesto, nosso propósito aqui é apresentar sucintamente o Paul Ricoeur que dialoga com a Teologia e que lê e ensina a ler a Bíblia, o que é facilmente reconhecido pelos estudantes brasileiros de Teologia devido aos ensaios sobre temas relacionados com a interpretação bíblica que estão em Hermenêutica Bíblica (2006) e Ensaios sobre a Interpretação Bíblica (2008). No entanto, além desses que são textos que tratam diretamente de assuntos relacionados com a Bíblia e, portanto, com a Teologia, Ricoeur foi um intelectual crente e mesmo que de forma indireta e com abordagens críticas, como se espera de um acadêmico de sua envergadura, os assuntos relacionados com Religião e Teologia estiveram em sua pauta ao longo de boa parte de sua extensa obra.

Se por um lado é evidente que a Teologia esteve entre os assuntos tratados de modo direto e indireto por Ricoeur ao longo de sua trajetória intelectual, por outro lado, também é de se notar que a abordagem da Bíblia – na verdade, deveríamos dizer, sua hermenêutica bíblica – era parte de um projeto intelectual arquitetônico sobre a interpretação da existência – em outras palavras, interpretação do ‘ser’ – e do próprio ser humano inserido na realidade que o reflete e refrata.

O pensamento e a obra de Ricoeur foram marcados por um procedimento que ele realizava que, de acordo com Grondin, ele próprio chamou de “mania das conciliações” (2015, p12), o que significa que o filósofo francês preferia a síntese à antítese, mas, ao mesmo tempo, não aceitava a ideia de que existisse uma síntese definitiva, isso porque ele presumia a existência de um agudo e permanente inacabamento na existência, a qual interpretou ao longo de sua vida por meio dos textos que escreveu. A Bíblia nunca esteve ausente do processo de conciliar a cultura levado a cabo por Ricoeur. Inclusive, a Bíblia teve papel importante em sua proposta de “superar o esquecimento do sagrado da modernidade pela hermenêutica” (GONDRIN, 2015, itálico do autor).

Essa sua interpretação da existência que é permanentemente marcada pelo inacabamento, a qual foi perseguida por ele ao longo de toda sua vida, é chamada de hermenêutica. Nesse caso, pode-se dizer que “seu pensamento é hermenêutico” (GRONDIN, 2015, p.11). O empenho pela compreensão da realidade feita por Ricoeur busca integrar tudo o que foi dito pelos seres humanos por meio de mitos, religiões, literatura, história, ciências humanas, ciências exatas, filosofia clássica e analítica (GONDRIN, 2015). De acordo com essa perspectiva, a hermenêutica proporciona ao ser humano compreender-se a si mesmo e responder à pergunta fundamentalmente antropológica que está no início de toda a filosofia: ‘Que é o ser humano?’.

Entre os elementos que compõem a confluência da hermenêutica de Ricoeur, como já dissemos, está a Bíblia Sagrada, que para ele, ao lado das obras clássicas da Antiguidade Greco-Romana, são fundamentos da cultura e do pensamento ocidental (RICOEUR, 2006, p.247-265), mas que, além disso, tem importância especial porque fizeram parte da formação intelectual do pensador francês, que recebeu educação protestante e na juventude tornou-se um “protestante muito engajado” (GRONDIN, 2015, p.17), marcado particularmente pela influência que recebeu do teólogo reformado Karl Barth e pelos debates que sua obra travou com o textos da autoria do teólogo luterano Rudolf Bultmann (GRONDIN, 2015). Ricoeur chega a afirmar: “Não há dúvida de que a experiência religiosa expressa em histórias, símbolos e figuras é uma fonte de grande importância de meu gosto pela filosofia” (2006, p.93).

Vale a pena destacar alguns aspectos desses dois teólogos que influenciaram Ricoeur. Em primeiro lugar, temos Karl Barth (Basileia, 1886 – Basielia, 1968), que foi aclamado como maior teólogo do século XX principalmente graças à segunda edição de sua obra Carta aos Romanos (2016), publicada originalmente em 1922. Ao contrário do que Grondin afirmou (2015, p.17) – seja por lapso ou por falta de expertise no assunto – Barth não foi um exegeta, certamente era um intérprete da Bíblia, por sinal um dos maiores intérpretes modernos do texto canônico conhecido como Carta ou Epístola aos Romanos, mas seu propósito era “a leitura não erudita, e sim atual, do texto paulino” (GIBELLINI, 2010, p.33). Barth era o que se chama na Teologia acadêmica de teólogo sistemático ou teólogo dogmático. Destaca-se em seu texto sobre a Carta aos Romanos (2016) a ideia da revelação do ‘Deus absconditus’, do ‘Totalmente Outro’, que se revela ao ser humano caído por meio da proclamação da Palavra de Deus acolhida pela fé que os crentes têm nela (que é o próprio Jesus Cristo manifesto), essa Palavra irrompe os incontáveis éons que separam o altíssimo da criação decadente na qual a humanidade está inserida.

