A Revelação cristã como manifestação da Trindade

Christian Revelation as a Manifestation of the Trinity

Tiago de Fraga Gomes
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: tiago.gomes@pucrs.br


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Resumo: A presente pesquisa, no anseio de fazer que as fontes da fé cristã revelada dialoguem com a experiência das pessoas de hoje, busca responder às seguintes questões: Qual a relevância de pensar a dinâmica da Revelação cristã em perspectiva trinitária? Que contribuições essa forma de fazer teologia pode trazer para os cristãos na atualidade? Parte-se do pressuposto epistemológico que a Revelação cristã, em seu conteúdo e em sua dinâmica histórico-salvífica, é a primeira realidade cristã: o fato primordial, o Mistério primário, a primeira categoria propriamente teológica. A Revelação é Mistério e acontecimento histórico que versa sobre a comunhão entre a Transcendência divina e a imanência humana. Refletir sobre a Revelação cristã em termos trinitários permite teologizar pelo viés do encontro e do diálogo, onde Deus aparece como Mistério relacional e comunional, gênese transcendente e arquetípica da comunhão humana, e modelo de relacionamentos saudáveis e gratuitos que respeitam as identidades e valorizam a diversidade na dinâmica de uma alteridade irredutível. Considerando estes aspectos, pretende-se tratar da dinâmica da ação trinitária nos lugares de sua manifestação na Criação, na História, na Encarnação e na Igreja.

Palavras-Chave: Revelação; Trindade; História; Mistério; Igreja

Abstract: This research, in the desire to make the sources of revealed Christian faith dialogue with the experience of people today, seeks to answer the following questions: What is the relevance of thinking about the dynamics of Christian Revelation in a Trinitarian perspective? What contributions can this way of doing theology bring to Christians today? It starts from the epistemological assumption that the Christian Revelation, in its content and in its historical-salvific dynamics, is the first Christian reality: the primordial fact, the primary Mystery, the first properly theological category. Revelation is a Mystery and historical event that deals with the communion between divine Transcendence and human immanence. Reflecting on Christian Revelation in Trinitarian terms allows for theologizing through encounter and dialogue, where God appears as a relational and communal Mystery, a transcendent and archetypal genesis of human communion, and a model of healthy and gratuitous relationships that respect identities and value diversity. in the dynamics of an irreducible alterity. Considering these aspects, it is intended to deal with the dynamics of Trinitarian action in the places of its manifestation in Creation, History, Incarnation and Church.

Keywords: Revelation; Trinity; History; Mystery; Church

Introdução

A presente pesquisa, consciente de que a Revelação é o fundamento do próprio teologizar (EUFRÁSIO; GOMES, 2018, p. 169), tem como pressuposto epistemológico a Revelação cristã, seu conteúdo e sua dinâmica histórico-salvífica. Para a fé cristã, Deus rompeu o silêncio: saiu de seu Mistério, revelou-se; dirigiu-se ao ser humano e desvendou-lhe os segredos mais íntimos de sua vida pessoal. O cume e a plenitude dessa manifestação aconteceram na Pessoa do Filho: Jesus Cristo. “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais; nestes últimos, falou a nós no Filho” (Hb 1,1). Deus comunicou seu desígnio inaudito, manifestou sua natureza e estabeleceu uma Aliança para fazer a humanidade participar de sua própria vida. O Deus vivo falou à humanidade: esse é o fato fundador de ambos os Testamentos bíblicos: Antigo e Novo.

A Revelação ou Palavra de Deus à humanidade é a primeira realidade cristã: o fato primordial, o Mistério primário, a primeira categoria propriamente teológica. Toda ordem do conhecimento da fé repousa sobre o Mistério da automanifestação de Deus que ocorre na dinâmica de uma Economia ou Pedagogia – processual e progressiva (BRUSTOLIN; GOMES, 2022, p. 36) que respeita tempos e momentos, e se adapta à captação e à compreensão de seus interlocutores –, cujo objetivo é soteriológico: Deus se revela para salvar. Sendo assim, o desenrolar da automanifestação divina se dá sob a forma de uma Economia da Salvação.

A Revelação de Deus é o Mistério primordial – original e originante –, o acontecimento decisivo do cristianismo: fato condicionante para a opção de fé. Se Deus falou à humanidade, a opção de fé não será um caminho às cegas, mas uma opção plenamente humana, compatível com a razão, de acordo com a natureza inteligente e livre do ser humano. Nesse sentido, a própria inteligência da fé fundamenta-se na Revelação. Em teologia, tudo depende da Revelação divina, nada se explica a não ser à sua luz. Assim como as grandes realidades referentes ao Mistério de Deus, a Revelação mostra-se, aos teólogos, como algo complexo, tocando as várias dimensões da existência. Contudo, há uma harmonia – unidade na diversidade – na ação reveladora de Deus: um projeto que exige um grande esforço intelectual para ser aprofundado em seu rico e complexo significado, que em última instância, manifesta a autocomunicação de toda Trindade à humanidade.

Na Revelação, é toda a Trindade que atua. O Pai envia o Filho (1Jo 4,9-10; Jo 3,16); dá testemunho em seu favor (Jo 10,25;5-36-37) e atrai todos os homens para o seu Filho por meio de uma força interior que põe no coração deles (Jo 6,44). O Filho, por sua vez, dá testemunho do amor do Pai (Jo 3,11) e o comunica aos homens, levando a termo a obra salvífica querida pelo Pai. O Espírito Santo é quem dá poder e eficácia às palavras de Jesus, ilumina a mente e sustenta a vontade dos homens para que se abram à compreensão e à acolhida da comunicação de Deus. De acordo com esses dados, temos de afirmar com toda segurança que a Revelação cumprida em Cristo é ao mesmo tempo obra do Pai e do Espírito Santo (RUIZ ARENAS, 1987, p. 111).

Ladaria (2009) parte do axioma rahneriano das relações entre Trindade econômica e Trindade imanente, a partir do qual se percebe que é desde a Economia da Salvação que se pode adentrar no que Deus é em si mesmo. Não é casual o fato de que Deus se comporte na História de modo trinitário. Apesar da Economia não esgotar o Mistério, é a única via para a Teologia. Segundo Ladaria, a teologia contemporânea enfrenta duas grandes tentações: a) o agnosticismo moderno, segundo o qual a Revelação cristã não oferece ao ser humano o verdadeiro conhecimento de Deus uno e trino e a participação em sua vida; b) a conceituação totalizante, que tem a pretensão de esgotar o conhecimento do Mistério divino. Diante dessas posturas errôneas, é preciso frisar que o Mistério divino se manifesta, sem deixar de ser Mistério. Deus é inabarcável, nenhuma figura reveladora consegue esgotar todas as suas qualidades.

A Revelação divina, enquanto ação trinitária, é manifestação do Pai e do Filho e do Espírito Santo. A fecundidade espiritual da Trindade expande-se no Verbo que é proferido e no Espírito que é expirado. O proferir ou expirar intratrinitário transborda como uma atividade ad extra no tempo; o eterno adentra kairologicamente a História: é a Revelação. Assim, o Pai, pela ação conjunta do Verbo e do Espírito – seus dois braços (Santo Irineu) – se revela à humanidade, atraindo-a a si. O próprio Amor – Deus é Amor (1Jo 4,8) e revela-se como Mistério de amor (MATEO-SECO, 1998, p. 638) – motiva o encontro gratificante de autodoação recíproca e a dinâmica de expressão e resposta entre Deus e a humanidade. O Amor revelado é comunicação de vida e de ser (GONZÁLEZ DE CARDEDAL, 2004, p. 30), e dá testemunho de si em uma relação vital com o ser humano, que se vê implicado em um processo de reconhecimento e acolhida da oferta gratuita do Deus-Amor. O amor move à fé e incita à esperança, no já e no ainda-não, no caminho do encontro definitivo: o face-a-face, a visão beatífica. Tendo em vista que o Mistério imanente de Deus se revela na Economia temporal, a presente pesquisa percorrerá o itinerário da ação trinitária nos lugares de sua manifestação na Criação, na História, na Encarnação e na Igreja.

1. Revelação como manifestação da Trindade na Criação

Na perspectiva da Revelação judaico-cristã, é possível afirmar que Deus criou tudo por amor. Através de toda a obra da Criação, Deus quis apresentar ao ser humano um plano de amor. Diante da pergunta: De onde vem a vida? É possível sustentar, do ponto de vista judaico-cristão, que a vida surgiu do amor de Deus. As Sagradas Escrituras afirmam que as maravilhas de Deus – mirabilia Dei – na Criação manifestam a bondade (Gn 1,31), a sabedoria (Sl 104,24) e o esplendor de Deus (Sl 111,3-4). O Catecismo da Igreja Católica confirma isso, sustentando que a razão pela qual Deus criou o universo foi – em virtude de seu amor e de sua bondade – para manifestar a sua glória (CIC 293).

