FÉ E RAZÃO NA CARTA A DIOGNETO
FAITH AND REASON IN THE LETTER TO DIOGNETUS

Felipe Gustavo Soares da Silva
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPE). Professor da Faculdade de ciências humanas de Olinda. Contato: felipegustavopx@hotmail.com


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Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as noções de fé e razão no texto Carta a Diogneto. O estudo faz uma leitura comentada de cada um dos capítulos que compõem a obra, procurando destacar os principais argumentos presentes no texto e observar como o autor utiliza uma argumentação racionalizada para explicar fé. Essa análise é importante para pensarmos a viabilidade dessa relação fé e razão num período de declínio da filosofia antiga, ascensão do pensamento religioso nos primeiros séculos da era cristã. 

Palavras-chave: Fé e razão; Filosofia crista; Carta a Diogneto

Abstract: The present work aims to analyze the notions of faith and reason in the text Epistle to Diognetus. The study makes a commented reading of each chapters that make up the work, seeking to highlight the main arguments present in the text and observe how the author uses a rationalized argument to explain faith. This analysis is important for us to think about the viability of this relationship between faith and reason in a period of decline of ancient philosophy and the rise of religious thought in the first centuries of the Christian era.

Keywords: Faith and eason; Christian Philosophy; Epistle to Diognetus

Introdução

O debate intelectual entre fé e razão é um capítulo bastante importante na história da humanidade.[1] Esse debate remonta à antiguidade, mas especificamente nos primórdios do Cristianismo, todavia, é na idade média fortemente marcado por uma discussão entre a religião cristã e os moralistas gregos, de modo que cada lado impunha seu ponto de vista a partir das suas respectivas fundamentações: uns pelos evangelhos cristãos, outros pela tradição filosófica grega. Nesse cenário, surgiram alguns pensadores que tentaram conciliar fé e razão ou pregar a total separação entre elas.

É provável que a Carta a Diogneto seja bem anterior ao período histórico do confronto fé-razão na idade média, outrossim, ademais, a localização incerta da carta não nos permite datá-la em tal período, entretanto, alguns elementos presentes no conteúdo da carta sugerem que há em seu bojo uma forte tendência de tentar apresentar os possíveis enganos da filosofia grega (pagã) e a novidade do cristianismo, o que pelo menos aproxima o documento do ideal de defesa da fé cristã primitiva ou pelo menos nos possibilita utilizá-la como uma referência quando o assunto for o uso ou a explicação racional da fé nesse dado momento histórico.

Um elemento importante da carta é a tentativa do suposto autor em fazer uma demonstração racional da fé que não contenha contradições e, simultaneamente, apelar para uma adesão também racional do seu destinatário à fé cristã. O ápice de seu discurso acontecerá quando se referir ao “verbo divino” – λόγος – retomando assim um conceito próprio da filosofia antiga (lógos) e atribuindo-lhe uma visão cristã. Portanto, ao nos referirmos sobre fé e razão na carta, queremos indicar que, além do que chamamos apelo racional a fé, o conceito de logos é usado como uma expressão da racionalidade divina que será apresentada na Carta a Diogneto como um contraponto à racionalidade pagã. Em síntese, portanto, a proposta do autor é utilizar a fé cristã para refutar a razão pagã. 

Considerada uma joia entre os textos cristãos da antiguidade, a Carta a Diogneto foi encontrada por Tomás de Arezzo em 1436 (FRANGIOTTI, 1995) e traz em seu conteúdo elementos que apelam ao destinatário para uma adesão a fé dos cristãos e a seu modo de vida, entretanto, argumenta em prol de uma adesão firme e racionalizada e para isto o autor trata de demonstrar os passos para que se possa, em acordo com a razão, aderir a fé não por apenas por testemunho humano, mas por entendimento das verdades reveladas. 

O texto é uma fonte descritiva do cristianismo em suas primícias e apesar de ainda não ser precisa quanto a sua autoria, dividindo, portanto, estudiosos do texto, a Carta a Diogneto irá demonstrar essencialmente a natureza e o significado da fé (cristã), ligando-a a uma racionalidade e evitando possíveis equívocos derivados crenças meramente humanas ou rituais do paganismo.

Nosso objetivo, portanto, nesse trabalho, é demonstrar como a Carta a Diogneto apresenta elementos de um testemunho de fé alinhados com um discurso racional sobre ela. Para isso, tratamos de analisar a carta utilizando uma metodologia de uma leitura comentada das traduções para o português e inglês, sem dispensar o confronto com o texto em grego, a fim de elucidar algumas questões conceituais, estilísticas e literárias da época. Nossa análise também se deu por um olhar para as possíveis referências da carta a filósofos gregos e à Sagrada escritura (Bíblia). 

Origem e problemática da carta

A carta tem suas raízes nos primeiros séculos da era cristã, meados dos séculos II ou III (FOSTER, 2016), onde a fé dos cristãos não estava ainda consolidada e era absolutamente contestável devido à forte tendência e crescimento do culto dos pagãos, do ritualismo judeu e é claro, da predominância intelectual da filosofia grega. A autoria do documento é incerta e é quase que consensual entre os estudiosos que ela tenha sido elaborada por algum pensador do início da era cristã (WACE, 2000; FRANGIOTTI, 1995). Cogita-se ainda que ela seja de autoria de um dos padres apologistas ou patrísticos,[2] tal atribuição, certamente ocorre pela proximidade temática, e é uma questão distante do consenso dos pesquisadores. 

