René Dentz
Pós-Doutorado em Teologia pela Université de Fribourg/Suíça. Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Minas Psicanalista. Contato: dentz@hotmail.com
Resumo: Desde a Conferência de Aparecida, há uma clara orientação para que a Igreja estabeleça uma conexão com as questões antropológicas contemporâneas, especialmente no que diz respeito à subjetividade e suas necessidades. No entanto, a pandemia exacerbou tendências narcisistas, levando nossa subjetividade a se afundar na cultura do ressentimento, revelando um individualismo excessivo que dificulta a abertura ao próximo, resultando em rivalidades constantes. Isso implica na relutância em pedir ajuda ou fazer um apelo, pois tais ações são frequentemente percebidas como "fraqueza" e vulnerabilidade. A subjetividade contemporânea enfrenta desafios ao transformar a dor em sofrimento, uma vez que o diálogo e a interlocução são limitados. Isso resulta na sensação de queda em um abismo, onde a falta de sentido prevalece. O corpo, então, busca significados imediatos e espaciais, afastando-se das temporalidades que possibilitam a experiência de alteridades e da própria humanidade. Nesse contexto, como a juventude se posiciona? Como podemos abordar a relação entre os jovens e o futuro da Igreja diante dessas circunstâncias desafiadoras?
Palavras-Chave: Juventude; Individualismo; Subjetividade; Diálogos; Sentido; Resistência
Abstract: Since the Aparecida Conference, there has been a clear orientation for the Church to establish a connection with contemporary anthropological issues, especially with regard to subjectivity and its needs. However, the pandemic has exacerbated narcissistic tendencies, leading our subjectivity to sink into a culture of resentment, revealing an excessive individualism that makes it difficult to open up to others, resulting in constant rivalries. This implies a reluctance to ask for help or make an appeal, as such actions are often perceived as "weakness" and vulnerability. Contemporary subjectivity faces challenges when transforming pain into suffering, since dialogue and interlocution are limited. This results in the feeling of falling into an abyss, where meaninglessness prevails. The body, then, seeks immediate and spatial meanings, moving away from the temporalities that enable the experience of otherness and humanity itself. In this context, how do young people position themselves? How can we address the relationship between young people and the future of the Church in these challenging circumstances?
Keywords: Youth; Individualism; Subjectivity; Dialogues; Sense; Resistance
O jovem de hoje vive um paradoxo. Ele deve ser proativo, fazer várias coisas e realizar várias tarefas. Ao mesmo tempo, dele é exigido uma tranquilidade e falta de tomada de posição, beirando a alienação. Diante desse cenário, ele busca um caminho até certo ponto inusitado: não se comprometer e recuar. No mundo todo há pesquisas que mostram que a juventude cada vez menos se interessa por assuntos políticos, apesar da existência de grupos de resistência. Trata-se de um “desafetar-se”, passando pela ideia de que o mundo não o atinge. Não sentir afeto é da ordem de uma defesa, contra a intensidade de afeto do mundo. Eles estariam justamente vivendo o luto de um inalcançável. Já que as exigências são tão elevadas, é melhor nem tentar de forma enlouquecedora. As expectativas são grandes, no imaginário do outro, estão maiores do que nunca. Em um primeiro momento ela é interessante, mas quando se torna um discurso constante, gera o contrário: o sujeito fica depressivo. Estar na era do imperativo do sucesso, da felicidade é uma lógica contrária a essa tendência. O sujeito se encontra longe desses ideais, pois, afinal, não são reais.
Há uma afirmação da existência de uma subjetividade puramente individual. O que se coloca e afirma constantemente hoje é: você é um sujeito que pode! O indivíduo é visto como uma empresa. No entanto, ao mesmo tempo, estamos em uma sociedade mais fluida, que está ancorada em poucos elos coletivos. O mercado de trabalho, por exemplo, mostra que as empresas gestam ambientes com cada vez menos confiança, com maior rivalidade. Afinal, o sucesso de um seria o fracasso de outro. Se somos todos iguais, precisamos buscar nosso lugar ao sol. Ora, se estamos na lógica do individualismo, vamos buscando o próprio prazer e esquecendo os fundamentos de alteridade.