Deus se revela para além do Livro das Escrituras, no Livro da Criação. O ser humano é capax Dei. Por isso, pode conhecer a Deus mediante a razão natural a partir da obra da Criação. O cosmos – toda Criação – esconde um Mistério de graça e beleza (HAUGHT, 1998, p. 203-206); graça, pois Deus dá na Criação um estado de paz e harmonia aos seres criados para que vivam em comunhão; beleza, porque tudo está em perfeita ordem. Assim, em sintonia com a Criação, é possível perceber um reflexo da natureza divina, a qual extrapola os limites de conhecimento das criaturas. Contudo, para que o ser humano criado possa ter acesso ao conhecimento do Criador, na ordem sobrenatural, é preciso que Deus tome a iniciativa.

Considerando que Deus é Uno e Trino, e que a Criação é obra de Deus, eis a importância de refletir sobre a Revelação como uma manifestação da Trindade na Criação (JOÃO PAULO II, 2000a). Os seres humanos podem ascender ao conhecimento de Deus através das obras da Criação, o que torna possível a afirmação: “Como são agradáveis todas as suas obras, ainda que delas se veja apenas uma faísca! Ele não fez nada incompleto. Ninguém se cansa de contemplar a glória de Deus!” (Eclo 42, 22.24-25). Contemplando a Criação, em sua complexidade e beleza, verte um anseio profundo no espírito humano para glorificar a Deus por suas maravilhas! A Palavra de Deus apresenta o fim último de tudo: Deus. “Ele é o Grande, e está acima de todas as suas obras” (Eclo 43,27-28). Em atitude de admiração, o ser humano contempla e louva a Deus através do esplendor da Criação. A contemplação é o fio de ouro que percorre as Sagradas Escrituras, desde o Gênesis, do silêncio, do nada, quando surgem as criaturas convocadas pela Palavra eficaz do Criador: “Deus disse: exista a luz! E a Luz começou a existir!” (Gn 1,3). Segundo a Revelação judaico-cristã, a Palavra de Deus criou o universo – na intenção do Pai, na sabedoria do Filho e na força do Espírito Santo –; a Palavra – Dábar – do Deus vivo é ativa: cria do nada – ex nihilo – e opera a salvação na história, onde faz conhecer sua face; a história de Deus com seu povo é história de fala (MANNUCCI, 1986, p. 42-43).

Na primeira narração da Criação já se vê em ação a Palavra de Deus, da qual João dirá que tudo foi feito por meio dela (Jo 1,1-3). Paulo reafirmará que por meio da Palavra foram criadas todas as coisas, as celestes e as terrestres, as visíveis e as invisíveis, e na Palavra (Cristo) tudo subsiste (Cl 1,16-17). No instante inicial da Criação aparece velada a ação do Espírito de Deus que se move sobre as águas (Gn 1,2), assim como o ato criativo do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem sombra de variação, e que por vontade própria nos gerou pela Palavra de verdade (Tg 1,13-18). Diante do nada, representado pelas águas caóticas, o Criador ergue-se dando consistência a tudo, em toda terra, com seu poder e majestade (Sl 8,2; 93,3-4). Diante da glória da Trindade na Criação, o ser humano contempla, canta e reencontra a admiração (Sl 19,2-5).

O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade (LS 238).

Os capítulos iniciais do Gênesis, do ponto de vista literário, têm diversas fontes. Todavia, exprimem as verdades da Criação: da origem e do fim desta em Deus; da sua ordem e da sua bondade; da vocação do ser humano; e, finalmente, do drama do pecado e da esperança de salvação. Na Criação há uma profunda comunhão de amor que desvela Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo. “Insinuada no Antigo Testamento, revelada na Nova Aliança, a ação criadora do Filho e do Espírito, inseparavelmente una com a do Pai, é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja [...] A Criação é a obra comum da Santíssima Trindade” (CIC 292). O universo e o ser humano são obras de amor que manifestam a comunhão desejada pela Trindade. Há uma conexão entre as criaturas e o Criador, um vínculo vital de interdependência que requer cuidado.

A vida humana na Terra, obra admirável feita à “imagem e semelhança” (Gn 1,27) da Trindade, se realiza em comunhão com o todo criado. O autor da Criação é o Deus Uno e Trino, que oferece ao ser humano sua obra para que seja administrada com cuidado. Bruno Forte afirma que o ser humano, maravilhado e extasiado, percebe que deverá no “plano ético prestar contas ao Deus vivo do modo com que se relacionará com a natureza que o Eterno confiou aos seus cuidados” (1995, p. 216). A Criação enquanto obra da Trindade faz pensar que é preciso criar uma rede de comunhão, conforme o desejo de Deus. Para viver bem, o ser humano não pode fugir do desígnio de comunhão que emerge do circuito amoroso que irrompe da Trindade à Criação. A subsistência na tríplice hipóstase do Amor faz parte do Ser Agápico que atua em três distintos sujeitos: Pai, Filho e Espírito Santo. A perichoresis – interpenetração – trinitária, no latim medieval traduzida por circuminsessiocircum = em redor; insidere = estar em cima ou dentro – designa a comunhão ou recíproca efusão de amor entre os Três Eternos Amantes. São Boaventura usa a expressão, designando a terceira grande verdade da vida trinitária, como ponte entre a Unidade e a Trindade, ou seja, a comunhão (KLOPPENBURG, 1999, p. 136).

As Pessoas divinas são relações subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente se entrelaçam. Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem entre as criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa própria realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do Mistério da Trindade (LS 240).

Em suma, é possível afirmar que: a) Deus Uno e Trino é Criador, sua Palavra irrompe e age: o céu foi feito com a Palavra de Javé, e seu exército com o sopro de sua boca; Ele diz e a coisa acontece, Ele ordena e ela se afirma; Ele envia suas ordens à terra e sua Palavra corre velozmente” (Sl 33,4.6.9; 147,15); b) No Antigo Testamento, a Sabedoria Divina personificada como Aquela que dá origem ao cosmo, faz acontecer o projeto da mente de Deus (Pr 8,22-31); se antevê aí o anúncio da ação de Cristo “por quem tudo existe” (1Cor 8,6), pois é “por meio dele que (Deus) também criou o mundo” (Hb 1,2); c) A própria Escritura lembra o papel do Espírito de Deus no ato criativo: “Envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104,30); o mesmo Espírito é simbolicamente representado no sopro da boca de Deus, Ele dá vida e consciência ao ser humano (Gn 2,7). Portanto, a Criação testemunha que a Trindade age e faz. Contudo, o Deus Trindade não agiu apenas na Criação primordial, mas continua agindo na História – no passado, no presente e no futuro –, onde irrompe seu desígnio eterno, firmando uma Aliança e proferindo sua Promessa, conduzindo a Criação ao seu evento máximo e pleno: a Encarnação, e dando à História um significado salvífico.

2. Revelação como manifestação da Trindade na História

A Revelação divina, enquanto Transcendência que se manifesta no âmbito da imanência, acontece na concretude da História, em determinado tempo e lugar (ZILLES, 1972, p. 46). O Deus Uno e Trino intervém na história humana emigrando de si, a fim de estabelecer um encontro de liberdades (BOAVENTURA, 2006, p. 385). A Revelação não ignora as alteridades, nem passa por cima das culturas (SUSIN, 1991, p. 188). Pelo contrário, em sua dinâmica intrinsecamente histórica (ELLACURÍA, 1990, p. 323-372), a Revelação privilegia a mediação histórica (GOMES, 2021, p. 27) e só pode ser acolhida pela subjetividade humana e comunicar algo relevante enquanto integra acontecimentos e dramas inerentes à própria História (TORRES QUEIRUGA, 2010, p. 180). Nesse sentido, a Revelação é interpretação na fé da ação de Deus na História em favor de seu povo, e a própria resposta de fé pertence ao conteúdo da Revelação. A Revelação atinge sua plenitude na fé que a acolhe, sendo um conhecimento interpretativo marcado pelas condições cognitivas daqueles que a acolhem (LIBANIO, 1992, p. 404). Em sentido heideggeriano, enquanto ser-no-mundo – Dasein –, o ser humano não pode acolher a Revelação fora do mundo; a vinda de Deus realiza-se, primeiramente, na realidade mundana da História, como experiência, e posteriormente, é elaborada e interpretada pela consciência dos crentes como conhecimento ou doutrina revelada (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 25-30).

Para o Papa João Paulo II, a História se desenrola como o aqui e agora da salvação (2000b). Para a fé cristã, não há “duas histórias” separadas ou paralelas, uma “profana” e outra “sagrada”, mas uma única História conduzida desde sempre por um desígnio salvífico que se origina no Pai, se centra no Filho e se desvela pela ação do Espírito Santo. Uma História preparada e providencialmente acompanhada por Deus, onde Deus intervém com sua graça – kairós – e prol da plenificação da humanidade e de toda a Criação. Deus se manifesta na História concebida em sua integralidade.

