João Décio Passos
Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: jdpassos@pucsp.br
Resumo: As guerras instauram-se como estado de exceção que permite de modo legítimo a aniquilação do outro. O que na ordem do dia era imoral e criminoso torna-se nessa conjuntura legítimo e necessário. As batalhas religiosas hoje adotas como imagens e fundamentos de lutas políticas concretas configuram uma espécie de estado de exceção ética que fundamenta e justifica a suspensão dos valores mais sólidos e sagrados em nome do Soberano divino que tudo comanda. As narrativas da luta escatológico-histórica do bem contra o mal agregam os representantes do bem contra os considerados malignos que devem ser eliminados.
Palavras-chave: Estado de exceção, Guerra, Legitimação, Morte e Religião
Abstract: Wars are established as a state of exception that legitimately permits the annihilation of the other. What was immoral and criminal in the order of the day becomes legitimate and necessary at this juncture. Religious battles today adopted as images and foundations of concrete political struggles configure a kind of ethical state of exception that grounds and justifies the suspension of the most solid and sacred values in the name of the divine Sovereign who commands everything. The narratives of the eschatological-historical struggle of good against evil aggregate the representatives of good against those considered evil who must be eliminated.
Keywords: State of exception, War, Legitimation, Death and Religion
O quadro de “guerra religiosa” que encenou de forma dantesca a chamada polarização política do país na última eleição foi visto como um retrocesso lamentável por personalidades intelectuais, políticas e religiosas. Teríamos retrocedido a uma etapa histórica supostamente superada na qual a religião detinha um papel determinante nas escolhas individuais e coletivas? Uma crença latente nas regras da política laica foi dando lugar para uma política teocrática executada sem escrúpulos pelo mandatário maior e por uma leva de pastores evangélicos e também por segmentos e clérigos católicos. Um consenso teocrático agregou o que era até bem pouco distante e bastante diverso: os fundamentalistas evangélicos, os tradicionalistas católicos e os conservadores liberais. A batalha religiosa contou com o aparato técnico-social das redes virtuais e as narrativas religiosas ocuparam um lugar central nas igrejas evangélicas e alguns movimentos católicos, interferindo diretamente nos desempenhos eleitorais. A ideia supostamente superada de uma fundamentação religiosa do poder se mostrou viva e eficaz, reproduzindo arsenais antigos da onipotência divina e contando com teorias da conspiração operacionalizadas pelas Fake News.
Uma causa maior, ou, uma causalidade maléfica (POLIAKOV, 1991), determinam a guerra de narrativas numa espécie de estado de exceção, não somente das normas regulares de funcionamentos das instituições políticas, mas antes, de exceção ética para os cidadãos civilizados e de exceção querigmática para os cristãos. Nos quadros de exceção, os valores fundantes e as normas são suspensos por uma razão cósmica e escatológica que se impõe como urgência e como imperativo que justificam a ação soberana de um líder, antes, acima e posterior a toda tradição e institucionalidade.
Os antagonismos e guerras acompanham a espécie humana das comunidades tribais arcaicas à formação das grandes civilizações, da cristandade aos tempos de globalização. Tanto as tribos quanto as civilizações adotaram a guerra contra seus inimigos por se entenderem como centro do mundo e, portanto, no direito e no dever de dominar pela força e, em caso de resistência dos dominados, de eliminá-los como inimigo e como encarnação do mal. Se não temos guerra direta ou física nos campos políticos antagônicos atuais, as batalhas religiosas em nome de Deus tomaram formas muito concretas através das mídias nas narrativas que circularam pelas redes virtuais. O conceito de guerras híbridas desvenda o mecanismo atual de luta política que já não necessita mais dos modos clássicos de confronto físico, mas, utilizam-se dos meios simbólicos para fabricar e destruir os inimigos (KORYBKO, 2018). As guerras religiosas[1] assim entendidas acontecem na esfera das imagens religiosas de uma luta sem tréguas do bem contra o mal e que encontra em conjunturas e personagens a sua concretização histórica. É quando a batalha de natureza espiritual se identifica e se traduz em lutas políticas históricas e determinam as posturas e escolhas dos que se encontram envolvidos nesse universo de crenças.
É nessa dinâmica que a postura de luta do bem contra o mal ganha visibilidade, fôlego e legitimidade na era digital, de modo direto e eficiente nas redes sócias. As bolhas virtuais aí cristalizadas agregam de modo inédito as velhas dinâmicas das massas com seus líderes salvadores. A distinção, oposição e confronto entre os grupos do bem contra os grupos do mal encenam batalhas político-religiosas já analisadas por especialistas no contexto da ascensão nazifascista no século passado (GOODRICK-CLARKE, 2002).
Nesse ensaio, o conceito de guerra religiosa refere-se, antes de tudo, às narrativas religiosas que são construídas para justificar as lutas políticas efetivas. De fato, uma guerra religiosa por vezes permanece como narrativa simbólica violenta que separa com eficiência os bons dos maus e por vezes fundamenta e alimenta as batalhas entre os grupos antagônicos e beligerantes. No contexto em que a reflexão está ancorada caberia, evidentemente, a pergunta sobre a separação entre o simbólico e o político ou a distinção entre guerra indireta e guerra direta (KORYBKO, 2018, p. 13-15), sobretudo quando atos de violência foram praticados por militantes do bolsonarismo, em nome de uma narrativa religiosa que separou os homens de bem dos homens do mal. Os episódios de 8 de Janeiro de 2003 revelam por si mesmos que a luta virtual e espiritual pode sair da bolha e traduzir-se em batalhas físicas. Toda beligerância tem seu começo no imaginário, quando um sentimento comum toma forma e cria os pressupostos para os comportamentos sociais. Uma guerra religiosa, assim entendida, nasce de fontes crentes, de onde os fiéis retiram referências e motivações para as posições políticas e ações concretas.