A antropóloga Regina Novaes (2018), ao compreender as mudanças que impactam a relação entre jovens e religiosidade, nos mostra que a juventude contemporânea vive um tempo em que as religiões não são mais as principais fontes distribuidoras de sentido e imagens estáveis da vida entregues de geração a geração pelas autoridades religiosas, reconhecidas como tal. Os jovens vivem momentos cruciais de incerteza. Esse é o sentimento comum que atravessa toda uma geração. Da subjetividade dos jovens de hoje – com diferentes matizes e intensidades de acordo com suas condições de vida – fazem parte vários medos. Estamos na era do singular, cada um é único nas suas próprias relações. Nos últimos anos aumentaram muito a oferta de produtos customizados. Na pandemia essa tendência não se apagou ou diminuiu, pois o virtual a preencheu. Interessante inclusive verificar a maior exposição de cenas e imagens mais banais no período da quarentena. O singular tem que ser imposto a todos. Estar sozinho, não aceitar vincular sua vida aos outros, é uma tendência. Há uma necessidade de que a vida gire em torno do meu gozo, por isso mesmo muitas vezes os sujeitos contemporâneos não mantêm e se mantêm em relações. Não é necessário um esforço para isso. Deveríamos talvez reconstruir a ideia de união e desunião. A união poderia ser mais qualificada, refletida. A relação é uma aliança inconsciente com o outro. Há conflitos, mas não pode ter um horizonte narcísico. Eis um horizonte do jovem contemporâneo. É a partir desse contexto que devemos analisar o jovem sem religião.
"O forte declínio dos católicos em idade de reprodução contribui para a redução no número de crianças educadas em famílias católicas e consequentemente, dos jovens com formação católica", afirma o sociólogo Ricardo Mariano, professor da USP. Para o pesquisador, perda de força da igreja católica é um dos motivos que explicam o avanço dos "sem religião".
Segundo a socióloga Sílvia Fernandes, em primeiro lugar, o jovem sem religião se apresenta multifacetado, podendo agregar em uma única identidade um posicionamento crítico e, ao mesmo tempo, flexível em relação às denominações religiosas. Em muitos casos, o fato de não estar vinculado a uma igreja revela apenas uma faceta do processo de desinstitucionalização. Este pode comportar rejeição e assimilação; crítica racional e tolerância. Embora algumas crenças religiosas possam ser perdidas no processo, sobretudo as crenças cristãs tenderam a ser mantidas por dois deles, ao passo que João manteve a chamada “regra de ouro”: cada um deve tratar o outro como gostaria de ser tratado (FERNANDES, 2018, p. 8).
É notável, dessa maneira, que os atos discursivos dos jovens caminharam no sentido de afirmar certa independência entre a noção de religião e a noção de espiritualidade, sendo esta última representante de uma experiência de transcendência que não necessariamente depende da mediação institucional. No que se refere ao discurso religioso, o contexto de globalização acaba produzindo dois movimentos: extremo fechamento das religiões como estratégia para proteção de seus dogmas ou, por outro lado, a abertura de espaços ao sincretismo advindo deste encontro. Assim, entendemos que os jovens possuem uma responsabilidade relevante na discussão acerca da religiosidade humana pois, são os que recebem a cultura religiosa acumulada historicamente, mas que também detém o poder de criar um modo específico de diálogo com esse discurso, ampliando-o.
Na maioria das vezes eles passam por um processo de "conversão" ao estado de sem religião, ao ateísmo e ao agnosticismo e essas diferentes identidades são assumidas a partir de um dado momento nas trajetórias que, na maioria dos casos, foram anteriormente marcadas pela dimensão religiosa. Até o momento da pesquisa é possível afirmar o caráter processual da formação da identidade juvenil sem vínculos institucionais.
Outro fator importante que pode ajudar a explicar a orientação atual de boa parte dos jovens católicos que atuam nas Igrejas é que há uma geração que não conheceu outro modelo de Igreja a não ser o que se apresenta pelas mãos da Renovação carismática, seja com suas comunidades de vida e aliança, seja por meio das bandas musicais. A emergência de movimentos de orientação carismática favoreceu e estimulou grupos juvenis que preservam a doutrina e enfatizam a identidade católica enquanto subtraem a visibilidade de outros grupos atuantes no catolicismo.
A religião deve servir para libertar os humanos da culpa e não os inserir mais e mais nela. Este pode ser um caminho perverso. A culpa gera paranoia, neuroses, depressão, desistência da vida. A beleza do religare se transforma em violência do sagrado. As religiões constituem uma das construções de maior excelência do ser humano. Todas elas trabalham com o divino, com o sagrado, com o espiritual, mas não detêm o monopólio do espiritual. Ele é um dado antropológico, da dimensão do profundo. Ocorre que as religiões podem se auto finalizar e se autonomizar, articulando os poderes religiosos com outros poderes ideológicos e políticos (BOFF, 2019, p. 37).
