Redenção e Perdão pela Superabundância: a filosofia de Ricoeur de inspiração teológica

Redemption and Forgiveness through Overabundance: Ricoeur's Theologically Inspired Philosophy

René Dentz
Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Contato: renedentz@gmail.com.


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Resumo: É possível abordar o pensamento ricoeuriano em um diálogo com temas teológicos, embora cientes da advertência feita por ele a respeito do cuidado em se estabelecer os limites e aproximações entre a teologia e a filosofia. A propósito, Ricoeur sempre recusou a etiqueta de “filósofo cristão”, procurando manter equidistantes a sua confissão de fé e o procedimento filosófico. Como consequência, o grande fundamento da reflexão ricoeuriana é a filosofia, embora a teologia, sobretudo através de seus estudos de exegese bíblica, também ocupe um respeitável lugar em suas pesquisas. Alguns temas são “limítrofes” entre os dois saberes, notadamente o mal, a esperança e o perdão. Este é visto por ele como uma síntese entre a história, a memória e o esquecimento. No entanto, além disso, também não pode ser pensado sem o mal e a esperança. Ou seja, apesar de nosso autor não ter elaborado uma “vertente teológica” de seus estudos sobre o perdão, como o fez em relação ao mal e à esperança, não é possível estudar a temática sem levar em consideração sua inspiração e sua abordagem teológica. Ora, Ricoeur sempre esboçou, no âmbito de suas argumentações, a percepção do sagrado e os desdobramentos no campo da fé, inclusive como pregador ocasional na capela Rockefeller, da Universidade de Chicago. 

Palavras-Chave: Esperança; Graça; Redenção; Superabundância; Perdão.

Abstract: It is possible to approach Ricoeurian thought in a dialogue with theological themes, although aware of the warning he made about the care in establishing the limits and approximations between theology and philosophy. By the way, Ricoeur always refused the label of “Christian philosopher”, trying to keep his confession of faith and philosophical procedure equidistant. As a consequence, the great foundation of Ricoeurian reflection is philosophy, although theology, especially through his studies of biblical exegesis, also occupies a respectable place in his research. Some themes are “borderline” between the two knowledges, notably evil, hope and forgiveness. This is seen by him as a synthesis between history, memory and oblivion. However, in addition to this, it cannot be thought of without evil and hope either. That is, although our author did not elaborate a “theological aspect” of his studies on forgiveness, as he did in relation to evil and hope, it is not possible to study the theme without taking into account its inspiration and its theological approach. Well, Ricoeur always outlined, within the scope of his arguments, the perception of the sacred and the developments in the field of faith, including as an occasional preacher at the Rockefeller chapel, at the University of Chicago.

Keywords: Hope; Grace; Redemption; Overabundance; Pardon.

Introdução

A teologia abordada por Ricoeur é compreendida pela nomeação de Deus e a palavra dita pelo homem em resposta. Ela considera a filosofia e não ousa traspassar limites, como, por exemplo, indagando “o que é Deus?”. Filosofia e teologia dividem, segundo ele, um mesmo destino diante da retirada do nome de Deus, elas não podem surgir senão por um excesso de discurso, um “discurso de segundo grau”. O tema da esperança, por exemplo, passa a ser, dessa forma, uma via aberta onde o saber parou em sua desmedida, tanto filosófica quanto teológica. E não importa se a teologia é mais afirmativa, dogmática e, finalmente, mais do que toda filosofia, sendo considerada como parceira do diálogo. O que distingue a filosofia da teologia é que esta última “é uma lógica da interpretação cristológica dos acontecimentos da salvação”, enquanto a primeira ordena nosso desejo de ser. O mal, portanto, não é o primeiro a ser compreendido. Ele é tampouco o primeiro artigo do Credo. É necessária sua reinterpretação querigmática ou o anúncio de sua derrota pelo amor. Para Ricoeur, em Paulo é preciso ir ao extremo da condenação para depois ir ao extremo da misericórdia: “O salário do pecado é a morte; mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 6,23). Esta “lógica do absurdo” faz implodir a lógica da lei e todas as noções que dela derivam: julgamento, condenação, pena.

1. Temas teológicos, crítica e convicção

A contestação ricoeuriana do conceito de religião já indica um caminho: não existem mais do que as religiões, não uma religião. Eis um ponto de abertura do diálogo entre a filosofia e a religião. 

Como entrar neste círculo, digo que foi uma oportunidade transformada em destino por uma escolha contínua. Uma oportunidade, porque se poderia sempre dizer que, se eu tivesse nascido noutro lugar as coisas não teriam, evidentemente, seguido o mesmo curso. Mas, este argumento nunca me impressionou muito, porque me imaginar nascido noutro contexto é me imaginar não ser mais eu. Aceito, no limite, dizer que uma religião é como uma língua na qual ou bem se nasceu, ou bem se foi transferido pelo exílio ou pela hospitalidade; em todo caso, aí se está em casa; o que implica também reconhecer que há outras línguas faladas pelos homens (RICOEUR, 1995, p. 219-220).

Na obra La Critique et la Conviction (1995), Ricoeur afirma que uma filosofia não pode ser pensada sem ser concebida. O mito da transparência do Iluminismo é denunciado e a leitura dos mestres da suspeita é decisiva tanto para os filósofos iluministas quanto para a religião. Crítica e convicção perpassam um caminho único na formação de um pensamento, muitas vezes por meio de um limiar muito tênue. No entanto, no prefácio de Soi-même comme un autre, Ricoeur demonstra que a crítica deve ser autônoma, não entrando no campo religioso, o que podemos dizer ser uma tendência mais próxima a um agnosticismo.

