Fé e modernidade no pensamento de Joseph Ratzinger/Bento XVI

Faith and modernity in the thoughts of Joseph Ratzinger/Benedict XVI

Ceci Maria Costa Baptista Mariani
Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Contato: cecibm@puc-campinas.edu.br

Rafael Beck Ferreira
Graduado em Teologia pela Faculdade Dehoniana de Taubaté-SP. Contato: rafaelbeckferreira@yahoo.com.br


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Resumo: Objetiva-se compreender a relação entre Igreja e modernidade a partir do pensamento de Joseph Ratzinger/Papa Bento XVI, na esteira do Concílio Vaticano II, que propôs uma postura renovada da Igreja perante o mundo moderno, pautada pelo diálogo, abertura, esperança e reconciliação. Joseph Ratzinger defende a compatibilidade entre fé cristã e racionalidade ocidental, recorrendo ao cristianismo primitivo para explicar a novidade da fé cristã quando comparada às religiões pagãs. Ratzinger reafirma a pretensão de verdade do cristianismo como um aspecto originário, que não pode ser abandonado e que se contrapõe ao relativismo. No pensamento de Joseph Ratzinger, há uma dupla relação entre Igreja e modernidade: por um lado, de abertura, a Igreja considerando-se ainda herdeira legítima da racionalidade ocidental (a fides et ratio, duas asas de um único pássaro); por outra via, de tensão, separação e estranhamento. Numa época pós-metafísica, Bento XVI apresenta a doutrina cristã com realismo, defendendo a liberdade religiosa como herança positiva da modernidade e afirmando a necessidade de a liberdade individual estar associada à compreensão mais profunda da vocação de cada pessoa e à responsabilidade social. Joseph Ratzinger/Bento XVI, afirma o papel público da fé cristã e sua importância na construção de um verdadeiro desenvolvimento humano integral. Mais uma vez o cristianismo ocupa seu espaço como ator relevante e profético do processo de secularização, apontando as ambivalências e as contradições da sociedade e marcando sua posição. Desse modo, a sadia secularização ajuda a Igreja para que encontre “a verdadeira separação do mundo”, sem negá-lo ou alienar-se.

Palavras-chave: Joseph Ratzinger; Bento XVI; Concílio Vaticano II; Modernidade; Secularização

Abstract:             The aim is to understand the relationship between the Church and modernity from the perspective of Joseph Ratzinger/Pope Benedict XVI, in the wake of the Second Vatican Council, which proposed a renewed attitude of the Church towards the modern world, guided by dialogue, openness, hope and reconciliation. Joseph Ratzinger defends the compatibility between Christian faith and Western rationality, resorting to primitive Christianity to explain the novelty of the Christian faith when compared to pagan religions. Ratzinger reaffirms Christianity's claim to truth as an original aspect, which cannot be abandoned and which opposes relativism. In the thought of Joseph Ratzinger, there is a double relationship between the Church and modernity: on the one hand, openness, the Church still considering itself the legitimate heir of Western rationality (fides et ratio, two wings of a single bird); on the other hand, of tension, separation and estrangement. In a post-metaphysical era, Benedict XVI presents Christian doctrine with realism, defending religious freedom as a positive heritage of modernity and affirming the need for individual freedom to be associated with a deeper understanding of each person's vocation and social responsibility. Joseph Ratzinger/Benedict XVI affirms the public role of the Christian faith and its importance in building a true integral human development. Once again Christianity occupies its space as a relevant and prophetic actor in the secularization process, pointing out the ambivalences and contradictions of society and marking its position. In this way, healthy secularization helps the Church to find “true separation from the world”, without denying it or alienating itself.

Keywords: Joseph Ratzinger; Benedict XVI; Second Vatican Council; Modernity; Secularization

Introdução

O Concílio Vaticano II (1962-1965) principal evento da história eclesiástica no último século, propôs um posicionamento renovado da Igreja perante a modernidade. Antes do Concílio, a relação animosa se verificava, por exemplo, na Encíclica Quanta Cura, do Papa Pio IX, em 1864. Como afirma Joseph Ratzinger: ao mesmo tempo em que a Igreja condenava a laicidade do Estado e se apresentava contrariamente à liberdade religiosa, o Estado moderno que despontava negava à Igreja e à fé o direito à participação na esfera pública (RATZINGER, 2016, p.21).

Assim, o Concílio Vaticano II ressaltou quatro pontos na nova postura da Igreja perante o mundo moderno: diálogo, abertura, esperança e reconciliação. “Tratava-se de um Concílio radicalmente novo, em termos de postura e de método; não mais para corrigir dogmas e definir erros da doutrina, mas para fazer um aggiornamento da longa tradição cristã-católica ao tempo presente” (PASSOS, 2020, p.54). O Concílio se debruçou sobre temas importantes e delicados, como a relação entre a Igreja Católica e as outras igrejas cristãs, o judaísmo, as religiões não-cristãs e a liberdade religiosa. Ao mesmo tempo, pronunciou-se sobre alguns fenômenos da modernidade em processo, no contexto da Guerra Fria, em um mundo dividido: o progresso da técnica e da ciência, o ateísmo emergente, o papel da mídia, os sistemas econômicos em disputa. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes trouxe um olhar de esperança para o futuro: de diminuição das desigualdades, de incremento da fraternidade, de “condições de vida mais humanas e justas” para toda a família humana, a utopia e o objetivo da paz social e internacional (Gaudium et Spes n.29). Escreve O’Malley: “O Concílio passou da dialética de ganhar um argumento para o diálogo de encontrar um terreno comum. Passou da metafísica abstrata para o “como ser” interpessoal” (O’MALLEY, 2021, p.183).