A História é o cenário da Revelação, ou seja, a Revelação se dá num espaço e num tempo determinados e está submetida às coordenadas históricas. Essa submissão à História é fundamental para a Revelação, de tal modo que esta não se apresenta como absoluto atemporal, mas vai se realizando num processo e num progresso histórico até o cume que é Cristo. Ao mesmo tempo, a Revelação se dá na História e vai configurando a História desse povo receptor e portador da Revelação. Esse caráter histórico se opõe à ideia mítica sucedida num metatempo e num metaespaço fora de nossa realidade histórica (RUIZ ARENAS, 1987, p. 59).

Na dinâmica da Revelação cristã, a História não é mero acidente. Sendo assim, o encontro entre a Verdade absoluta do Deus que se revela e a contingência da História, leva a perguntar: Como conjugar a História edificada por atos humanos e o desígnio eterno de Deus? Até que ponto é possível conceber que pela mediação das ações humanas se faça presente a Providência divina? O conteúdo da Revelação de Deus está limitado às categorias próprias de determinada época ou cultura específica ou transcende-as? Como pode valer para toda a humanidade – em todos os tempos e lugares – uma Revelação que se dá pela via histórica em momentos determinados? Questões como estas indicam ser necessário um discernimento entre a natureza dos atos divinos – enquanto ocorridos em uma série de fatos e eventos históricos, contendo um significado salvífico-espiritual – e as ações e/ou situações humanas – com suas especificidades e consequências (RUIZ ARENAS, 1987, p. 65), de modo que se compreenda que, apesar da Verdade transcendente de Deus não se confundir com os elementos históricos espaciotemporais da realidade humana e cósmica, a autocomunicação divina assume uma perspectiva econômica acessível às criaturas enquanto imersas em seus condicionamentos vitais – próprios de suas condições de possibilidade existencial.

O Deus que se revela, age por mediações e estabelece Aliança com a humanidade por meio de eventos e acontecimentos progressivos, situados no tempo e no espaço, mas com um horizonte eterno. Para a Revelação cristã, a História é o lócus – lugar – da salvação, tornando-se, assim, História da Salvação. A salvação acontece enquanto fruto da intencionalidade divina que se dispõe e empenha em prol da Redenção de sua própria Criação. As Promessas de Deus de vida em plenitude são irrevogáveis, e na fugacidade da História, estabelecem marcos escatológicos de uma esperança viva que empenha o advento de uma realidade nova e duradoura. Na dimensão histórica da Revelação cristã, há uma integração entre Aliança e Promessa:

O cristianismo se reconhece como uma religião histórica que crê no fato de que a comunicação divina se deu normalmente através de uma série de fatos e de experiências no contexto de um determinado povo. A Palavra salvífica entrou no mundo através da História de Israel e, de modo definitivo, através de Jesus de Nazaré. Os cristãos experimentam agora a comunicação de Deus através da pregação, dos sacramentos e de outras ações litúrgicas que interpretam e reatualizam esses fatos do passado. Deste modo, o passado, ao ser recordado e interpretado, é profundamente significativo para a experiência de Revelação e de salvação hoje (RUIZ ARENAS, 1987, p. 58).

O cristianismo é herdeiro da experiência de fé de Israel que entende a História como o lugar da epifania de Deus. Nessa perspectiva, é importante, não apenas o que Deus fez em um passado longínquo ou remoto, mas o que Deus faz e fará, conforme suas promessas. No fundo, a noção de Revelação como História confere uma perspectiva escatológica à experiência de fé, de modo que a presença de Deus se mostra sempre atuante ou iminente na vida do povo, nutrindo a confiança de que o Deus transcendente está sempre próximo da imanência da sua Criação, sem se confundir ou se submeter a esta, porém, dando provas de que não é apático às suas crises: “Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo” (Ex 3,7-8).

Para o cristianismo, Deus não se revela presente na História apenas através de seus feitos, como em uma cosmologia onde as coisas surgem e perecem por força própria, ou ainda, como em uma cosmogonia onde Deus cria, mas se distancia de suas obras, chegando a se desligar totalmente delas. Na perspectiva cristã, Deus age e se revela por amor; não está ausente como um “mito” inalcançável, mas está presente como Aquele que caminha junto (Lc 24,13-35). Deus não só age na História, Deus faz História. Contudo, a História, por si só, ou entregue a si mesma, não é Revelação. “Dizer que Deus se revela na História não significa afirmar que a História é automática, clara e simplesmente Revelação de Deus. Se assim fosse, conhecer a Revelação equivaleria a um puro processo de interpretação da História” (MANNUCCI, 1986, p. 44). A crucificação de Jesus de Nazaré, por exemplo, enquanto considerada em si mesma, trata-se de uma horrível e escandalosa pena política aplicada pelo Império Romano. Porém, se interpretada à luz da fé, encontrando aí um sentido profundo, a crucificação e morte na cruz tornam-se fatos que, selados pela ressurreição, emergem como Evento Pascal que transcende a violência injusta e opressora e revela a compaixão de um Deus que redime e salva toda a humanidade.

A História é lugar da Revelação de Deus. Contudo, é a ação do Mistério que torna possível ao kronosΚρόνος – transformar-se em kairósκαιρός – nutrindo a expectativa de um tempo novo e oportuno para além da mera contagem dos dias que passam e consomem a existência. A Revelação submete-se às coordenadas históricas, mas não se aprisiona a essas, dando-lhes uma novidade: a graça revelada se temporaliza, sem deixar de ser eterna; insere-se na imanência da História, mas transcende-a. Como afirma Bruno Forte, no âmbito da historicidade, espaço e tempo remetem “à quênose e ao esplendor da Trindade no universo da Criação: dimensões estruturantes de todo ser criado, eles nos remetem respectivamente, à transcendência e à imanência do Deus vivo na obra de suas mãos” (1995, p. 267). Entretanto, é preciso frisar: a História torna-se mediação da ação de Deus pela fé.

A dinâmica da fé é particularmente importante para a leitura da História como lugar da Revelação divina. No desenrolar progressivo da Revelação, destaca-se, no Antigo Testamento, a figura de Abraão como o pai na fé. Na história dos patriarcas, São Paulo afirma que Abraão prefigura a esperança e a confiança (Rm 4,18-22). Abraão parte como peregrino, ouvinte a Palavra, a qual se transforma para ele em realidade e caminho, pela via da fé. Nas veredas da História, em Abraão vislumbra-se o desígnio divino do chamado, da Promessa e da Aliança.

Abraão deixa sua terra, sua cidade, o ambiente em que vivia e parte para uma terra desconhecida. Este fato, a escolha e decisão de um homem – nisto está sua peculiaridade – não deve ser entendido “naturalmente”. Abraão foi chamado e movido por Deus, por sua vontade, a um apelo Seu, ao som de Sua voz, pondo-se sob Sua direção (“Deus falou”). A vida e as ações, o caminho seguido e o destino de Abraão são o sinal de obediência a um aviso e a um apelo que não partiram dele, mas de Alguém que podia dispor dele e conduzi-lo onde ele mesmo não quisesse. Estamos aqui diante do sinal de um poder que nele agia, que ele próprio reconhecia nos passos de sua vida, que não eram meros fatos, mas sim episódios pelos quais Deus quer dizer algo, nos quais Deus influencia, pelos quais Deus se mostra e se revela, e através dos quais Abraão realiza sua fé como obediência, como gesto de confiança e de entrega de si próprio (FEINER; LÖHRER, 1971, p. 202).

Abraão não titubeia e nem vacila. Crente, encarna o mandato de Deus de forma extraordinária. Ele torna-se instrumento de um desígnio de salvação que abraçaria o futuro povo da Aliança; nele está o protótipo da história dos patriarcas, bem como a estrutura fundamental do agir divino, de seu modo de conduzir os homens e da resposta do próprio homem; a partir dele se desenvolverá a história desse povo de Israel que se colocou em marcha histórica, tudo porque ele abraça a Promessa, confia em Deus, acredita Naquele que o chamava: Abraão acredita na Promessa divina, se entregando totalmente nas mãos de Deus.

Deus firma com Abraão uma Aliança, sinal do que virá – Promessa –; Deus diz a Abraão: “Eu sou o Deus todo poderoso” (El Shaddai – אל שדי). “Anda em minha presença e sê perfeito; quero fazer Aliança contigo e multiplicarei até ao infinito a tua descendência” (Gn 17,1-2). Em sinal da novidade resultante do pacto da Aliança, Abraão recebe um nome novo, que se refere à sua nova missão: “De agora em diante não te chamarás mais Abrão, e sim Abraão, porque eu farei de ti o pai de uma multidão de povos” (Gn 17,5). O Senhor se revela a Abraão com voz de Pai; Abraão se dispõe a escutar e a obedecer como filho solícito, atento às indicações do Pai.

Se Deus fala, o homem deve escutar. Não se recebe a Revelação bíblica numa contemplação da divindade, como nos mistérios gregos e na gnose oriental, mas escutando a Palavra. Nesta terra ninguém pode ver a Deus (Ex 33,20). Deus dá testemunho de si mesmo, pela Palavra comunica-se ao homem, mas foge à visão. Em sua realidade profunda é sempre o Deus insondável, o Totalmente outro: esquiva-se o seu Mistério. Samuel responde a Deus que o interpela: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta” (1Sm 3,10). Escutar indica a primeira atitude do homem ante a Revelação: não de modo material e passivo, mas em disponibilidade totalmente ativa. A Palavra ouvida deve ser assimilada pela fé e pela submissão, numa entrega de todo ser, como fez Abraão (Gn 15,6; 24,7) (LATOURELLE, 1973, p. 36).