É muito comum, nos dias de hoje, verificamos sinais de aceitação, de resiliência, ao afirmar que tudo o que está acontecendo foi “Deus que quis”, mas, ao mesmo tempo, ressalta que não dá para entender completamente todo o acontecido. Parece uma mistura de revolta diante do trágico, mas ao mesmo tempo de medo, diante do que inexplicável. Eis mais um lado violento do sagrado. Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência” (AGAMBEN, 2004, p. 9).
Segundo o filósofo italiano, tornar algo sagrado era, no Direito Romano, um conceito que designava a fuga das coisas da esfera do direito humano. Ao buscar a origem do termo religio, nosso filósofo descobre que não deriva de religare, mas de relegere, que indica justamente o caminho oposto: o que de seve observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Dessa maneira, a religião não se opõe à incredulidade e à indiferença em relação ao divino, mas à “negligência” com relação a ele, uma atitude livre e espontânea (AGAMBEN, 2004, p. 43).
O Papa Francisco também ressalta a função e a primazia do religare em nossos tempos: “As religiões estão a serviço da paz e da fraternidade. Por isso, este encontro impele os líderes religiosos e todos os fiéis a rezarem insistentemente pela paz, não se resignarem jamais com a guerra e agirem mediante a força suave da fé para pôr fim aos conflitos.”
Adentrar o real, estar próximo às alteridades, propor caminhos de um novo humanismo... Eis as missões urgentes da espiritualidade contemporânea. Parece haver uma constante dialética entre modos de ser. Segundo Regina Novaes, existe um campo de batalha entre conservadores e progressistas nas redes, na sociedade e que refletem na juventude e sua concepção religiosa ou não-pertencimento institucional.
Do lado católico, ainda sob inspiração nos documentos do Concilio Vaticano II (e, atualmente, disputando as bênçãos e a aprovação do Papa Francisco) junto às clássicas questões de terra, moradia e condições de trabalho, acrescentam-se tanto a questão da igualdade racial quanto demandas de mulheres e de grupos de gays e trans. Desta maneira, no combate a preconceitos e discriminações, abrem-se novas possibilidades de comunicação entre jovens evangélicos, católicos e ligados às religiões afro-brasileiros. Vídeos e blogs de youtubers e coletivos disponíveis na internet, utilizando imagens e argumentos muito similares, promovem um dinâmico “ciberecumenismo”, informal e prático, sem reuniões para “definir” concepções e estratégias (NOVAES, 2018, p. 13).
É na religião que a ética encontra a sua expressão mais genuína, despertando a todos para a responsabilidade comum na edificação de uma sociedade justa e humana. Essa experiência de fé que não precisa necessariamente de um objeto religioso definido é referente a algo que reverbera sentido no mais profundo da singularidade de cada sujeito.
Alguns tentam encontrar segurança, certezas e acabam mergulhados em paranoias sem fim. No fundo, tudo o que leva para longe do humano passa também longe do amor. Tudo o que colocamos fora da subjetividade para dar conta do que sentimos, pode nos apresentar armadilhas. O problema é que há uma tentação de identificarmos o nosso eu com um elemento controlável. Precisamos nos aproximar do real, suportando frustrações e atestando vulnerabilidades. O outro é um reflexo, mas não de forma ideal. A relação com ele é uma desconstrução. É algo totalmente contrário ao mundo narcisista atual. Afinal, vivemos um mundo de supervalorização do eu e, por isso, não são muitos que estão dispostos a suportar a vulnerabilidade do outro, muito menos a sua própria.
Esse é o mundo onde o habitar é movido pelo inevitável, onde tudo parece atender a urgente necessidade que a tudo sacraliza. Rebusca as longínquas terras da infância e, na potencialidade ali resguardada – no encantamento sem reservas, lá onde nos desvencilhamos do medo de estar entre o dizível e o indizível -, encontra modos para desconstruir a obviedade existente. Conclama-nos a penetrar por frestas da subjetividade, da liberdade individual, conscientes de que no império do necessário e da impossibilidade não há sujeito, não há liberdade, tampouco criação (BÊTA, 2012, p. 28). Embora não se trate de negar que o ser humano tenha uma tarefa a realizar, a luta pela ética é a luta pela liberdade, ou seja, luta para que possamos experimentar nossa “própria existência como possibilidade ou potência” (AGAMBEN, 2004, p. 9).