O Concílio Vaticano II está no coração da biografia e da teologia de Joseph Ratzinger/Bento XVI (1927-2022). O jovem professor Ratzinger, depois de ordenado sacerdote em 1962, atuou como assessor teológico do cardeal Josef Frings – então arcebispo de Colônia – no Concílio Vaticano II (ASSUNÇÃO, 2018, p.26). Sua atuação destacou-se, auxiliando o cardeal Frings na preparação de discursos e intervenções importantes, como o famoso texto com o título: “O Concílio e o pensamento moderno” (1961). Foi nomeado perito oficial pelo Papa João XXIII, tornando-se conhecido ao participar da fileira de teólogos e especialistas de seu tempo, tais como Henri de Lubac, Yves Congar e Hans Urs von Balthasar (RATZINGER, 1997, p.58-59). Como Bento XVI relatara posteriormente em um livro de reminiscências: “Ou seja, a pluralidade de vozes e o encontro com grandes personalidades que, além disso, tinham a responsabilidade de tomar as decisões foram experiências verdadeiramente inesquecíveis” (SEEWALD; BENTO XVI; 2017, p.155). Após o encerramento do evento conciliar, engajou-se no trabalho teológico do pós-Concílio, sendo um dos fundadores da revista Concilium em 1965. Todavia, com a revista “pisando no acelerador” das reformas bem além da letra dos documentos do próprio Concílio Vaticano II, Ratzinger abandona o projeto, tornando-se colaborador da revista teológica Communio, uma publicação menos radical fundada em meados de 1970 por Hans Urs von Balthasar.

É fundamental salientar que Ratzinger/Bento XVI é um grande defensor do Concílio Vaticano II, de sua convocação, sua relevância e seu legado. Um defensor da herança, mas crítico da recepção equivocada dos documentos conciliares e de sua genuína intenção pelos círculos teológicos e pelos mass media. Neste sentido, Ratzinger defende a identidade pastoral do Concílio Vaticano II e seu esforço de aggiornamento: “não nos esqueçamos jamais – continua ele – que cada Concílio é, antes de tudo, uma reforma que do vértice deve se espalhar até a base” (MESSORI; RATZINGER, 2021, p.81). Para Ratzinger, a Igreja continuava precisando de reformadores e de santos.

Desse modo, não apenas a história de Joseph Ratzinger e do Concílio Vaticano II convergiram, como alguns temas importantes, tais como a relação entre a fé cristã e a modernidade. Assim, o presente artigo se estrutura em três itens: primeiramente, o estudo da relação entre fé e razão no pensamento de Ratzinger/Bento XVI; em segundo lugar, sua análise crítica sobre a modernidade e o processo de secularização; e, por fim, a sua avaliação acerca da contribuição da fé na contemporaneidade. 

1. A compatibilidade entre fé e razão

Joseph Ratzinger defende a compatibilidade entre fé cristã e racionalidade ocidental, recorrendo ao cristianismo primitivo para explicar a novidade da fé cristã quando comparada às religiões pagãs. Para Ratzinger, o cristianismo teve seus precursores no racionalismo filosófico, e não na mitologia ou nas outras religiões, venerando o “Deus Verdadeiro”, fundamento de tudo o que existe. “No cristianismo, o racionalismo se tornou religião e não é mais seu adversário” (D’ARCAIS; RATZINGER, 2009, p.13). Ratzinger reafirma a pretensão de verdade do cristianismo como um aspecto genético, que não pode ser abandonado e que se contrapõe ao relativismo. A pretensão de verdade não é indisposição ao diálogo ou uma forma de intolerância, mas é a síntese entre fé e razão que transformou o cristianismo em religião universal. O tema da relação entre fé e razão perpassa todo o trabalho teológico de Ratzinger, buscando reafirmar o papel do cristianismo como ator privilegiado no processo de secularização.

Na perspectiva de Ratzinger, o próprio “fazer teologia” revela-se algo inédito na história das religiões: debruçar-se racionalmente sobre a fé professada. “A teologia é um fenômeno especificamente cristão, que resulta da estrutura da fé” (RATZINGER, 2008, p.89). Ratzinger explica que a teologia é saber científico, que demanda rigor e reflexão. É, ao mesmo tempo, auditus fidei (exercício místico e obediente de escuta da palavra divina que fora revelada por Deus) e intellectus fidei (persecução da Verdade por meio do saber e da racionalização). 

