Penalidade, escrúpulo e o impasse entre condenação e justificação: o símbolo da culpa em A simbólica do mal (1960)

Weiny César Freitas Pinto
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Contato: weiny.freitas@ufms.br

Pedro Henrique Cristaldo Silva
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Contato: pedro.h.c.silva@ufms.br


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Introdução

Paul Ricœur em sua obra A Simbólica do Mal, de 1960 – segundo volume de Finitude e Culpabilidade, inserida em A Filosofia da Vontade II –, no capítulo A Culpabilidade, dedica-se a investigar o símbolo da culpa nos documentos dos povos antigos que formaram a civilização ocidental: a tradição judaico-cristã e a cultura helênica. 

A diferença da instância da culpabilidade entre os dois povos é definida pelo autor em três modalidades: a responsabilidade e a penalidade entre os gregos, a consciência interiorizada de impureza e severidade religiosa dos judeus, e a consciência acusada e cativa dos cristãos. Segundo Ricœur, a culpabilidade, ou seja, o símbolo da culpa, implica o juízo pessoal de imputação do mal a si mesmo, originando uma nova instância da falta (faute), que é expressa por meio dos símbolos primários: mancha, pecado e culpabilidade. Assim, para uma possível cisão completa entre “o ‘realismo’ do pecado e o ‘fenomenismo’ da culpabilidade” (RICŒUR, 2013, p. 123), o filósofo francês explora as três modalidades, exercendo uma reflexão ético-jurídica da racionalização penal helênica, ético-religiosa da consciência escrupulosa judaica e psicoteológica da consciência cativa cristã. 

Dessa forma, Ricœur, com sua perspicácia histórica e exegética, traça uma descrição aproximativa do símbolo da culpa entre os escritos da Grécia Antiga (epopeia, tragédias, diálogos platônicos e a Ética aristotélica) e as Escrituras de Israel e da Igreja Primitiva (TanakhTorá, Profetas e Escritos sapienciais – e as Epístolas Paulinas). Sua investigação baseia-se no método hermenêutico, extraindo a função simbólica do mito, e na reflexão fenomenológica, extraindo a experiência da crença por meio da imaginação à consciência religiosa. 

Nosso objetivo com a presente comunicação é resumir de forma descritiva a argumentação investigativa que Ricœur elabora em A Simbólica do Mal sobre a culpabilidade, e então, apontar o valor do símbolo mítico para a constituição do imaginário humano manifesto na cultura. 

A culpabilidade

A culpabilidade pode ser concebida primeiramente como a tomada de consciência da falta. Ela antecipa o castigo, isto é, a punição do erro, pois, no momento subjetivo de tomada de consciência da falta, há a interiorização do erro, falha, pecado, e então, o reconhecimento da devida punição proveniente da responsabilidade que falhou. A falta (faute) consiste tanto na categoria quantitativa da ausência quanto na dimensão qualitativa do erro – culpa. Seria então a culpabilidade nada além que o reconhecimento interiorizado da falha (falta) gradual? 

Para Ricœur a consciência de culpa constitui uma verdadeira revolução da experiência do mal, porque, “o mau uso da liberdade, [é] sentido como uma diminuição íntima do valor do si.” (RICŒUR, 2013, p. 119). Segundo ele, a implicação da consciência de culpabilidade consiste na imputação pessoal do mal a si mesmo. Logo, a culpabilidade é a interioridade realizada do pecado – primeira instância dos símbolos primários explorados por Ricœur na parte inicial de sua obra, pois, “é a perda sentida do vínculo com a origem.” (RICŒUR, 2013, p. 120), ou seja, é a tomada de consciência do erro cometido à outrem. 

No entanto, o filósofo francês argumenta que a culpabilidade, ou o “fenomenismo da culpabilidade”, não pode ser completamente substituído pelo pecado, ou o “realismo do pecado”, uma vez que, exemplificadamente, diante da confissão do salmista hebreu, registrada no salmo de número 51, versos 5-6: “Reconheço os meus pecados e tenho sempre diante de mim as minhas faltas; Contra ti pequei, só contra ti, fiz o mal diante dos meus olhos.” (Sl 51, 5-6), há um equilíbrio entre as duas instâncias e duas medidas: a medida absoluta do olhar divino que vê o pecado, “realismo do pecado”, e a medida subjetiva da tomada de consciência do erro, “fenomenismo da culpabilidade”. 