É importante ressaltar que não há estudos que comprovem referências ao uso ou divulgação da carta nem no início da era cristã, nem na idade média, outrossim, não há alusões dos chamados patrísticos, em seus escritos e debates em torno da defesa da fé, à referida carta. Os manuscritos em grego foram encontrados em 1436 em meio a outros textos também de caráter apologético (FRANGIOTTI, 1995). Existe, inclusive, a possibilidade da Carta a Diogneto ter sido encontrada de modo fragmentário, ou seja, incompleta. O que se pode mais seguramente afirmar é que, pelo conteúdo da escrita, o autor era bastante conhecedor da Filosofia grega, da cultura judaica, do paganismo da época, e sobretudo, do modo de vida dos cristãos. Pelo conteúdo de preocupação moral, particularmente nós consideramos que o autor poderia ter sido Paulo de Tarso ou tenha sido algum de seus seguidores, ou ainda, pelo menos, tenha tido contato direto ou indireto com Paulo. As preocupações morais parecem muito com as do apóstolo cristão nas cartas aos Coríntios e Tessalonicenses, por exemplo.[3] Quanto ao estilo da Carta a Digoneto, trata-se de uma epístola (ἐπιστολή) e cumpre também a formalidade comum a esse estilo paulino: exórdio, corpo ou desenvolvimento e conclusão, com exortação e sínteses apoiadas no conteúdo do desenvolvimento. O estilo de exortar e de denunciar alguns problemas morais daquela época muito aproxima o estilo da carta com o estilo literário paulino. Especificamente, o texto a Diogneto afronta a frouxidão moral dos que negavam a fé cristã, seja por adorarem objetos materiais e corruptíveis (Diog 2,3),[4]seja por oferecer sacrifícios desnecessários a deus (Diog 3,4).

A pista mais próxima que o próprio texto nos dá sobre a autoria é quando o suposto autor apresenta-se no capítulo 11 como “discípulo nascido dos apóstolos”( Diog 11,1)[5] (αποστόλων γενόμενος μαθητής γί).[6] Em seguida e completando a própria definição, alega ter se tornado mestre das nações (διδάσκαλος εθνών) (Diog 11,1 ) o que parece indicar que, pelo aprendizado que teve nos assuntos cristãos, tornou-se um mestre que passou a ensinar seu testemunho aos que ainda não tinham aderido à fé cristã.[7] De fato, o termo “mestre” (διδάσκαλος) correspondia, na igreja católica primitiva, a um ofício cuja função era de explicar a doutrina da fé cristã. Esse ofício era considerado um dom de Deus e não uma qualidade humana. A função de διδάσκαλος era um terceiro grau de ofício, conforme encontramos nas palavras do apóstolo Paulo “E aqueles que Deus estabeleceu na igreja são, em primeiro lugar, apóstolos (ἀποστόλους); em segundo lugar; profetas (προφήτας) em terceiro lugar, mestres (διδάσκαλος).[8] O ofício estava ligado ainda à função de ensinar e pode ser traduzido também, para a nossa realidade mais próxima, como educador.[9] Nesse caso, trata-se de um educador cristão ou das coisas cristãs. A autodenominação διδάσκαλος revela a função do autor da Carta a Diogneto no momento de sua escrita, e a carta, portanto, configura-se como uma ação derivada de tal ofício.

O texto pode ser considerado uma apologia à fé cristã e isto se deve ao fato de a argumentação estar dirigida para a refutação de práticas, costumes e pensamentos dos pagãos e ou dos judeus que, simultaneamente, também atacavam os cristãos pelo seu estilo de vida absolutamente distinto, novo e absolutamente radical. O contexto da apologia da Carta pode ser demonstrado a partir da preocupação com as perseguições que os cristãos sofriam nos primeiros séculos da era cristã. Vejamos como o discípulo dos apóstolos se refere às perseguições sofridas:

[...]amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, desse modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e tem abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, a aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio (Diog 5, 9-14).

Outrossim, pelo conteúdo apologético, podemos ressaltar também a proximidade conceitual da carta com o pensamento de Justino[10], filósofo do início da era cristã e renomado conciliador entre o mundo pagão e o cristianismo nascente, tendo como principal base de sua argumentação filosófica-cristã, o conceito de Lógos. Justino fora pagão, mas converteu-se ao cristianismo em meio a muitas filosofias da época, descobrindo, porém, a verdadeira Filosofia no cristianismo. Considerando a incerteza da datação da Carta a Diogneto, pode-se pensar que ela pode então pertencer a Justino, pelo estilo argumentativo e crítico das crenças derivadas da Filosofia pagã e pelo fato de que a carta constrói uma apresentação da fé fundada na ideia de revelação divina.

Quanto ao estilo, a chamada Carta a Diogneto pode muito bem ser considerada muito além de uma carta, mas uma grandiosa exortação propriamente dita, e isso se dá pelo conteúdo de prescrição que a mesma compreende no eixo central de sua argumentação (capítulos 7 a 9). Segundo os estudos, acredita-se que a carta, apesar de anônima, dirige-se a um certo indivíduo, provavelmente pagão, citado na carta como Diogneto (Διόγνητε) o qual necessita, ou pelo menos é convidado a conhecer a fé cristã, para isso, a própria carta enuncia seus objetivos: primeiramente, mostrar quem é esse Deus que os cristãos adoram, que tipo de amor caracteriza a vida desses cristãos e, por fim, por que razão do surgimento tardio desse modo de vida (Diog 1) Quanto a Diogneto, o que se sabe pelos registros históricos é que, provavelmente fora um procurador de Alexandria nos séculos II-III d.C., porém não existem comprovações firmes e coesas sobre o destinatário, ou seja, Diogneto pode ser um pseudônimo, ou até mesmo um nome fictício, inventado apenas para endereçar a carta e poder divulgá-la de modo não comprometedor.