Desde o princípio percebe-se que no Antigo Testamento Revelação e fé – entendida como obediência e confiança (RUIZ ARENAS, 1987, p. 88) – são correlativas. A fé é o critério hermenêutico fundamental para interpretar e compreender que a História da Salvação não é fragmentada, mas está toda conectada, como as peças de um mosaico que progressivamente vai ganhando forma na medida em que é contemplado com os olhos da fé. “Pela fé Abraão, chamado por Deus, partiu para um lugar que deveria receber como herança. E partiu sem saber para onde” (Hb 11,8). São Paulo o denominará de pai na fé (Rm 4,11-16), pois Abraão acreditou em Deus e confiou em sua promessa. Abraão acredita e deixa-se guiar pela voz de Deus que não pertence à geografia desse mundo.

Abraão, amparado na fé, segue a promessa de Deus, mesmo quando posto à prova: “Pela fé Abraão, colocado à prova, ofereceu Isaac; e justamente ele que havia recebido as promessas ofereceu seu único filho, do qual fora dito: ‘De Isaac sairá uma descendência que terá o teu nome’” (Hb 11,17-18). O clímax de suas provações ocorre quando é pedido a Abraão o motivo da expectativa de sua descendência prometida: seu primogênito – imagem do Unigênito –; o sacrifício de Abraão se apresenta como um anúncio profético do sacrifício de Cristo; aliás, do ponto de vista da fé cristã, toda experiência de Abraão vem induzir a História a uma espécie de antologia do evento salvífico da morte e ressurreição de Cristo.

Outra dimensão fundamental pela qual a História torna-se mediação da Revelação divina, é a dinâmica do chamado. Nesse quesito, é paradigmático o chamado de Moisés, no qual o Deus dos pais (Ex 3,6.14-15) aproxima-se do sofrimento do povo e o conduz à libertação (Ex 3,8). Deus não vem como um Deus velado e misterioso – como uma entidade metafísica distante da realidade humana –, mas apresenta-se como um Deus misericordioso (Ex 3,7).

O chamado de Moisés, encontra-se na teofania descrita em Ex 3. Tem o seu clímax na Revelação do nome de Deus (v.14). O culto de Deus não terá aspecto mágico. Ele deve ser chamado pelo seu nome próprio. A Revelação do nome de Deus, identificado com o “Deus dos pais” (El Shaddai; cf. Ex 3,14s), reza assim: “Eu sou Aquele que é” – “Eu me chamo eu sou” – “Este é o meu nome para sempre e é assim que me chamarão de geração em geração” (Ex 3,14s). Este “Eu sou”, que contém uma explicação do novo e específico nome de Deus, é também uma mensagem, um significado: “Nenhuma região, nenhuma montanha, nenhum templo é o lugar de residência de Deus, do Deus que enviou Moisés. Ele não é visível, mas está aí, no aqui e agora da história de Israel”. “Eu aqui estou”, não fala de sua essência e existência. Fala de sua presença. Conhecê-lo-á o faraó, mesmo sem O ter por verdadeiro e verá que um ser mais poderoso está presente em sua terra. Israel, escravizado e condenado a desaparecer, vê-lo-á como seu libertador e salvador. O invisível torna-se visível no fato histórico (FEINER; LÖHRER, 1971, p. 204).

Com o chamado dirigido a Moisés, um povo passa a ser guiado por um desígnio divino evidenciado por sinais que expressam um desejo de salvação. Deus vem operar prodígios em meio a esse povo, desde a libertação do cativeiro no Egito, a uma série de sinais extraordinários, como a travessia do Mar dos JuncosYam Sûf – (Ex 14–15), os milagres durante a passagem pelo deserto (Ex 16–17), a conclusão da Aliança no Sinai (Ex 19–24) e, após a morte de Moisés, a tomada da Terra Prometida (Js 1–21). No enredo da narrativa bíblica, tudo isso manifesta a glória de Deus. Onde Deus está pronto a ser o auxiliador, sua ação influencia na História. Deus se mostra caminhando junto, fazendo da História o lugar próprio e adequado para se revelar.

Deus manifesta seu ser e confirma a verdade de seu nome realizando um acontecimento grandioso ao libertar o povo israelita da escravidão do Egito. Esse fato da libertação por Deus se constitui no acontecimento central da história salvífica do Antigo Testamento. Nele Javé se manifesta como o Go’el (é o que liberta, resgata, redime, protege ou tira vingança. [...] Deus se apresenta como o Go’el enquanto resgata o seu povo [...] e defende o pobre e aflito) de Israel e o povo descobre um Deus libertador e salvador, um Deus justo que se põe ao lado de seu povo para chamá-lo e empurrá-lo para a liberdade, um Deus que é sensível à injustiça e que, portanto, não está alheio ao sofrimento e à dor, mas que luta com seu povo para conseguir a libertação da escravidão (RUIZ ARENAS, 1987, p. 90).

Na História, Deus atualiza e presentifica a Aliança na Lei (Torah): fundamento da existência de Israel. O Decálogo inicia com a declaração de um fato histórico marcante: “Eu sou Javé, teu Deus, Aquele que te tirou da terra do Egito e te libertou do cativeiro” (Ex 20,2). Com o esquecimento da vida moral conforme a Aliança, destaca-se o papel do profetismo, através do qual Deus demonstra e ensina seu projeto para a humanidade. Os profetas se posicionam veementemente contra toda tentativa de redução da Aliança às falsas seguranças e à corrupção e infidelidade vividas pelo povo que se distancia do amor e da justiça de Deus. Os profetas levantam sua voz para que as injustiças sejam denunciadas, os pecadores se convertam e a justiça de Deus prevaleça (Is 5,16; 41,2; 45,8). Os profetas são pessoas inspiradas que proclamam que a Palavra de Deus tem consequências práticas e concretas. “Os profetas se apresentam como defensores da ordem moral estabelecida pela Aliança e sua pregação é um chamado à justiça, à fidelidade e ao serviço de Deus todo poderoso” (RUIZ ARENAS, 1987, p. 92). De modo geral, os profetas estão convictos de que sua atividade missionária se fundamenta em uma experiência de Deus (Jr 1,4-19; Ez 2,1-10; Is 6) que produz um olhar e um discernimento da realidade vivida e que os leva a interpelar seus ouvintes, exigindo uma resposta de fé coerente com a mensagem proclamada: se faz necessária uma tomada de posição, ou seja, uma mudança radical de mentalidade e de conduta.

O profeta é alguém que, com coragem e franqueza, discorre sobre o que acontece na atual situação histórica: sobre a fé e a obediência, sobre a justiça e o amor. É alguém cônscio de sua palavra e de sua missão, alguém que está pronto a defender sua palavra com a vida e com as ações. Sua missão é desenvolver e consolidar a verdade da Aliança (FEINER; LÖHRER, 1971, p. 208).

Diante da palavra profética, o povo de Israel seguirá na História em meio às vicissitudes de crer ou não no Deus que se revela. Pela Revelação, o ser humano é posto em confronto com a Palavra que exige fé – obedecer e confiar –; Deus interpela o ser humano, deixando-lhe a liberdade da aceitação ou da recusa. O pecado, desde logo, se configurará na recusa a escutar e a responder aos apelos do Senhor, e a se endurecer na resistência (Jr 7,13; Os 9,17); conforme for aceita ou recusada a Revelação, o ser humano receberá graça ou condenação, vida ou morte (Is 1,20); a sorte humana dependerá da opção decisiva a favor ou contra a Palavra revelada. Porém, o objetivo da Revelação divina é a vida e a salvação do ser humano, a sua comunhão com Deus (Is 55,2) (LATOURELLE, 1973, p. 39). Prova disso é que a máxima comunhão entre Deus e a humanidade se dará pela união das duas naturezas – humana e divina – na Pessoa do Filho: Verbo divino que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1-14).

Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1,3), oferece aos homens um testemunho perene de si mesmo na Criação (cf. Rm 1,19-20) e, além disso, decidindo abrir caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a si mesmo desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Depois da queda destes, juntamente com a promessa da redenção deu-lhes esperança da salvação (cf. Gn 3,15), e cuidou continuamente do gênero humano, para dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando na prática das boas obras, procuram a salvação (cf. Rm 2,6-7). No devido tempo, chamou Abraão, para fazer dele um grande povo (cf. Gn 12,2-3), ao qual, depois dos patriarcas, ele ensinou, por meio de Moisés e dos profetas, a reconhecer em si o único Deus vivo e verdadeiro, o Pai providente e o juiz justo, e a esperar o Salvador prometido; assim preparou, através dos tempos, o caminho ao Evangelho (DV 3).