Em outro trabalho central, a obra Histoire et Vérité, é a magna questão da verdade – verdade da história como conhecimento, mas, sobretudo, verdade como horizonte do trabalho humano, teórico ou prático, que aqui aparece ligada a dois traços essenciais: por um lado, a ideia de verdade como meio, definindo a inclusão ou pertença de quem procura a verdade e da verdade procurada, e, por outro, a vinculação da verdade ao sistema dinâmico teoria-prática, o que a coloca na encruzilhada de duas direções – o campo cognoscitivo da objetividade e o campo ético da ação. 

Em se tratando do pensamento teológico propriamente dito, uma das obras mais significativas de nosso autor é Penser la Bible, bem como as abordagens sobre parábolas, a nomeação de Deus, a relação entre Amor e Justiça. Mesmo se Ricoeur pratica diferentes tipos de leitura das Escrituras, ele demarca claramente um número de evidências da leitura histórica. Desse modo, a teologia cristã não seria uma fonte, mas já o resultado do encontro da filosofia e do pensamento bíblico. 

Sendo assim, o trabalho reflexivo sobre o cristianismo é constituído por duas “tarefas” segundo Ricoeur: a hermenêutica dos textos bíblicos e a teologia fundamental. As duas fundamentam a atitude de suspeita da filosofia. Boyd Blundell afirma: 

[...] O teólogo da Universidade de Chicago, David Tracy sugere que uma filosofia hermenêutica é a aliada contemporânea natural do cristianismo porque "proporciona certo tipo de contemporaneidade para uma teologia da revelação". A hermenêutica reorganiza o conceito metafísico da verdade, afastando-se de noções de correspondência ou coerência na direção da sua revelação e manifestação. Ela também concebe a história com uma seriedade sem precedentes na filosofia, e é caracterizada por sua concentração nos textos. A hermenêutica de Tracy vem principalmente de Ricoeur, seu amigo e colega na Universidade de Chicago. E embora a apropriação teológica da hermenêutica de Tracy é cheia de dificuldade, é um projeto importante. (BLUNDELL, 2014, p. 128).[1]

Neste quadro, é importante a ideia de que a esperança assenta naquilo que vai ser designado, em outro momento, como “afirmação originária”, ou seja, primazia ontológica do ser sobre o nada ou da afirmação sobre a negação. Todavia, a função da esperança é apenas de impacto, não podendo ter nenhum papel substantivo na reflexão filosófica porque, para Ricoeur, Filosofia e Religião são discursos irredutíveis um ao outro e, por isso mesmo, devem manter as suas diferenças epistemológicas claras.

Como intérprete da Bíblia, Ricoeur também procura conciliar Filosofia e Teologia. Por esse feito, ganhou o título de doutor honoris causa em teologia pela Universidade Católica de Nimega, na Holanda.

As razões da escolha, segundo o orador da ocasião, o eminente teólogo católico Schillebeeckx, prendiam-se ao fato de que Ricoeur era um ‘adversário do absurdo e um profeta do sentido’; assimilava a crítica da religião em vista de uma purificação das ‘ambiguidades do sagrado’ e praticava uma hermenêutica cristã dentro de uma comunidade eclesial. Descarta, portanto, a razão de que a filosofia de Ricoeur seria “em suma uma teologia disfarçada e na qual o autor, misturando as duas disciplinas, transgride por extrapolação o pensamento filosófico puro” (DI MATTEO, 2005, p. 3).

Depois de sua obra Le Conflit des Interprétations, de 1969 (não desconsiderando outras, mas nela, sobretudo, por causa de suas abordagens hermenêuticas), Ricoeur torna-se um nome de referência para a teologia, sobretudo sobre os temas da Graça e do ser humano. A Comissão Bíblica Pontifícia refere-se a ele como autor de grande método, ao lado de Bultmann e Gadamer. 

A linguagem religiosa da Bíblia é uma linguagem simbólica que “dá a pensar” (o trabalho do texto), uma linguagem em que não se cessa de descobrir riquezas de sentido (em sua polifonia inesgotável), uma linguagem que visa uma realidade transcendente (seu referente específico, a nominação de Deus) e que ao mesmo tempo desperta a pessoa humana à dimensão profunda de seu ser, a suas potencialidades mais próprias e ao testemunho da esperança (AMHERDT, 2006 a, p. 57).

Não obstante, a mesma Comissão aponta uma falha na interpretação bíblica de Ricoeur, por não trazer referências pneumatológicas. Para a Comissão, o filósofo francês traça um caminho racional, mesmo que aberto à transcendência. Podemos afirmar que a fé bíblica é uma fonte motivadora da reflexão de nosso filósofo, mesmo não se colocando como fundamento. A religião se mostra como uma inspiração, como uma “fonte não filosófica da filosofia”. 

Assim, a relação problematizada entre filosofia e religião não pretende nem reduzir a fé à aceitabilidade racionalista, nem autorizar a razão às dimensões transcendentes. Sua hermenêutica se prolonga em uma hermenêutica bíblica e beneficiando-a de seu olhar crítico, de seu sentido das distinções bem como de sua vontade de pluralização. A hermenêutica aparece como “terra de fronteira”, que deve levar em consideração o estado crítico e promete uma ingenuidade segunda, “a alegria do sim na tristeza do finito”. A circulação dos dois domínios se situa em Ricoeur no interior de uma fenomenologia da religião que ele julga possível na condição de se medir com “o estatuto de imediatidade que poderiam reinvidicar as atitudes e os sentimentos solidários da estrutura do chamado e da resposta de ordem religiosa”. (...) o filósofo pode contribuir para discernir a pluralidade dos registros que atravessam o corpus bíblico. É a isso que se dedicou toda a hermenêutica bíblica de Ricoeur: restituir a polifonia que o conduz a refletir até as fronteiras mais distantes do continente filosófico com o gênero profético, que é objeto de sua última Gifford Lecture (DOSSE, 2008, p. 568). [2]

Ricoeur propunha compreender e extrapolar o domínio da interpretação fenomenológica e existencial. A partir da influência de Emmanuel Mounier, ele defende um pensamento centrado na pessoa, evitando o niilismo e o individualismo. 