Desse modo, para Joseph Ratzinger, o ser humano é capaz de conhecer a Verdade (capax Dei) e a pretensão de verdade do cristianismo é legítima. Para ele, não obstante a “pretensão de verdade” do cristianismo seja posta em dúvida pela modernidade, ela é legítima e tem raízes na própria história do cristianismo. 

De acordo com Ratzinger, desde sua erupção, o cristianismo não se contentou em ser “mais uma” religião dentre as diversas que coexistiam no Império Romano, nem aceitou que Jesus Cristo fosse considerado “mais uma” divindade do panteão romano. Ao contrário, o monoteísmo bíblico permitiu que o cristianismo se aproximasse e se identificasse com as aspirações filosóficas sobre o fundamento do mundo. “A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera. Assim, pois, a fé cristã não se baseia na poesia e nem na política, essas duas grandes fontes da religião; baseia-se no conhecimento” (D’ARCAIS; RATZINGER, 2009, p.13).

Ancorado em Santo Agostinho, explica que o cristianismo nunca se contentou em estar “lado a lado” com as outras religiões, mas buscou ser “teologia física”, herdeira legítima do racionalismo filosófico. “No cristianismo, o racionalismo se tornou religião e não é mais seu adversário” (D’ARCAIS; RATZINGER, 2009, p.13). A conversão de filósofos como São Justino e o próprio Santo Agostinho acentua essa pretensão do cristianismo como triunfo do conhecimento e da sabedoria sobre a mitologia. Também a perseguição que sofreu pelo Estado demonstra que o cristianismo não aceitou ter mera “utilidade política” no design imperial romano, mas apresentou-se como verdade incômoda, que desmascara as aparências e as idolatrias. Tanto que uma das acusações que os cristãos sofreram no Império foi, justamente, de “ateísmo (D’ARCAIS; RATZINGER, 2009, p.13).

Para Ratzinger, “o racionalismo pode se transformar em religião porque o mesmo Deus do racionalismo entrou na religião” (D’ARCAIS; RATZINGER, 2009, p.15). Contudo, saltando para a filosofia contemporânea, Ratzinger tece sua crítica à rendição do racionalismo, que já não admite mais que a verdade e o divino se reflitam somente em um caminho, mas fragmentem-se em diversas perspectivas. 

Assim, em seu pensamento, Ratzinger evidencia a compatibilidade entre a fé cristã e a racionalidade ocidental, desde o apóstolo Paulo, passando pelo iluminismo, defendendo uma característica do cristianismo que precisa se acomodar no Estado laico: sua pretensão de verdade e crítica ao relativismo.

2. Análise da modernidade e da secularização no pensamento de Joseph Ratzinger/Bento XVI

Diversos estudiosos analisam o pontificado de Bento XVI em sua relação com a modernidade e a secularização: seria ele um papa antimoderno, moderno ou pós-moderno? Independentemente da classificação que se empreenda, é inegável que Ratzinger é um ator consciente da importância da relação entre Igreja e modernidade: “Ratzinger ofereceu um discurso social, um “diagnóstico do tempo” de aspecto sociológico ao fazer teologia” (ASSUNÇÃO, 2018, p.33).

As disputas que envolvem as teorias da secularização são, de acordo com o professor Ricardo Mariano, o “debate teórico mais caliente na sociologia da religião” (MARIANO, 2013, p.11). Se, por um lado, Peter Berger teorizou a chamada “dessecularização”, posição que angariou inúmeros adeptos da chamada “era pós-secular”, Flávio Pierucci persistiu em sua tese sobre a secularização e seus efeitos. Estudioso do catolicismo no Brasil na segunda metade do século XX e início do século XXI, Pierucci esmiuçou o comportamento e as dinâmicas que se correlacionavam com a perspectiva religiosa na produção cultural, na universidade, na filosofia, no entretenimento e na cultura jovem, sustentando a vivacidade da tese weberiana da secularização.

O conceito de secularização remete à expropriação dos bens eclesiásticos por parte do poder estatal nas discussões de Westfália (sécilarizer, do francês). Essa aplicação político-jurídico marca o processo de separação das esferas, ou seja, demarca a clara separação entre o poder político e o poder religioso (MARRAMAO, 1995, p.,19). Inicia-se então o movimento de afirmação da jurisdição secular, autônoma, colocando inclusive a religião debaixo de seu guarda-chuva. Trata-se da sucessiva racionalização das funções – o desencantamento do mundo –, que embora tenha sido estudado por Weber a partir da ética protestante em sua relação com a economia, não deixa de incluir o catolicismo como componente do processo.

De acordo com Pierucci, Max Weber emprega o conceito de secularização apenas 15 vezes em toda a sua obra, sendo que 8 aparições referem-se justamente à “racionalização jurídica”, frente à irracionalidade dos sistemas baseados na revelação divina. Pierucci mapeia a lógica da secularização em cada esfera: “O ponto de partida é sempre sacral; o ponto de chegada, dessacralizado. Cada esfera cultural de valor, em seu processo de racionalização interna, faz o mesmo trânsito, mas com outro roteiro.” (PIERUCCI, 1998, p.53).