A sabedoria do amor é a compreensão do real a partir de uma significação original, mais original que a própria realidade, que exclui qualquer pretensão de conhecimento fechado ou sistemático, tanto no presente como em qualquer futuro previsível (RIBEIRO, 2019, p. 43). Essa renúncia não é o fracasso de um conhecimento limitado que comprove a grandeza do labor que se tem proposto, senão algo que se estabelece de antemão -uma compreensão do real e suas consequentes revelações humanas.
“Em última análise, Jesus nos pede para permanecermos no seu amor, para habitar em seu amor, não em nossas ideias, não no culto de nós mesmos; quem habita no culto de si mesmo, habita no espelho…Sempre a olhar-se. Pede-nos para sair da pretensão de controlar e administrar os outros. Não controlar, mas servir. Mas abrir o coração aos outros, isto é amor, doar-se aos outros”, insiste Papa Francisco.
Podemos perceber a dimensão simbólica presente na religião referindo-se a ela como um "nomos". Tal noção diz respeito ao modo como os indivíduos atribuem sentido às suas experiências no mundo. O "nomos", enquanto ordenação das coisas do mundo recebe da religião uma aura divinificadora, um cosmos que o justifica com base num poder superior e por isso mesmo incontestável. Pode-se dizer, portanto, que a religião é a cosmificação do "nomos", ou seja, o discurso por excelência capaz de atribuir sentido à vida face à morte. Para o autor, construir o mundo é construir um sistema que faça sentido e o cosmos religioso surge como província de ordem em meio ao caos que nos espreita.
Em contraposição, é evidente a consonância (direta ou indireta) entre jovens católicos ligados à Renovação Carismática Católica e os jovens evangélicos identificados com as pregações e pautas assumidas pelos. Por questões de espaço, não trataremos aqui do Espiritismo Kardecista entre jovens, que também merece pesquisa e análises. Ambos oferecerem efervescência aos fiéis contemporâneos por meio de dons do Espírito Santo e se aliam contra as propostas de descriminalização do aborto, na denúncia do que chamam de “ideologia de gênero”, em defesa da família. Em vídeos disponíveis na internet, católicos e evangélicos utilizam as mesmas referências bíblicas para justificar suas posições. Contudo, as novas articulações tempo/espaço proporcionadas pela internet também abalam as fronteiras que separam “progressistas” e “conservadores”. Em entrevista, ouvi relatos de jovens católicos carismáticos gays que, buscando apoio para assumir sua própria orientação sexual, acessam e interagem em sites ligados ao movimento Diversidade Católica. Porém, esses mesmos jovens continuam participando presencialmente de grupos e rituais carismáticos em que não falam sobre sua orientação sexual. Temos aí um espaço católico virtual para acolhimento moral e outro presencial para manifestar a fé e participar de rituais. Sinais dos tempos (NOVAES, 2018, p. 11).
A espiritualidade diz respeito à experiência singular de cada sujeito, a uma capacidade de autotranscedência do ser humano que independe de rituais, celebrações ou dogmas de determinada estrutura de pensamento religioso. Para o autor, as religiões são água canalizada, não devendo, portanto, serem confundidas com a fonte que lhes dão vida, que é a própria espiritualidade. Segundo o autor, a dimensão espiritual é a fonte de onde emerge a fé, experiência sensível que por ser íntima e profunda faz com que a dimensão espiritual se manifeste em cada indivíduo de um modo singular, sem que necessariamente tenha que apontar na direção de qualquer crença religiosa.
De um lado, instiga os fundamentalismos a manterem um extremo fechamento, mais preocupados ainda em preservar suas crenças a todo custo, evitando ao máximo uma exposição que possa lhes custar um afastamento de suas verdades e um prejuízo cultural. E, quanto ao caso dos sincretismos religiosos, cada vez mais frequentes num contexto de mundo globalizado em que todos são convidados a se abrir para o diferente, pagam o preço, muitas vezes caro, do risco de expor as suas premissas, incorrendo na possibilidade de que sejam esvaziadas. Esses são os dois polos que marcam os extremos de uma inumerável gama de possíveis implicações que toda esta diversidade provoca no campo das religiões (JOBIM, 2018, p. 6).