Porém, para além do equilíbrio, permanece uma tensão entre as duas instâncias: “Segundo o esquema do pecado, o mal é uma situação ‘na qual’ a humanidade é tomada enquanto coletivo singular”, ou seja, o pecado é o mal coletivo, e, “segundo o esquema da culpabilidade, o mal é um ato que cada indivíduo ‘começa’.” (RICŒUR, 2013, p. 123-124), isto é, a culpabilidade é o mal individual. 

Portanto, é na possibilidade de cisão completa entre culpabilidade e pecado, “fenomenismo da culpabilidade” e “realismo do pecado”, que Ricœur apresenta três modalidades como argumentos explicativos para diferenciação. 

1. Penalidade

A primeira modalidade da culpabilidade é a imputação penal dos gregos, proveniente, inicialmente, da primitiva consciência ético-religiosa, e não propriamente das instituições cívico-normativas da polis. A experiência jurídica e penal que os gregos adquiriram não foram suficientes para constituir completamente a noção de culpa, pois o desenvolvimento dos conceitos de culpabilidade: hybris (presunção, orgulho), hamartia (erro fatal, crime horrendo), adikia (injustiça) (RICŒUR, 2013, p. 126), “ultrapassa a simples história das instituições penais da Grécia clássica e pertence à história exemplar da consciência ético-religiosa.” (RICŒUR, 2013, p. 126). 

A adikia, por exemplo, tem suas raízes na consciência arcaica da impureza religiosa. Segundo Ricœur, a divisão entre o cosmos e a polis culminou na racionalização da injustiça e da justiça (dike); em outras palavras, a definição de injustiça imputada ao indivíduo pelo âmbito cívico e jurídico da instância legislativa na cidade grega tornou a penalidade passível de ser medida, e consequentemente, a culpabilidade pôde ser hierarquizada em diferentes graus. 

Desse modo, a culpabilidade também se distanciou de sua raiz religiosa ao tornar-se juridicamente penalizável e hierarquizada devido a racionalização, culminando então na pena do injusto, criminoso, orgulhoso. Logo, ao contrário do berith (Aliança ou Pacto) monoteísta dos judeus, é o ethos e o logos da polis que constitui o fundamento de uma acusação razoável, ou seja, uma penalidade racionalmente aceitável. Conforme Ricœur: “Já não é a Aliança, o monoteísmo ético, a relação personalista entre Deus e o homem que suscita o polo oposto da subjetividade acusada, é a ética da cidade dos homens que constitui a sede de uma inculpação razoável.” (RICŒUR, 2013, p. 126-127). 

Portanto, a diferença entre a cultura helênica e a tradição judaica é nítida quando comparamos a origem da noção de culpa expressa em graus, pois se para os judeus a culpabilidade é proveniente da meditação pessoal junto à confissão comunitária; para os gregos, a culpabilidade é proveniente da progressão da penalidade imposta pelo tribunal da polis (RICŒUR, 2013, p. 128). 

Traçar a relação entre a consciência penal dos gregos e a consciência zelosa dos judeus, isto é, comparar a cultura dos gregos e a tradição judaica referente à primeira modalidade da noção de culpabilidade, só é possível quando pensamos que a penalidade que deve ser atribuída aos indivíduos culpados de seu crime ou pecado é considerada como “justificação da iniquidade”, pois a penalidade justificou a iniquidade tanto em “Tebas” quanto em “Sodoma”, conforme seus respectivos modos em cada uma das civilizações.

Além disso, conforme Ricœur, é da reflexão sobre o direito penal do código de Drácon, os crimes fabulosos de Édipo Rei e as penitências aplicadas aos iniciados do oráculo de Delfos, que provêm os conceitos basilares do Platão das Leis e do Aristóteles da Ética Nicomaqueia: a) o voluntário simples, intencional, e o involuntário coercitivo ou ignorante; b) a escolha preferencial, deliberativa, e o anseio para os fins. Até mesmo o termo hamartia, que Sófocles esboçava em Antígona quando queria denominar a falta moral, foi utilizado posteriormente na Bíblia Grega, a Septuaginta, quando traduziram “pecado” do hebraico, assumindo o sentido de iniquidade, referenciando-se a dimensão ético-religiosa da culpa entre os hebreus. (RICŒUR, 2013, p. 133).