Rudolf Karl Bultmann (Wiefelstede, 1884 – Marburg, 1976) – este, sim – foi exegeta no sentido específico que essa palavra tem para a Teologia, de acordo com o qual a palavra exegeta é usada para se referir àquele que realiza análise filológica do texto bíblico. Apesar disso, ele também foi teólogo sistemático, preocupado com a manutenção da fé cristã em seu mundo contemporâneo. As obras de Bultmann pelas quais Ricoeur mais se interessou são as que tratam do desafio da hermenêutica na sua própria época. Na compreensão teológica específica daquele determinado contexto histórico, a hermenêutica estava ligada aos procedimentos da exegese bíblica, a hermenêutica era o passo a ser dado depois da exegese. Além de outros feitos proeminentes realizados anteriormente, Bultmann destacou-se também porque foi responsável pelo debate sobre a Demitologização (1999), tema que levantou sérias polêmicas na época, pois ao mesmo tempo apontava para a indiscutível necessidade de se atualizar a linguagem bíblica para o ser humano da contemporaneidade, mas, por outro lado, provocava a preocupação sobre o que restaria em um cristianismo que tivesse expurgado de sua linguagem o mito. 

A compreensão ao menos elementar do pensamento desses dois teólogos nos respectivos pontos de suas teologias que foram descritos acima são fundamentais para se compreender como Ricoeur procede com sua hermenêutica bíblica. Enquanto, por um lado, ele acolhe o conceito de revelação de Barth e a ideia de que pela Bíblia se manifesta Jesus Cristo, a Palavra, por meio da proclamação do evangelho que deve ser acolhida pela fé que os crentes têm no filho de Deus; por outro lado, sua recepção dos apontamentos teológicos feitos por Bultmann é bem mais crítica, tendo em vista que Ricoeur concorda com a importância que tem o assunto discutido pelo teólogo alemão (atualização da mensagem bíblica para o ser humano moderno), mas, ao mesmo tempo, rejeita a proposta de demitologização que ele propõe, uma vez que na perspectiva de Ricoeur o ser humano que vive na modernidade deve recuperar a fé como uma segunda experiência de ingenuidade. Essa suposta fé ingênua deve ser recuperada em uma época em que o sagrado tem sido cada vez mais olvidado e como consequência tem avançado no processo de desumanização (GONDRIN, 2015, p.60).

No que diz respeito ao assunto Teologia em particular, Ricoeur denunciou a ocorrência desse processo de desumanização que se desenvolvia na modernidade, que para ele significava a perda do ser humano e de sua ligação com o sagrado. De acordo com sua perspectiva, isso aconteceu porque a linguagem advinda da Antiguidade gradativamente se tornou inadequada para apresentar o sagrado e na contemporaneidade passou a ser necessário reautorizar a linguagem por meio de um processo de recriação. “A hermenêutica, a via de interpretação, aparece aqui, portanto, como a condição do crer na época moderna” (GRONDIN, 2015, p.66).

O conhecido texto de Bultmann: Creer e Compreender (2001) foi escrito com o mesmo propósito que chamou a atenção de Ricoeur, a saber, propor uma hermenêutica ao texto bíblico para o leitor do século XX que, mesmo que quisesse crer no conteúdo do texto bíblico, acabava sendo atrapalhado pelas descobertas e teorias científicas contemporâneas. Nesse sentido, o problema seria que crer nas escrituras significaria rejeitar o julgamento racional que se faz da realidade no mundo atual, no qual existe ciência. A preocupação levantada por Bultmann em seus textos chamou a atenção de Ricoeur que acolheu com seriedade e postura crítica a proposta sobre o desafio da leitura da Bíblia na contemporaneidade feita pelo teólogo alemão, sua resposta sobre o assunto está em Ensaios sobre Interpretação Bíblica (2018) e em Hermenêutica Bíblica (2006).

Não deixemos de reiterar que de acordo com Ricoeur, não se pode abrir mão da fé, não se pode esquecer-se do sagrado, pois esquecê-lo pode significar a perda do próprio ser humano. A modernidade se caracteriza pelo domínio da técnica que gradativamente leva ao empobrecimento da linguagem, a qual com o passar do tempo gradativamente deixa de ser mitológica, metafórica e simbólica e se torna unívoca, como é de esperar que ocorra em um mundo caracterizado pela frieza de sentimentos e dominado pela tecnologia. O projeto de demitologização de Bultmann significaria para Ricoeur uma autoentrega para o desenvolvimento da desumanização que se dá pela linguagem unilateral que abre mão dos mitos. Enquanto isso, a fé na Palavra de Deus que se manifesta pelas escrituras significaria a adesão a uma ingenuidade – um reacesso à ingenuidade perdida – presumivelmente necessária para plenitude da existência humana.    

Em nossa própria época poderíamos dizer que o que mais interfere na compreensão bíblica, além da permanente relevância dos elementos que Bultmann e Ricoeur já tinham apontado em suas respectivas abordagens sobre o assunto, é avanço do processo de secularização, que há quarenta anos ainda engatinhava. Esse tema é discutido há bastante tempo entre teólogos protestantes, sendo que a obra mais destacada sobre o assunto provavelmente é Ética (2009). Esse texto foi escrito pelo teólogo Dietrich Bonhoeffer (Wrocław, 1906 – Flossenbürg, 1945), o qual ficou conhecido como mártir cristão da Segunda Grande Guerra. Nessa obra, o autor propõe a necessidade do surgimento de um cristianismo secularizado que dialogue com a sociedade contemporânea sem negar sua própria essência nem negar as características renovadas de seu mundo.