Dessa forma, a religião pode, a partir da sua função histórica de costurar um sentido para a vida do indivíduo, ser agora mais bem explorada no seu potencial de agregar valores em torno de uma democracia global. As religiões, circulando hoje mais livremente, descontando-se o caso dos fundamentalismos, podem ser capazes de operar um saber viver com o Outro diferente, no contexto comunitário. Os jovens brasileiros, nascidos do final da década de 1970 para cá, já encontraram o mundo mudado. Eles fazem parte de uma geração pós-industrial, pós-guerra fria e pós-descoberta da ecologia. Vivem as tensões do avanço tecnológico, os mistérios do emprego, da violência urbana. O que isto teria a ver com religião? A insegurança para planejar o futuro profissional e a experiência de vivenciar precocemente a morte de amigos, primos e irmãos resultam, direta e necessariamente, em reforço de valores religiosos, busca de fé ou na valorização da religião como lócus de agregação social. As instituições religiosas continuam produzindo grupos e espaços para jovens onde são construídos lugares de agregação social, identidades e formam grupos que podem ser contabilizados na composição do cenário da sociedade civil. Fazendo parte destes grupos, motivados por valores e pertencimentos religiosos, jovens têm atuado no espaço público e têm fornecido quadros militantes para sindicatos, associações, movimentos e partidos políticos.
A criança, ao se olhar no espelho, vê o seu futuro ego, sua autopercepção e capacidade de confiar em si mesmo, autoestima. O investimento narcísico do jovem de hoje foi pequeno. Os pais foram ausentes, delegaram, em grande medida, à escola a formação e o fundamento de afeto. A escola passou a ser o lugar de formação da personalidade e da relação edípica. O sentimento de ausência, no entanto, é constante. Um vazio impera. Um aspecto importante na relação entre pais e filhos é o de responsabilidade. O filho necessita perceber, com clareza, que alguém se responsabiliza por ele. Quem é essa figura hoje? A escola? Os pais? Os amigos virtuais?
A família não é mais o lugar do afeto inicial. Vivemos uma desconstrução da família nuclear, de um modelo de patriarcado. A figura central da família nuclear era a mulher na função de mãe, que fazia a gestão das tarefas domésticas e cuidava das relações com a escola e com a saúde. Criamos instituições para fazer o trabalho do afeto infantil, aquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de socialização primária. A socialização secundária, que seria justamente das instituições, passou a vir antes. A escola substituiu a família. Há um grande dilema aqui, pois a produção subjetividade veio como “desinvestimento da criança”. Podemos dizer em um narcisismo negativo. Se a modernidade foi caracterizada por excesso de narcisismo, hoje vivemos em uma sociedade narcísica justamente porque fomos pouco investidos. Por isso, se analisarmos as formas psicopatológicas do nosso tempo, encontramos características de sofrimento a partir de ausências, advindo de seres pouco investidos, próximos à melancolia e à fuga do mundo: drogas, anorexia, depressão, compulsões, borderline (personalidades que flertam com os limites).
A felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como o equivalente autêntico da salvação (BAUDRILLARD, 1995, p. 97). O filósofo francês insiste na formação de narcisismos contemporâneos associados à busca incessante pela felicidade, o problema é que apenas pela própria. Com frequência nos apegamos a um modelo único de vida e de mundo, normalmente o nosso mundo. Temos características constitutivas da nossa personalidade que tendem ao narcisismo. Por conseguinte, acreditamos que o que é nosso, em diversos âmbitos, é o melhor. O contrário também é verdadeiro. Muitas vezes, pensamos que não temos nada de bom e que não podemos assumir nada dos outros; pois, não temos essa ou aquela condição. Em ambas as situações, o outro e o seu mundo estão distantes, como colocados diante de um muro. Torna-se fácil levantar muros e difícil construir pontes, em detrimento ao apelo do Papa Francisco de que construamos a cultura do encontro: “o isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim (FT, 30).
O amor nos tempos de narcisismo apresenta formas de relação muito específicas, diferentes do que gerações passadas presenciaram. Amor não é uma força transcendente ao eu, como se viesse do destino, é uma construção humana e nesse humano está o divino. “Amar como Cristo significa dizer não a outros ‘amores’ que o mundo nos propõe: amor pelo dinheiro – quem ama o dinheiro não ama como ama Jesus – amor pelo sucesso, pela vaidade, pelo poder”, afirma Papa Francisco.
