A FRAGMENTAÇÃO DO PENSAMENTO E O SUCESSO DA “EVANGELIZAÇÃO” NAS REDES SOCIAIS: CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA NARRATIVA PARA O FENÔMENO DO RELIGIOSO NAS REDES SOCIAIS

THE FRAGMENTATION OF THOUGHT AND THE SUCCESS OF “EVANGELIZATION” ON SOCIAL MEDIA: CONTRIBUTIONS OF NARRATIVE THEOLOGY TO THE PHENOMENON OF RELIGIOUSNESS ON SOCIAL MEDIA

Alzirinha Rocha de Souza
Doutora em Teologia pela Université Catholique de Louvain Bélgica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas). Contato: alzirinharsouza@gmail.com


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Resumo: É um fato inegável que as novas tecnologias de comunicação, impactam diretamente os processos de comunicação. Notadamente, com o advento da comunicação por imagens digitais, o fenômeno dos Influenciadores Digitais (IDs) se consolidou numa grande pluralidade de temas, entre os quais os temas religiosos. Nessa esteira, com a pretensão de realizar um processo de Evangelização, identificam-se os Influenciadores Digitais de Inspiração Católica (IdCat’s). À luz dessa dinâmica, propomos a reflexão teológica neste artigo, que tem por objetivo ampliar a compreensão da dinâmica de atuação nas redes sociais e a levantar elementos e questões acerca da consolidação ou não do processo de Evangelização neste mecanismo, tomando em consideração os elementos metodológicos e hermenêuticos da Teologia Narrativa. 

Palavras-chave: Redes Digitais; Evangelização; Teologia Narrativa; Comunicação do Evangelho; Práxis

Abstract: It is undeniable fact that new communication technologies directly impact communication processes.  Notably, upon the arrival of digital image communication, the phenomenon of Digital Influencers (IDs) was consolidated in a wide range of themes, including religious ones.  In this wake, with the intention of carrying out a process of Evangelization, the Digital Influencers of Catholic Inspiration (IdCat's) are identified.  In the light of this dynamic, we propose a theological reflection in this article, which aims to broaden the understanding of the dynamics of action in social networks and to raise elements and questions about the consolidation or not of the Evangelization process in this mechanism, taking into consideration the methodological elements and hermeneutics of Narrative Theology.

Keywords: Digital Networks; Evangelization; Narrative Theology; Gospel Communication; Praxis

Introdução

A ação dos influenciadores religiosos nas redes sociais se apresenta atualmente como um fenômeno estabelecido que ultrapassou as portas da Igreja. Os canais, as possiblidades técnicas, tudo isso converge para as novas formas de viver à luz da agilidade que delas é exigida. Essas formas geram uma circulação da informação rápida e breve, que coincide com a justificação da ausência de tempo ou sua má administração.

Contudo, as perguntas que advêm desse fenômeno não passam unicamente pela técnica comunicacional. Em se tratando dos IdCat (influenciadores digitais de inspiração católica), essa nova dinâmica comunicacional provoca o pensar teológico. Nesse sentido, a partir do pluralismo do conteúdo exposto nas redes sociais daqueles(as) que pretendem “evangelizar” em nome da Igreja, centrar-nos-emos em duas questões preeminentes. A primeira consiste em buscar a compreensão da lógica que compõe o fenômeno, levando em conta o conceito de fragmentação do pensamento da contemporaneidade; a segunda diz respeito à reflexão sobre até que ponto as mensagens fragmentadas das redes sociais podem efetivamente ser consideradas como processo de evangelização e, assim sendo, sobre quais seriam os elementos teológicos que suportariam essa questão. Sem pretender encerrar as questões acerca de um fenômeno tão amplo, queremos, neste artigo, à luz do instrumental da Teologia Narrativa, apresentar uma reflexão mais ampla sobre elementos que possam colaborar para fazer avançar a compreensão dessas duas questões centrais.