A manifestação da Trindade na História se dá através da ação do Pai que cuida e conduz o seu povo; através da ação do Filho que inserido no tempo e no espaço, como centro vivo e vivificante, dá o sentido definitivo ao fluir da História; através da ação do Espírito Santo que conduz a sucessão dos eventos e torna a História terreno fecundado para as semina Verbi – sementes do Verbo –, abrindo caminho para um novo tempo: o tempo messiânico, em que o eterno entra no tempo para divinizar toda a Criação. No evento da Encarnação, manifesta-se a ação trinitária em favor da humanidade: o Pai envia o Filho, o Filho é enviado e se mantém fiel ao projeto do Pai, e o Espírito Santo acompanha toda a jornada terrena do Deus feito homem que peregrinou sobre a Terra e pregou o Reino de Deus para a humanidade. Partindo da Economia da Salvação, Bruno Forte pensa o Mistério trinitário em perspectiva histórica, cujo ponto máximo de referência é o Evento Pascal da paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Segundo Bruno Forte, a Trindade narrada como História “se apresenta como a origem, o presente e o futuro do mundo, o seio, adoravelmente transcendente, da História” (1987, p. 5). Relacionando Trindade e História, Bruno Forte relata que infelizmente não parece que a fé no Mistério trinitário tenha uma incidência decisiva na oração e na práxis dos cristãos, chegando a afirmar que há “um exílio da Trindade” no que se refere à “distância da teoria e da práxis dos cristãos” (1987, p. 12). No afã de salvaguardar a divindade de Deus, houve um esvaziamento trinitário expresso no “monoteísmo não-cristão efetivo de muitos cristãos” (1987, p. 13). A dificuldade está em “conciliar a Trindade das Pessoas com a unidade da essência divina”, devido a “escassa referência à Revelação histórica concreta dos Três” e o horizonte estático do “conceito metafísico do Uno imutável e eterno” (1987, p. 14).

Para Bruno Forte, é preciso conceber o Deus Uno, sobretudo, no Pai, princípio sem princípio do Filho e do Espírito Santo, na unidade dos Três, e essa divina unidade pensada, antes de tudo, não como essência percebida previamente à distinção pessoal, mas como “unidade da recíproca inabitação dos Três, na fecunda e inexaurível circulação da única vida do amor eterno” (1987, p. 14). Assim, a unidade de Deus não será sacrificada, mas será pensada cristãmente à luz da Revelação histórica de Deus, segundo a “analogia do Advento” do Deus que vem a nós. Sob esta luz, até o mais sublime conhecimento mundano do Absoluto se revela débil em relação ao denso relato da Boa Nova, e “o escândalo trinitário se anuncia mais sábio do que a sabedoria dos homens” (1987, p. 15). A superação do exílio da Trindade passa pela volta à História da Revelação, conforme o axioma de rahneriano, segundo o qual a Trindade econômica é a Trindade imanente. Segundo Bruno Forte, “Deus narrou em nossa História a sua História” (1987, p. 16). A Trindade como é em si – Trindade imanente – se dá a conhecer na Trindade como é para nós – Trindade econômica –; sendo assim, “a Trindade na História manifesta a Trindade na Glória” (1987, p. 16). Em Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado, se torna clara a correspondência entre Economia e Imanência do Mistério: no nazareno, perscruta-se no Deus revelatus o Deus absconditus.

Entretanto, Bruno Forte alerta que “a Economia não pode exaurir a profundidade de Deus; a História não pode, nem deve, aprisionar a Glória” (1987, p. 19). Há a transcendência e a liberdade divinas. Em sentido apofático, o Mistério divino é inefável, é o Totalmente Outro, embora presente no existir humano. Em linguagem escatológica, o Deus cristão é o Deus da promessa, do vindouro. Para Bruno Forte, “a apófase afirma o assombro, a adoração e o silêncio necessários perante o Mistério absoluto” (1987, p. 20); fica-se sempre aquém de uma definição adequada sobre Deus, pois “a indagação sobre o Mistério trinitário exige discrição e modéstia” (1987, p. 20). Nenhuma mediação histórica esgota o caráter misterioso da Revelação divina. Deus não se esgota na contingência (XAVIER, 2014, p. 175). O fato de Deus revelar-se tal como é, não significa que seja apreendido na totalidade de seu Mistério; sua manifestação no mundo transborda a condição finita de seus interlocutores (XAVIER, 2014, p. 185); a Revelação na História não dissolve o Mistério, mas permite permanecer Nele (THEOBALD, 2005, p. 246). Por isso, o doxológico, mais que o analógico, caracteriza o sentido do discurso humano sobre Deus, pois “nele as palavras evocam o que infinitamente as supera” (FORTE, 1987, p. 20). Quanto mais cresce o conhecimento do Mistério, mais fecundo se revela o silêncio. No evento pascal, os atos divinos de dom e entrega chegam ao ápice da densidade reveladora; na cruz elevada no Gólgota manifesta-se o âmago do coração eterno da Trindade; os Três, em alteridade e comunhão, resplandecem plenamente nos eventos da cruz e da ressurreição.

A experiência pascal marcou profundamente a memória, a consciência e a esperança da Igreja nascente, o que tornou possível uma releitura trinitária da História, desde a sua origem, os seus desdobramentos, até a sua meta escatológica, analogamente a Israel que, “a partir da experiência do Deus salvador, confessou o Deus Criador e Senhor da História” (FORTE, 1987, p. 41). À luz do evento trinitário da Páscoa, a comunidade relê o dado histórico do Nazareno, desde os relatos da infância e do batismo no Jordão, o qual segue o esquema da paixão – da humilhação e submissão à exaltação: “este é meu filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,11) –, ao relato da tentação, no qual o Espírito conduz Jesus na luta por sua fidelidade a Deus; na transfiguração, a nuvem evoca a presença do Espírito e ouve-se a voz do Pai. Tudo isso evidencia que a História do Nazareno é uma História trinitária. Jesus se dirige a Deus dizendo Abba, palavra aramaica tirada da linguagem familiar: conversa com Deus como uma criança fala com seu pai terreno, introduzindo uma inovação absoluta, uma relação de simplicidade, intimidade e confiança com Deus. A releitura pascal vai explicar o que estava implícito. Bruno Forte afirma que “a vida terrena do Senhor Deus se torna então a porta humilde e concreta do Deus trinitário para o tempo, e deste para a vida trinitária de Deus” (1987, p. 45). Por isso a necessidade que a Igreja teve de narrar aquela vida como Evangelho.

Deus se revela ao seu povo pela Palavra, na concretude de suas vivências, e pede uma resposta. É o Deus Javé, da promessa, da fidelidade e da libertação. O Deus de Israel é “o Deus que é o Senhor da História, imutável na fidelidade do seu amor, capaz de uma eleição eterna” (FORTE, 1987, p. 47). Deus é considerado no Antigo Testamento tanto na transcendência de sua verdade intangivelmente sagrada, quanto na imanência de sua presença ativa em meio ao seu povo. “Essa dialética de alteridade e comunhão entre Javé e o seu povo se define, quer no sentido vertical da absoluta superioridade e liberdade do Deus da Aliança (transcendência doxológica) e da sua profundíssima presença no meio dos seus (imanência na fé)” (FORTE, 1987, p. 48). Neste afã se situa o messianismo veterotestamentário, na expectativa do Deus conosco; que na alteridade e comunhão, são levadas a termo na Páscoa neotestamentária, designada por Bruno Forte como o “denso compêndio do êxodo da Páscoa antiga” (1987, p. 49).

À luz da experiência de salvação, também passa a ser lida as origens, pois, “o que aconteceu na Páscoa atinge todo ser criado” (FORTE, 1987, p. 49). O ato criador se evidencia no ato pascal como um ato trinitário. O Deus invisível cria todas as coisas por meio de Cristo e em vista dele (Cl 1,15-16), evidenciando a preexistência do Filho, sua consubstancialidade ao Pai e seu movimento quenótico na Encarnação (Fl 2,6-11). A Páscoa de Cristo coloca em paralelo a Primeira e a Nova Criação: o Espírito que desce como pomba no batismo de Jesus no Jordão (Mc 1,10) relê as palavras do Gênesis: “o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2). Assim como Israel, a comunidade cristã primitiva chegou à confissão do Deus Criador a partir da experiência do Deus salvador. Do Pai pelo Filho no Espírito Santo – protologia – o drama da História se reencaminha para o Pai no Espírito Santo pelo Filho – eschaton –, sendo a Páscoa de Cristo a Revelação desse dinamismo que vem da Trindade – seio da História – e para a Trindade retorna – pátria do tempo –, na dinâmica do exitus-reditus.