Contudo, o foco da reflexão permanece no âmbito das narrativas religiosas que lançam mão de expedientes conspiratórios e de fontes sagradas para justificar a divisão necessária entre o bem o mal e a necessária superação do mal historicamente encarnado, mediante o caos iminente a promessa anunciada pelo líder salvador. A hipótese norteadora pode ser assim formulada: a guerra religiosa é a narrativa necessária que justifica e alimenta os antagonismos políticos concretos, na medida em que oferecem as distinções entre o bem e o mal e as autorizações para eliminar o inimigo. A lógica do antagonismo e do confronto violento contra o inimigo pode ser detectada como postura comum das batalhas históricas e das batalhas religiosas, como se verá a seguir.
Uma narrativa de guerra religiosa pode permanecer como sustentação simbólica da rivalidade, como motivação para atos violentos e como justificativa e motor para guerras diretas do passado e também do presente. Se as guerras diretas são a própria expressão dos estados de exceção, as guerras religiosas exercitam um estado de exceção ética que pode antecipar e justificar a ação destrutiva da guerra efetiva, como fundamento absoluto que tudo pode ser legitimado em nome de Deus.
As guerras antigas de natureza física e as guerras religiosas simbólicas têm nascedouros comuns. Na raiz de toda guerra reside a consciência autocentrada do grupo social que se julga superior aos demais e, portanto, detentor de uma missão sublime de se impor sobre os outros inferiores sua superioridade econômica, política, cultural e religiosa. Nesse jogo de dominação, há sempre uma bondade que se impõe sobre a maldade e busca eliminá-la por vias legítimas: a libertação dos maus em nome de uma urgência e/ou de um mandato divino. Os de fora (o exogrupo) são considerados não somente um grupo inferior aos que pretendem se expandir e dominar (o endogrupo)[2], mas também como inimigos do bem que devem ser vencidos e, se necessário, eliminados para que a superioridade (bondade) possa se expandir e prevalecer em escalas e esferas cada vez mais amplas, quiçá atingindo toda a terra. A chamada pax romana (WENGST, 1991) constitui o exemplo mais emblemático dessa compreensão, embora sua lógica se mostre onipresente nas guerras que geraram os grandes impérios no decorrer da história. Os Romanos eram os benfeitores dos povos incivilizados e estavam autorizados a dominá-los em nome de um bem maior de que eram portadores inequívocos. A mesma lógica regeu os impérios cristãos da antiguidade e idade média, assim como os impérios europeus modernos, todos destinados a levar suas bondades para os povos incivilizados, pagãos e maus localizados fora da Europa cristã. A história da humanidade que chegou até aqui é uma história de guerra, ainda que se deva observar para o bem da verdade a construção de regras mais civilizadas que controlaram a violência desmedida no interior dos grupos – do endogrupo – deixando a guerra prioritariamente para a eliminação do outro inimigo, do exogrupo. Os de fora tornam-se objeto de destruição quando regularmente se mostram como ameaça e geram medo. É nesse sentimento primordial que as lutas ganham força e legitimidade nas configurações bélicas. A sequência medo-ódio-aniquilação compõe, assim, a dinâmica de fundo de todas as guerras, das narrativas religiosas aos enfrentamentos mortíferos.
A constatação do inimigo perigoso pode ser examinada por ângulos diversos e foi objeto de investigação de autores no epicentro da segunda grande guerra. Essa literatura multidisciplinar adquire relevância na conjuntura atual, quando a rivalidade vai sendo cada vez a regra estruturante das redes sociais. As noções de endogrupo e exogrupo (ALLPORT, 1971; WILLIAMS, 2021) elucidam a configuração social construída para separar socialmente os de dentro e os de fora e, por conseguinte, os amigos e os inimigos, os bons e os maus. A escala da segregação preconceituosa oferecida pelo psicólogo desenha uma tipologia gradativa que começa com a linguagem desqualificadora e conclui com o extermínio, passando pelas segregações culturais e legais (ALLPORT, 1971, p. 29). As categorias endogrupo e exogrupo foram retomadas recentemente pelo criminologista Matthew Williams (2021), para expor as raízes do ódio dos grupos intolerantes que militam em nossos dias. A chave central do processo de construção do inimigo reside, segundo explica, na psicologia do medo; é desse sentimento profundo e arcaico da espécie que toma forma as distinções radicais e opositivas entre o endo e o exo com todas as consequências violentas. Do medo advém a necessidade de distinção, rejeição, discriminação e aniquilação do outro, por meios simbólicos, políticos e até mesmo físicos. O medo instaura no seu limite o pânico moral (COSTA, 2022, p. 239-241) nos grupos sociais que se sentem ameaçados por um inimigo que pode ser real, mas que é sempre imaginário, por pressupor uma construção social. A grande ameaça torna-se uma realidade consensual e desencadeia as posturas de rejeição e as estratégias de eliminação de sua presença e ação ameaçadora. A experiência socialmente construída do caos iminente que poderá se instalar-se pelas mãos do grande inimigo catalisa um sentimento comum cuja saída só pode ser violenta e culminar em adesões coletivas que lutam para salvar o grupo do bem contra o grupo do mal ou do mal encarnado no inimigo universal.