Rudy Albino de Assunção empreenderá a aproximação entre Ratzinger e o conceito weberiano de secularização a partir de três esferas: política, econômica e intelectual. Na esfera política, para Weber, aplica-se ao catolicismo a busca mística e pneumática apolítica/antipolítica por salvação, fazendo alusão ao texto de Mc 12,17: “Dai a César o que é de César” (afinal, que importância tem essas coisas para a salvação?) (ASSUNÇÃO, 2018, p.80). Essa perspectiva, compartilhada com Ratzinger em sua teologia liberal, pode ser descrita como uma possível explicação contemporânea para “um maior” desinteresse do catolicismo, se comparado às representações evangélicas, na participação da política brasileira e de suas instituições de poder, aliado aos efeitos da secularização – que retirou do catolicismo sua prerrogativa de “religião social” (CARNEIRO; PRANDI, 2018, p.9).

Na esfera econômica, de acordo com a leitura de Assunção, não obstante existam pontos positivos na relação entre o catolicismo e a economia (os mosteiros como locais de uma economia racionalizada, a herança romana do catolicismo), o catolicismo preserva um certo “mal-estar” para o crente ao conjugar sua fé com a atividade econômica, resquícios da condenação do lucro (deo placere non potest: “o comerciante nunca ou dificilmente pode agradar a Deus” – Decreto de Graciano) e da proposta de abandono deste mundo (ASSUNÇÃO, 2018, p.84-85). Esse evidente “mal-estar” também pode sinalizar o porquê do surgimento da “teologia da prosperidade” em terreno protestante.

Assim, numa perspectiva mais ampla, secularização passou a significar o amplo “processo de afirmação de uma jurisdição secular – isto é, laica, estatal, sobre amplos setores da vida social até então sob o comando da Igreja (ASSUNÇÃO, 2018, p.61). A secularização pode ser entendida como a separação das esferas (Igreja e Estado moderno), com a racionalização, dessacralização e autonomização do direito (frente à irracionalidade do antigo direito revelado), a passagem do direito carismático, pautado na figura do legislador, “transformando-o numa máquina técnico-racional” e impessoal (ASSUNÇÃO, 2018, p.62). 

O segundo conceito, de modernidade, é amplamente tematizado por Ratzinger enquanto sucessor do medievo, através de revoluções que oferecem respostas inteiramente novas para as principais perguntas (no campo das ciências, da astronomia, da religião, do comércio e do início da industrialização, no advento do mercantilismo e nas transformações políticas que culminarão na Revolução Francesa em 1789). No centro da modernidade está o processo de secularização e seus desdobramentos para a sociedade e os modos de vida. Nesse processo de emergência da própria modernidade, a secularização não é apenas a emancipação da modernidade em relação à esfera do religioso, o que poderia confluir na extinção do religioso, porém, ao contrário, “uma nova forma de coexistência entre religião e modernidade até o ponto de uma forma de permanência de funções religiosas cumpridas por elementos modernos” (ASSUNÇÃO, 2018, p.89). É nesta esteira que outros conceitos da sociologia contemporânea são mencionados por Ratzinger/Bento XVI, como “pós-moderno” e “pós-secular”, expressando uma relevância da religião e uma forma de presença na contemporaneidade. Em alguns discursos e escritos, Ratzinger/Bento XVI falou de “sociedade pós-moderna”, “era pós-moderna”, “época pós-moderna” e “cultura pós-moderna” como um período de crise da modernidade, crise da racionalidade, rejeição da tradição e afirmação do ceticismo e do relativismo (ASSUNÇÃO, 2018, p.157).

“A palavra Igreja fere os ouvidos da modernidade”. No pensamento de Joseph Ratzinger, há uma dupla relação entre Igreja e modernidade: por um lado, de abertura, a Igreja considerando-se ainda herdeira legítima da racionalidade ocidental (a fides et ratio, duas asas de um único pássaro); por outra via, de tensão, separação e estranhamento. Numa época pós-metafísica, Bento XVI apresenta a doutrina cristã com realismo, defendendo a liberdade religiosa como herança positiva da modernidade e afirmando a necessidade de a liberdade individual estar associada à compreensão mais profunda da vocação de cada pessoa e à responsabilidade social (BENTO XVI, Caritas in Veritate n.14). Para Bento XVI, as liberdades individuais precisam estar fundamentadas numa compreensão teológica de liberdade, como dom e tarefa, pois só assim a liberdade poderá ser “mais humana e humanizadora”  (BENTO XVI, Caritas in Veritate n.9). Nesse sentido, o dogma católico não é afirmado numa tinta restauracionista, como se antagonizasse a modernidade e seus valores positivos numa espécie de “revanche do sagrado”, mas, na sociedade secular, apresenta-se como contributo valioso no diálogo público e na construção do bem comum, defendendo a liberdade a partir da compreensão da antropologia cristã. Em Joseph Ratzinger/Bento XVI – em sua teologia e em seu pontificado – arde, ao que parece, a mesma chama que iniciou e orientou o Concílio Vaticano II: a chama de uma Igreja profética diante da modernidade e de seus desdobramentos, além de portadora da Palavra de esperança. No outro meridiano, Joseph Ratzinger tece críticas à modernidade (contra o que ele denomina de “ditadura do relativismo”), afirmando alguns aspectos negativos da modernidade, como a fé no progresso (uma pretensa salvação através da mudança), o individualismo (a subjetivação da religião e da moral) e o relativismo (o desprezo ou a incapacidade do ser humano para encontrar a verdade) (ASSUNÇÃO, 2018, p.176).