Talvez a palavra mais significativa dos nosso tempo seja “ruptura”. O mundo apresenta transformações lentas que, em algum momento, se tornam realidades comuns. As pessoas terão que aprender a lidar mais ainda com a sua subjetividade. Profissões repetitivas tendem a desaparecer, mas outras que dependem do emocional e do criativo crescerão (ou mesmo surgirão). Onde fica a evangelização nesse mundo? Para dentro ou para fora das paróquias e ambientes eclesiais, ou em ambos?
A sensação de muitos é que o trabalho agora não tem mais limite, as resoluções de problemas são entendidas a partir de flexibilidade máxima de horário. Antes da pandemia, já vivíamos em uma sociedade do cansaço, como dizia o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Para ele, vivemos hoje em uma sociedade que nos leva à exaustão, cobramos em excesso de nós mesmos, a ponto de termos a sensação de inutilidade quando não estamos produzindo. “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando; é a lógica traiçoeira do neoliberalismo. Não há mais contra quem direcionar a revolução, a repressão não vem mais dos outros. É ‘a alienação de si mesmo’, que no físico se traduz em anorexias ou em compulsão alimentar ou no consumo exagerado de produtos ou entretenimento. A internalização psíquica é um dos deslocamentos topológicos centrais da violência da modernidade, ela provê mecanismos para que o sujeito de obediência internalize as instâncias de domínio exteriores transformando-as em parte componente de si” (HAN, 2017, pp 22-23).
O indivíduo busca a realização a partir de máxima produtividade, se alienando, nunca tendo possibilidade de refletir sobre seu próprio desejo. Aliás, algumas vezes ele procura um autoconhecimento para isso, mas já inserido em uma visão viciada de conceitos prontos da gestão (como inovação, proatividade, liderança, inteligência emocional). É uma busca em círculos, sem liberdade.
O narcisismo atual faz predominar um tipo de relação na qual o outro é retido enquanto serve para o próprio usufruto do sujeito, sendo dispensado ao menor indício de essa experiência relacional trazer desprazer ou conflito (BIRMAN, 2014). Assim, as relações intersubjetivas se localizam no registro da efemeridade. O narcisismo enquanto metáfora da condição pós-moderna cria possibilidade de extrair consequências do modo de ação do sujeito atual frente à sua realidade: “proporciona-nos ele [o conceito de narcisismo], em outras palavras, um retrato toleravelmente agudo da personalidade ‘liberada’ de nossos dias [...] sua superficialidade protetora, sua evitação da dependência, sua incapacidade de sentir, pesar, seu horror à velhice e à morte” (LASCH, 1983, p. 76). Em uma outra perspectiva teórica, podemos sublinhar que o conjunto de características que, de uma forma ampla, permite apontar o modus operandi do sujeito atual se encontra no delineamento da chamada pós-modernidade.
Dessa forma, o mundo caminha para uma mais ainda profunda padronização, uma vez que a eliminação das diferenças e do outro interessam ao mercado. Por mais que tenhamos sociedades plurais, os modos de vida e de pensamento parecem se uniformizar, até mesmo os sentimentos e as patologias. “Quanto mais iguais são as pessoas, mais aumenta a produção; essa é a lógica atual; o capital precisa que todos sejamos iguais, até mesmo os turistas; o neoliberalismo não funcionaria se as pessoas fossem diferentes”. O que temos hoje é um pluralismo permitido a alguns grupos, vivendo em seu padrão de consumo, em sua identidade e em suas respectivas bolhas.
O mundo virtualizado pode ser um grande problema e pode trazer sérias consequências para a saúde mental. O ser humano é feito de carne e osso, de corporeidade, de elementos reais e não imaginários. Assim, o excesso pode esconder grandes problemas e até mesmo traumas do passado. Por isso tem crescido o número de adolescentes que se automutilam, pois o “corpo pede a conta”. Por mais que tentemos viver exclusivamente (ou o maior número de horas possíveis) no mundo virtual, temos necessidades humanas básicas e fundantes da nossa existência. Necessitamos, antes de tudo, de afetos! Temos aqui, portanto, o essencial: no mundo da técnica, ou seja, a partir de agora, no mundo todo, já que a técnica é um fenômeno sem limites, planetário, não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade para ser livre e mais feliz. Por quê? Por nada, justamente, ou antes, porque é simplesmente impossível agir de modo diferente devido à natureza de sociedades animadas integralmente pela competição, pela obrigação absoluta de “progredir ou perecer” (FERRY, 2012, p. 143).