O homem, na abordagem ricoeuriana, é um ser de falta. Ao contrário de todo o restante na natureza, que é idêntica a si própria, o ser do homem tem como característica a sua falta de ser. Por isso mesmo, ele é conduzido pelo desejo e pelo esforço de se apropriar de si mesmo por meio de seus pensamentos e ações. Dessa forma, procura a si mesmo na sua totalidade. Esse movimento é uma luta constante que ganha espaço na ação hermenêutica, na atividade reflexiva da interpretação. Esta só faz sentido porque o ser humano procura compreender-se a si próprio. Contudo, a totalidade do humano é o seu eu real na plenitude do ato fundador que constitui a arché e o telos da procura, da ação hermenêutica. 

Sempre houve um problema hermenêutico no cristianismo, e, contudo, a questão hermenêutica parece-nos hoje nova. Que significa esta situação e porque é que ela parece marcada por este paradoxo inicial? (...) o cristianismo procede de uma proclamação, de uma pregação originária, segundo a qual, em Jesus Cristo, o reino aproximou-se de nós de modo decisivo. Ora, esta pregação originária, esta palavra, chega até nós através dos escritos, - através das escrituras – que convém incessantemente restituir como uma palavra viva, a fim de que permaneça atual a palavra primitiva que dava testemunho do acontecimento fundamental e fundador. Se a hermenêutica em geral é, segundo a palavra de Dilthey, a interpretação das expressões da vida fixadas pela escrita, a hermenêutica própria do cristianismo está ligada a esta relação única entre as Escrituras e o querigma (a proclamação) a qual remetem (RICOEUR, 1969, p. 373).

A partir de uma tomada de consciência, o indivíduo descentra-se de si mesmo e adentra numa perspectiva de abertura, concretizando a humanidade que emerge com os valores da pessoa em um sentido comunitário. 

Em meio às verdadeiras guerras intelectuais que assolam violenta e soberbamente os meios acadêmicos, Ricoeur, em atitude sempre discreta e humilde, privilegiou a escuta, a atenção profunda à assimetria possível no diálogo e ao argumento sempre respeitável do adversário. Para nós, intelectuais de hoje, seu legado é o de um caminho generoso e certamente apto a conduzir as criaturas falíveis que somos através dos desconfortos destes tempos modernos e pós-modernos (BINGEMER, 2005, p. 2).

O caminho filosófico e teológico de Ricoeur é um esforço para inserir na reflexão todos os aspectos que possam contribuir para a compreensão mais ampla do complexo ser humano, em conflito consigo mesmo, com a existência, bem como com a transcendência. Assim afirma Ricoeur em uma entrevista a Charles Reagan, seu principal estudioso nos Estados Unidos:

Não posso negar que existem motivações religiosas em todo fato que me interessei. Mas não há motivação de interpretação própria, embora devam existir muitas conexões; mas para os argumentos, não há nenhum recurso a algum argumento bíblico em todo trabalho, mesmo na seção ética. Eu afirmo que a ética não é baseada na religião, mas que a religião é algo além do problema do dever. É um problema de doação do dom, e assim por diante. Amor, para mim, por exemplo, não pertence à ética; ele pertence à poética da vontade. E eu concordo com o argumento de Jean Greisch, precisamente porque ele mesmo é um teólogo e um filósofo da razão. Ele faz o mesmo, e Lévinas, também, em seus livros filosóficos não tem argumentos do Talmud. Ele escreve seus estudos talmúdicos separadamente (RICOEUR in REAGAN, 1996, p. 120).[3] 

Peter Kenny (2004, p. 98) delimitou três estágios na carreira de Ricoeur que demonstram a fronteira entre as duas disciplinas. Ele sugere que nos primeiros trabalhos de Ricoeur a delimitação se mostra mais clara, pois há uma tentativa de aceitação pela academia. O estágio intermediário é marcado, por outro lado, por uma delimitação mais clara entre as áreas do saber. O último Ricoeur é aquele que demonstra claramente conceitos de fundo, tais como “Homem Capaz” (1994) e “Superabundância” (1998) como fundantes da condição humana. São conceitos trabalhados extensivamente em suas últimas obras, como veremos no terceiro capítulo. 

Boyd Blundell (2010, p.175) critica essas concepções, que com frequência enfatizam demasiadamente as entrevistas e as obras religiosas do filósofo francês. Ele explora, ao contrário, uma fronteira entre a filosofia e a teologia, abrangendo um amplo conjunto de obras de Ricoeur. Segundo esse autor, pode-se distinguir três fases em Ricoeur: a da hermenêutica bíblica, a da filosofia da religião e a da filosofia pura, e sugere que as duas primeiras receberam ênfase excessiva na recepção de Ricoeur nos Estados Unidos, que o fazem mais teológico do que realmente é. Blundell examina os trabalhos sobre a narrativa e o eu e emprega a estrutura padrão de Ricoeur “ida e volta”. 