Na esteira da discussão sobre o cristianismo secularizado do século XXI, que para nós hoje já é uma realidade consumada, surgiu a necessidade de discussões acadêmicas sobre o significado da Bíblia Sagrada nesse contexto. Ricoeur que, como acabamos de descrever, foi ao mesmo tempo um protestante engajado e um estudioso inteirado nas questões intelectuais mais elevadas de seu contexto permite-nos, por meio de seus ensaios sobre hermenêutica bíblica, discutir sobre o tema proposto.    

2. O texto ‘sagrado’ e a comunidade, de acordo com Paul Ricoeur

Agora vamos afunilar nossa visão sobre a obra de Ricoeur e analisar um de seus artigos em particular, o breve texto publicado pela primeira vez em 1979 como epílogo da obra coletânea intitulada The Critical study of sacred texts (O’FLAHERTY, 1979). Em língua portuguesa, esse artigo foi publicado em Hermenêutica Bíblica sob o título: “O texto ‘sagrado’ e a comunidade” (2006, p.279-284). Surpreende-nos a relevância e a profundidade dos assuntos evocados nessas seis páginas. O termo ‘sagrado’ do título, colocado entre aspas simples remete à discussão que Ricoer realiza a respeito do sentido em que a Bíblia pode ser considerada sagrada. Será que sob algum aspecto a Bíblia é sagrada? É a essa pergunta que o estudioso pretende responder.

Ricoeur começa por se questionar a natureza sagrada da publicação da edição crítica da Bíblia, a qual, conforme argumenta, não é um texto sagrado, porque se trata de um texto que nunca foi reconhecido como obra inspirada por Deus por nenhuma comunidade cristã, ao invés disso, é um texto de estudo acadêmico. A conclusão a que Ricoeur chega é a de que talvez não exista edição crítica de texto sagrado, pois na medida em que recebe uma edição crítica, o texto deixa de ser sagrado, pois, como explicará melhor mais abaixo, o sagrado é imutável, intocável e a edição crítica se caracteriza justamente por apontar as alterações que o texto sofreu ao longo das eras.  

A reflexão inicial feita sobre a legitimidade de se aplicar o atributo “sagrado” a uma edição crítica da Bíblia é o elemento propulsor para se discutir se outras edições das escrituras deveriam receber o mesmo adjetivo. Para chegar a alguma proposição sobre esse assunto, o pensador recorre à história da formação do cânon e à história da interpretação bíblica, como apontamos na sequência.

Ricoeur reconhece que as comunidades cristãs da Antiguidade tinham, cada uma delas, sua própria versão do texto sagrado composto por um número diferente de livros bíblicos. O conteúdo individual dessas primeiras versões da Bíblia foi coletado e unido em um momento pela Igreja instituída que pretendeu produzir uma única versão do texto sagrado que deveria ser amplamente reconhecida como obra inspirada por Deus por todos os cristãos. De acordo com esse processo que aconteceu, mais uma vez, percebe-se que não existe “o” texto sagrado no cristianismo, mas sim, uma história do cânon que proporcionou união, compilação e exclusão de textos que eram cultivados pelas comunidades cristãs individuais para criar-se a Bíblia de todos os cristãos.

No entanto, o pensador pondera que a diferença entre os procedimentos realizados pela comunidade acadêmica que reúne textos para formar a edição crítica e pela Igreja que reúne textos das comunidades cristãs para formar a Escritura é que o processo realizado pelos acadêmicos resultou no conteúdo que não é reconhecido como sagrado por qualquer grupo cristão, enquanto que processo realizado pelos cristãos na Antiguidade passou a ser amplamente reconhecido pelos cristãos, independentemente das ocorrências históricas que tenham conduzido a essa realização.  

Ao retomar a ideia de que não há ‘o’ texto sagrado no cristianismo tendo em vista que havia vários textos sagrados nas comunidades cristãs antigas que geraram um único texto após um complexo processo histórico que levou ao surgimento do cânon cristão, Ricoeur aponta que isso se deve ao fato de que na religião cristã o que importa não é o texto per se, mas sim “Aquele de quem se fala” (RICOEUR, 2006, p.279) (nesse momento lembre-se da ideia de Barth sobre revelação apresentada acima). Diferentemente do islamismo, por exemplo, no cristianismo pode-se traduzir a Bíblia, o idioma em que se lê a Bíblia tanto faz para os fieis. A Edição dos Setenta (SeptuagintaLXX) e a atividade de Jerônimo, ao produzir a Vulgata Latina, são exemplares quanto à antiguidade da atividade de tradução da Bíblia e sua importância crítica para a compreensão cristã das escrituras.