Por mais que tenhamos conquistado liberdade, autonomia e que o mundo virtual tenha aproximado as pessoas em certo sentido, é preciso vivenciar as relações humanas de afetos e afetações. O que acontece, em muitos casos, são pessoas que postam constantemente em redes sociais, mas esses atos não passam de um mecanismo de espelho, de um narcisismo desenfreado. Não há conexão humana nesses casos, mas apenas uma relação monológica. O mundo virtual pode, por outro lado, significar ampliação de conexões, troca de ideias e de afetos, conhecimento de novas formas de vida. Dessa maneira, apesar da afirmação de padrões violentos, temos a chance de vivenciar, cada vez mais concretamente, uma sociedade plural e diversa. A evangelização precisa também dar conta desse contexto, dialogando com diversos grupos identitários, buscando escutá-los e permitindo uma interface teológica com sua singularidade.
A subjetividade colonizada se impõe contra a diversidade cultural. Sendo assim, não será apenas com outra racionalidade que será superada a epistemologia moderna, essa que tem servido para justificar tanta violência e agressões aos Direitos Humanos. Para mexer em crença, é preciso mexer em subjetividades e fomentar novas práticas culturais, bem como novas relações e estruturas sociais, econômicas e políticas que viabilizem a vivência de outras crenças (LAUREANO, 2015, p. 117).
Dentro dessa perspectiva, é possível adotar uma postura “espiritualista” no mundo pós-moderno. Trata-se de um caminho para o interior, para o silêncio. No entanto, quando essa prática não está inserida na concretude histórico em seu horizonte, assim, podemos chegar à fórmula homeopática: “capitalistas sim, mas zen!”, como nos alerta o filósofo contemporâneo Slavoj Zizek (2005). Não há dúvida de que as dimensões psíquicas serão cada vez mais abordadas pela nova evangelização. As pessoas precisam elaborar suas demandas existenciais e a espiritualidade pode ser um lugar de vivência desse aspecto de forma libertadora. É preciso atestar vulnerabilidades sociais, emocionais, afetivas, subjetivas, que são resultado de um mundo permeado por violências simbólicas e exclusões humanas. Faz-se necessário, no entanto, a vivência de outra lógica, para além de tendências que reproduzem o sistema imperante e a lógica do narcisismo contemporâneo. Assim, o espírito sinodal reflete uma postura de abertura e interface com outras áreas do saber, a partir de uma teologia não mais moderna, mas pós-moderna, descentrada e dialogal, que ateste as vulnerabilidades corpóreas e encarnadas contemporâneas.
É verdade que alguns movimentos católicos se mostram propositores de “alentos antropológicos” aos nossos tempos caóticos. Movimentos que significaram não necessariamente aumento no número de fiéis, mas apenas exercem papel de motivação e “reavivamento” a um número já existente de católicos. O clima de renovação esteve presente nos últimos anos, mas pensamentos conservadores se mostram violentos simbolicamente e se fundamental na repetição, o que leva muitas vezes a insistências neuróticas e aponta para um limite, sobretudo quando pensamos na mudança da juventude à vida adulta. Nesse sentido, Hervieu afirma a coexistência de diretrizes oriundas da Gaudium et Spes e da Humanae Vitae, o que indica desafios e incongruências a serem superadas (HERVIEU, p. 37). Em relação à juventude, sobretudo, a adesão a grupos conservadores foi maior, pois existe maior oferta formativa, comunitária e, assim, possibilidade de reavivamento da fé, mesmo que, por vezes, de forma superficial.
Qual a saída? Seria o alargamento da experiência de uma “Igreja como resistência”, presenciada nos tempos de Francisco. Laudato Sì e Fratelli Tutti são documentos que indicam e aprofundam esse caminho. Hervieu chama esse movimento de uma “Igreja como consciência inquieta” (HERVIEU, p. 52). Questões emergentes são as mais fundamentais ao debate teológico-pastoral dos próximos anos, como a urgência ecológica. Dessa maneira, a Igreja se coloca em escuta atenta e constante aos anseios do ser humano contemporâneo, que está à beira do abismo ou do colapso. Uma consciência inquieta busca interfaces hermenêuticas, conexões fundantes. Nesse contexto, podemos encontrar um terreno fértil para busca de sentido por parte da juventude. A juventude, assim como a Igreja, possui uma “consciência inquieta”.