Desde o início, Ricoeur considerou a racionalidade filosófica como um desafio a assumir na condição de crente. Dessa forma, procura no círculo hermenêutico compreender mais para crer e crer mais para compreender e alcançar um caminho de maior harmonia entre a filosofia e a religião, mas nunca uma solução simplista. “Eu sempre caminhei sobre duas pernas. Não foi apenas por precaução metodológica que não misturei os gêneros, mas porque procuro afirmar uma dupla referência, absolutamente primeira para mim” (RICOEUR, 1995a, p. 211). 

Tanto nas intervenções filosóficas, quanto em seus trabalhos exegéticos, Ricoeur se esforça para rejeitar tudo aquilo que poderia ser identificado como um “fundamentalismo redutor”, seja especulativo, conceitual ou teológico. É justamente o diálogo entre a filosofia e a religião que ele vê como um antídoto para tal problema. Esse diálogo não pode se instituir sem essa alteridade principal, sem essa diferenciação bem clara entre dois campos, que animam, com o mesmo rigor, um pensamento que nunca perde como horizonte a incompletude. Essa cisão entre os dois domínios teve mesmo uma tendência a se reforçar. Os artigos publicados por Ricoeur nos anos cinquenta e sessenta justapõem as intervenções dos dois registros. Por outro lado, os três volumes de Lectures separam esses domínios. Em Lectures 2 se dedica aos filósofos, em Lectures 3 se situa na fronteira da filosofia, estudando temas teológicos. 

Em Soi-même comme un autre Ricoeur não quis, mesmo que seu editor, François Wahl não visse nenhuma objeção, que sua hermenêutica do si, propriamente filosófica, se finalizasse com dois capítulos de hermenêutica bíblica. Ele se explica no prefácio da obra, reconhecendo que sua escolha é discutível e pode ser criticada, mas mantém um “discurso filosófico autônomo”. Fica aqui claro que ele pretende evitar críticas no campo teológico de que seria um “cripto-filósofo”, pois tentaria transformar a fé bíblica em uma filosofia; e no campo filosófico de que seria um “cripto-teólogo”, pois traria à discussão temas que não são próprios à razão filosófica. Por certo, em ambientes onde a crítica filosófica é mais acirrada, como na França, Ricoeur parece não se sentir à vontade para abordar temas teológicos. No entanto, ministra várias conferências pela Europa, por exemplo, as Gifford Lectures, em Edimburgo, nas quais também aborda temas com forte inspiração teológica. Essa forma de ascese perpassa toda sua obra, configurando-o como um “tipo de filósofo que a nomeação efetiva de Deus está ausente e onde a questão de Deus, na condição de uma questão filosófica, permanece em um suspense que podemos dizer agnóstico” (RICOEUR, 1990, p. 36).

2. A redenção e o perdão como tema essenciais

O perdão, em paralelo à culpabilidade, possui uma dinâmica singular: do passado (culpa), do presente enquanto permanência (confissão) e do futuro (redenção). Dessa forma, Ricoeur explica o aspecto semântico do símbolo.

De uma terceira forma, La Symbolique du mal faz apelo a uma ciência da interpretação, a uma hermenêutica: os símbolos do mal, tanto no nível semântico quanto no nível mítico sempre são o avesso de um simbolismo mais amplo, de um simbolismo da Salvação. Isso já é verdadeiro no nível semântico: ao impuro corresponde o puro; à errância do pecado, o perdão em seu símbolo de retorno; ao peso do pecado o alívio; e, mais geralmente, à simbólica da escravidão, a da libertação. À figura do primeiro Adão respondem as figuras sucessivas do Rei, do Messias, do Justo sofredor, do Filho do Homem, do Senhor, do Logos. O filósofo nada tem a dizer, enquanto filósofo, quanto à proclamação, ao querigma apostólico segundo o qual essas figuras são realizadas no acontecimento de Jesus Cristo. Mas ele pode e deve refletir sobre esses símbolos enquanto representação do fim do mal (RICOEUR, 1977, p. 43).

É somente na retrospectiva da graça que nos é permitida uma visão do que fomos isentos. É na direção desta interpretação que pontua o argumento de Paulo, quando a lógica absurda é superada no que se pode chamar de a lógica da superabundância. Trata-se de outra economia que se expressa de forma inovadora. A Epístola aborda não somente a dádiva como as consequências do pecado: o julgamento vindo após um só pecado leva à condenação; a obra de graça, em seguida a um grande número de faltas, conduz a uma justificação. 

[...] Apresenta o mesmo poder divino como princípio de sensatez e justiça e ao mesmo tempo, como poder de extraviar ou obcecar o homem, então a figura ambígua tende ao trágico; dessa maneira a indistinção ou a identificação entre o divino e o diabólico vem constituir o termo implícito dessa teologia e dessa antropologia trágicas (RICOEUR, 1982, p. 365). 

Dessa forma, não se poderá abordar a culpa, nem a salvação, pois não existe uma sem a outra. Por outro lado, é a intervenção divina que atenta contra a debilidade humana. É dessa maneira que tanto o princípio do bem como o do mal têm a mesma origem. Ou seja, podemos afirmar que o mal é um mistério insondável e que a vitória definitiva do bem sobre o mal não é possível ao homem sozinho, a não ser que esteja aberto à Graça para alcançar sua redenção. 

A lógica da pena era uma lógica de equivalência; a lógica da graça é uma lógica do excesso. Este é, segundo Ricoeur, o ponto central de ruptura com o judaísmo: “é sem as obras da lei” que o homem é justificado, “mas agora, sem a lei, a justiça de Deus se manifestou... porque nós estimamos que o homem é justificado pela fé sem a prática da lei” (Rom 3, 21-28). 