Ratzinger trata do problema da “dialética da modernidade” aplicada ao tema da liberdade, ou seja, se por um lado a Idade Moderna rompe com o déspota esclarecido que tutelava a liberdade de seus súditos, buscando agora fundar uma sociedade livre de “racionais” – “a sociedade racional será a sociedade de racionais” (RATZINGER, 1987, p.201) –, em outro extremo o excesso de liberdade cria o que ele denomina como “patologias da razão” (hybris): bomba atômica, o homem como produto (RATZINGER, 2019, p.161), o homem que pode autodestruir-se. Esse é o perigo de uma racionalidade individualista, que leva as liberdades individuais ao extremo e desligada dos valores e direitos fundamentais, bem como do conceito de verdade – na perspectiva do próprio Ratzinger (ASSUNÇÃO, 2018, p.270). Assim, não obstante defenda as liberdades modernas até certo ponto (liberdade de consciência, liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de convicção), Ratzinger é um crítico das mesmas nos campos da moral e da bioética, assumindo o ensinamento da Igreja no tocante a temas como aborto, eutanásia, moral sexual, homossexualidade, etc. 

Como explica Assunção em sua interpretação do pensamento ratzingeriano: 

Pode-se ver que a visão sobre o conceito oscila entre dois polos: por um lado a Igreja reconhece os valores modernos que correspondem ao seu próprio conjunto de valores ou que a Igreja ainda considera que tenham nascido no seio da fé cristã mesma; esses a Igreja pretende endossar e promover; por outro lado, há o aspecto negativo da modernidade, que exclui Deus, exclui os valores fundamentais e, por isso, deve ser corrigido (...). (ASSUNÇÃO, 2018, p.179)

Tais processos podem ser observados na teoria sociológica weberiana, como traços que aparecem ao longo da história da Igreja, não obstante sempre em desenvolvimento. Por outro lado, para além do pensamento ratzingeriano, o catolicismo é ator e paciente do processo de secularização. Enquanto ator, nem sempre reage de maneira unívoca, como no caso do Papa Francisco, sucessor de Bento XVI na política eclesiástica, navegando entre o estranhamento existente e como propositor de novas dinâmicas e reconfigurações. Como escreve Prandi: “Não é a religião enquanto conservação e permanência que deve interessar à sociologia, mas sim a religião em mudança, a religião como possibilidade de ruptura e renovação, a mudança religiosa e, portanto, a mudança cultural” (PIERUCCI; PRANDI, 1987, p.9).

Concluindo: Ratzinger nega o fechamento da Igreja à modernidade e a rejeição total dos valores modernos, embora admita que esse encontro entre Igreja e mundo (moderno) naturalmente venha acompanhado de conflitos e jamais desembocará numa identificação completa. Assim, Ratzinger defende que há valores nascidos no “mundo moderno”, fora da Igreja, que são conciliáveis com a doutrina eclesiástica, ao mesmo tempo em que reforça a importância da contribuição do cristianismo na gênese da modernidade e na correção das suas “patologias”. “Ou seja, o mundo moderno é, em parte, oriundo da dinâmica própria do desenvolvimento do cristianismo” (ASSUNÇÃO, 2018, p.127). Independentemente da classificação que se empreenda, é inegável que Ratzinger é um ator consciente da importância da relação entre Igreja e modernidade: “Ratzinger ofereceu um discurso social, um “diagnóstico do tempo” de aspecto sociológico ao fazer teologia” (ASSUNÇÃO, 2018, p.33).

3. O papel da fé na esfera pública

A socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger estuda as dinâmicas do campo religioso a partir da modernidade e da racionalização da sociedade (que ela chama também de “modernidade secularizada”) (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.41). Para essa estudiosa, não obstante a racionalidade represente “a referência que mobiliza as sociedades modernas” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.32), a separação entre o político e o religioso, assim como a autonomia do indivíduo-sujeito, não trouxeram o fortalecimento do dogma, mas a subjetivação da crença: o conteúdo objetivo das crenças torna-se produto de novas construções, “bricolagens” feitas pelos indivíduos a partir de suas necessidades. Ocorre aquilo que Hervieu-Léger denomina como “fim das identidades religiosas herdadas”: a ruptura da memória coletiva, da tradição e a reorganização dos valores, com a atuação de “bricoladores” que subsidiam novas identificações em um cenário dinâmico, de movimento, com o enfraquecimento das instituições e a disjunção entre “crer” e “pertencer”. Trata-se do desafio do dogma frente à subjetivação da crença: “As instituições religiosas continuam a perder sua capacidade social e cultural de impor e regular crenças e práticas. O número de seus fiéis diminui e os fiéis “vem e vão”, não apenas em matéria de prescrições morais, mas igualmente em matérias de crenças oficiais” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.41). 