2. Escrúpulo

A segunda modalidade da culpabilidade é o escrúpulo, desenvolvido, exemplificadamente, pelo zelo religioso dos fariseus. O farisaísmo foi uma escola de interpretação minuciosa, ensino rigoroso e prática severa da Torá, iniciada no período do segundo templo, séc. V a. C., e terminada no séc. VI, com a redação do Talmude – uma coletânea de questões rabínicas sobre a interpretação do Tanakh

Ricœur considera que desde o período mosaico, séc. XV a. C. aproximadamente, o monoteísmo de Israel era pautado na ética e na história, ou seja, no decorrer de eventos temporais místicos, nas bênçãos ou nas maldições que viriam sobre o povo judeu conforme a sua fidelidade à Aliança. Logo, ao contrário da racionalização penal grega, “[...] para os judeus a Lei nunca poderá ser completamente racionalizada, universalizada, numa espécie de deísmo moral intemporal; [...]” (RICŒUR, 2013, p. 135-136). 

Desse modo, segundo o filósofo, o problema dos fariseus resumia-se a uma questão: como servir verdadeiramente a Deus nesse mundo? (RICŒUR, 2013, p. 140). Foi tentando responder a essa problemática questão, que “os fariseus e seus escribas tentaram precisamente inscrever na realidade essa vida sob a Lei e pela Lei.” (RICŒUR, 2013, p. 137, grifo nosso). 

O termo lei é proveniente da palavra lex, do latim, à qual recebe sua referência de nomos, inserida na tradução grega do Tanakh, a Septuaginta, realizada pelos “setenta sábios” no século III a. C. Entretanto, o termo original no hebraico é torá, que significa, de forma simplificada, “instrução”. Tal significado linguístico implicou que a relação entre Deus e o homem é concebida de uma vontade que comanda e de uma vontade que obedece. A partir dessa perspectiva, o escrúpulo pode ser caracterizado “como sendo um regime geral de heteronomia consequente e consentida.” (RICŒUR, 2013, p. 144); em outras palavras, a obediência à Torá, que é a revelação divina normativa, e, portanto, reconhecida e acolhida como tal pelos judeus, deve ser executada em toda existência, apesar de toda circunstância, e em todo específico detalhe pelos fariseus.

Nesse sentido, “o escrúpulo é a vanguarda da culpabilidade” (RICŒUR, 2013, p. 145). Contudo, Ricœur afirma que a hipocrisia é a caricatura da consciência escrupulosa, pois, quando “o exterior se autonomiza do interior e o zelo da práxis esconde a morte do coração, então, a heteronomia consequente e consentida torna-se alienação.” (RICŒUR, 2013, p. 156).  

3. Condenação e justificação

A terceira e última modalidade da culpabilidade é o limiar entre a condenação e a justificação, a consciência de culpa, na concepção cristã. Foi tentando responder ao dilema de como a lei, cujo propósito era dar vida e instruir o povo da Aliança, foi transformada em “ministério da morte”, que São Paulo expôs pela primeira vez o impasse entre condenação e justificação, “justiça que vem da lei” e “justificação mediante a fé”. 

O impasse entre condenação e justificação, consiste, pois, na impotência humana para cumprir integralmente os mandamentos “ilimitados”. A culpabilidade, conforme essa modalidade, provém do insucesso da obediência à lei. Comparando com a experiência do escrúpulo entre os fariseus: se antes o pecado era reduzido ao descumprimento da lei, à não observância da lei de forma minuciosa, agora, o “pecado foi invertido”, pois é pelo cumprimento da lei, visando justificar-se, que a pessoa torna-se pecadora, culpada, essa é a “maldição da lei”; segundo Ricœur, “Esta maldição é dupla: ela afeta a estrutura da acusação e a da consciência acusada.” (RICŒUR, 2013, p. 161), pois, ao fracassar em se justificar, devido ao esforço em cumprir todas as instruções da lei, o indivíduo gera um sentimento de culpabilidade. 

Dessa forma, mediante o autoexame subjetivo, o indivíduo encontra-se culpado, logo, “o realismo do pecado, medido pelo olhar de Deus [objetivamente], é absorvido no fenomenismo da consciência culpada, que se mede a si mesma [subjetivamente].” (RICŒUR, 2013, p. 160, grifo nosso). Nesse sentido, segundo o filósofo francês, a consciência culpada é escrava de si mesma, e vários mitos demonstraram figurativamente “essa paradoxal coincidência entre o esforço reiterado e o resultado nulo: o gesto vão de Sísifo e das Danaides é bem conhecido, e já Platão o interpretara como símbolo da condenação simultaneamente eterna e estéril, sem saída” (RICŒUR, 2013, p. 163, grifo nosso). 