O medo constitui, portanto, o sentimento anterior à guerra: a sensação do perigo e, por decorrência, a necessidade urgente de partir para a defensiva com todos os meios capazes de eliminar o perigo que ronda. O medo dos árabes gerou as cruzadas na idade média; o medo dos judeus dominarem o mundo – e já haviam dominado a Alemanha - produziu gradativamente o consenso de que deveriam ser eliminados; o medo das armas nucleares da Ucrânia foi utilizado como justificativa da invasão e guerra da Rússia. O medo permite desenhar os inimigos com nome e endereço, agregar os ameaçados e justificar os meios para a defesa dos bons e a eliminação dos maus. Matthew Williams expôs os mecanismos biológicos armazenados na espécie que desencadeiam as ações violentas quando acionadas por situações de ameaça e medo. Não se trata de uma naturalização da violência, mas, ao contrário, da exposição das condições neurológicas que entram em ação quando o medo socialmente construído passa a constituir uma ameaça para indivíduos e coletividades. As diversas fobias que hoje eclodem pelo planeta e se tornam sempre mais legitimas fornecem um retrato preciso dessa dinâmica psicossocial (biossocial). A fabricação do medo por interesses diversos não se trata de uma construção social que age unicamente pela força de suas imagens ameaçadoras, reais ou não, mas, por acionar como gatilho o medo biologicamente registrado em nosso cérebro (2021, p. 71-126).
A psicologia da guerra contaria, assim, com esses arsenais biológicos e com as estratégias de construção social, dois lados da mesma moeda humana. Onde entra a religião? Essa variável quase sempre dispensada por muitos analistas do fenômeno da violência e da guerra parece constituir um fator indispensável para dar a última palavra para o medo e para a coragem e o dever de lutar e matar o inimigo. A ideia de povo eleito em oposição a outros povos inimigos considerada por Popper (1974, p. 22-24) em suas análises vincula com propriedade a relação com Deus. O endogrupo, em termos popperianos, a tribo, tem uma autorreferencialidade divinamente sustentada e do divino emanam as ordens para lutar e matar. As guerras religiosas relacionaram divindades e medo e, por conseguinte, divindades e coragem para lutar. As conquistas dos hebreus da terra prometida narradas no Pentateuco são emblemáticas dessa autorização divina para matar os inimigos.
No passado não foi diferente com as cruzadas, com o nazismo, com a guerra civil espanhola, com as guerras do Iraque justificadas pelos presidentes Bushes pai e filho e, em nossos dias, com a guerra contra a Ucrânia. Por certo, há que postular que o apelo ao religioso não seja tão somente uma estratégia ideológica friamente calculada por seus promotores, ainda que seja sempre um recurso dessa natureza, mas, talvez antes de tudo, o fundamento último e radical de uma luta do bem contra o mal que habita a alma humana como dispositivo de autoproteção que alimenta o medo (do mal) e a coragem para eliminá-lo de modo legítimo, querido e ordenado por Deus. Perante um estádio lotado e eufórico, Vladimir Putin, pronunciou uma última frase de suas justificativas da guerra empreitada contra a Ucrânia: não há maior amor do que dar a vida por seus amigos (Jo 15, 13-15).
Nesse sentido, toda guerra pode ser entendida sempre como guerra religiosa, na medida em que necessita de alguma razão transcendente que a justifique, seja de um imperativo absoluto que tudo justifica ou de um divino igualmente absoluto que dita as regras do matar como missão imprescindível dos melhores sobre os piores, dos bons contra os maus, dos eleitos contra os infiéis. Esse recurso parece ser ainda mais necessário precisamente em uma era civilizada em que regras da convivência comum entre os indivíduos (direitos iguais e direitos humanos) e entre as nações (direitos e deveres internacionais) garantem o mínimo ético e legal que controla a violência. O apelo à Deus justifica a ruptura com essa regularidade ética e institucional e motiva as ações arbitrárias e violentas de um individuo sobre outro, de um grupo sobre outro ou de uma nação sobre outra.
A construção do inimigo e do ódio justificada por uma motivação transcendente instaura a batalha necessária e cria os territórios rivais e em luta. Na sociedade em redes, as bolhas autorreferenciadas e liberadas a reproduzirem suas narrativas, sem maiores controles, encenam o ódio e a violência; são espaços de criação da violência que preparam a alimentam a violência real. O analista político Andrew Korybko observa que essas guerras virtuais (denominadas como guerras híbridas) operam com uma dinâmica que dispensa os velhos métodos de ataques diretos, operam pela ação eficaz de civis por dentro das redes sociais, obtendo o resultado desejado de aniquilação do inimigo.[3] Contudo, a aniquilação moral do inimigo possui ainda a força que justifica sua aniquilação física. Como explica Bauman, o mundo on-line controla a si mesmo na medida do desejo do endogrupo (massa-indivíduos) e instaura imaginários que passam a comandar a vida real off-line (2017, p. 102-104) As batalhas religiosas aí plantadas e reproduzidas com imagens precisas do Deus guerreiro oferecem a imagem e fonte para as posturas políticas concretas onde as diferenças se enfrentam como inimigas.