O perdão, por exemplo, é entendido, dessa forma, como também imprescindível à justiça. Os sacrifícios humanos se superam, dissolvendo-se a busca da justiça perante o cumprimento das leis, subvertendo-as. Os sacrifícios perdoam as dívidas que a lei estabelece. Trata-se da flexibilidade da lei mediante a justiça, emanando do amor ao próximo, do reconhecimento do outro, anterior à lei, cujo cumprimento produz justiça. Aqui nos ajuda a teóloga mexicana Bárbara Andrade, em uma perspectiva próxima à de nosso autor.

Apenas a experiência do perdão nos capacita para ver a realidade com novos olhos. A gratuidade da graça é experimentada como “ausência da violência que esperávamos e, por isso, com o dom de algo que não esperávamos”. Enquanto tradicionalmente o pecado original foi explicado como ausência da graça, temos aqui o contrário: a graça é a ausência de violência provocada pelo pecado original (ANDRADE, 2007, p. 159).

Podemos perceber uma tensão entre ética (acerca da possibilidade da falta ou da culpa) e ontologia (acerca de uma afirmação do ser e sua ação) que caracteriza a preocupação antropológica de Ricoeur. Se o homem é um “esforço para existir” antes de ser consciência, é devido ao fato de o mesmo ser animado por uma energia vital, que é denominada por Spinoza como conatus, uma potência de agir que é impactada pelo sofrimento, mas nunca extinta. 

3. Amor e Justiça: a Regra de Ouro e a Superabundância

Tomando como ponto de partida a existência de uma desproporção entre amor e justiça, Ricoeur busca dar ênfase às formas de discurso, ou seja, a poética do amor e a prosa da justiça. No âmbito deste último, afirma que “a justiça argumenta, e de forma muito particular, confrontando razões pró ou contra, supostamente plausíveis, comunicáveis, dignas de serem discutidas pela outra parte” (RICOEUR, 2012, p. 17). No entanto, esse conflito no nível da argumentação inerente ao discurso jurídico encerra-se em uma decisão fundamentada em uma racionalidade específica. Dessa forma, para Ricoeur, “o estágio mais alto que o ideal de justiça pode pretender é o de uma sociedade em que o sentimento de dependência mútua permanece subordinado ao de desinteresse mútuo” (RICOEUR, 2012, p. 21). 

Ao final desse caminho de ênfase na desproporção entre o amor e a justiça, Ricoeur destaca que as duas sugerem pretensões acerca da prática individual e social, que “é a ação que amor e justiça se dirigem, cada um a seu modo, é a ação que ambos reinvindicam” (RICOEUR, 2012, p. 22). Assim, ele pretende superar a dicotomia entre os dois termos, propondo uma interface entre a poética do amor e a prosa da justiça. 

Dessa maneira, a medida do dom é o amor aos inimigos, mesmo que seja algo quase impossível, reafirma a Regra de Ouro.

É a partir dessa nova perspectiva que o perdão existe, na perspectiva da lógica da superabundância. O perdão não pertence totalmente ao domínio moral da reciprocidade e do reconhecimento implicados nos modelos das trocas de memórias. Ele é de outra ordem, daquela da economia do dom e da superabundância, daquilo que podemos intitular de “poética da vontade”. Por poética, é preciso entender um duplo sentido de criatividade no plano da dinâmica do agir e do hino no plano da expressão verbal. Sua potência poética consiste em frisar a lei da irreversibilidade do tempo, considerando a carga da culpabilidade que paralisa a relação entre os homens que agem e sofrem sua própria história. Jesus muda a lógica da equivalência, como no exemplo citado por Ricoeur, o ensinamento do mestre se concretiza pela exceção à regra e não por meio da regra.

Vocês ouviram o que foi dito: “Olho por olho e dente por dente”. Eu porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe pedir, e não vire as costas a quem pede emprestado (Mt 5, 38-39b – 42).

Ricoeur sugere que ordens absurdas foram pronunciadas pela intenção de alterar nossa tendência natural. Para isso, é criada uma tensão deliberada entre a ordem e a maneira que nós vivemos, pensamos e agimos normalmente. Nessas situações é inútil esperar a clareza da lei, pois o ensinamento a ultrapassa. A direção que as palavras de Jesus sugerem se destina à imaginação ética, não à nossa vontade de obedecer sem resistência à regra. Ou seja, a capacidade imaginativa se mostra como o poder de nos abrir a novas possibilidades, de descobrir outra via, vendo as coisas de outro modo, alcançando uma nova regra recebendo o ensinamento de exceção. Aqui se situa o perdão, pois ele também é um bom exemplo de evento excepcional e é uma possibilidade desta mesma imaginação ética. 

A regra de ouro evidencia que o sujeito capaz de agir é potencialmente um transgressor, capaz de tratar o outro como um meio: “Para dramatizar essa inicial dissimetria, direi que o outro é potencialmente a vítima de minha ação tanto quanto seu adversário” (RICOEUR, 1995, p. 294). Por isso, o problema moral da regra de ouro é compreendido de tal modo que não poderia ser solucionado pelo princípio da autonomia. 

Nisso reside a principal diferença entre Kant e a regra de ouro: ao pôr a violência no mesmo lugar que Kant pôs o desejo, a regra de ouro incorpora um aspecto fundamental da ação humana, o poder exercido em e sobre outro, e, assim, recusa delimitar uma linha entre o a priori e o empírico (RICOEUR, 1995, p. 296). 