O monoteísmo doxológico judaico defendeu arduamente a alteridade transcendente divina. Em ambiente cristão, a afirmação da unicidade de Deus desencadeará no monarquianismo, pelo qual se exaltará o primado absoluto da divindade do Pai. A afirmação rigorosa da divindade do Uno – Deus Pai – vai desembocar em um subordinacionismo do Outro (arianismo), até chegar ao ponto de se afirmar o patripassianismo – é o Pai que sofre e morre na cruz –; no fundo, vigora uma “concepção do Uno oposto ao múltiplo” (FORTE, 1987, p. 62). O Absoluto seria, assim, estranho à História, sendo extraordinariamente adorável em relação ao mundo; e o múltiplo, abandonado em sua caducidade, sem verdadeira redenção, permaneceria no limiar intransponível que o separa do divino. A motivação para a defesa da ortodoxia da fé cristã é soteriológica: “se se nega a Revelação da Trindade na História, fecha-se a entrada salvífica da História na Trindade” (FORTE, 1987, p. 63). Se o Filho não fosse Deus, a cruz seria apenas um acontecimento humano como tantos outros, e não o lugar da salvação; se o Espírito não fosse Deus, a sua obra não divinizaria o ser humano; assim, o Mistério trinitário foi acolhido na liturgia e na dogmática cristãs como Mysterium Salutis. No Concílio de Niceia (325) se formulará o homooúsios – consubstancial – a respeito do Filho em relação ao Pai, para significar contra a redução ariana que “o Filho está no grau de ser do Deus transcendente” (FORTE, 1987, p. 64). Sendo assim, “Jesus é Deus conosco e por nós” (FORTE, 1987, p. 65). No Concílio de Constantinopla (381) se afirmará que o Espírito tem direito à adoração com o Pai e o Filho, mediante uma terminologia que remonta a Tertuliano: una naturasubstantia, essentia –, tres personae. Não há absorção da multiplicidade no Uno, mas identidade na alteridade dos Três.

Trinitariamente, no horizonte da essência, os Três operam inseparavelmente. A diferença pessoal se dá na relação, sem destruir a unidade: o Pai gera, o Filho é gerado, o Espírito procede de um e de outro. O caráter imutável das relações divinas funda sua densidade ontológica. As distinções derivam das relações. A analogia psicológica agostiniana afirma que o ser, o conhecer e o querer – memória, inteligência e vontade – constituem três polos que se ordenam e implicam, assim “as três Pessoas divinas se relacionam mutuamente no seio da única essência divina” (FORTE, 1987, p. 69). Na perspectiva tomista, evidencia-se mais fortemente a questão da conciliação da trindade pessoal com a unidade essencial, ressaltando-se que as processões – atividades vitais imanentes – indicam as origens intradivinas, e as relações designam o elemento individuante que distingue cada Pessoa subsistente. As missões são a manifestação ad extra do agir trinitário na Economia salvífica. A cruz e a ressurreição, por exemplo, transparecem a dialética da infinita alteridade e comunhão do Absoluto. A concepção hegeliana de pessoa como reencontro de si no outro remete ao proprium do amor trinitário que consiste em existir como autodoação, onde não há concorrência entre alteridade e comunhão. Deus é uno, sem confusão pessoal, e trino, sem divisão substancial. A perichoresis prosopopaica – compenetração recíproca das Pessoas divinas – é o “vínculo da vida eterna divina no mútuo relacionar-se e inabitar-se das Pessoas” (FORTE, 1987, p. 84). Supera-se, assim, um monoteísmo monárquico universal e passa-se a uma concepção triunitária comunional do mistério divino.

Sobre a presença divina nos acontecimentos da História, “a experiência do Mistério comporta uma irredutível dialética de escondimento e de Revelação: nas suas obras Deus se manifesta, mas não se deixa aprisionar” (FORTE, 1987, p. 89). Apesar de estar presente, Deus está sempre além das mediações. Entre Jesus e o Pai a relação é de pertença recíproca, de profundíssima comunhão, de unidade perfeita. No Novo Testamente, a expressão ho Theós se refere na maioria das vezes ao Pai, pois “o Pai é o princípio, a fonte e a origem da vida divina” (FORTE, 1987, p. 94), o agénneton – não gerado –, o manancial originário, princípio sem princípio. Na perfeita liberdade do amor, cria generosamente sem coação externa. O Filho é Deus procedente do Pai, o Unigênito. O que caracteriza o Filho é a filiação. “Se no Pai reside a manancialidade do amor, no Filho é posta a receptividade do amor” (FORTE, 1987, p. 104). O Filho procede eternamente do seio do Pai (de Patris utero), da sua substância, por geração, não por criação. O amor é um eterno peregrinar, um sair de si ao encontro do outro; é perene manancialidade e acolhida, distinção e comunhão. O Espírito aparece como o vínculo pessoal de comunhão entre Pai e Filho, amado e distinto de ambos. “O Espírito consuma a verdade do amor divino” (FORTE, 1987, p. 111) que não se fecha no dualismo ciumento, mas se abre as diferenças.

O Espírito abre o mundo de Deus ao mundo dos homens na Encarnação e unifica o dividido no evento da reconciliação pascal. O tempo messiânico é marcado pela efusão do Espírito. O Espírito age em toda a vida e obra de Jesus de Nazaré. “Jesus recebe o Espírito” (FORTE, 1987, p. 113). Cristo recebe do Pai a incumbência de dar o Espírito, o qual “suscita e faz crescer a unidade do Corpo eclesial, em que se reflete a unidade trinitária” (FORTE, 1987, p. 114). O Espírito unifica e ordena a diversidade dos dons e carismas para a koinonía no amor. Na questão do Filioque, o radicalismo cristológico barthiano afirma que tudo o que vem do Pai ou a Ele vai, passa necessariamente pelo Filho. Na perspectiva agostiniana, o Espírito é o amor dado e recebido, “communio do Pai e do Filho, procedente de um e de outro, embora principaliter do Pai, porque tudo o que o Filho tem vem do Pai” (FORTE, 1987, p. 119). No Símbolo niceno-constantinopolitano o Filho é referido ao Pai por via de geração eterna, ao Pai é referido o Espírito por via de processão, mas a relação entre o Unigênito e o Paráclito permanece no silêncio. No Novo Testamento, há uma relação de reciprocidade e complementaridade entre Cristo e Espírito. Na dogmática posterior permanece a questão da cristologia do Verbo e do Espírito, muitas vezes havendo subordinação da pneumatologia à cristologia, desembocando no cristomonismo visibilista ocidental. Bruno Forte ressalta que “o Espírito é o vínculo pessoal de unidade entre o Pai e o Filho” (1987, p. 130), não é gerado nem criado, mas procede de ambos, sendo-lhes consubstancial; é amor pessoal, vínculo de unidade, que se distingue do Amante e do Amado. A essência divina como amor não exclui, mas inclui, as diferenças pessoais, pois “o verdadeiro amor nunca anula as diferenças” (FORTE, 1987, p. 142). Mesmo o agir ad extra é entendido no seu sentido pericorético a partir do dinamismo vivo da unidade divina; é opus amoris, que nunca é indiferença. Pode-se olhar Deus a partir de seus atributos absolutos, incomunicáveis ou quiescente – inefabilidade e transcendência – ou a partir de seu operar na liberdade a favor das criaturas, em seus atributos relativos, comunicáveis e operativos. Em Deus, a densidade ontológica, própria das Pessoas, não se anula nas relações, pois “a pessoa é tanto mais pessoa quanto mais na sua absoluta originalidade se comunica” (FORTE, 1987, p. 151). Por isso, em Deus a essência comum não anula as personalidades peculiares.

Segundo Bruno Forte, o sentido da História está no exitus a Deo – o vir de Deus do mundo e do homem –, e o reditus ad Deum – a volta à nascente divina –; a tragédia do pecado aparece na História como a recusa ao amor originário e originante, “esse ‘querer ser como Deus’ do homem, que se resolve numa profunda alienação da criatura” (1987, p. 160). Quem renega o amor, renega a si mesmo. A criatura quis fazer da sua receptividade constitutiva uma possessividade ciumenta, ocasionando uma voluntária inversão na sua orientação vital da acolhida em posse. Porém, Deus não se afasta das criaturas; sua presença pode ser percebida na objetividade e primado do Ser – Deus como Ser Necessário do qual o mundo tira a consistência: cinco vias aristotélico-tomistas –, na subjetiva auto-evidente do Ser – argumento ontológico anselmiano – ou na intersubjetividade histórica – Deus como sentido e fundamento da História. Contudo, importa salientar que o ser humano, criado à imagem e semelhança do Deus trinitário, é vértice da Criação; por ser amado primeiro, pode amar; à imagem do Amor, é ser relacional. Crer é deixar-se amar por Deus, para que Ele habite no coração do crente e aconteça uma divinização do humano. O ponto alto desta acolhida é a maternidade virginal de Maria, “lugar histórico concreto da Aliança entre a Trindade e o tempo” (FORTE, 1987, p. 205), lócus por excelência da vinda de Deus ao encontro do ser humano. Tendo em vista isso, cabe aprofundar o significado da Revelação como manifestação da Trindade na Encarnação.