A obra clássica do Norbert Elias oferece uma descrição exaustiva a gradativa superação da violência interna nas sociedades que se modernizam, elevando-se acima das barbáries desumanas do mundo antigo e medieval. A violência praticada de modo natural pelos grupos e pelas instituições políticas estatais perdeu gradativamente esse lugar legítimo e rotineiro e foi tornando-se cada vez mais uma exceção. O processo civilizacional gestou práticas e regras de costumes de leis que criaram escrúpulos cada vez mais hegemônicos sobre as práticas violentas estabelecidas dentro dos grupos humanos, de modo particular no chamado ocidente (ELIAS, 1994). Nessa mesma perspectiva, o neurocientista Steven Pinker ofereceu um estudo exaustivo sobre a diminuição da violência nas sociedades modernas na sua obra Os anjos bons da nossa natureza (2013). E não sem razão associa a prática da violência às hegemonias da visão religiosa nas sociedades pré-modernas. A análise não esconde, contudo, uma crença de teor iluminista, de que a saída definitiva das religiões do espaço público constituiria um fator determinante dessa diminuição. Civilização + Estado moderno + secularização = diminuição da violência. Esta equação tem, sem dúvidas, sua razão de ser; os dados históricos a comprovam, como bem situam os dois autores. A certeza de um triunfo definitivo do processo civilizador parece oferecer a base e o rumo das constatações, o que não deixa de esconder não somente dinâmicas violentas do passado, de modo particular no que se pode verificar no próprio âmago do nazifascismo, mas, sobretudo as que emergem por dentro da sociedade estruturada em bolhas em nossos dias.
No que se refere ao passado, vale a constatação do epistemólogo Karl Popper de que o parto da civilização ainda não teria sido concluído. O retorno às seguranças da organização tribal que segrega o grupo de eleitos de seus inimigos, oferece proteção e busca os modos de eliminar os mesmos inimigos explicaria, segundo Popper, o que ocorria com a ascensão dos regimes fascista e nazista (1974, p. 15). Essa constatação desautoriza as sequências lineares de uma suposta vitória da pacificidade sobre a violência, mesmo que se trate de uma constatação aplicada à esfera interna aos endogrupos supostamente civilizados. O parto não concluído da civilidade é tão real quanto à constatação de uma civilidade estabelecida com as instituições modernas. Seria necessário demitizar a sequência acima mencionada com as interrogações: Civilidade onde e quando? Quais modelos de Estado moderno? Secularização onde e em que medida? Violência reduzida pra quem?
A fundamentação religiosa das lutas políticas adotada como expediente político-ideológico pelos movimentos, personagens e governos de extrema direita pelo mundo afora tem se mostrado como chave de leitura que permite abrir os olhos para certas generalidades que se tornaram máximas das práticas e teorizações modernas. As considerações sobre a natureza e a lógica da violência e da guerra que marcaram o mundo acadêmico no epicentro das causas e consequências da segunda grande guerra permitem perceber que não havíamos chegado a um porto seguro das garantias modernas da convivência comum entre as pessoas, grupos e nações. A guerra religiosa é uma desses retornos “dos que não se foram”, desde que os valores e instituições modernos foram sendo institucionalizados. Portanto, ao lado da sequência Civilização + Estado moderno + secularização = diminuição da violência se impõe, de fato, a sua antítese Barbárie + Teocracias + religião = violência. Jamais fomos civilizados, democráticos, secularizados e pacíficos? A constatação de um fundamento religioso do regime nazista expõe essa necessidade de um Absoluto capaz de dar razão à fabricação dos inimigos diabólicos a serem eliminados (GOODRICK-CLARKE, 2002). Os dados atuais permitem dizer que o século XX não foi tão secularizado como se apregoa. As guerras necessitaram de narrativas fundantes de guerras transcendentes entre o bem o mal. Os antagonismos religiosos do passado retornam com força no presente e oferecem uma base para os antagonismos e fobias atuais. No capítulo primeiro de sua última Encíclica, o Papa Francisco acena com perspicácia para a dimensão ilusória dos valores e instituições modernas. Fala “sonhos desfeitos em pedaços”, em “sinais de regressão” histórica, “fim da consciência histórica”, “direitos humanos não suficientemente universais”. E constata os vínculos entre os medos ancestrais e as condições tecnológicas que estruturam a convivência humana atual: “Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias” (27). Os medos antigos são reeditados:
Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas (27).
Nessas reedições dos antigos medos e da construção das muralhas defensivas são necessárias duas figuras radicais: o inimigo demonizado e a proteção de Deus. A luta cósmica entre o bem o mal se traduz na luta escatológica entre Deus e o Demônio que por sua vez se concretiza em projetos concretos, comunismo X Catolicismo, Abortismo X Moral, e, por fim em personagens históricos: Candidato A X Candidato B. A luta política se torna, portanto, luta religiosa, ou, luta espiritual, onde o imaginário escatológico se encontra de modo monista com os projetos e personagens políticos. As guerras espirituais se tornam sinônimas de guerras políticas. A esse respeito vale relembrar a declaração de Onyx Lorenzoni, à época Ministro da Secretaria Geral da Presidência: “Pois nossa luta não é contra os seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores desde mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Ef 6,12). As batalhas contra os opositores do governo é uma batalha espiritual, por eles representam as forças do mal, ao mesmo tempo histórica e escatológica, ideológica e demoníaca.
O recurso fundamentalista aos textos sagrados fornece o fundamento último e, portanto, a norma que sustenta e legitima toda luta política histórica. A postura fundamentalista consegue a façanha hermenêutica e política de trazer a narrativa do passado para o presente, de traduzir de imediato o espiritual em político. Assim, escatologicamente raptada, a história se torna palco imediato da luta contra os de Deus e os do demônio. O uso político da religião já não constitui somente uma ideologia eficiente de agregação de adeptos de um líder salvador, mas uma perspectiva normativa que aprisiona na fidelidade a Deus as escolhas políticas. A circularidade entre religião e política, alimentada continuamente pelo medo e pelo desejo de salvação urgente, instaura um ciclo vicioso resistente e dogmático: Deus+líder+promessa=salvação que opera a partir de sua antítese Demônio+Inimigo+catástrofe=guerra. A síntese inferida dos resultados das equações mostra o binômio final: salvação=guerra. A guerra se torna, então, necessária, justa e querida por Deus para garantir a segurança e a vida do grupo ameaçado.