Quanto à sua forma, o texto é bastante curto, conciso e organizado, certamente, como uma perfeita elaboração estrutural do autor a fim de cumprir seus objetivos na demonstração argumentativa. Através dos seus doze capítulos, demonstra, do exórdio às conclusões, um rigor formal e eloquente que evidencia a propriedade e conhecimento de seu autor em elaborar bem os argumentos, contextualizá-los e, por conseguinte, atingir os objetivos da escrita, respondendo, afinal, as indagações de seu destinatário e conseguindo cumprir os objetivos traçados no exórdio. Não é um autor qualquer que escreve, mas o conhecimento profundo dos elementos apresentados e refutados remetem, ao que parece, a um estudioso da época e que professava a fé cristã, fator que pode ser inferido pela riqueza de detalhes e elementos que são certamente retirados diretamente de algum fragmento da sagrada escritura ou do conhecimento “de cor” do autor, ademais, pode-se dizer que tenha tais detalhes possam ter sido obtidos pela relação de proximidade com algum dos seguidores de Cristo na época.[11]

Apesar da imprecisão da autoria e da simples comparação que fizemos com o apóstolo Paulo ou com o filósofo Justino, podemos dizer que a carta se situa como um dos textos mais ricos em conteúdos que testemunham um modo de vida próprio da época mas que, todavia, não se esgotam nela: o conteúdo da carta, mais precisamente, suas prescrições, podem ser examinadas como uma recomendação absolutamente atual para os cristãos, do mesmo modo, os conteúdos morais que ela ordena não caíram em desuso, mas ainda são necessários frente ao modo de vida do mundo de hoje e os desafios pelos quais os cristãos supostamente possam passar.

Em meio a uma defesa e difusão da fé cristã frente a um destinatário possivelmente pagão, o autor atravessa categoricamente elementos que perpassam a relação fé-razão, seja por negar a maneira de viver derivada da Filosofia grega, seja por demonstrar o verdadeiro modo de crer e agir, ressaltando a superioridade do cristianismo sob as demais formas de vida. A argumentação é sólida, estritamente moralizadora, e conforme a fundamentação que ele apresenta, pode introduzir a Carta num gênero literário bem peculiar a esse tipo de relação, a saber, os textos patrísticos ou apologéticos.[12] Esse gênero, apesar de ser datado mais precisamente na idade média, é constituído de elementos de defesa da fé cristã e apelo racional para adesão a fé cristã, elementos compartilhados pela chamada Carta a Diogneto

Tendo dedicado até então nossa análise em aspectos mais formais, tratemos então de verificar como os elementos de fé e razão se misturam neste texto e como o suposto autor trata de argumentar em prol de uma fé racionalizada que supera a ignorância ou pseudoconhecimento derivado da Filosofia grega sobre Deus, bem como o paganismo e o culto judaico da época. Vejamos como a prática dos cristãos é apresentada como derivada uma lógica racional fundamentada na revelação divina e quais as consequências disto para os que o seguem.

Entre o paganismo e o ritualismo judaico

A princípio, o autor trata de examinar dois pontos: a fé em deuses diversos e a fé em um único deus, ou seja, examina a noção de divindade e a forma de culto que os gregos e pagãos realizavam. Porquanto, o autor mostra a fundamentação da fé dos não-cristãos. Para demonstrar em que consiste a fé cristã e diferenciar os gêneros de vida, um elemento muito importante é reclamado pelo autor, a saber, que seu destinatário se purifique de todos os preconceitos da mente. Que preconceitos são esses? Este purificar (καθάρας) nos parece significar que o autor sugere que se siga uma ordem de interpretação que pressuponha que os membros de uma mesma conversa renunciem aos seus próprios preconceitos, práticas e tradições, para ouvir atentamente o argumento do interlocutor e a partir de aí compreender eficazmente a exposição. A purificação da mente é um apelo por uma discussão racional sobre a fé. Só deixando de lado os preconceitos poder-se-ia analisar puramente a essência dos elementos que simbolizam a fé conforme a abordagem proposta.

Continuando, o autor trata de refutar os deuses pagãos. A idolatria tipicamente pagã se dava aos chamados deuses artificiais. O principal argumento em detrimento deste tipo de culto prestado pelos pagãos é o conceito de corruptibilidade dos deuses (φθαρτής). Os deuses ao quais os pagãos prestavam culto, a saber, pedra, bronze, madeira, são corruptíveis, estão sujeitos a estragar-se, a deteriorar-se. Para corroborar essa afirmação, trata de demonstrar a efemeridade das coisas, do culto, dos próprios adoradores, afirmando: “a essas coisas chamais de deuses, as servis, as adorais e terminais semelhante a elas” (Diog 2,5). Ademais, demonstra como é contraditório o culto que prestam as coisas: “por acaso não zombais deles e os cobris ainda mais de injúrias [...] com as honras que acreditais tributar-lhes, se é que eles têm sensibilidade, na verdade, os castigais com elas.”[13] A exposição demonstra a contradição do culto pagão e, em simultâneo, evidencia sua futilidade, além de não adorarem um deus verdadeiro prestam consequentemente um culto absurdo, motivo pelo qual os cristãos não podem adorar esses deuses.

Paralelo ao culto dos pagãos, o culto dos judeus também é analisado criticando a sua concepção de sacrifício (θυσίας) como desnecessária diante da divindade. De agora em diante, a crítica não é mais direcionada aos deuses, mas ao culto conforme é prestado. Mais uma vez, os cristãos não podem prestar culto de adoração como os judeus, pois estes, apesar de dirigir culto a Deus, adoram de modo semelhante aos pagãos, ofertando sacrifícios de holocaustos desnecessários. Parecem então, apesar de conhecer um Deus verdadeiro, não conhecer em nada a sua essência e por isso oferecer um culto de maneira errada. Somado ao erro de culto, as práticas e ritos judaicos são também motivo de análise: o uso do sábado, a restrição de alimentos e a mutilação do corpo são elementos que segundo o autor, não demonstram uma verdadeira religião, mas tão somente um ritualismo superficial. 

Os cristãos, portanto, não podem adorar como os judeus porque esse Deus não precisa dos sacrifícios e dos bens ofertados, é um culto, portanto, supérfluo. O apelo do autor é para que se considere o conhecimento de Deus como necessário para se entender, portanto, o culto dos cristãos. Diante disto, introduz a parte do manuscrito em que tratará da prática cristã como uma célebre e profunda afirmação: “Não creias poder aprender do homem o mistério de sua própria religião” (Diog 4,6). Esta afirmação põe em evidência o modo de viver cristão que será apresentado no capítulo V.