Neste contexto, para Hervieu-Léger, a grande dificuldade que se apresenta às instituições religiosas e às crenças (dogmas) não é a indiferença religiosa, mas as “bricolagens”, consequências do incremento da autonomia do sujeito, que desafiam a unidade da comunidade e o poder institucional (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.41). 

Hervieu-Léger revela, através de pesquisas de campo, o descompasso entre a verdade objetiva das crenças (dos dogmas) e a recepção dos indivíduos, que afirmam não crer, “com certeza”, nos conteúdos definidos pelas religiões, mas apenas com alguma “probabilidade”  (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.44). Todavia, a doutrina se transforma em uma “matéria-prima simbólica, eminentemente maleável, que pode servir para diversos desdobramentos, de acordo com o interesse dos grupos que delas se nutrem” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.55-56).

Para Ratzinger, fé é muito mais do que o sentimento e a decisão subjetiva, mas possui uma dimensão objetiva fundamental, que faz do ser humano atual um herdeiro do passado, de sua história, de sua própria humanidade. Isso está premente na fábula que prefacia a obra “Introdução ao Cristianismo”, o conto do “Joãozinho feliz”, um menino que recebe uma pepita de ouro de presente e, em sua trajetória, troca-a repetidas vezes: primeiro troca a pepita por um cavalo, depois troca o cavalo pela vaca, após, por um ganso, até terminar com uma pedra de amolar em suas mãos. No final, Joãozinho arremessa a pedra em um rio, considerando-se finalmente livre. Ratzinger convida o leitor a questionar quando o personagem finalmente irá despertar de sua fantasia, percebendo que sua liberdade era a sua miséria ao desprezar a pepita de ouro, e explica que este caminho fora tomado pela teologia “nos últimos anos” (RATZINGER, 2005, p.20).

Não é difícil perceber, no decorrer da obra, qual seria a “pepita de outro” ilustrada na narrativa de abertura: a fé cristã em seu conteúdo objetivo, o dogma. A pepita desprezada, trocada ora pela vaca, ora pelo ganso, até que seu proprietário acabe de mãos vazias, representa os teólogos e teologias do século XX que foram “trocando” e deformando a doutrina conforme os “ventos da moda”. Assim, a doutrina (enquanto conjunto dogmático) é o verdadeiro tesouro da Igreja e da humanidade no pensamento de Ratzinger. Na Carta Encíclica Lumen Fidei, assinada por Francisco, mas escrita a “quatro mãos” (fora deixada quase acabada na escrivaninha papal antes da renúncia de Ratzinger/Bento XVI conforme as fontes oficiais[1]), podemos ler sobre a figura de Moisés como “mediador”:

Aqui a mediação não se torna um obstáculo, mas uma abertura: no encontro com os outros, o olhar abre-se para uma verdade maior que nós mesmos. Jean Jacques Rousseau lamentava-se por não poder ver Deus pessoalmente: ‘Quantos homens entre mim e Deus! Será assim tão simples e natural que Deus tenha ido ter com Moisés para falar a Jean Jacques Rousseau?’ (...) A fé é um dom gratuito de Deus, que exige a humildade e a coragem de fiar-se e entregar-se para ver o caminho luminoso do encontro entre Deus e os homens, a história da salvação. (FRANCISCO, Lumen Fidei n.14.)

Não somente na narrativa de abertura do livro “Introdução ao cristianismo”, mas como uma marca recorrente de sua reflexão, Ratzinger argumenta que o sentido da felicidade humana reside em possuir essa “pepita de ouro”, a fé em Jesus Cristo – mediada pela Igreja, objetivada nos dogmas, interpretada com segurança pelo Magistério, haurindo sua força da história salvífica (a Revelação). Quando descreve o ser humano caído, angustiado, atormentado e confuso pelos rescaldos da modernidade, Ratzinger retoma este argumento em seus escritos, deixando transparecer sua veia agostiniana, aquele enamorar-se pela fé que salva do terror da condenação da história.

Na Encíclica Caritas in Veritate, Joseph Ratzinger/Bento XVI, afirma o papel público da fé cristã e sua importância na construção de um verdadeiro desenvolvimento humano integral. Mais uma vez o cristianismo ocupa seu espaço como ator relevante e profético do processo de secularização, apontando as ambivalências e as contradições da sociedade e marcando sua posição. Bento XVI explica que a “a caridade é via mestra da doutrina social da Igreja”, sendo princípio não apenas das microrrelações como também das macrorrelações. A valorização da caridade não significa o abandono da razão, pelo contrário, para Bento XVI a verdadeira caridade é libertada pela verdade “dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal” (BENTO XVI, Caritas in Veritate n.3). A aliança entre caridade e verdade permite o diálogo humano fraterno no horizonte do agir comunicativo e da comunhão.