As guerras espirituais/religiosas são, portanto, o fundamento de guerras políticas (econômicas). Na verdade, não haverá jamais guerra por um pedaço de deserto improdutivo, ou por uma causa que não renda bônus para sujeitos interessados. As guerras são investimentos que visam retornos, tanto as guerras físicas do passado quanto as guerras híbridas (virtuais) do presente. As guerras são sempre guerras por conquistas e as justificativas seguem um roteiro regular: inimigo-medo-defesa-violência-aniquilação. Para avançar sobre um território e conquistá-lo é melhor que ele seja inimigo, que seja considerado um perigo para o endogrupo. Assim se obtém o apoio das massas e se alimenta pela via do medo a coragem daqueles que vão para a luta direta como batalha indispensável para salvar o grupo ameaçado. Deus e o Demônio se posicionam como a última retaguarda e de suas posições transcendentes comandam as batalhas nos territórios terrenos.
O historiador Léon Poliakov sugere uma chave de leitura para interpretar a história: a causalidade diabólica (1991). A consciência de que os fatos, de modo particular os situados no interior das crises (naturais ou históricas) advêm de uma causalidade maligna localizada em um ente diabólico que se encarna em sujeitos históricos concretos caracteriza o desenrolar da história. A longa descrição oferecida pelo historiador apresenta os momentos de transição histórica com suas construções dos inimigos universais (os demônios historicizados responsáveis por todos os males) por meio de narrativas conspiratórias que vão ganhando extensão e fôlego até se tornarem hegemônicas. O passo seguinte é a busca dos mecanismos capazes de eliminar o inimigo diabólico e salvar o grupo da dissolução final. A história seguiria esse roteiro de construção de uma causalidade diabólica e de eliminação do mal encarnado por grupos e indivíduos concretos. A relação entre conspiração e eliminação do inimigo, ou seja, da demonização do outro e do mecanismo do Bode expiatório é vista por Poliakov como uma dinâmica única que parece comandar a história humana em suas buscas de proteção do medo e, por conseguinte, de afirmação de um grupo contra o outro. A causalidade diabólica é um mecanismo mágico que rompe com a práxis moderna (científica e política) que relaciona efeito-causa a partir da localização de causalidades racionais (empíricas ou lógicas). O diabólico seria uma espécie de causalidade primeira (no sentido clássico da teoria aristotélica) que explica em última instância todas as demais causas. Assim os sujeitos históricos visíveis e concretos (indivíduos ou grupos) seriam causalidades secundárias de uma causalidade transcendente que tudo comanda e pode conduzir ao aniquilamento final.
Pensada nessa chave, a batalha religiosa encarna e executa um mecanismo inerente à alma humana na qual o medo gera o inimigo, o inimigo gera o ódio, o ódio gera a violência e a violência gera a destruição. E uma vez que o inimigo é a encarnação segura do mal, somente o bem poderá vencê-lo. O demônio e Deus são as últimas causas necessárias dessa rivalidade que contamina de modo massivo todo o grupo ameaçado. Essa lógica pode ser vista a olho nu nos processos eleitorais recentes no Brasil, mas também em outros pontos do planeta. A ligação direta entre inimigo-medo-batalha-divindade compõe o fundo das narrativas construídas pelo viés da conspiração e que agregam multidões dispostas a enfrentar o perigo de dissolução coletiva sob a orientação de um líder messiânico.[4]
No contexto das instituições legais e estatais modernas, a guerra é sempre um estado de exceção. A ideia de estado de guerra declarada pelos mandatários maiores (com ou sem o apoio das casas legislativas ou judiciária) como uma necessidade imperativa para a sobrevivência do grupo ameaçado constitui um intervalo histórico que permite ao comandante da nação agir por deliberação própria naquilo que julgar necessário para garantir a sobrevivência/permanência do grupo. O estado de exceção configurado como conjuntura regular (amparada legislativamente) ou como estado de sítio propriamente dito (quando todo ordenamento legal fica suspenso) instaura precisamente uma conjuntura que rompe com a regularidade institucional-legal. O dilema jurídico que se coloca é sobre o lugar da figura da exceção dentro de um ordenamento jurídico: como a suspensão radical da institucionalidade legal pode ser legalizada? Essa discussão remonta ao jurista Carl Schmitt (2006), espécie de pai da teoria da exceção, que, no contexto do regime nazista e com inegável interesse de justificar o terceiro reich, fez a ligação entre soberano e estado de exceção. A exceção nasce do soberano, afirma o jurista. O filósofo italiano Giorgio Agamben dedica-se ao estudo do conceito e nas pegadas ambíguas de Schmitt ancora a exceção na necessidade: status necessitas. A necessidade – diríamos, o imperativo da urgência – instauraria uma condição primeira que opera com sua própria lei, como direito mais fundamental a ser perseguido (2004, p. 40-49).