Aqui podemos lembrar uma forma muito defendida por nosso filósofo quando trata das Escrituras: o provérbio. Submetido ao paradoxo, não orienta senão desorientando. Através de uma ausência de lógica, surge uma nova lógica. Quem buscar conservar sua vida, perdê-la-á, e quem a perder, salvá-la-á (Mc 8, 35; Lc 17, 33). 

O paradoxo consiste em duas afirmações opostas. De um lado, retoma o pressuposto sobre o qual o uso das palavras de sabedoria se apóia, a saber, o projeto de fazer da existência um todo contínuo. Porque quem pode forjar um projeto coerente perdendo sua vida para salvá-la? De outro lado, afirma que apesar de tudo, a vida é concedida através desse caminho paradoxal. Se assim não fosse, teríamos uma simples negação, seja cética, seja irônica, por exemplo, do projeto da existência (RICOEUR, 2006, p. 196). 

O mito do dilúvio também é mencionado por Ricoeur como um enfrentamento da lógica da equivalência. Aqui podemos conceber uma lógica diferente apresentada, transformando em parábola a ressurreição das águas da humanidade (Gn 8, 21-22). Por isso, é sugerida outra lógica, aquela da superabundância, conforme já afirmamos em momentos anteriores.

Javé viu que a maldade do homem crescia na terra e que todo projeto do coração humano era sempre mau. Então Javé se arrependeu de ter feito o homem sobre a terra, e seu coração ficou magoado. E Javé disse: “Vou exterminar da face da terra os homens que criei, e junto também os animais, os répteis e as aves do céu, porque me arrependo de os ter feito (Gn 6, 5-7). Javé aspirou o perfume, e disse consigo: “Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, porque os projetos do coração do homem são maus desde a sua juventude. Nunca mais destruirei todos os seres vivos, como fiz. Enquanto durar a terra, jamais faltarão semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite” (Gn 8-21).

Verificamos uma lógica semelhante é a que se fundamenta o apóstolo Paulo, sobretudo na Epístola aos Romanos, onde afirma a lógica da superabundância, do excesso e da graça. Paulo enfatiza tal perspectiva utilizando a expressão “com mais forte razão”, como se a abundância de expressão da exortação devesse acompanhar aquela do dom que ele concretiza. 

A coisa nova em Paulo é o que ele tornará, por contraste infinitamente precioso, ou seja, o que é novo – Jesus Cristo é ele próprio o “com mais forte razão de Deus”. Jesus no Evangelho é inicialmente aquele que fala e diz a boa nova. Agora ele é anunciado como aquele que, através da loucura da Cruz, quebra a norma de equivalência do pecado e da morte. Há um combate de gigantes: lei e graça; morte e vida. O primeiro homem, de um lado: “se pela culpa de um só...” De outra parte, o homem verdadeiro “com mais forte razão a graça de Deus e o dom conferido pela graça de um só homem, Jesus Cristo, se espalharam em profusão pela multidão”. A Igreja, pela boca de São Paulo, dá um nome, o nome de Jesus Cristo à lei da superabundância. Há signos concretos desta economia nova. O perdão pode ser um deles (MIGLIORI, 2007, p. 46). 

A justificação de Paulo é um elemento central nas articulações do perdão, pois nosso filósofo acrescenta à análise do perdão a lógica do excesso ou da superabundância paulina. Existe uma reciprocidade entre o dar e o receber que soluciona o problema da dissimetria horizontal do dom sem espírito de retribuição. Dessa maneira, o reconhecimento da dimensão de reciprocidade da relação entre pedido e oferecimento do perdão constitui uma etapa primordial na reconstrução desta relação. Nosso filósofo sustenta a economia do dom em uma perspectiva de doação originária e por meio de um enraizamento teológico: a religião intenta situar toda experiência na perspectiva da economia do dom. 

Dizer perspectiva, não é dizer fundamento, mas sentido, isto é, ao mesmo tempo significação e direção; dizer dom é ter em vista uma doação originária, que tem como beneficiária toda criatura, e não apenas a humanidade e sua moralidade, a qual está bem fundada sobre si mesma. Dizer economia é dizer que o dom se exprime numa rede simbólica, muito mais vasta que aquela que gravita em torno da confissão e da remissão dos pecados. O primeiro predicado de bondade, que resulta nessa economia do dom, está ligado ao ser criado enquanto tal; ele está, pois, antes de toda determinação propriamente moral. Dele se lê a primeira expressão bíblica próxima do final da narrativa da Criação: Deus viu tudo o que havia feito. Eis que era bom. Este é o sentido supramoral da bondade na economia do dom. Reconhecer esta bondade da Criação é responder-lhe com uma humildade reverencial a respeito do Criador e com uma compaixão sem limites por todas as criaturas (RICOEUR, 1992, p. 177).