A essência da fé cristã

A partir do capítulo V, o autor busca demonstrar que a fé cristã terá uma fundamentação racional legitimada pela revelação divina, conforme veremos. Tendo refutado as formas errôneas de culto, e provado porque os cristãos não poderiam crer da mesma maneira que os judeus ou adorar os deuses gregos, a carta progride para demonstração da essência racional cristã, mostrando o modo de vida cristã no mundo. 

De maneira introdutória a esse objetivo, mostra que o mundo em que vivem os cristãos é diferente e, já apelando a elementos próprios da fé, que os cristãos possuem uma espécie vida espiritual que não se prende à realidade deste mundo, pelo contrário, diz o autor, “moram na terra, mas tem sua cidadania no céu” (Diog 5,9) [14] Esta cidadania reflete em atitudes que são obviamente diferentes das praticadas pelos judeus e pelos pagãos. 

[...] vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável, e, sem dúvida, paradoxal (Diog 5,4 ).[15] 

Quando considera o modo de vida dos cristãos um paradoxo (παράδοξον), ressalta a contrariedade frente aos costumes básicos que orientavam o mundo dos judeus e dos pagãos. Por enquanto, tudo parece uma questão de fé tão somente, todavia, a fé cristã se expressa por um conjunto de atitudes que são muito bem descritas e a tentativa do autor é de mostrar o testemunho e o modo de vida dos cristãos como uma realidade absolutamente distinta dos pagãos e dos judeus, vejamos a distinção dos atos, o paradoxo em relação aos costumes da época:

[...] Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. põem a mesa em comum, mas não o leito; estão carne, mas não vivem segundo a carne; [...] obedecem às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, desse modo, lhes é dado a vida; são pobres, e enriquecem a muitos; carecem de tudo, e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados e, bendizem; são maltratados e honram, fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida (Diog 5, 6-8;11-15)

Ademais, irá utilizar-se de uma metáfora interessante para continuar a descrição da essência da fé dos cristãos: “Assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo” (Diog 6,1). Assim como a alma passageiramente está no corpo está o cristão no mundo com atitudes de quem realmente não pertence a essa realidade, expressa por um desapego aos bens e situações materiais que pertencem a este mundo, mas não enriquecem a alma. Segundo o autor, “A alma imortal habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus” (Diog 6,8). Tal é o modo de vida dos cristãos no mundo, uma passagem em um local que não lhe pertence, lidando com bens, relacionamentos e julgamentos que são próprios do mundo terreno, mas não do espiritual.

Entretanto, o modo de vida dos cristãos deve ter um fundamento ainda maior, que contemple a realidade espiritual e que torna suas vidas um paradoxo: esse fundamento encontra-se na revelação divina. Temos a partir disso a delineação da fé cristã a partir da ideia de revelação. A revelação divina, vontade única de Deus, tem seu ápice em Jesus Cristo. É importante ressaltar que o termo Jesus Cristo não aparece na carta. O autor refere-a ele utilizando, pela primeira vez no capítulo 7, o vocábulo palavra, também traduzido por verbo (τον λόγον)[16]. O filho de Deus é definido como “a verdade, a palavra santa e incompreensível (Diog7,2) (τήν άλήθειαν καί τον λόγον τον άγιον καί άπερινόητον). Mas por qual razão esses adjetivos são atribuídos à pessoa do verbo? Que elementos eles contribuem para a definição do verbo divino e para compreendermos melhor a essência do cristianismo? Quando se refere à verdade (τήν άλήθειαν), parece-nos estar indo ao encontro do evangelho de João λέγει αὐτῷ Ἰησοῦς· ἐγὼ εἰμι ἡ ὁδὸς καὶ ἡ ἀλήθεια καὶ ἡ ζωή (Jo 14,6) - “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” O autor parece conhecer bem o evangelho Joanino e referir-se a ele quando destaca a ideia de verdade (ἀλήθεια) e a atribui ao verbo divino do qual começara a falar. O verbo divino seria então a Verdade buscada como essência do cristianismo. Toda ação e fé dos cristãos fundamenta-se numa verdade que inclusive o interlocutor pagão deseja saber qual é: esta ἀλήθεια é τον λόγον. O vocábulo verdade (ἀλήθεια) aparece por diversas vezes no evangelho de João referindo-se ao verbo divino e à sua ação, e contribui para definir a essência do λόγον (divino) e essa frequente presença do termo permite a atribuição de ἀλήθεια ao verbo divino.  Um exemplo de outra citação em que o termo ἀλήθεια aparece no evangelho é de João é: Ἔλεγεν  οὖν  ὁ  Ἰησοῦς  πρὸς   τοὺς  πεπιστευκότας  αὐτῷ  Ἰουδαίους  Ἐὰν  ὑμεῖς  μείνητε   ἐν  τῷ  λόγῳ  τῷ  ἐμῷ,  ἀληθῶς  μαθηταί   μού  ἐστε,  καὶ   γνώσεσθε  τὴν  ἀλήθειαν,   καὶ  ἡ  ἀλήθεια   ἐλευθερώσει  ὑμᾶς. “Disse, então, Jesus aos judeus que haviam acreditado nele: se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”

Quando se apropria do termo άπερινόητον o qual podemos traduzir por “não compreensível” faz novamente uma referência à sagrada escritura, especificamente à carta aos Coríntios, que em seu segundo capítulo contém o seguinte: “Mas o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parece loucura; e não pode entendê-las, porquanto se discernem espiritualmente” (1Cor 2, 14). O apelo parece ser em direcionar um esforço para um entendimento racional que não despreze o elemento da fé. Noutras palavras, parece haver aqui um esforço por aproximar fé e razão (conforme farão os medievais) e tem sentido o aforismo atribuído a Santo Agostinho - nisi credideritis, non intelligetis – Se não creres não compreenderás. O verbo divino será, pela sua encarnação, pelas suas atitudes e palavras, incompreensível para os homens que apenas com os recursos materiais ou corporais quiser compreender, é necessário, porém, a fé como elemento material, mas de garantia de compreensão dos mistérios que estão sendo anunciados pelo discípulo dos apóstolos em relação ao verbo divino.