Não apenas a possibilidade e a permissão de se traduzir a Bíblia apontam para o aspecto crítico inerentemente aceitável pela fé cristã no Mundo Antigo, mas a própria existência de quatro narrativas do evangelho, as quais foram colocadas lado-a-lado no mesmo livro, indicam a tolerância e a visão crítica existentes no cristianismo da Antiguidade. De acordo com essas ideias, o texto bíblico só pode ser considerado como sagrado caso se modifique o significado de sagrado em vista daquele atribuído a outras obras religiosas da Antiguidade, pois a Bíblia estava aberta a operações críticas que outras religiões não tolerariam em seus livros sagrados e, na verdade, a maioria das instituições religiosas não permite procedimentos críticos em suas fontes de revelação até hoje. Assim, apesar de fundamental, é difícil dizer que a Bíblia seja sagrada nos termos tradicionais quando se analisa a partir da História das Religiões. Para afirmar isso, Ricoeur analisa o conceito de sagrado proposto pelo historiador das religiões Mircea Eliade e constata que não há aplicabilidade para o termo à Bíblia no cristianismo.

Daí Ricoeur introduz a diferença entre “autoridade” e “textos sagrados” (2006, p.280). Há textos que têm autoridade por serem reconhecidos como fundantes para determinadas comunidades, mas como não foram canonizados, não foram reconhecidos como texto sagrado, como seria o caso do evangelho de Tomé. Esse e outros textos que não foram reconhecidos como sagrados passaram por procedimentos históricos diferentes do que aquele pelo qual passaram os canônicos, pois. “Há uma reciprocidade entre a leitura e o autoreconhecimento existente da identidade da comunidade” (RICOEUR, 2006, p.280), os livros que não foram canonizados prescindem dessa reciprocidade.

Apesar de a Bíblia cristã ser uma obra essencialmente aberta à crítica, de acordo com os apontamentos feitos por Ricoeur, com o passar do tempo, um processo levou a mudanças significativas. O estudioso francês lista quatro procedimentos que alteraram a natureza das escrituras cristãs. (1) O texto foi engessado e o processo de interpretação foi estacionado por causa do surgimento das heresias; (2) Durante o Medievo foi enxertado no texto uma autoridade única e unilateral que, na verdade, era artificial à sua natureza; (3) O protestantismo contrapôs o texto à sua tradição ao ensinar que a Bíblia interpreta a si mesma; (4) Os exegetas desconstruíram esses procedimentos impostos às escrituras para voltar à fluidez original da leitura bíblica, mas é muito difícil conduzir a comunidade cristã nesse caminho de volta.

Quanto ao item 1, sabe-se pela história da formação do cânon cristão, que as comunidades cristãs que estavam espalhadas pelo Império Romano tinham diferentes versões de bíblias, mas tendo em vista a possibilidade de variações, a quantidade de livros que eram amplamente aceitos era curiosamente grande, dadas as proporções. Exceto o livro do Apocalipse de João, as cartas de Tiago e de Judas e Hebreus que estavam ausentes em boa parte das listas de livros das comunidades cristãs antigas e os exemplos de livros que só receberam atenção da comunidade local e assim foram incluídos em listas de livros sagrados apenas por uma comunidade, o restante dos livros eram reverenciados pela maior parte das comunidades. Os evangelhos, o livro de Atos e maioria das cartas estavam razoavelmente bem distribuídas nas listas pré-canônicas sem o exercício de imposição por qualquer força hierárquica da Igreja. No entanto, a partir do século V, quando o Papa Gelásio I lavrou o a carta pascoal enviada por Atanásio de Alexandria, de 367 d.C., na qual constava a lista dos livros canônicos que deveriam ser aceitos por todas as igrejas cristãs da oikumene, a regra dos livros sagrados foi definitivamente encerrada e imposta a todas as comunidades cristãs, tornando o cânon artificial para a maior parte dos grupos cristãs e ao mesmo tempo transformando-o em arma para ser usada contra os hereges.

O item 2 refere-se ao uso que foi feito da Bíblia ao longo da Idade Média que culminou com a filosofia Escolástica como sendo reconhecida como a única perspectiva de interpretação bíblica permitida pela ‘Grande Igreja’, que, por sua vez, era a única instituição que tinha autoridade para interpretar a Bíblia. Atribuir a interpretação a uma instituição gigantesca e coletiva como era a Igreja Medieval significou impedir legalmente que indivíduos acessassem e interpretassem o conteúdo bíblico. Nada da pluralidade de interpretações e intérpretes era permitido, embora saibamos que na Antiguidade esses tipos de acessos aos livros bíblicos haviam predominado. 

No que diz respeito ao item 3, Ricoeur aponta para a atitude protestante que decepou a Bíblia da história de sua tradição, que até então era fundamental para a realização de sua interpretação. É como se os protestantes tivessem sido os primeiros formalistas (no sentido que essa palavra tem para a Crítica Literária), que isolaram a interpretação do livro cristão de seu contexto traditivo e passaram a acreditar que se trata da palavra imutável de Deus. Acrescentando-se a isso a ideia de que a escritura interpreta a si mesma, os protestantes foram os primeiros que passaram a carregar a Bíblia debaixo do braço como um único volume, pois, antes deles, não faria sentido carregar a Bíblia sem ter a ampla tradição e seus diferentes componentes para interpretá-la.