Essas figura e prática acompanham a história dos Estados modernos e emergem por decisão do “soberano”, sobretudo nos tempos de crise. Isso significa que por dentro da ordem legal instituída, a exceção se mostra presente como uma antítese radical aos tempos normais, como possibilidade recorrente de suspensão da lei e de centralização em um personagem que se torna acima da lei e decide sobre o que é ou não permitido, em nome de uma necessidade. Os modos de decretar um estado de exceção podem variar, desde o clássico estado de sítio, passando pelos decretos que suspendem direitos, como no caso típico do AI-5 (Ato Institucional número 5) decretado pelo ditador Artur da costa e Silva em 1968 chegando aos meios mais atuais de banalização da ordem institucional e de Emendas Constitucionais que adapta a lei maior às necessidades autodeclarada pelo mandatário e aprovada pelas casas legislativas. A exceção vai ganhando novos modos de operar não mais por meio de rupturas totalizantes, mas de pequenas rupturas que desfiguram a ordem institucional-legal de modo gradativo e estratégico. A obra Como as democracias morrem de Levtsky e Ziblatt (2018) de oferece elementos para se pensar nesses novos processos. Nessa perspectiva, a exceção vai sendo construída socialmente, sem necessitar da clássica suspensão radical do ordenamento institucional. Porém, em todos os casos a figura do soberano permanece como central na condução do processo; é dele que advém a decisão, a legitimidade e a condução política das rupturas. A exceção assim entendida torna-se uma figura mais elástica e difusa que instaura de modo gradativo e desconcentrado o consentimento mais ou menos consensual por parte da população, mas, antes de tudo, um espírito generalizado de indiferença política advindo da descrença nas instituições.
As novas formas de ruptura instaladas por dentro da ordem instituída vão se apresentando como legitimas, na medida em que pela força de um líder forte capaz de salvar do caos oferece uma promessa redentora. Manuel Castells explica essas rupturas como caminhos de retorno a um fundamento anterior à ordem social e política instituídas: retorno à família tradicional como ordem social primordial, retorno à pátria como sentimento primário, retorno ao Estado forte como mais importante que a democracia, retorno à raça como pertença primeira a ser afirmada e retorno a Deus como fundamento do poder (2018, p. 38). De dentro desse fundamento anterior a toda ordem instituída é que podemos perceber uma exceção radical e generalizada, anterior a um estado de sítio formalmente decretado. Essa cultura da exceção cada vez mais generalizada e legitima instaura um sentimento comum que centra todo poder na figura do líder infalível, acima não somente da ordem instituída, como acima do verdadeiro e do falso e acima do bem e do mal. Esse estado de exceção opera na ligação direta e fecunda do comportamento do líder com o comportamento das massas, quando romper com a ordem ética se torna natural por se tratar de uma batalha entre os do bem e os do mal, na raiz entre o bem e o mal.
Se as guerras convencionais são instaladas, operacionalizadas e justificadas por um estado de exceção decretado pelo mandatário maior (com ou sem seus contrapesos dos poderes legislativos e judiciário), nas guerras culturais (guerras hibridas, guerras religiosas) a luta se instala por dentro da rotina política que vai construindo os inimigos e a necessidade de eliminá-lo. O clima de indigência, entusiasmo e esperança (WEBER, 1997, p. 194) instala a única lei possível: o segmento do líder e a fé incondicional em sua promessa, sem qualquer parâmetro que possa julgá-lo ou desautorizá-lo. Hannah Arendt explica essa consciência de fidelidade absoluta ao líder mitificado em sua obra As origens do totalitarismo (2000). O líder torna-se sinônimo de verdade: “A principal qualificação de um líder de massas é a sua infinita infalibilidade; jamais pode admitir que errou” (2000, p. 398). Freud vai na mesma direção quando explica que a massa é, ao mesmo tempo, “tolerante e crente na autoridade” e exige de seus heróis “fortaleza” e, até mesmo “violência”, quer ser “dominada e oprimida, quer temer os seus senhores” (2011, p. 27).
Sob a guarda e a proteção segura do líder tudo que for anterior, externo ou superior à sua promessa constitui erro e perigo a serem eliminados não pela força da razão, mas pela força do entusiasmo alimentado pela promessa de salvação. Nenhuma norma, nenhuma lei e nenhuma instituição de controle social tem legitimidade; reina apenas a luta entre o bem e o mal como regra universal, infalível e necessária à sobrevivência do grupo ameaçado. A batalha religiosa cria um reino de verdade única, absoluta e urgente que dispensa todas as verdades veiculadas e reproduzidas pelos ordenamentos tradicionais e pelas fontes clássicas da ética: da lei do amor ao próximo aos direitos humanos, dos crimes de intolerância às etiquetas sociais.
Um estado de exceção ética segue de modo circular as batalhas religiosas; cada membro do grupo torna-se um fiel reprodutor da regra geral da luta do bem contra o mal. Nessa luta querida e ordenada por Deus, uma ordem estruturada na bolha isolada e impermeável se opõe a toda ordem instituída da qual não poupa qualquer máxima ética, normas religiosas, lei maior, instituições do Estado democrático de direito, ensinos oficiais das tradições religiosas e, até mesmo, as conclusões da ciência.
A explicação de Hannah Arendt ecoa com perspicácia e atualidade:
...dentro da estrutura organizacional do movimento, enquanto ele permanece inteiro, os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parece ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte (2000, p. 358).
A exceção ética acompanha a exceção política como o lado popular da suspensão das regras e valores instituídos, quando tudo se naturaliza em nome da necessidade premente de salvação da nação identificada, desde então, com a massa fiel dos seguidores do líder salvador. Não se trata de um quadro de relativismo moral/ético decorrente de opções individualistas, mas de suspensão das normas reguladoras da vida, em nome de uma norma absoluta que provém da boca do líder e de suas referências religiosas. A ética é suspensa por um dogma moral absoluto que deve ser reproduzido pelos membros fiéis e fanatizados (PASSOS, 2021, p. 187-216). Afinal, Deus está no comando e esse comando ampara toda ação rivalizada e aniquiladora do inimigo dos eleitos. A massa embebida de um religioso imediato presente no líder e no texto sagrado contrasta-se com a sociabilidade pautada na igualdade dos filhos de Deus e torna-se seita fanática. A perspectiva freudiana ajuda a compreender essa dinâmica de exceção ética, quando mostra que o indivíduo:
Portanto, pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala na civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa é um instintivo, e em consequência um bárbaro. Tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos (PASSOS, 2011, p. 24).