Continuando, faz uma referência ao termo palavra santa - τον λόγον τον άγιον – que parece-nos qualificar o termo τον λόγον distinguindo-o da concepção de  λόγος pagão pertencente à filosofia grega e seus pensadores. A expressão τον άγιον pode ser considerada uma referência de distinção do λόγος filosófico do cristão que será mais adiante trabalhado e caracterizado.

O uso do termo λόγος é relevante para compreendermos um pouco mais o conteúdo da carta, testemunhar o conhecimento do autor em relação à cultura de sua época e, por fim, para podermos afirmar a chamada origem divina do cristianismo e respondermos o porquê deste gênero de vida ter aparecido somente agora. O discípulo dos apóstolos se utiliza do termo λόγος para referir-se ao filho de Deus conforme encontramos no texto do Evangelho de João:

Ἐν  ἀρχῇ  ἦν  ὁ  Λόγος,  καὶ  ὁ  Λόγος  ἦν  πρὸς  τὸν  Θεόν,  καὶ  Θεὸς  ἦν  ὁ  Λόγος.   Οὗτος  ἦν  ἐν  ἀρχῇ  πρὸς  τὸν  Θεόν.  πάντα  δι’  αὐτοῦ  ἐγένετο,  καὶ  χωρὶς  αὐτοῦ  ἐγένετο  οὐδὲ  ἕν  ὃ  γέγονεν.   ἐν  αὐτῷ  ζωὴ  ἦν,  καὶ  ἡ  ζωὴ  ἦν  τὸ  φῶς  τῶν  ἀνθρώπων.  καὶ  τὸ  φῶς  ἐν  τῇ  σκοτίᾳ  φαίνει,  καὶ  ἡ  σκοτία  αὐτὸ  οὐ  κατέλαβεν. {...} Καὶ  ὁ  Λόγος  σὰρξ  ἐγένετο  καὶ  ἐσκήνωσεν  ἐν  ἡμῖν,  καὶ  ἐθεασάμεθα  τὴν  δόξαν  αὐτοῦ,  δόξαν  ὡς  μονογενοῦς  παρὰ  Πατρός,  πλήρης  χάριτος  καὶ  ἀληθείας. (NOVUM Testamentum Graece. 1899. p.230)

No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a aprenderam. [...] E o verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1-5;14) [17]

O contexto da escrita do evangelho de João, assim como outros textos do Novo testamento, é a escrita no grego Koiné, língua ou método comum à época e que tinha a mesma função e importância que o inglês tem no mundo de hoje. Com a linguagem do Verbo (λόγος) João se dirige aos judeus e outras nações na época. O discípulo dos apóstolos, se dirigindo a um autor pagão e criticando, como dissemos, o ritualismo pagão e o culto dos judeus, se utiliza da mesma maneira do termo logos, demonstrando conhecimento do contexto e do uso do termo por seu destinatário. O λόγος era um conceito amplamente discutido no mundo filosófico antigo: em Heráclito, por exemplo, representava um princípio que não muda e estava ligado à ordem da natureza afim de evitar o caos, sem o λόγος a natureza seria ininteligível; no estoicismo, por sua vez, λόγος era a lei suprema do mundo, que regia o universo estava presente na razão iluminada; Todavia, é em Fílon de Alexandria, filósofo do judaísmo helênico, que apresenta, pela sua leitura dos textos das escrituras à luz da Filosofia grega, aproximação conceitual com o λόγος joanino.[18] 

O discípulo dos apóstolos utiliza o termo λόγος tentando, de fato, “falar a linguagem” do seu interlocutor, ao mesmo tempo, tenta ressignificar e apresentar a associação de João (1,1) como a essência da novidade do cristianismo que aparecera recentemente e começava a se firmar. O termo λόγος como vimos, tem seus usos na filosofia grega ligado sempre, em resumo, a uma racionalidade ou uma ordenação racional do mundo, em português, o vocábulo é traduzido normalmente por palavra, sentido que aparece no Evangelho de João e é empregado pelo discípulo dos apóstolos para apelar à uma racionalidade que considere Jesus Cristo como palavra saída do pai, Deus. Quando João se utiliza do termo λόγος para falar de Cristo, remonta á um estado anterior à criação – “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gên 1,1) - e escreve: Ἐν  ἀρχῇ  ἦν  ὁ  Λόγος, -Esta escrita é fundamental para no final definir algo específico e importante para o cristianismo: ὁ λόγος (Jesus Cristo)  é (Deus) Θεός. Esta novidade está em contraste com a concepção judaico-helenista onde λόγος é uma espécie de ser mitológico, portador da revelação divina e criador do mundo, mas, disfarçado de homem, como uma espécie de intermediário entre deus e homem. A visão judaica de revelação estava contaminada pelos conceitos derivados da Filosofia grega ou pagã, não se associando, portanto, o λόγος como Cristo. A correção aos cultos judaicos, proposta no capítulo 3 da carta, estende-se, portanto, a uma correção também ao seu modo de compreensão do λόγος, a partir de uma nova compreensão da revelação pelo conhecimento do verbo divino. Essa ideia de revelação será desenvolvida na Carta a Diogneto como portadora da essência do cristianismo. A conclusão de que ὁ λόγος é Θεός permitem a afirmação sobre a origem divina do cristianismo. Deus revela ao mundo seu filho Jesus que também é Deus (apoiado no evangelho de João) e essa revelação mostrará ao mundo uma novidade chamada cristianismo. Portanto, podemos concluir da ausência do termo Jesus Cristo, substituído pelo termo Verbo, coincide com a proposta Joanina de mostrar a dignidade do filho de Deus, sua anterioridade à criação e a sua divindade e com isso uma fundamentação posterior da ideia de revelação divina.