Por fim, no item 4, Ricoeur alude aos estudiosos que realizaram análises e interpretações da Bíblia por meio da metodologia da exegese histórico-crítica e assim conseguiram dissociar o conteúdo da Bíblia de todos esses processos que alteraram a sua leitura e a engessara. No entanto, apesar de ser possível reconhecer que a leitura da Bíblia na comunidade cristã antiga era feita de um determinado modo fluído, será que é possível conduzir a leitura das Escrituras a ser feita novamente dessa maneira? É isso que Ricoeur questiona, e a resposta muito provavelmente é que não é possível retroagir no modo de se praticar a hermenêutica bíblia, por isso devemos reinventar o modo de ler a Bíblia em nosso mundo atual, é nisso que se constitui o principal desafio da hermenêutica bíblica contemporânea.

Assim Ricoeur descreveu três processos de engessamento das escrituras cristãs e uma tentativa de reverter esses processos: o engessamento feito pela tradição, o engessamento produzido contra as heresias, e o engessamento realizado contra a tradição, em contrapartida ao engessamento está a utilização da metodologia da exegese histórico-crítica, que apesar de realizar as operações necessárias para acessar o texto, não se sabe se será aceito pelas comunidades cristãs ou se continuará sendo apenas um procedimento acadêmico e artificial para os fieis. A utilização dessa metodologia “matará a comunidade ou a renovará?” (RICOEUR, 2006, p.281).

Quanto a essa trajetória que a Bíblia percorreu desde a Antiguidade, em que era uma obra criada livre e espontaneamente pelos cristãos que a interpretavam de acordo com a tradição de sua fé, até chegar à Modernidade, quando passou a ser considerado um livro inerrante e encerrado em si mesmo pelo procedimento de autointerpretação, é curioso que no livro A Metáfora Viva (2005) Ricoeur descreve que o discurso retórico segue o mesmo caminho de decadência que foi percorrido pela Bíblia. No caso do discurso retórico, isso ocorreu ao se afastar de seu nascedouro na Grécia Antiga, onde era importante para a manutenção da democracia como ferramenta de persuasão daquilo que é razoável, até chegar ao século XX, época em que se transformou em “retórica morta e amputada” na mão dos estruturalistas franceses e belgas (p.ex. Gerard Genette e Grupo My), que fizeram que o discurso retórico se transformasse meramente em um recurso para floreio da linguagem e linguagem figurada e assim deixaram de lado sua função ligada à persuasão argumentativa daquilo que é plausível.

Não deve ser coincidência que nesse caminho errante percorrido tanto pela Bíblia quanto pelo discurso retórico ao longo da história, tanto uma quanto o outro foram transformados em arma. No caso, a Bíblia foi feita arma para combater os hereges e depois os heterodoxos, enquanto que o discurso retórico foi feito arma “chamada a dar a vitória nas lutas em que o discurso é decisivo” (RICOEUR, 2005, p.18). Apesar de Ricoeur não ser determinante na formulação de suas frases nesse aspecto, parece que o caminho reverso para se desfazer a deformação que tanto uma quanto outro receberam é improvável ou muito difícil de se realizar, por isso a proposta do hermeneuta é a de “recriação da linguagem” (GRONDIN, 2015, p.62), ao invés da busca de um processo de purificação para a acessar a linguagem em seu antigo estado de pureza e liberdade. Observe a que o termo linguagem é evocado por nós porque é isso que está tanto na essência da Bíblia quanto na do discurso retórico, segundo a concepção de Ricoeur, pois a linguagem cria o mundo, a realidade, o ser.

Retornemos à leitura de O texto ‘sagrado e a comunidade’ após essa digressão que comparara a Bíblia e o discurso retórico e aponta para a essência da linguagem na natureza de ambos, de acordo com o pensamento de Ricoeur. Na sequência da descrição das deformações que a interpretação da Igreja proporcionou à Bíblia ao longo de sua história, Ricoeur considera que “a noção de sagrado torna-se totalmente contestável” (2006, p.281), e um processo de desomogeneização seria muito difícil de ser realizado, pois os livros bíblicos que passaram a pertencer ao cânon por meio do processo histórico que apresentamos sucintamente poderiam ser considerados sagrados em diferentes níveis um do outro, tendo em vista que, conforme já mencionamos, no processo de canonização dos livros bíblicos havia livros que eram amplamente aceitos, outros que eram aceitos por menos comunidades, outros que foram incluídos no cânon com muita dificuldade e outros ainda que foram rejeitados pela maioria das comunidades cristãs. A tradição cristã que proporcionou a realização desse processo é ambígua e não seria fácil fazer com que uma força imaterial semelhante a essa refaça a construção do cânon e assim proponha novas formas de interpretação em época cronológica tão distante.

Ao invés de refazer o cânon e refundar a interpretação bíblica, o mais adequado é renovar a hermenêutica bíblica pela constante pregação do conteúdo do texto cristão, que recorrentemente reinterpreta a Bíblia e lhe propõe renovados significados. O que preserva o cânon cristão é essa atividade da pregação, que se realiza exclusivamente a partir do texto reconhecido pela Igreja e assim realiza a separação entre a literatura sagrada e a literatura profana e entre o texto sagrado cristão e os textos sagrados de outras religiões. O texto bíblico está – como já foi dito – no fundamento da comunidade cristã, por isso quando o conteúdo da Bíblia é proclamado na comunidade exerce-se a manutenção da identidade cristã. Além disso, a pregação constantemente re-interpreta o conteúdo do texto bíblico para a comunidade e a convoca a reassumir a sua identidade fundadora, a reconhecer sua própria história ou reinterpretá-la.