Se Max Weber havia criticado o catolicismo por ter se tornado uma “crença de teólogos”, com “dogmas racionais, oficiais e comprometedores”, uma “aristocracia dos dogmaticamente instruídos” (WEBER, 2012, p.378-379), o projeto de Joseph Ratzinger/Bento XVI foi justamente: levar a contribuição da fé cristã para a esfera pública e para outros círculos fora da teologia católica, afirmando sua relevância social e nas discussões contemporâneas; e, finalmente, relacionar a fé cristã com as outras duas virtudes teologais – a esperança e a caridade –, sublinhando sua importância pra a vida do crente.

Ratzinger/Bento XVI, “em sua hermenêutica da continuidade” conciliar, apresenta o dogma católico na perspectiva da secularização, afastando o mal-estar pré-conciliar entre fé e liberdades individuais, não obstante – para Ratzinger/Bento XVI – o dogma católico mantenha seu potencial profético e crítico, enquanto sinal de contradição. 

“Para Bento XVI uma Igreja aberta e dialógica não é aquela que deixa o mundo entrar em seu seio, mas que se desmundaniza e penetra o mundo com o espírito de Cristo, sem querer impor com isso qualquer forma de domínio político-eclesiástico” (ASSUNÇÃO, 2018, p.132). O dogma católico não é afirmado numa tônica restauracionista ou a partir de um projeto de poder secular que reunifique Igreja e Estado, mas na tolerância com as diferenças e como contributo valioso no diálogo público e na construção do bem comum. 

Para Ratzinger/Bento XVI, “as secularizações – sejam elas a expropriação de bens da Igreja, o cancelamento de privilégios, ou coisas semelhantes”, representaram “(...) uma profunda libertação da Igreja de formas de mundanidade” (BENTO XVI, 2011). A secularização, enquanto processo histórico em contínua marcha, significa liberdade para a Igreja e para os fiéis: libertação para a Igreja “dos fados materiais e políticos”, para que tenha maior “agilidade” na vivência de sua vocação (BENTO XVI, 2011); liberdade para os fiéis abraçarem e testemunharem a fé porque encontraram a verdade e o amor de Deus – o sentido da existência. 

Joseph Ratzinger/Bento XVI apresenta-se como crítico dos projetos ideológicos tradicionalistas e progressistas, especialmente quando se tornam revanchismos pós-seculares, borrando a fronteira entre a Igreja e o Estado, aumentando o capital e as pretensões políticas e intramundanas. Aqui temos o uso negativo do conceito de secularização por Ratzinger, que é a crítica à secularização da Igreja, ou seja, a grande tentação de se acomodar ao mundo, de se mundanizar. Desse modo, a sadia secularização ajuda a Igreja para que encontre “a verdadeira separação do mundo”, sem negá-lo ou alienar-se (BENTO XVI, 2011). “Para todos os efeitos, a antimodernidade subjaz como um dogma fundante dos grupos e dos movimentos, de modo particular como perigo interno para a fé católica” (PASSOS, 2020, p.65).

Joseph Ratzinger/Bento XVI compreende o dogma católico, como explicado anteriormente, em sua relação com a secularização e a modernidade, mas, principalmente, como verdade harmoniosa da fé e razão. Nesse sentido, enquanto o dogma católico se nutre da Revelação divina, também é formulado através dos conceitos filosóficos e teológicos da racionalidade ocidental, exemplificando a tese ratzingeriana de que não existe contradição, mas compatibilidade entre o cristianismo e a racionalidade ocidental. Por isso Ratzinger/Bento XVI também defende que ocorra uma mútua purificação entre razão e religião: 

Nós vimos que há́ patologias na religião que são extremamente perigosas e que tornam necessário encarar a luz divina da razão como um, por assim dizer, órgão de controle, a partir do qual a religião sempre deve se deixar purificar e organizar novamente, o que foi, aliás, também a noção dos padres da igreja. Em nossa reflexão, porém, mostrou-se que também há́ patologias da razão (do que, hoje em dia, a humanidade em geral não tem exatamente consciência), uma hybris da razão, a qual não é menos perigosa, ao contrário, devido à sua potencial eficiência, muito mais ameaçadora: a bomba atômica, o homem como produto. Por isso, por outro lado, a razão também deve ser lembrada em seus limites e aprender a disposição de ouvir as grandes tradições religiosas da humanidade. Quando ela se emancipa completamente e coloca de lado essa disposição de ouvir, essa capacidade de correlação, ela se torna destruidora. (HABERMAS; RATZINGER, 2005, p.8.)