Para tanto, dividiremos o texto em três momentos. O primeiro se refere às especificidades comunicacionais que caracterizam um influenciador digital; o segundo toca ao parâmetro que levaremos em consideração para o ato de “evangelizar”, e o terceiro tratará das narrativas fragmentadas na contemporaneidade. Finalmente, na última parte, tomaremos os elementos da Teologia Narrativa para buscar esclarecer os elementos que contribuiriam para o efetivo processo evangelizador na dinâmica do religioso nas redes sociais.

1. Especificidades maiores de um “influenciador digital”

O desenvolvimento das tecnologias digitais criou um novo espaço de ser e de se comunicar com o mundo. O imperativo da presença física foi cada vez mais repensado à medida que o visual virtual se impôs na prática do cotidiano. Até o início dos anos 1990, o acesso às novas tecnologias de comunicação era bastante limitado para o público de massa. Notadamente no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, a popularização da Internet e as ferramentas de comunicação deram às pessoas de diferentes classes sociais acesso ao mundo virtual.

Contudo, no contexto brasileiro, sofremos ainda com o processo de exclusão digital, que vem sendo pesquisado e acompanhado de longa data (Almeida; Paula, 2005). A pandemia nos desvelou essa questão de diferentes formas ao nos obrigar a entrar na virtualidade. A educação, da escola inicial à universidade, foi um exemplo clássico dessa questão. Descobrimos que alunos das classes mais pobres não tinham como acompanhar os estudos pela ausência da Internet e de equipamento adequado.

Apesar das limitações, não há como negar a expressão de Paula Sibilia (2015): o homem agora é pós-orgânico. Outras formas de estar no mundo se concretizaram e provocam grandes reflexões sobre as novas formas de ser, dizer e influenciar pessoas. Nesse contexto, confirma-se a afirmação de M. Foucault (2014) de que não é possível dizer qualquer coisa em qualquer tempo. Somente é possível falar de IDs[1] porque nossa sociedade atual, com suas características sociais, econômicas e tecnológicas, sustenta a eclosão desses profissionais e mídias (Karhawi, 2017, p. 49).

Além disso, a revolução digital, especialmente para os nascidos a partir de 1995, introduziu-nos em uma nova linguagem a partir do advento dos smartphones, que permitiram o acesso a imagem, som e vídeo (Policarpo; Santaella, 2018, p. 29). A nova linguagem não está apenas nos códigos dos programas, mas na maneira como passamos a escrever mais do que falar, a modular e construir padrões de imagens como se fôssemos personagens, a participar de forma múltipla de diálogos e discursos inéditos do ponto de vista do contato antropológico com outras culturas, a acelerar nossos padrões de respostas e antecipação imaginária de sentido. As técnicas passaram a ser mediadas por incógnitos algoritmos que rapidamente incorporaram nossa forma de pensar, trabalhar e desejar (Goldberg; Akimoto, 2021, p. 10).

Ora, os IDs são produto dos avanços tecnológicos e deste novo mundo que se instaurou. Atualmente, afirma-se que a expressão IDs está deixando de ser utilizada pelo mercado, optando-se apenas por “influenciador” (Antunes; Azevedo, 2019, p. 3) em razão da separação entre on-line e off-line. A mesma pessoa pode ter atuação nas redes presencialmente ou ainda nas mídias tradicionais; contudo, nesta análise, manteremos a expressão IDs, entendendo aqueles/as que estão principalmente nas mídias digitais.

Gênese do sujeito influenciador

É sobretudo a partir de 2015 que se inicia o movimento de redefinição de nomenclaturas profissionais, no dizer de Karhawi (2017, p. 49), quando se registra uma guinada discursiva. Tratando-se especificamente das mídias digitais, os IDs nascem de um cenário que facilita a participação de sujeitos produtores e consumidores de conteúdo, quando amadores se tornam produtores de conteúdo (Shirky, 2011, p. 50). Por outro lado, a sociedade passou a girar em torno do verbo ver, já que a imagem é cada vez mais valorizada. O fazer ver (Debord, 1977) é intensificado com a possibilidade de ver e ser visto em espaços e tempos diferentes (Thompson, 2008). Logo, participar está diretamente relacionado a mostrar-se, a implodir a dicotomia entre o público e o privado (Karkawi, 2015).