O lugar privilegiado do perdão estaria em um ponto de convergência entre a lembrança e o luto. Por isso, podemos imaginar uma espécie de cura pelo perdão, por meio de uma vulnerabilidade intrínseca ao humano, iniciando na região da memória e prosseguindo pelo esquecimento. O perdão e o esquecimento possuem uma relação fundamental, pois agrega à lembrança e ao luto a dimensão da generosidade. Nessa perspectiva, nos ajuda também a teóloga mexicana Bárbara Andrade:

[...] A experiência de fé, de sermos incondicionalmente amados, abre nossos olhos e nos faz ver os outros sob nova luz; aparecem-nos como incondicionalmente amados como nós mesmos e, por isso, perdoados como nós. Por isso, já não percebemos pecadores, e sim pessoas que vivem junto a nós no “espaço da graça”. Como é possível nos incomodarmos com um pecado já perdoado? Como podemos julgar alguém que já foi justificado? Pareceria que, na experiência de fé, a única atitude coerente com o “abraço trinitário” seria o perdão. Se assim fosse, se seguiria uma conseqüência importante: se no perdão aprendemos a perdoar, já não podemos reconhecer nenhum pecado, mas apenas um pecador perdoado - e isso averiguaria exatamente na medida em que aprendêssemos a perdoar. Poderíamos, pois, chegar a esta formulação fundamental: a experiência de fé tem a característica de nos deixar sem critério algum para o reconhecimento do pecado (ANDRADE, 2007, p. 29).

A lógica da superabundância em Paulo, que se opõe à lógica da equivalência da lei acrescenta elementos que compõem a economia da dádiva que interrompem o esquema dívida-pagamento. Podemos aqui afirmar que as misérias pelas quais a vinda do Cristo tem por finalidade remediar são formas ou consequências do pecado. O dogma da queda confirma esta conclusão. Na origem da economia redentora é necessário inserir a afirmação trazida por Deus para reerguer o gênero humano, após o desastre da queda. O dogma da redenção pressupõe aquele da encarnação, do qual é prolongamento. A ideia da redenção nos convida a ver em Deus um pai sempre pronto a nos socorrer e conceder seu perdão. As parábolas como as do filho pródigo e do bom pastor são, simultaneamente, reveladoras das possibilidades de conversão e o auxílio preventivo que ele pode esperar de Deus. É possível, dessa forma, alcançar a libertação do mal e a remissão das dívidas. 

Conclusão       

Ricoeur, ao examinar qual o sentido filosófico que se pode relacionar à Paixão e à morte de Jesus, afirma a existência de uma tradição majoritária, com base no Novo Testamento, que compreendeu esta morte em termos de sacrifício. Ou seja, Jesus foi punido em nosso lugar. Por outro lado, há outra tradição que vai além, pois acentua o dom gracioso que Jesus permite com sua existência: “Não há maior amor que o de dar sua vida por seus amigos” (Jo, 16,13). Ricoeur afirma assim a libertação da teologia da cruz de uma interpretação sacrificial. 

O perdão, em analogia à Graça, é entendido então como imprescindível à justiça. Os sacrifícios humanos se superam, dissolvendo-se a busca da justiça perante o cumprimento das leis, subvertendo-as. Os sacrifícios perdoam as dívidas que a lei estabelece. Trata-se da flexibilidade da lei mediante a justiça, emanando do amor ao próximo, do reconhecimento do outro, anterior à lei, cujo cumprimento produz justiça. 

Assim, partindo da experiência de fé, já não existe acesso direto à compreensão do pecado, mas apenas indireto. O resultado é que o tratamento tradicional do pecado original seguido pela apresentação da graça foi invertido, ainda que agora tenhamos a vantagem de ter assumido o consenso teológico atual de que o privilégio corresponde à graça.  Na perspectiva da experiência do perdão e da esperança fundada na cruz e na ressurreição, bem como com a liberdade como o ser libertado e curado no encontro com Deus, podemos concluir que: no encontro com Deus experimentamos, pela fé, um perdão que pela primeira vez nos revela nossos pecados. Ele nos liberta e capacita para o encontro com o outro. Ou seja, a graça de Deus está sempre presente, contígua a qualquer momento histórico, assim como subversiva a ele. Não é a autotranscendência humana universal que se torna explícita durante os eventos e as narrações sobre a salvação, mas a manifestação visível da doação gratuita e universalmente presente em Deus, permitindo que nos tornemos receptáculos vivos em vez de reiterarmos nossos modos de apropriação do outro que nos forma, o qual é revelado como puramente gratuito. No entanto, uma das intuições reveladas pela doutrina do pecado original nos mostra que o dano da queda foi incidido exatamente em nossa capacidade de receber gratuitamente. 

É importante ressaltar que essa preocupação com a gratuidade reaparece no fragmento póstumo de Ricoeur (Vivant jusqu´à la mort). Por um lado, sua investigação é sustentada por uma atitude agnóstica em vista da autonomia do discurso filosófico. De outra parte, ela é sustentada pela motivação de fornecer fundamento à fé na condição de recurso não-filosófico, problemática que acompanhou nosso filósofo em toda sua vida. Ele afirma que é um “filósofo sem absoluto” ligado por essa atitude agnóstica, anunciando que é um “cristão de expressão filosófica”. Essa disposição é, segundo ele, aquela de assumir uma situação esquizoide que tem sua dinâmica, seus sofrimentos e suas pequenas alegrias.

A autonomia do discurso filosófico coloca em evidência a autossuficiência da pesquisa filosófica e da estrutura do discurso filosófico. Os sofrimentos designam a dificuldade de reconciliação: o esforço para manter sem cessar a autonomia do discurso filosófico, sem o confrontar com a fé bíblica, provoca por vezes a contradição. As pequenas alegrias significam talvez um estado de equilíbrio, de consentimento ao que é. A fé bíblica independente é preservada do ato livre do filosofar e, dessa forma, as duas esferas são colocadas em tensão. 

Dessa forma, podemos afirmar uma lógica do perdão que não deriva de uma retribuição. Em Soi-même comme un autre, Ricoeur retorna à regra de ouro. Essa regra indica a importância de tomar iniciativas com respeito a outrem. Dessa maneira, o Evangelho de Lucas porta sabedoria: “Aquilo que você quer que os homens façam por você, faça semelhantemente por eles” (Lc 6,31). Para o filósofo francês, a regra de ouro pertence a uma economia do dom. Graças a ela, é possível relacionar a ética teleológica e a moral dita deontológica. 