A razão tem o potencial de purificar a religião de suas “patologias”, como os efeitos do abandono da racionalidade por parte da religião – fideísmo –, a intolerância religiosa e o uso do nome divino como legitimador de violência (ASSUNÇÃO, 2018, p.138). Assim, na perspectiva ratzingeriana, apresentar o dogma católico numa identidade fechada ao diálogo – ou seja, fundamentalista –, com linguagem violenta e fazendo uso instrumental da fé, pode ser postura caracterizada como religiosamente enferma, a ser devidamente purificada pela razão para que recobre sua saúde.

Conclusão

O pensamento de Ratzinger/Bento XVI possui temas importantes que precisam ser revisitados para uma compreensão geral de sua totalidade: a relação entre a fé cristã e a racionalidade ocidental, os aspectos positivos e negativos da secularização e da modernidade, a articulação dos temas doutrinários e dos tratados teológicos, a relação entre o dogma e a modernidade, a dimensão pública da fé e sua contribuição no diálogo com a sociedade.

Estes temas se articulam na “hermenêutica da continuidade” ratzingeriana: a continuidade entre a filosofia grega e o cristianismo enquanto religião racional, a continuidade na história dos dogmas e na transmissão da fé, a continuidade entre cristianismo e iluminismo, que são chamados de “gêmeos” por Ratzinger em debate com Flores D’Arcais (D’ARCAIS; RATZINGER, 2009, p.40), a continuidade entre cristianismo e secularização, a continuidade entre as liberdades individuais e seu fundamento, que é a liberdade cristã. E, o mais importante, a continuidade entre o Concílio Vaticano II e os Concílios anteriores, rejeitando qualquer interpretação que compreenda a história da doutrina como “fraturada”, qualquer “hermenêutica da ruptura” progressista ou tradicionalista.

O pensamento de Ratzinger/Bento XVI possui, desse modo, a mesma preocupação conciliar: apresentar a doutrina numa perspectiva dialógica, enquanto patrimônio da Igreja e da civilização que pode contribuir constantemente para o devido progresso e para justas relações sociais. Sua reflexão sobre a relação entre o dogma e a modernidade permanece extremamente relevante nesta primeira metade do século XXI, no Brasil e em outras países do Ocidente em que arroubos antidemocráticos buscam suprimir as fronteiras entre Igreja e Estado de direito, instrumentalizando a doutrina e a religião. Ratzinger/Bento XVI defende a importância da secularização enquanto processo sadio de “desmundanização” da Igreja, negando qualquer possibilidade de ruptura com essa herança da modernidade num pretenso retorno à união entre altar e coroa (Igreja e Estado). Nesse sentido, Ratzinger/Bento XVI se distancia de qualquer viés restauracionista, em continuidade com o Concílio Vaticano II. Por outro lado, para Ratzinger/Bento XVI, o acolhimento da secularização evidencia que, para o cristianismo, a salvação não é acontecimento intramundano, negando assim uma politização e ideologização da religião, que Ratzinger combateu na condição de cardeal-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé quando denunciou, na Instrução sobre alguns aspectos da teologia da libertação, de 1984, o viés marxista presente em determinadas correntes da teologia da libertação.

A contribuição renovada de Ratzinger/Bento XVI sobre o dogma católico é conservadora, no sentido de preservação da substância da fé num tempo de profundas transformadoras, mas também é dialogal e aberta enquanto esforço de “dizer algo” ao ser humano de hoje, ser capaz de produzir e fornecer sentido na conjuntura pós-secular. Ao conservar o liame entre a fé cristã e a verdade na contemporaneidade, Ratzinger/Bento XVI reitera a harmonia da dogmática católica, protegendo-a de usos indiscriminados do mercado religioso, neste período de customização da fé e subjetivação da crença, captado pela análise sociológica de Hervieu-Léger. A defesa da racionalidade do cristianismo é uma defesa do papel de Deus e da verdade contra o relativismo que emerge nas novas customizações sociais e religiosas, na tentativa de relegar a religião à dimensão privada. Assim, a fé cristã se apresenta apta para contribuir de forma tolerante com a esfera pública e para propor o sentido da vida ao ser humano na cultura pós-moderna (ASSUNÇÃO, 2018, p.306). 

A modernidade promete “paraísos artificiais”, mas Deus pode oferecer o bem verdadeiro (BENTO XVI, 2012). Neste ponto, Ratzinger/Bento XVI, conhecendo as mazelas da própria modernidade no processo de desencantamento do mundo (desdivinização da natureza) e divinização do ser humano, procede com a leitura antropológica do ressurgimento da religião na pós-modernidade (ASSUNÇÃO, 2018, p.212). Na visão de Ratzinger, “a Igreja tem a missão de alargar os espaços da presença do divino e de oferecer modelos de vida onde o indivíduo possa realizar a sua humanidade, mesmo num contexto marcado pela desolação da existência técnica que não responde às questões de sentido” (ASSUNÇÃO, 2018, p.216).

Referências

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Notas 

[1] O Papa Francisco escreve no início da Carta Encíclica Lumen Fidei: “Estas considerações sobre a fé — em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal - pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição.” (FRANCISCO, Lumen Fidei n.7).