As teologias da batalha se fundamentam em uma única regra que dispensa todas as demais. Como não poder matar em uma luta feita de inimigos perigosos identificados diretamente com a causa de todos os males. A inversão do que era ordem normal e regular para uma nova ordem de valores se mostra flagrante. O que era imoral torna-se, então, moral. Nas guerras convencionais a tortura, o estupro, pilhagem, o confisco e o massacre de indivíduos e grupos fazem parte do jogo regular. Nas guerras religiosas o matar suplanta o não-matar, o ódio ocupa o lugar do amor, a indiferença o lugar da empatia. O endogrupo eleva ao status de totalidade que dispensa e reduz toda alteridade que possa ameaçá-lo. No caso do cristianismo, pode-se falar em uma exceção querigmática, na medida em que os valores fundantes da comunidade de seguidores de Jesus Cristo são sacrificados ou deformados em função da rivalidade contagiante e da regra da aniquilação do inimigo.
A psicologia das massas de Freud oferece mais uma vez indicações preciosas para compreender a psicologia das guerras religiosas:
Para julgar corretamente a moralidade das massas deve-se levar em consideração que, ao se unirem os indivíduos numa massa, todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos, que dormitam no ser humano, como vestígios dos primórdios do tempo, são despertados para a livre satisfação instintiva (PASSOS, 2011, p. 27).
A massa instaura uma moralidade própria paralela à moralidade individual ou mesmo de outra moral coletiva, como no caso das igrejas. Dentro da moralidade das massas todas as outras se esvaem, como menor ou como temporariamente dispensadas. As contradições entre a moral da morte determinante das guerras religiosas e a moral da vida das tradições judaico e cristã ocorrem, assim, nessa lógica que ao observador externo não pode ser compatível. A exceção ética cede lugar à moral escatológica da salvação perante os seus inimigos; o regime escatológico suspende os regimes históricos, toda normatividade instituída em tempos normais. Para o membro/massa o regime de exceção se impõe como urgência salvífica – a salvação do grupo ameaçado por meio de um líder divinamente autorizado – e conta com a justificação religiosa retirada de um texto sagrado ou de uma doutrina revelada por um profeta emergente. Assim, as teologias da batalha retiradas das cenas bíblicas da conquista de Canaã, as guerras perpetradas pelos reis de Israel contra os inimigos e as próprias batalhas apocalípticas entre o bem e o mal, tornam-se a fonte de tradução histórica direta que embasam as necropolíticas (MBEMBE, 2018) e as tornam naturais e necessárias. E, na medida em que essas teologias são atualizadas diretamente no presente pela lógica fundamentalista, elas permitem a identificação física dos representantes de Deus e os representantes do mal. O gatilho religioso, assim acionado dispara as guerras simbólicas e diretas. Na sociedade atual cada vez mais estrutura em dois mundo on-line e off-line (BAUMAN, 2017, p. 103-104) é precisamente no primeiro que o trânsito livre do medo fabricado pela crença negacionista e pela fantasia conspiratória, pede o ódio e, em seguida, a violência contra o inimigo da ordem e da estabilidade. Não se trata de um mundo paralelo e inocente onde “vale tudo” por estar isolado do mundo real, mas de um mundo que se torna uma espécie de alma social que comanda cada vez mais o corpo social.
Com efeito, nesse expediente maniqueísta, a definição dos inimigos e dos amigos, que tem sua última causalidade em Deus ou no Demônio, nada mais resta que possa se apresentar como valor máximo ou como imperativo categórico para os grupos e mesmo para as suas éticas originais e originantes. As guerras religiosas são massificações religiosas que fornecem a base simbólica mais radical para os confrontos políticos reais e liberam em nome do Absoluto a fidelidade às normas que exigem a tolerância e o reconhecimento da dignidade do outro. A exceção exige a figura do soberano, explicou Schmitt (2006). O soberano define e comanda a exceção política. A Onipotência beligerante é o Supremo Soberano que está no comando e suspende toda norma e todo valor que possam investir o outro de dignidades e que impeçam a sua eliminação. Em nome de Deus, tudo vale e tudo pode na cena escatológica do bem que deve vencer o mal.
A legitimação religiosa é a mãe de todas as legitimações, na medida em que instaura uma ordem transcendente de onde tudo se origina; ordem fixa, imutável e eterna que explica, justifica e fundamenta os ordenamentos e processos historicamente construídos. Peter Berger explicou com originalidade essa função do religioso (2003). As guerras religiosas exercem essa função de legitimar e fundamentar a rejeição, o ódio e a eliminação do outro, considerado, desde então, inimigo a ser eliminado por desejo e mandato do próprio Deus. A luta entre o bem e o mal, historicamente delimitados em personagens e grupos, instaura a guerra santa capaz de agregar e encorajar as massas encurraladas pelo pânico moral na batalha bélico-espiritual contra o inimigo universal. Em termos éticos, a narrativa teológica da guerra santa (teologias da batalha) opera a suspensão ética dos valores mais imperativos da relação entre o eu e o outro, estruturante das religiões mundiais e, de modo radical, no cristianismo. Esse processo de legitimação da morte consegue a notável façanha de inverter ou suspender a essência cristã do amor ao próximo. O ódio e a morte do outro se tornam legítimos e necessários. As fobias contra o migrante, o negro, o homossexual, o nordestino, o partido político e o pobre se tornam naturais e queridos por Deus. O uso de armas e as narrativas preconceituosas e violentas circulam pelas redes sociais e são reproduzidas pelos toques digitais, sem qualquer ponderação ética. A exceção ética e paradigmática dos valores basilares cristãos abre o espaço livre para as batalhas religiosas contra os inimigos demonizados.