Entretanto, o capítulo demonstra o porquê do envio – para nos salvar (Diog 7,4) – e o modo do envio – como um homem para os homens (Diog 7,4). Os elementos de uma pura fé não são até então suficientes para relatar a essência da vida cristão no mundo, porém, o testemunho de vida e de morte é acrescentado de maneira a legitimar a adesão a fé de muitos cristãos, diz ele: “não vês como os cristãos são jogados às feras, para que reneguem o Senhor, e não se deixem vencer? Não vês como quanto mais sã castigados com a morte, tanto mais outros se multiplicam?” (Diog 7,7-8) Estas afirmações fazem alusão a uma famosa frase de Tertuliano, escritor cristão do século II, “o sangue dos mártires é a semente dos novos cristãos” (TERTULIANO, 2001). O considerado mártir era aquele que era morto por algum perseguidor pelo simples motivo de não negara fé. Parece-nos que aqui o autor consegue mostrar ao seu destinatário que a fé cristã passa por um elemento fundamental que a caracteriza: a adesão firme e estável: ao ver pessoas morrendo em defesa de um ideal, novos cristãos aderiam à fé cristã convictos de que valesse a pena firmemente aderir aquela nova religião, desta maneira, a prática consistia em uma atitude, como vimos anteriormente, de quem compreende sua transcendência.

A refutação aos deuses gregos e a Filosofia grega também era uma das intenções, como dissemos, da escrita da carta.[19] De fato, para caracterizar a nova religião, o autor desqualifica o discurso da Filosofia grega, chamando-o de vazio e sem sentido[20] (κενονς καί ληρώδεις). O autor faz referência aos pré-socráticos Heráclito e Tales quando afirmavam os elementos constitutivos do universo fogo e água, respectivamente. O discípulo dos apóstolos considera esse modo de ver deus nas coisas ou essas atribuições de elementos como possíveis divindades originárias do universo como fábulas, equívocos e enganação (τερατεία, πλάνη, γοήτων). Esse modo de raciocínio enganador deve, portanto, ser descartado para que se possa então compreender o modo de conhecimento de Deus. O meio verdadeiro de conhecimento de Deus se dá pela revelação divina. Para corroborar essa ideia, utiliza-se de uma expressão que faz referência ao evangelho de João quando afirma “nenhum homem viu, nem conhece a Deus, mas ele próprio se revelou a nós.” (Diog 8,5) [21] 

A continuidade da Carta a Diogneto se dá pelo que se pode chamar relato da economia divina, que por sua vez faz parte da doutrina da revelação, onde é tratado o plano da criação do mundo e a salvação do homem. O termo economia (οἶκος νόμος) não aparece no texto da carta, entretanto, o conteúdo do capítulo 9 nos permite essa atribuição pelo conteúdo de extrema justificação do envio do verbo divino ao mundo como parte de um projeto salvífico de Deus que se revela misericordioso com a humanidade, pois, “quando a nossa injustiça chegou ao máximo e ficou totalmente claro que a única retribuição que podíamos esperar era castigo e morte, chegou o tempo em que Deus estabelecera para manifestar a sua bondade e o seu poder” (Diog 9,2).

A ação da misericórdia divina é descrita (Diog 9,2) considerando que a ação de “tomar nossos pecados”[22] e “enviar seu filho (Diog 9,2), o justo pelos injustos, (Diog 9,2) para nos resgatar”(Diog 9,2) foi o meio pelo qual Deus realizou seu desígnio salvífico para a humanidade. Esses mistérios são conhecidos por aquele que creem firmemente e aceitam a Deus como “sustentador, pai, mestre, conselheiro, médico, inteligência, luz, homem, glória, força, vida, sem preocupações com a roupa e o alimento” (Diog 9,6). A partir disso, pode-se responder à primeira pergunta que motiva a carta: Qual é esse Deus (dos cristãos)? Em resposta, tem-se que é o Deus da misericórdia, da bondade e do poder, que se revelou aos homens pelo envio de seu filho único, o verbo divino. A economia divina, como chamamos, será a exposição conceitual necessária para responder a terceira pergunta que motiva a escrita da carta, a saber, “porque essa nova estirpe ou gênero de vida apareceu agora e não antes?” (Diog 1) Em resposta, se lê que, “Na verdade, os cristãos vêm se manifestando nos últimos tempos (início da era cristã) após o envio do verbo divino como expressão da mais profunda misericórdia, justiça e amor”[23] de Deus pelos homens.

Depois de demonstrar a consistência da fé cristã, chega a hora do Discípulo dos apóstolos oferecer o meio pelo qual seu interlocutor pode também alcançá-la. Em síntese, tratará de demonstrar qual atitude deve o homem ter para com Deus diante dos benefícios e privilégios que dele recebeu. Primeiramente, alerta para o fato de que é necessário o conhecimento do pai para alcançar a fé (cristã) (Diog 10,2) O conhecimento do pai, implica compreender seu amor pela humanidade na economia da salvação e a atitude do homem diante disto não pode ser outra, senão, amá-lo - “άγαπήσας δβ μιμητής βση αυτού τής χρηστότητος” - amando-o tu te tornarás imitador da sua bondade (Diog 10,4) Este amor a Deus é a atitude necessária para ir ao encontro dele pois, ele veio ao nosso encontro desta maneira. Só pelo amor e consequente imitação (μίμησις) que é possível o conhecimento dos mistérios e de fato, tornar-se “οντος μιμητής έστι θβού”, imitador de Deus (Diog 10,4) Não se trata, porém, de uma imitação pura e exterior, mas levada às últimas consequências, como expressão de uma adesão à fé sem contradições, exemplificada pelo discípulo dos apóstolos com a metáfora do fogo: se de fato, imitar o amor de Deus, “chamarás de felizes aqueles que, pela justiça, suportaram o fogo passageiro” (Diog 10,6).