Dessa maneira, a dialética entre amor e justiça não pretende eliminar o contraste existente entre a lógica da superabundância e a lógica da retribuição. Ao contrário, uma vez que sustenta que a justiça é o meio necessário ao amor, e que a generosidade deve ser incorporada aos códigos jurídicos, essa dialética busca um equilíbrio reflexivo entre as duas lógicas. Por isso, “é somente no âmbito do juízo moral em situação que o equilíbrio instável entre amor e justiça pode ser instaurado e protegido” (RICOEUR, 2012, p. 33). 

É essa lógica que reorganiza em um sentido poético o horizonte da regra de ouro, pois o conteúdo desta exige o poder da imaginação, bem como a abertura a novas possibilidades de significados. Dessa maneira, a justaposição da regra de ouro e do mandamento do amor na narrativa bíblica exige uma saída poética, podendo esta ser desenvolvida em duas dimensões: na simbólica, como no Sermão da Montanha e também no Sermão da Planície, onde é desenvolvido o primado do dom sobre a obrigação. Por outro lado, no plano teórico há uma articulação da economia do dom com a economia da reciprocidade, permitida pelo dom que gera obrigação. 

Contrário ao vazio ético dos filósofos da suspeita, Ricoeur afirma uma reinterpretação da regra de ouro no sentido do mandamento do amor. O primeiro exige a lógica da reciprocidade e o segundo a do dom. 

Referências

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Paul Ricoeur. La Bible et l´imagination. Revue d´histoire et de philosophie religieuses, n. 62, 339-360, 1982. 

Paul Ricoeur. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990.    

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Paul Ricoeur. La critique et la conviction. Paris: Calmann-Lévy, 1995a.

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Paul Ricoeur. Penser la Bible. Paris: Seuil, 1998.

Paul Ricoeur. A Hermenêutica Bíblica. São Paulo: Loyola, 2006.

Paul Ricoeur A memória, a história e o esquecimentoCampinas: Editora Unicamp, 2007a.

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François-Xavier Amherdt. L´herméneutique philosophique de Paul Ricoeur et son importance pour l´exégèse biblique. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004.

Bárbara Andrade. Pecado original... ou graça do perdão? São Paulo: Paulus, 2007.

Boyd Blundell. Paul Ricoeur between theology and philosophy: detour and return. Indiana: Indiana University Press, 2010. 

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François Dosse. Paul Ricoeur: les sens d'une vie. 3. ed. Paris: La Découverte, 1997.

Peter Kenny. Memory, Narrativity, Self and the challenge to think God: the reception within theology of the recent work of Paul Ricoeur. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

Maria Luci Buff Migliori. Horizontes do Perdão. Reflexões a partir de Paul Ricoeur e Jacques Derrida. São Paulo: PUC-SP, 2007. 

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Notas

[1] (...) University of Chicago theologian David Tracy suggests that a hermeneutical philosophy is the natural contemporary ally for Christianity because it “provides the kind of contemporary needed by a revelational theology”. Hermeneutical reorganizes the metaphysical concept of truth, moving away from notions of correspondence or coherence toward of disclosure and manifestation. It also takes history with   serious unprecedented in philosophy, and is characterized by its concentration on texts. Tracy´s exposure to hermeneutics comes chiefly from Ricoeur, his friend and colleague at the University of Chicago. And while Tracy´s own theological appropriation of hermeneutics is fraught with difficulty, it is an important project (BLUNDELL, 2014, p. 128).

[2] Ainsi, la relation problématisée entre philosophie et religion ne saurait ni réduire la foi à l´acceptabilité rationaliste, ni autoriser la raison à des dimensions transcendantes. Son herméneutique se prolonge en une herméneutique biblique et il fait bénéficier celle-ci de son regard critique, de son sens des distinctions ainsi que de sa volonté de pluralisation. L´herméneutique “apparaît ainsi terre-frontière”, qui doit prendre en consideration le stade critique et promet une naïveté seconde, “la joie du oui dans la tritesse du fini”. La circulation des deux domains se situe chez Ricoeur à l´intérieur d´une phénoménologie de la religion qu´il juge possible à condition de se mesurer avec “le statut d´immédiateté que pourraient revendiquer les atitudes et les sentiments solidaires de la structure d´appel et de réponse d´ordre religieux”. (...) le philosophe peut contribuer à discerner la pluralité des registres qui traversent le corpus biblique. C´est ce à quoi s´est employée toute l´herméneutique biblique de Ricoeur: restituer la polyphonie qui le conduit à réfléchir jusqu´aux fronteires les plus lointaines du continente philosophique avec le genre prophétique, qui est l´objet de sa dernière Gifford Lecture.

[3] I cannot deny that there may be religious motivations in the very fact that I am interested in the self. But there is no self-interpretating motivation, althought there may be some connection; but for the arguments, there is no recourse to any biblical argument in the whole work, even in the ethics section. I claim that ethics is not based on religion, but that religion is something other than a problem of duty. It is a problem of giving the gift, and so on like that. Love, for me, for example, does not belong to ethics; it belongs to a poetics of the will. And I have the agreement of Jean Greisch, precisely because he is himself a theologian and philosopher of reason. He does the same, and Lévinas, too, in his philosophical books has no arguments from the Talmud. He writes his Talmudic studies separately.