Com efeito, para além das três modalidades, Ricœur aponta outro símbolo ao final de seu capítulo: a “justificação”. Para superar a consciência escrava da culpabilidade, o autor apresenta o símbolo da justificação da consciência que liberta o culpado. É somente pela justificação da consciência pela fé que o reconhecimento da condenação passada é possível; em outras palavras, é na retrospectiva subjetiva de uma consciência tornada justa que a culpabilidade, proveniente da própria condenação, devida ao fracasso do cumprimento da lei, é superada. “Eis o símbolo a partir do qual a última experiência da falta [culpabilidade] é apercebida enquanto passado superado.” (RICŒUR, 2013, p. 165). 

Além disso, em contraste à tradição helênica, Ricœur salienta que a virtude que o homem da polis pode alcançar racionalmente é profundamente diferente da situação do crente incapaz de cumprir a lei e alcançar a justiça, tornando-se justo, pois:

“[...] a ‘justiça’ para São Paulo, longe de ser a virtude arquitetônica do homem no sentido do livro IV da República de Platão, é algo que vem ter com o homem: vem do futuro para o presente, do exterior para o interior, do transcendente para o imanente. [...] Ser ‘justo’ é ser justificado por Outro.” (RICŒUR, 2013, p. 164) 

Conclusão

É importante ressaltar que, de acordo com a história das religiões, conforme o filósofo francês assinala, o mito é uma narrativa tradicional de eventos para constituir a ação ritual religiosa e instruir o pensamento para compreensão de si mesmo e do mundo. Dessa forma, sendo o mito uma narrativa tradicional, e não uma pretensa explicação factual, ele revela, mediante sua função simbólica, a capacidade de descoberta do significado religioso entre o indivíduo e a divindade, ou seja, o vínculo entre o crente e o objeto fundamental de sua crença. 

Nesse caso, podemos nos interrogar, o que seria da cultura ocidental, seja em seu âmbito ético e religioso, mas também científico e artístico, sem a narrativa de libertação do Êxodo ou os registros lendários de Odisseu por Homero? sem a Alegoria da caverna de Platão ou as parábolas de Jesus?; sem as tragédias teatrais ou as visões apocalípticas dos apóstolos?

Vale ressaltar que, dada a importância dos símbolos, não é sem razão que determinadas filosofias e abordagens psicológicas utilizam o poder do mito como ferramenta explicativa para determinada situação. Até mesmo “a psicanálise [...] tentará fazer coincidir um arcaísmo lógico com esse ‘longínquo’ cultural.” (Ibid., 2013, p. 37). Segundo Ricœur assinala, não podemos subestimar a importância que a estrutura mítica tem para a consciência de culpa

Além disso, “é nesta via longa da hermenêutica dos símbolos que a vivência tem acesso à clareza da palavra.” (Ibid., p. 280, grifo nosso), uma vez que “o sujeito [...] não se conhece diretamente, mas apenas através dos signos depositados em sua memória e em seu imaginário pelas grandes culturas” (RICŒUR, 2007, p. 32, tradução livre); ou seja, a experiência humana recebe o esclarecimento da linguagem por meio da compreensão interpretativa dos símbolos míticos recebidos da cultura e armazenados na consciência, pois os símbolos contêm, mediante uma narrativa figurada de eventos, a origem dos problemas da existência, como por exemplo, o autoconhecimento, a morte, a liberdade. 

Nesse sentido, a noção ricoeuriana de culpa – culpabilidade –, tal como descrita a partir das três modalidades expostas acima, constitui um dos símbolos primários do mal, que, por sua vez, forma o homem, este ser finito e parcialmente compreensível; porém, ainda assim compreensível, principalmente mediante os símbolos manifestos na cultura, sendo o mal, o mais emblemático deles.   

Referências 

RICŒUR, Paul. A Simbólica do Mal. Tradução: Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2013. (Biblioteca de filosofia contemporânea; 45)  

RICŒUR, Paul. Autobiografia Intelectual. Tradução: Patricia Willson. Argentina, Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.