Nos últimos parágrafos de seu texto, Ricoeur continua a declarar, com cada vez mais clareza, seu desconforto com a palavra “sagrado” como adjetivo para os textos que compõem a Bíblia. Em sua concepção o sagrado é algo anti-histórico, por isso, ao invés dela, prefere o termo revelação, pois este, sim, é histórico. Assim compreendemos que em sua concepção a Bíblia é composta de textos que foram gradativamente revelados num longo processo histórico e que posteriormente passaram a ser considerados sagrados pelos procedimentos de engessamento que descrevemos acima.

Como Ricoeur deixou claro, é impossível reverter o processo histórico que formou o cânon, o qual sacralizou o texto bíblico e assim o tornou estático e engessado, por isso o desafio da hermenêutica bíblica não é refazer o cânon que já está estabelecido, mas ao invés disso, a tarefa é conduzir o conteúdo que está escrito a se tornar conteúdo oral por meio da proclamação. Assim o texto é reconvertido em palavra, um processo que dessacraliza a escritura por proporcionar-lhe o dinamismo da revelação operante. Essa preeminência da palavra é típica das tradições judaica e cristã desde a Antiguidade.    

3. As bíblias laicas publicadas no Brasil

Agora vamos conhecer um pouco das principais características das chamadas bíblias laicas e depois vamos relacionar essas particularidades com as ideias que Ricouer propôs em “O texto ‘sagrado’ e a comunidade” (2006). 

Nos últimos anos, surgiram no mercado editorial brasileiro de bíblias, as chamadas bíblias laicas. No primeiro momento, os teólogos brasileiros podem ter pensado que os tradutores se tratavam de aventureiros que ousariam proporcionar novas versões da Bíblia sem os devidos cuidados exegéticos que os especialistas da área de tradução bíblica possuem e que, em consequência disso, as traduções não teriam valor acadêmico. No entanto, as traduções laicas da Bíblia que foram produzidas no Brasil mostraram-se obras sólidas, cujas traduções foram feitas com reconhecido rigor filológico e os elementos extratextuais – quando existentes – como estudos introdutórios e notas de rodapé, mostraram-se como expressão de verdadeira erudição.

O termo que ao longo desse artigo temos repetido seguidas vezes sem explicar o significado, ‘bíblias laicas’, de acordo Anderson de Oliveira Lima (2021), refere-se às traduções da Bíblia que não foram feitas por equipes eclesiásticas, as quais, quando possuem comentários na introdução dos livros e notas de explicação, não têm por objetivo doutrinar os leitores, muito pelo contrário, o conteúdo desses comentários e notas recorrentemente pode não ser ortodoxo.

Lima afirma o seguinte: 

Em suma, vive-se atualmente um tempo em que a Bíblia – essa antologia de variegadas expressões humanas –, assume novas formas; ela passa a ser revisitada, relida, reinterpretada, outra vez traduzida, novamente publicada, e tudo é feito de uma perspectiva contemporânea através da qual as visões de mundo e as axiologias de povos antigos podem ser debatidas, usadas ou mesmo negadas sem que o crítico esteja sujeito a sanções impostas por velhas exigências religiosas (LIMA, 2021, p.2).

Poderíamos chamar essas bíblias laicas de bíblias secularizadas, pois representam a existência de bíblias cuja edição foi preparada para o estudo não religioso, o que significa que são propostas simplesmente como objeto de estudo erudito, são textos despidos do sagrado que a tradição cristã atribui-lhes, apesar de seu conteúdo ser a tradução do mesmo texto que os crentes reverenciam como portador da revelação ou do sagrado. 

No caso, a existência dessas bíblias aponta para o reconhecimento da Bíblia como um dos fundamentos da cultura ocidental e como um patrimônio cultural da humanidade, uma expressão da cultura humana universal que advém da Antiguidade e perpassa os séculos até chegar à contemporaneidade deixando seu rastro de influencias em múltiplos aspectos da cultura, quer literária, artística, filosófica, social etc. – além da óbvia importância religiosa.

Quando Bonhoeffer (2009) propunha à sociedade acadêmica europeia da primeira metade do século XX a necessidade de uma igreja secular, não se sabe se o teólogo presumia a existência de uma bíblia desse tipo, mas se sabe, no entanto, que esse tipo de bíblia cumpre todos os requisitos de seu projeto, que postulava a existência de uma religião cristã que soubesse dialogar com o mundo secular que a rodeia e assim tanto atrairia sua atenção quanto seria atraído pelo que há de positivo nesse mundo sem o risco de perder sua identidade cristã essencial nem de forçar o mundo ao proselitismo.