3. Revelação como manifestação da Trindade na Encarnação

Em Jesus Cristo, Revelação, Graça e Salvação se relacionam mutuamente enquanto elementos da autocomunicação de Deus. Segundo a fé cristã, o cumprimento da Promessa e da Aliança definitivas se dá em Jesus Cristo, Redentor da humanidade; sujeito e objeto da Revelação; Filho Unigênito que se fez homem; consubstancial ao Pai e à humanidade (JOÃO PAULO II, 2000d). Em Cristo, o Deus invisível tornou-se visível e próximo da humanidade. Em Cristo, revelador e hermeneuta dos mistérios divinos, fica clara a intenção salvífica da dinâmica reveladora de Deus na História. A Palavra divina dirigida à humanidade tem um grande propósito: chamar cada ser humano a participar da vida em plenitude (RUIZ ARENAS, 1987, p. 126).

Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus ultimamente, nesses nossos dias, por meio de seu Filho (Hb 1,1-2). Enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e explicar-lhes os segredos de Deus (cf. Jo 1,1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado “como homem aos homens”; “fala”, portanto, “as palavras de Deus” (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cf. Jo 5,36; 17,4). Por isso Ele, vendo o qual se vê também o Pai (cf. Jo 14,9), com toda presença e manifestação de sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição dentre os mortos, enfim com o envio do Espírito de verdade, aperfeiçoa a Revelação completando-a, e confirma-a com um testemunho divino: o de termos Deus conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte, e para nos ressuscitar para a vida eterna. Portanto, a “Economia” cristã como nova e definitiva Aliança, jamais passará, e não se há de esperar nenhuma outra Revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Tm 6,14; Tt 2,13) (DV 5).

O que Deus prometeu e preparou à humanidade, levou a termo pela mesma Palavra viva e eficaz que desde a origem, pronunciada na Criação e na História, se dirige ao ser humano para lhe dar a vida na graça, que no fundo, é a vida em Deus. Por isso, a promessa escatológica diz respeito ao tempo realizado, quando Deus será tudo em todos (1Cor 15,28). A promessa começa a se cumprir quando a Trindade se manifesta para realizar esse desígnio através de uma mulher, “cheia de graça” (Lc 1,28). Em Maria, inicia a plenitude da Revelação da Trindade no tempo.

Maria é convidada a conceber Aquele que habitará “corporalmente a plenitude da divindade” (Cl 2,9). [...] O Espírito Santo é enviado para santificar o seio da Virgem Maria e fecundá-la divinamente [...] fazendo com que ela conceba o Filho Eterno do Pai em uma humanidade proveniente da sua. Ao ser concebido como homem no seio da Virgem Maria, o Filho único do Pai é “Cristo”, isto é, ungido pelo Espírito Santo. [...] Toda vida de Jesus Cristo manifestará, portanto, “como Deus o ungiu com o Espírito e com poder” (At 10,38) (CIC 484-486).

Maria, Mãe de Deus feito homem, colabora com o plano de salvação como protótipo do povo que será justificado e remido, pelos mistérios da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. Maria se apresenta como aquela que acreditou (Lc 1,45). A vocação de Maria manifesta a novidade do Novo Testamento; nela aconteceu o impossível ao ser humano: realizou-se a promessa da salvação. A resposta de Maria na fé prefigura a resposta que o gênero humano dará ao Mistério da Trindade, a fim de que aconteça no ser humano o mesmo desígnio de salvação. Como afirma Latourelle, a fé em Maria “é pura obediência e pura confiança: obediência da serva do Senhor (Lc 1,38), confiança que exalta o Deus fiel às suas promessas” (1973, p. 36). Aquele que Maria concebeu do Espírito Santo é Filho eterno do Pai, Segunda Pessoa da Trindade. Por isso, a Igreja confessa Maria como Mãe de Deus (Theotókos). A Encarnação do Filho de Deus configura a plenitude da Economia da Revelação. No Encarnado, o Pai assumiu a humanidade na filiação e na herança eterna. Os seres humanos assumidos, na fé, pelo Filho, tornam-se filhos no Filho.

Filha de Abraão segundo a fé e a carne, Maria participou pessoalmente na sua experiência. Também ela, como Abraão, aceitou a imolação do Filho, mas enquanto a Abraão não foi pedido o sacrifício efetivo de Isaac, Cristo bebeu até a última gota do cálice da amargura. A humilde serva participou pessoalmente na provação do Filho, acreditando e esperando com firmeza aos pés da cruz (Jo 19,25). Maria é mãe do Novo Homem e dos discípulos amados de seu Filho, por isso, é também Mãe da Igreja. Formada na meditação das páginas proféticas, Maria exaltou a misericórdia de Deus e exprimiu a pronta adesão ao seu desígnio de salvação; Maria expressou de modo especial o seu “sim” ao evento central do projeto do Pai. Emblemática é a declaração do apóstolo Paulo: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4-5). Segundo Paulo, a dinâmica da Encarnação faz de nós filhos, e, portanto, herdeiros pela graça de Deus (Gl 4,6-7; Rm 8,15-17).

Em Cristo, a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Cristo, com obras e palavras, manifestou o Reinado de Deus na terra, cumpriu a vontade do Pai; ressuscitando, enviou o Espírito Santo para atrair todos a si (Jo 12,32). No centro da fé cristã está a Encarnação, na qual se revela o amor da Trindade pela humanidade: “Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16); “Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos por Ele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele quem nos amou e enviou-nos seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,9-10). A manifestação da Trindade na Encarnação não é uma simples iluminação que afasta as trevas durante um instante, mas uma semente de vida divina depositada para sempre no coração da humanidade para que o ser humano conheça o verdadeiro amor; o ser humano foi criado e ressuscitado para o amor. O ser humano

permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente. E por isto precisamente Cristo Redentor [...] revela plenamente o homem ao próprio homem. Esta é – se assim é lícito exprimir-se – a dimensão humana do Mistério da Redenção. Nesta dimensão o homem reencontra a grandeza, a dignidade e o valor próprios da sua humanidade. No Mistério da Redenção o homem é novamente “reproduzido” e, de algum modo, é novamente criado (RH 10).

Cur Deus homo? – Por que Deus se fez homem? –; essa questão proposta por Santo Anselmo a respeito dos motivos da Encarnação certamente aponta, não só para as obras e palavras de Cristo sobre a Terra, mas também, para as consequências da Economia da Encarnação na dinâmica da Revelação divina. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, o Verbo se encarnou para nos salvar, nos reconciliando com Deus, e “para que assim conhecêssemos o amor de Deus, pois só esse amor é capaz de libertar; se encarnou para ser nosso modelo de santidade, porque seu amor implica em oferta efetiva de si mesmo; enfim se encarnou para tornar-nos participantes da natureza divina” (CIC 457-459). Sendo assim, a humanidade é redimida pela sua assunção na Pessoa do Filho. Sobre isso, o Concílio Vaticano II afirma:

Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o Mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), mediante o qual os homens, por meio de Cristo Verbo encarnado, têm acesso no Espírito Santo ao Pai e se tornam participantes da natureza divina (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4). Em virtude desta Revelação, Deus invisível (cf. Cl 1,15; 1Tm 1,17), no seu imenso amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14-15) e conversa com eles (cf. Br 3,38), para os convidar e admitir a participarem da sua comunhão. Esta “Economia” da Revelação executa-se por meio de ações e de palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na História da Salvação, manifestam e corroboram a doutrina e realidades significadas pelas palavras, enquanto as palavras declaram as obras e esclarecem o Mistério nelas contido. E, a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se por meio desta Revelação no Cristo, que é simultaneamente, o mediador e plenitude de toda a Revelação (DV 2).

O Mistério da Encarnação se une ao da Paixão (JOÃO PAULO II, 2000e): entrega da vida do próprio Autor da Vida. Na cruz – madeiro plantado no monte calvário, jardim do sofrimento –erige-se a nova árvore da vida. Mesmo aí, Jesus manteve sua unidade com o Pai, vivendo-a em sua humanidade lacerada e sofredora, sem jamais perder a confiança de Filho que é “um” com o Pai (Jo 10,30.38). Houve o silêncio misterioso do Pai, acompanhado pela escuridão cósmica e o forte grito: “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22); nessa hora de trevas o que Jesus exclama é sua sintonia com o Pai: o salmo 22, citado por Jesus, se encerra em um hino ao Senhor soberano do mundo e da história. Este aspecto é evidenciado em Lucas, que narra nas últimas palavras de Jesus morrendo na cruz, o significado da entrega de sua vida como verdadeira oferta e sacrifício: “Pai, nas tuas mãos, entrego meu espírito” (Lc 23,46). Nessa relação constante entre o Pai e o Filho, participa o Espírito Santo. O Pai glorifica o Filho dando-lhe a capacidade de comunicar o Espírito a toda humanidade.

Na morte de Jesus se vive, então, a plenitude do amor, do serviço e da solidariedade. Ele se entrega à morte na cruz como meta do caminho de sua existência. Cristo se oferece em sacrifício por todos, Filho obediente que encarna perante a justiça salvadora de seu Pai o clamor de libertação e redenção de todos os homens. Nela, a realidade do Reino de Deus, da salvação dos homens, da presença e da proximidade de Deus chega de maneira inesperada. Mas essa morte, realizada em livre obediência e com total entrega a Deus, somente se consuma e se torna compreensível para nós por meio da ressurreição (RUIZ ARENAS, 1987, p. 120).