Aos que conheceram os mistérios do pai, livrando-se de seus conhecimentos vazios e aderindo – por amor – à verdade da fé, tornam-se, assim como o discípulo dos apóstolos, mestre das nações (διδάσκαλος εθνώντά) (Diog 11,1). O amor que move à imitação de Deus é o mesmo amor que moverá aos discípulos que aderem à fé cristã a proclamarem as coisas que lhe foram reveladas. O conceito de amor é fundamental na Carta a Diogneto, é por amor que se imita o amor de Deus e se prega esse amor aos homens com palavras, assim como o discípulo dos apóstolos revela ao seu interlocutor e tenta convencê-lo, e com atitudes próprias dos cristãos, citadas ao longo da carta e que representam um paradoxo. Assim, responde-se a uma das perguntas iniciais que motivaram a escrita da carta: “que tipo de amor é esse que eles têm uns para com os outros”. Pode-se responder que o amor cristão é a imitação do amor de Deus por nós e que, de fato, conduz a atitudes e testemunhos de quem de fato conheceu a Deus e age em nome dele com justiça e sabedoria, reconhecendo a própria impotência da natureza humana (Diog 9,6) e a bondade de Deus para os que o seguem.

O final da carta trata dos benefícios da adesão por amor ao verbo divino. A verdadeira ciência será o amor, e para corroborar essa tese, o discípulo dos apóstolos refere-se a carta aos coríntios, citando-a amplamente na sua fala, vejamos: “ἡ  γνῶσις  φυσιοῖ,  ἡ  δὲ  ἀγάπη  οἰκοδομεῖ·  εἴ  τις  δοκεῖ  ἐγνωκέναι  τι,  οὔπω  ἔγνω  καθὼς  δεῖ  γνῶναι· “A Ciência incha, mas a caridade edifica. Se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber.”[24] A verdadeira ciência, o verdadeiro conhecimento é obtido e manifestado pelo amor, aprendido de Deus e pelo conhecimento de Deus. As atitudes dos cristãos, o amor de uns para os outros, é um reflexo da compreensão do amor de Deus como o conhecimento sólido e não mais confuso e contraditório como os dos filósofos, nem tão pouco relacionado a ritos vazios como os dos judeus, mas como uma expressão racional de uma adesão pessoal ao modo que Deus vem ao encontro do homem: pelo amor. Se há uma maneira de, então, o interlocutor da Carta a Diogneto converter-se a fé cristã, é pelo amor a Deus, expresso pelo amor aos homens, amor este que é sinal do perfeito seguimento e da segura adesão de quem necessariamente compreendeu em que consiste amar a deus e esperar dele todos os bens possíveis. 

Conclusão

A Carta a Diogneto é de fato uma joia da literatura cristã e o fato de não encontrarmos até o momento precisão sobre seu autor e destinatário não diminui em nada sua importância, pelo contrário, a coloca numa dimensão de mistério e fé muito peculiar à proposta do autor que provavelmente a tenha escrito. Filosoficamente, o texto apresenta uma crítica a uma certa moralidade fundamentada na filosofia grega e no politeísmo. Outrossim, a ética sobretudo estoica é então confrontada por uma espécie de ética cristã fundamentada no amor e no seguimento de Jesus Cristo, filho de deus.

A relação que dá nome a este trabalho, fé-razão, pode ser expressa pela tentativa de o autor demonstrar a um pagão a essência da fé cristã utilizando provas racionais de um modo de vida dos cristãos: o amor que envolvia os primeiros cristãos é um testemunho bastante sólido para demonstrar o entendimento da fé. Eles simplesmente amavam por entender que a fé consistia numa prática do amor uns pelos outros e que a partir disso a convivência entre eles seria pautada numa espécie de conduta alimentada pela fé em Deus. 

Tantos séculos após a escrita, a Carta a Diogneto não está descontextualizada, mas ainda demonstra sua relevância e atualidade, seja como um tratado de apologética, seja como um manual de espiritualidade bastante completo e alicerçado num testemunho cristão fundamentado no amor e na revelação divina por meio do Verbo Divino, Jesus Cristo. Não importa, no plano espiritual quem seja o destinatário da carta, Diogneto pode ser qualquer um que queira saber um pouco mais sobre a natureza do cristianismo e sobre as práticas e o modo de vida dos cristãos. Diogneto pode ser qualquer um que precise alimentar sua fé pelo testemunho e pelo exemplo de seguimento ao Verbo divino num contexto de perseguição e dificuldades tamanhas.

O discípulo dos apóstolos, tornou-se mestre (διδάσκαλος) das nações, e seu ofício foi e continua sendo, pela imortalização da Carta a Diogneto, de dar testemunho da fé cristã e ensinar a verdade que ele tão bem compreenderá pela fé. A Carta a Diogneto, é, portanto, um convite de adesão pessoal a fé pelo atingimento do verdadeiro conhecimento que é o amor de Deus, revelado aos homens no verbo divino, seu filho. É por isso que, naquela época, os cristãos causavam arrepio: por causa de suas atitudes coerentes com a doutrina. Não se tratavam apenas de ações exteriores e de um simples ritualismo, mas de uma expressão racional de sua fé pelo amor. 

Referências

A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revisada e ampliada. São Paulo: Paulus, 2004.

ANDRIESSEN, PaulL’Épilogue de L’Épître à Diognète. Recherces de ThéologieAncienne et Médiévale 13, 1946.

BUENO, Daniel Ruiz. Padres apologistas griegos. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1954.

CARTA A DIOGNETO. In: Padres apologistas. São Paulo: Paulus, 2016. 

EHRMAN, Bart, D.Epistle to Diognetus.in. The apostolic fathers. Vol II. Harvard University Press Cambridge: England. 2003.