O sistema romano faz com que a Igreja mensure sua unidade com base em sua uniformidade doutrinária e organizacional. Por muito tempo, essa visão de unidade foi encarnada em uma civilização paroquial pelo menos formalmente homogênea. A sociabilidade católica desloca-se hoje para o lado dos agrupamentos afins e móveis, cada vez mais alheios ao enquadramento territorial da paróquia. “O catolicismo de amanhã, em minha opinião, será um catolicismo ‘de diáspora’ ou não será” (HERVIEU, p. 62).
A atualização da Igreja Romana ocorreu precisamente no momento da revolução cultural da década de 1960. O Vaticano II foi imediatamente abalado pela grande mudança cultural que as sociedades modernas vivenciaram naquele mesmo período. Esse fato pode ser exemplificado pela resposta da Igreja à formidável revolução introduzida pelo acesso das mulheres à possibilidade de gerir sua fecundidade. A encíclica Humanae Vitae (1968), que proíbe a contracepção, teve consequências dramáticas para a credibilidade da instituição.
Por outro lado, mudanças foram indicadas e concretizadas. A constituição de reforma da cúria romana Praedicate Evangelium de março de 2022 mostra a direção. É sobre uma real descentralização do funcionamento da Igreja que a abordagem sinodal deve conduzir. Não apenas ao nível do governo das congregações vaticanas, mas nas dioceses e unidades pastorais.
Essa tendência envolve fortalecer o status teológico das Conferências Episcopais nacionais (e transnacionais/regionais, como a Amazônia) e aumentar o empoderamento de leigos, mulheres e homens, em todos os níveis. Nesse sentido, a abertura dos ministérios instituídos de leitoras, catequistas (e outros) a leigos e leigas pelos dois motu proprio Spiritus Domini e Antiquum ministerium (2021) vai na direção certa, na direção desta “claramente secular” cultura eclesial com que sonha o Papa Francisco em “Querida Amazônia” (n. 94).
É cada vez mais urgente, nesse contexto, pensar em ampliar os lugares de encontro da Igreja com o mundo e no mundo, por exemplo pela multiplicação de expressões eclesiais de base, oferecendo no coração das cidades espaços para encontros, debates, formação, celebrações, viagens espirituais ou sacramentais. Tipos de "pátios dos gentios" em nível local, assim como o Pontifício Conselho para a Cultura os estabeleceu em nível nacional e global (AMHERDT, Entrevista ao Observatório da Evangelização, 2022).
Uma igreja em saída significa buscar, incessantemente, um encontro com o humano e com seu real. A juventude vive, constantemente, o dilema de experimentar o irreal e o ilusório, se apegando a desejos impostos. A Igreja não pode ser fonte de mais um desses desejos, remetendo a um mundo fantasioso e, por vezes, de culpa e neuroses.
Entender a juventude é entender como o mundo se configura no presente e como os caminhos indicam estruturar para o futuro. Sendo assim, verificamos a urgência na necessidade de se ampliar a discussão religiosa junto aos jovens, abrindo espaço para a expressão da subjetividade em transformação, fazendo da experiência religiosa um destino com sentido. De igual maneira, é preciso analisar o discurso da laicidade e suas consequências, problematizando as interpretações que esvaziam o sentido da experiência religiosa enquanto aspecto intrínseco e irrevogável da condição humana.
Hoje os jovens se angustiam pelo fantasma da ausência de sentido, a angústia primordial é de ser ou não ser, existir significativamente no mundo ou não. Por isso hoje vivemos inseridos em uma mentalidade do antigo (eterno) adolescente, na tentativa de encontrar sentido na incessante experiência. Há uma constante “experimentação adolescente”, estado permanente de experimentação de nós mesmos. O que se chamava de adolescência como estágio da vida, vivemos uma espécie de adolescência sem fim.
O que acontece com a juventude de hoje na medida em que não há um reconhecimento simbólico, há também uma perda de identidade, de fronteira. A violência é uma forma de manter sua posição, seu território. Em algum sentido, é uma forma de fuga da melancolia. Violência pode aparecer como automutilação, palavras fortes contra aqueles que cruzam seu caminho e mesmo fechamento em seu mundo absoluto. Lacan mostra que o estádio do espelho é o primeiro momento de formação da personalidade que nos diferencia do outro. Na medida em que me reconheço enquanto corpo que vejo, percebo as diferenças, as alteridades, o que sou e o que não sou. Nesse momento, é necessário a vivência de permanências iniciais. Quando não há essa vivência, apenas nos resta viver de forma experimental.
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