A Trindade, todavia, se revela na Ressurreição (JOÃO PAULO II, 2000f) para mostrar que o itinerário da vida de Cristo – batismo, pregação, milagres, paixão e morte – não tem como meta a escuridão do sepulcro, mas o céu luminoso da Ressurreição: a Páscoa da Glorificação que culmina com o acontecimento de Pentecostes. “Ressurreição e Glorificação pertencem ao ato decisivo da Revelação” (RUIZ ARENAS, 1987, p. 120). Cristo ressuscitado aparece aos seus discípulos e lhes sopra o Espírito (Jo 20,19-23). Antes da Ascensão, confere a plenitude de seus poderes salvíficos à Igreja, proferindo o mandato de anunciar o Evangelho e batizar todas as nações em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,16-20). À natureza trinitária do Evento Pascal corresponde o aspecto trinitário da profissão de fé e do batismo. Com efeito, “ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’ senão por influência do Espírito Santo” (1Cor 12,3), “para glória de Deus Pai” (Fl 2,11).

A presença do Espírito na Igreja é destinada à remissão dos pecados e à recordação e realização do Evangelho na vida. O sopro designa uma evocação do Sopro do Criador que, depois de criar o homem com o pó da terra, lhe soprou nas narinas para lhe dar um sopro de vida (Gn 2,7). Cristo ressuscitado sopra para que recebam o Espírito. A Redenção é uma Nova Criação, obra divina na qual a Igreja é chamada a colaborar mediante o ministério da reconciliação. No evento de Pentecostes, a Trindade toda está envolvida na irrupção do Espírito, derramado sobre a primeira comunidade e sobre a Igreja de todos os tempos, como selo da Nova Aliança anunciada pelos profetas (Jr 31,31-34; Ez 36,24-27). Em virtude do Espírito Santo, os apóstolos anunciam o Ressuscitado, e todos os fiéis, na diversidade de suas línguas e, por conseguinte, das suas culturas, professam a única fé no Senhor, “anunciando as maravilhas de Deus” (At 2,11). A efusão do Espírito em Pentecostes assinala uma teofania trinitária e tem uma função eclesial: manifestar a ação da Trindade na Igreja.

4. Revelação como manifestação da Trindade na Igreja

A Igreja, sacramento da Revelação, está intimamente associada à Economia Salvífica. Jesus Cristo, ao enviar em missão seus apóstolos, confirma-os com o selo do Espírito, dando a toda Igreja seu fundamento e impulso. A Igreja torna-se, assim, o prolongamento do desejo trinitário de comunhão que busca atrair todos os povos (JOÃO PAULO II, 2000c). Em Cristo, Cabeça da Igreja que é seu Corpo (1Cor 12,12-27; Rm 12,4-5), a evangelização leva Salvação e Graça a todo o mundo. Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto revelou para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo enviou os apóstolos para proclamarem o Evangelho, fonte de toda verdade salutar e de toda regra moral. Este mandato foi cumprido com fidelidade pelos apóstolos na sua pregação, com os exemplos de vida e com as instituições por eles criadas, a fim de transmitir aquilo que receberam de Cristo ou aprenderam por inspiração do Espírito Santo. Além disso, para que o Evangelho se conserve perene e íntegro na Igreja, os apóstolos constituíram seus sucessores, os bispos, para santificar, ensinar e conduzir o povo de Deus (DV 7).

A Igreja é chamada a evidenciar ao mundo a originalidade radical do evento Cristo enquanto acontecimento revelador por excelência, da parte de Deus. A missão fundamental da Igreja consiste em transmitir a mensagem da Revelação, não como algo que está no passado, mas como uma ação constante de Deus, em perspectiva de futuro; para isso, a Igreja precisa aprofundar e atualizar a mensagem da Revelação para o hoje de cada época, com a consciência que custodia o depósito da verdade – fruto da Revelação de Deus em Cristo – com reverência e ousadia profética. A Igreja transmite a Tradição ou parádosisπαραδοσις – divino-apostólica que consiste em práticas, valores, crenças e ensinamentos, por palavras, costumes, ritos e sinais (RUIZ ARENAS, 1987, p. 181). O Concílio Vaticano II, ao afirmar que “a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus” (DV 10), sustenta que ambas, Tradição e Escritura, são testemunhas da Palavra de Deus, que é de ordem escatológica (GEFFRÉ, 1972, p. 60; 1989, p. 17-18; 2009, p. 9-33). A Igreja precisa manter-se fiel ao depósito da fé e perseverar na doutrina apostólica (At 2,42). O múnus de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida pela Tradição, foi confiado ao Magistério da Igreja, que não está acima da Palavra de Deus, mas ao seu serviço. Com a assistência do Espírito Santo, a Igreja ouve a Palavra, a interpreta e a expõe fielmente para que seja acolhida e vivida pelas pessoas de hoje.

O anúncio do Evangelho enquanto transmissão da Revelação, não pode ser entendido como um ato individual e particular, mas como uma ação profundamente eclesial e comunitária; um ato da Igreja, confiado e exercido em nome da Igreja. A Igreja, que é na sua essência missionária, é também uma comunidade profética, com dupla tarefa de escutar e proclamar a Palavra de Deus: deve receber a mensagem de salvação, revelada em Jesus Cristo, com plena submissão e firmeza do ato de fé; e, por sua vez, precisa torná-la presente no mundo (LG 17). A Igreja, povo reunido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, é Mistério e povo de Deus – Lumen Gentium, capítulos 1 e 2–; é comunidade de salvação à luz da dinâmica trinitária; é una, santa, católica e apostólica; é epifania da comunhão trinitária; é sacramento do Reinado de Deus.

As dimensões de Mistério e povo de Deus, constitutivas da Igreja, recebem seu significado em referência ao Mistério trinitário, comunidade perfeita; a Igreja é comunidade de fé, esperança e amor (LG 8), da qual a Eucaristia é fonte e cume (LG 10). A união íntima de cada fiel com seu Senhor e a união dos fiéis entre si, constitui a comunhão eclesial. Esta dimensão comunitária é essencial à Igreja para que nela a fé, a esperança e o amor possam ser exercidos, comunicados e enraizados no coração de todos os fiéis (KLOPPENBURG, 1995, p. 26). A Igreja imposta-se, assim, como o caminho da consumação das promessas de Deus reveladas na História, e como penhor da consumação do futuro definitivo.

Conclusão

A Revelação divina é uma ação trinitária; é manifestação do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Considerando que o Mistério imanente de Deus se revela em uma Economia temporal, a presente pesquisa percorreu o itinerário da ação trinitária nos lugares de sua manifestação na Criação, na História, na Encarnação e na Igreja. Os loci theologici – lugares teológicos – da manifestação trinitária demonstram alguns aspectos relevantes sobre a dinâmica da Revelação: a) A Revelação é Mistério transcendente e ação de toda a Trindade que se revela para salvar o ser humano necessitado de redenção; b) A Revelação é acontecimento histórico: a ação divina adentrar o âmbito espaço-temporal estabelecendo um tempo oportuno – καιρός; c) A Revelação é conhecimento, testemunho, mensagem, Palavra, doutrina: Deus quer associar o ser humano à sua vida – chegando a assumir a própria natureza humana para redimi-la; d) A Revelação é encontro, comunhão: Deus dirige-se ao ser humano, interpela-o não só individualmente, mas comunitariamente; constitui um povo que escuta, acolhe e vive a Palavra revelada.

A Revelação divina é trinitária e culmina no encontro e na comunhão com o Deus vivo. A Economia da Salvação se fundamenta na vida interior da Trindade imanente que se empenha e se compromete efetivamente na história humana. Em seu libérrimo desígnio de amor, Deus se revela e opera a redenção humana. O ponto alto dessa condescendência divina acontece no evento da Encarnação, quando o Filho assume a condição humana. Deus não é indiferente à humanidade, porém, não se aprisiona ao processo histórico. A ressurreição é prova disso: a humanidade assumida é glorificada e um novo horizonte de plenitude se abre para a História. Tomar como ponto de partida o axioma rahneriano para compreender a Revelação trinitária – a Trindade econômica é a Trindade imanente – ajuda a enfatizar a importância do elemento histórico-salvífico em detrimento das discussões mais metafísicas a respeito das processões trinitárias, e incentiva a trabalhar o tema da Trindade como Mistério relacional, abrindo novas perspectivas para a eclesiologia e a antropologia teológica, especialmente no que diz respeito à dimensão sacramental da vida na graça e o destino escatológico do ser humano vocacionado a participar da vida divina. Deus aparece assim como Mistério relacional e comunional, gênese transcendente e arquetípica da comunhão humana, e modelo de relacionamentos saudáveis e gratuitos que respeitam as identidades e valorizam a diversidade, na dinâmica de uma alteridade irredutível a ser defendida e fomentada.

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