No Brasil são conhecidas três propostas de bíblias laicas. Numa listagem que faço com base na relevância de cada uma, tendo em vista o nível de completude da tradução do texto bíblico para a língua portuguesa, coloco em primeiro lugar a tradução da Bíblia do filólogo português Frederico Lourenço. A Bíblia de Lourenço é composta de vários volumes, os dois primeiros são os livros do Novo Testamento e os demais volumes contêm os livros do Antigo Testamento traduzidos da Septuaginta (LXX), algo que nunca tinha sido feito em nossa língua. Já foram publicados cinco volumes ao todo, faltam ainda partes do Antigo Testamento a serem traduzidas. Em Portugal há cinco volumes ao todo, dos quais apenas três foram publicados no Brasil (2017; 2018; 2019). A segunda tradução laica da bíblia foi feita pelo jornalista brasileiro Marcelo Musa Cavallari (2020), na verdade, trata-se da edição bilíngue dos quatro evangelhos canônicos. Aguarda-se a publicação de pelo menos mais traduções de livros do Novo Testamento, já que o tradutor é especializado em língua grega, mas no momento não se sabe ao certo se existirão outros volumes.  Em terceiro lugar há as traduções de trechos de livros da Bíblia Hebraica feitas pelo célebre tradutor e poeta concretista brasileiro Haroldo de Campos. Suas tradução são textos de grande beleza, aclamados por críticos e intelectuais do mundo todo, mas correspondem apenas a fragmentos bíblicos: Éden (2004), Bereshith (2000) e Qohelet (2019)

Sabe-se que qualquer tradução carrega certo nível de subjetividade por causa das opções que o tradutor é obrigado a fazer na hora de verter o texto de uma língua para outra e, mesmo sem se dar conta, acaba por fazê-lo com base em sua própria experiência de vida e formação cultural, isso vale para todas as traduções. Também é amplamente reconhecido que as traduções seguem uma perspectiva, um projeto de publicação. No caso das bíblias laicas o projeto que os tradutores perseguem, cada um a sua própria maneira, é o da literalidade. Deve-se dizer que Campos (2004, 2000, 2019) inseriu em suas traduções os efeitos da poesia concreta para proporcionar experiências poéticas diferenciadas a seus leitores, enquanto Lourenço pretendeu realizar uma tradução tão literal quanto possível, mas manteve as características sintáticas e vocabulares da língua portuguesa e Cavallari, de modo consciente, proporcionou uma espécie de crioulo, com vocabulário da língua portuguesa e sintaxe estranha aos falantes do nosso idioma, além disso, também usou os nomes próprios conforme a língua grega ao invés de vernaculizá-los, como a grande maioria das traduções faz. 

Pode-se afirmar, conforme a linguagem da metodologia da exegese histórico-crítica, que essas três propostas de tradução da Bíblia seguem o princípio da correspondência formal, pois são traduções que mantém, tanto quanto possível, os vocábulos do idioma de chegada (língua portuguesa) vinculados aos termos correspondentes da língua de saída (língua grega). Apesar disso, não há preocupação em se preservar os termos teológicos consagrados pela tradição religiosa como ocorre nas traduções confessionais da Bíblia.

Não apenas os textos das traduções produzidos por Campos, que é um poeta concretista, têm características poéticas, mas também os resultados das traduções proporcionadas por Lourenço e Cavallari o têm, pois tanto em uma tradução quanto em outra há um cuidado com a forma final do texto que foi traduzido para a língua portuguesa. Mesmo que as características sejam diferentes, como já mencionamos acima, as três traduções têm como resultado uma linguagem que pode ser caracterizada como “poético-literária”, isso é, diferenciam-se da linguagem ordinária do cotidiano (TODOROV, 2013).     

4. A contribuição das bíblias laicas à luz da hermenêutica de Ricoeur

Se, como descrevemos acima, chamar os textos cristãos canônicos de “sagrados” incomodava tanto a Ricoeur (2006), o pensador francês consideraria que o termo “laico”, que é intercambiável por “secular”, seria um bom qualificativo para versões da Bíblia que a sociedade contemporânea precisaria produzir e com as quais precisaria se relacionar para manter vivo e relevante esse conteúdo que primeiramente pertenceu às comunidades cristãs do Mundo Antigo que eram livres de qualquer instituição rígida.

Em primeiro lugar, de acordo com os critérios propostos pelo filósofo, o simples fato de não ser uma ‘Bíblia Sagrada’ já contribui significativamente para a interpretação dos textos cristãos no sentido em que essa perspectiva secular de leitura da Bíblia proporciona uma forma de escape das tendências dogmáticas, conservadoras e fundamentalistas que enclausuraram as edições da Bíblia produzidas por instituições confessionais em todo o mundo.

Mais do que a tradução (apesar de que a tradução também exerce influência hermenêutica nesse sentido), as introduções aos livros bíblicos, os comentários que são colocados em notas de rodapé ou entre colunas dos textos canônicos proporcionam uma interpretação confessional do texto que pretende ensinar o leitor como o texto deve ser lido e essa leitura pretendida pelas edições confessionais é na maioria dos casos proselitista. Isso porque não queremos tratar das aberrações produzidas pelo mercado editorial evangélico que inventou várias versões da Bíblia com estudos de confissão positiva relacionados com a teologia da prosperidade e outras doutrinas totalmente alheias ao texto cristão.   