FOSTER, Paul. The Epistle to Diognetus. The Expository Times, v. 118, n. 4, p. 162-168, 2016.

FRANGIOTTI, Roque. (ed.). Padres apologistas. São Paulo: Paulus, 1995.

HAMMAN, A. Os padres da igreja. 3. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.

NOVUM Testamentum Graece. Post Eberhard et Erwin Nestle editione secunda revisa. ed. rev. Stuttgart: Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft, 1899.

TERTULIANO. Apologético. A los gentiles. Madrid: Editorial Gredos, 2001.

ZILLES, Urbano. Fé e Razão no Pensamento Medieval (Coleção Filosofia 1), 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

WACE, Henry. A Dictionary of Christian Biography and Literature to the End of the Sixth Century A.D., with an Account of the Principal Sects and Heresies. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 2000.

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Notas

[1] Muito útil para o entendimento das diversas perspectivas e discussões é o texto: ZILLES, Urbano - Fé e Razão no Pensamento Medieval (Coleção Filosofia 1), 2ª ed. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1996.

[2] Padres apologistas eram homens cultos da antiguidade que se converteram ao cristianismo a partir dos Evangelhos ou dos testemunhos de outros cristãos. A maioria deles era profundo conhecedor da Filosofia e se utilizavam desse conhecimento para se fazer entender algumas das verdades do cristianismo. Também chamados Patrísticos porque produziram seu conhecimento filosófico nesse dado período da história da Filosofia (ZILLES, 1996).

[3] Tudo me é permitido mas nem tudo me convém (1Cor 6,12); Veja-se os argumentos seguintes: “Porquanto, é esta a vontade de Deus: a vossa santificação, que vos aparteis da luxúria, que cada qual saiba tratar a própria esposa com santidade e respeito, sem se deixar levar pelas paixões, como os gentios, que não conhecem a Deus. Nessa matéria ninguém fira ou lese a seu irmão, porque de tudo isso se vinga o senhor, como já vos dissemos e asseguramos. Pois deus não nos chamou para a impureza, mas sim, para a santidade. Portanto, quem desprezar estas instruções não despreza um homem, mas Deus, que vos infundiu o Espírito Santo. (1Tes 4 3-8)

[4]. Considerando que o texto que ora analisamos trate-se um clássico, optamos por fazer as referências no rodapé da página indicando o capítulo e o verso do texto citado. A referência completa da tradução utilizada para nosso estudo é: CARTA A DIOGNETO. In: Padres apologistas. São Paulo: Paulus, 2016.

[5] Adotaremos a nomenclatura discípulo dos apóstolos para nos referirmos ao autor desconhecido da carta.

[6] Este é um dado importante na caracterização do autor da carta: como dissemos anteriormente, parece-nos que ele ao menos tenha tido um contato com o apóstolo Paulo. De fato, αποστόλων γενόμενος μαθητής γί pode ser uma referência à sua “linhagem” ou ao seguimento da proposta e da doutrina moral paulina. 

[7] O que sugestivamente poderia enquadrá-lo no perfil dos padres apologistas. Todavia, neste trabalho não temos dados suficientes para essa caracterização em definitivo.

[8] Cf. 12,28 

[9] Do termo διδάσκαλος também surge o termo didática como uma técnica ou conjunto de técnicas de ensino a fim de visá-lo mais eficiente. A “didática” pressupõe o conhecimento e uma adequada maneira de lidar com o assunto. Como veremos, o Discipulo dos apóstolos parece unir em seu discurso esses elementos de conhecimento e técnica.

[10] Justino ou Justino de Roma, irá trabalhar alguns conceitos em sua apologia, que coincidem com a temática da Carta a Diogneto, dos quais podemos citar dois: a defesa da fé cristã (e aí incluímos uma crítica à Filosofia grega, compartilhada em parte na Carta a Diogneto) e a doutrina do Lógos e sua associação ao divino.

[11] Como supomos que o autor seja ligado ao apóstolo Paulo.

[12] A mais conhecida tradução da carta para o português, feita pela editora Paulus, engloba o texto numa coleção chamada Patrística. Como já dissemos em nota anterior, utilizamos a tradução presente na Coleção Patrística (2016).

[13] Id.

[14] Esta expressão coincide com alguns trechos das cartas paulinas: Filipenses 3,20; Hb 11,13-16 e Cl 3, 1-4.

[15] Grifos nossos. 

[16] O termo verbo (λόγος) aparecerá por oito vezes ao longo do texto.

[17] Grifos nossos.

[18]Cumpre aqui destacar uma distinção. Para Fílon, o λόγος era um ser mais próximo de Deus e um instrumento da criação, todavia, não o define como Jesus Cristo, diferenciando-se, portanto, da perspectiva joanina.

[19] Pode-se utilizar, portanto, a Carta a Diogneto como um exemplar a favor da relação fé e razão, tão discutida na idade média. Ora, o objetivo não era negar absolutamente a importância da Filosofia, e nem a Carta a Diogneto o faz, mas criticar a atribuição que ela dava ao conceito de divindade (conforme os pré-socráticos) e demonstrar como a fé, assessorada pela razão, pode eficazmente levar o homem a uma adesão firme. São clássicos os exemplos de Agostinho e Tomás de Aquino a quem são atribuídas as “cristianizações” de Platão e Aristóteles, respectivamente. 

[20] Sem sentido, obviamente, diante do contexto da fé cristã, tal qual defendida e argumentada neste dado momento da carta. Não acreditamos que se trata de deslegitimar o pensamento filosófico em si, mas àquelas teorias diante daquele contexto em que se falava, especificamente.

[21] Cf. Jo 1,18

[22] Referência clara a sagrada escritura: 1Ped 2,24 “Sobre o madeiro, levou nossos pecados em seu  próprio corpo, a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça.”

[23] Voltaremos mais adiante ao termo amor divino.

[24] Cf. 1 Cor 8, 1-2