A luta do bem contra o mal deu a última razão para as polarizações políticas, não por um viés metafísico, mas, ao contrário, dando nome aos bois e criando narrativas de um apocalipse iminente para as igrejas e para a nação. Uma causalidade diabólica (Poliakov) estava em jogo nessa interpretação. De novo, Deus e o diabo em luta na terra de Santa Cruz. As denúncias sobre o uso da religião para fins eleitorais soaram quase inúteis: verdade aplaudida pelos velhos adeptos da democracia e da civilidade e ignorada pelos bolsonaristas. Afinal, a demarcação maniqueísta já consolidada por essa bolha inflada filtrou toda informação – independente da fonte – sob seu magistério e seus dogmas.
As redes sociovirtuais inauguraram uma nova era na história da humanidade e ainda não possuem um marco civilizado de regulação que permita a convivência justa e pacífica dos indivíduos e grupos. Assim como outras narrativas, as religiosas reproduzem o jogo do autocentramento tribal do endogrupo versus exogrupo. A lógica homofílica (SANTAELLA, 2019, p. 17-21) rege o religioso trazendo de volta as velhas intolerâncias, até bem pouco reguladas por parâmetros éticos e legais. As batalhas religiosas rompem com os territórios institucionais clássicos, com suas tradições e magistérios, e instauram uma luta legitimada por Deus, cuja missão é distinguir, opor e confrontar os do bem contra os do mal. As ecclesias dissolvem-se por dentro das bolhas autorreferenciadas e perdem suas referencialidades éticas sobre a vida dos seus membros. A moral da guerra justa e santa suplanta as éticas fundantes das Igrejas e das sociedades democráticas no mesmo golpe de dissolução das verdades tradicionais e suas autoridades.
As guerras religiosas clamam por discernimentos hermenêuticos das narrativas bíblicas: qual Deus é o Deus verdadeiro? Ou seja, o Deus bom que escolhe a vida e a coloca como norma para a humanidade ou o Deus que ordena a morte do inimigo? O fato é que Deus da guerra está inscrito no texto bíblico, assim como a imagem do Deus Pai, Misericordioso e Amoroso. A teologia da batalha dispensa a hermenêutica cristã que lê o conjunto dos textos a partir de um significado global que tem no centro o Deus de Jesus Cristo. E ainda não foi demitizada suficientemente pela teologia moderna que permite a crítica histórica e cultural das imagens antigas de Deus. Permanecerá a interrogação hermenêutica: o ódio é o pressuposto da leitura que isola, pinça e utiliza as cenas bíblicas violentas, ou a consequência das escolhas de determinados textos?
O fato é que as batalhas e guerras bíblicas compõe um conteúdo que, por ora, constitui pauta das leituras fundamentalistas que se colocam a serviço da luta política real. Do imaginário teológico bélico passa-se para o mundo histórico das lutas políticas e do uso de armas de fogo para matar os inimigos. Não se trata tão somente de uma teologia arcaica, produzida por um mundo tribalizado. O Deus da guerra é o Deus da guerra política real, o Deus de um líder que se apresenta como seu eleito. A bíblia oferece o espelho do personagem messiânico investido da missão de salvar a nação de seus inimigos, quase sempre de um inimigo maior. É o Deus que libera e autoriza a violência e a morte.
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[1] No contexto político recente a expressão “guerra religiosa” encontra seus sinônimos nas expressões “guerra espiritual”, “guerra do bem contra o mal”, “guerra santa”, “guerra espiritual”, “batalha espiritual”, “cruzada do bem contra o mal”, assim como conceitos correlatos: guerra cultural, guerras hibridas, narrativas de ódio ou cultura do ódio. Em todos, subjaz a ideia comum de uma rivalidade construída e reproduzida no âmbito simbólico ou dos imaginários sociais e/ou religiosos, assim como a potência destrutiva que alimenta eventos de violência física.
[2] Categorias utilizadas pelo psicólogo G. Allport estadunidense para explicar a origens e escalada do pré-conceito Cf. ALLPORT, Gordon W. La naturaleza del prejuicio. Buernos Aires: EUEBA, 1971.
[3] As mídias sociais e tecnologias afins substituirão as munições de precisão guiadas como armas de “ataque cirúrgico” da parte agressora, e as salas de bate-papo online e páginas no Facebook se tornarão o novo “covil dos militantes”. Em vez de confrontar diretamente os alvos em seu próprio território, conflitos por procuração serão promovidos na vizinhança dos alvos para desestabilizar sua periferia. As tradicionais ocupações militares podem dar lugar a golpes e operações indiretas para troca de regime, que tem um melhor custo-benefício e são menos sensíveis do ponto de vista político (2018, p. 14).
[4] A relação entre conspiração e religião se mostra indissociável, na medida em que toda conspiração necessita de um inimigo diabólico a ser eliminado pela força dos eleitos do bem (POLIAKOV, 1991). A noção de conspiritualidade expressa em seu neologismo esse vínculo desde sempre necessário (Cf. CESARINO, 2022, p. 82-85).