Pela influência que recebeu de Karl Bath (2016), Ricoeur opta pela compreensão de que os textos cristãos são portadores da revelação ao invés de assumir que são sagrados, pois a revelação está inserida num processo histórico, progressivo e contínuo que chega aos fieis contemporâneos, enquanto que o sagrado é um conceito anti-histórico, que se atribuído à Bíblia faria dela eterna e intocável, que pouco se relacionaria com a vida dos crentes de hoje em dia. O fato de essas bíblias serem laicas não significa que elas não são portadoras da revelação. Como afirmou Ricoeur (2006), para os primeiros cristãos importava de quem a Bíblia fala e não a língua e, por conjectura, muito menos a forma material do livro que contém as narrativas sobre o povo de Deus, Jesus e os primeiros cristãos.   

No que diz respeito à importância que Ricoeur deu à questão levantada por Bultmann (2001), sobre a necessidade de atualizar a linguagem bíblica para o ser humano que vive na contemporaneidade e assim manter sua mensagem relevante no novo contexto que é vivido atualmente pela humanidade, as bíblias laicas representam uma reinterpretação significativa do valor da Bíblia para uma sociedade que deve ser compreendida como secularizada. Essas novas propostas de bíblias não estão presas às igrejas e aos interesses particulares dos cristãos, pois o conteúdo da Bíblia é patrimônio de toda a humanidade e isso é atestado pela versão que seus novos tradutores fidedignos lhes proporcionaram e a recepção que o mundo faz desse conteúdo.

Nesse sentido, o conteúdo da Bíblia, a partir das edições laicas, destaca-se ainda mais, e dessa vez para todos os públicos, como obra fundamental para a formação da cultura ocidental ao lado de outras obras clássicas do Mundo Antigo. Assim, deve ser estudada em centros intelectuais desvinculados às instituições religiosas, como a escola pública ou privada, a universidade e os grupos interessados em cultura de uma forma geral. É certo que esse processo de abertura da escritura cristã para todos os públicos gradativamente proporcionará uma renovação de sua interpretação que contribuirá para a sociedade em vários aspectos da civilização humana.

Por suas características poético-literárias, as bíblias laicas contribuem com o movimento de condução do escrito para o oral que é necessário para a proclamação da palavra na comunidade cristã que proporciona o desengessamento do texto ‘sagrado’ conforme as perspectivas de Ricoeur que apresentamos acima. A linguagem oral que as bíblias laicas restauram colocam a audiência da pregação do evangelho em contato com sentidos renovados do texto cristão, assim, mesmo sem serem ‘sagradas’, as versões laicas da Bíblia revelarão Jesus Cristo a todo que tiver fé quando for utilizado para a proclamação da Palavra na comunidade cristã reunida.  

Portanto, podemos dizer que as bíblias laicas não estão engessadas para serem usadas como arma contra os hereges, pois são repositórios da antiga cultura judaico-cristã ao invés de serem ferramentas para uso apologético; também não estão engessadas por qualquer tipo de proposta de leitura interpretativa religiosa específica, pois são abertas à crítica erudita ou à leitura piedosa indistintamente; nem sequer estão enclausuradas em si mesmas pela regra de autointerpretação, pois seus tradutores reconhecem que as referências para se conhecer o universo bíblico vêm do judaísmo, do cristianismo e da longa história da recepção de seus conteúdos; por fim, as bíblias laicas não se empenham em voltar à essência da mensagem judaico-cristã proclamada in illo tempore, porque seus tradutores sabem que é impossível fazer esse caminho e por isso propõem uma leitura renovada da Escritura, à qual, mesmo preservando sua essência de palavra revelada e reveladora, é adequada a sociedade contemporânea que se considera laica ou secularizada.

Considerações finais

Ao longo de nosso texto, cumprimos o propósito anunciado de apresentar brevemente o pensamento de Ricoeur sobre a Bíblia Sagrada em conexão com seu projeto mais amplo de hermenêutica. Conforme apontamos reiteradamente, a abordagem de Ricoeur das escrituras sagradas dos judeus e dos cristãos está atrelada tanto à sua compreensão sobre a cultura ocidental, que tem a Bíblia e a literatura Greco-Romana como fundadoras; quanto a convicção teológica de que nesse livro se contém a revelação, conforme a crença cristã de que a Bíblia revela a Palavra de Deus, isso está relacionado sobretudo com a fé protestante, na qual foi educado e se manteve como fiel engajado ao longo de sua vida.

O objetivo da hermenêutica bíblica de Ricoeur, como se afirmou reiteradamente, é o de superar o esquecimento do sagrado na modernidade, o que é possível, no caso, por meio de uma recriação da linguagem bíblica, desafio que o intelectual enfrentou por meio de seus ensaios críticos e de seu debate de Bultmann. No entanto, mesmo sem desprezar a relevância de todas as propostas de Ricoeur para interpretação da Bíblia em seu contexto, nós nos dedicamos a abordar seu artigo: “O texto sagrado e a comunidade” (2006) por compreendermos que superou sua própria época e abordou (direta ou indiretamente) a questão da utilização da Bíblia em um mundo em que o cristianismo está secularizado.

As bíblias laicas representam bem a existência de um mundo secularizado e de um contexto em que o próprio cristianismo aderiu a essa secularização. A aplicação das perspectivas da hermenêutica bíblica de Ricoeur às bíblias laicas apontaram para a importância duradoura do caráter da obra do filósofo francês sobre o livro sagrado e também apontou para a importância dessas edições da Bíblia no nosso mundo contemporâneo.

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BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 9. ed. Trad. Helberto Michel. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2009.

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