Ora, foi através dos espaços digitais que pessoas “comuns” começaram a ganhar visibilidade ao se exibirem nas plataformas e redes sociais, abrindo espaço para outra estratificação comportamental que permite a desmistificação das celebridades (famosos/as estabelecidos/as por outras mídias). Os sujeitos comuns assumem a prática da microcelebridade (Senft, 2008; Marwick; Boyd, 2010), constituindo um discurso baseado na proximidade com o público e na autenticidade.

Nesse contexto, exploram-se as situações cotidianas, com as quais pessoas comuns se identificam, fazendo crescer o anseio pelo conhecimento da realidade das pessoas midiáticas. A dinâmica proximidade × mídia consolida a presença dos agora IDs, aproximando-os de seus públicos pela identificação de temas, posturas, costumes, moda, saúde, beleza, entre tantas outras propostas.

Segundo Antunes e Azevedo (2019, p. 8),

eles mostram seu dia a dia e fatos de sua vida ordinária, compartilhando ainda com o público geral a inexistência de sua “famosidade”, ao menos não de amplo alcance. Tem-se aí então a possibilidade de identificação ainda maior e, mais, a configuração de uma relação que se dá de maneira mais direta. Essas pessoas se tornam ID porque as pessoas levam em consideração a opinião deles e se abastecem da opinião deles para ajudar a formar a sua opinião normalmente utilizando as redes sociais.

Diferentemente das celebridades, que possuem suporte midiático e a intrínseca relação com a cultura de massa, os IDs se constituem em uma lógica bastante particular. A notoriedade que lhes é pertinente independe do envolvimento com marcas ou da chancela da mídia. Seus seguidores “legitimam” sua fama localizada (Rojek, 2008) e por onde eles começam a construção de seu self-branding, sua marca pessoal, que os leva a longo prazo a se associarem a profissionais especializados na produção de conteúdo e temas visando à manutenção de seu público.

Nossa atenção recai sobre os IDs genuinamente nascidos nas redes digitais (youtubers e instagrammers, notadamente). Para tanto, é importante perceber e diferenciar: a) celebridades, cuja presença na grande mídia que lhes permite fama; b) youtubers e instagrammers, que despertam interesse e têm certa visibilidade de serem celebridades, e c) aqueles que carregam multidões sem estarem na grande mídia. Os três grupos são capazes de influenciar grandes massas, ou melhor, grandes massas podem se deixar influenciar por pessoas situadas nos três grupos. De fato, constata-se que a atividade de IDs deixou de ser para muitos uma atividade paralela e passou a ser uma profissão. Através da monetização dos conteúdos, pessoas buscam ser remuneradas e vivem dessa renda. Esse movimento gera um círculo fechado de práticas: os IDs se empenham em buscar novos seguidores e certo grau de “fama”, que legitimam o seu potencial de influenciar pessoas, que por sua vez monetizam o canal, gerando um sistema que se retroalimenta (Antunes; Azevedo, 2019, p. 11).

Outros elementos caracterizam os IDs. Segundo Abidin (2021), há três perspectivas a se considerar em suas dinâmicas e construções. A primeira perspectiva trata da percepção dos que se colocam como microcelebridades, mesmo ocupando espaços muito abaixo do espectro de visibilidade nas plataformas; ainda assim, são considerados proeminentes diante de públicos específicos. São microcelebridades para seus seguidores de nicho (Abidin, 2021, p. 291). Nesse sentido, o número de seguidores não é o determinante único para a consideração do espaço que se ocupa nas redes, da mesma forma que não determina o conceito fechado de celebridade ou IDs. Diz algo sobre essa realidade, mas não é determinante.

A segunda perspectiva destacada pela autora é a questão da construção de sua imagem nas redes, que pode ser dada em dois padrões. Há os que intencionalmente estruturam a construção de suas performances a médio e longo prazos, visando à audiência e a outro padrão que é mais focado na perspectiva do exercício primeiro da influência e em quanto esforço é necessário para tornar-se um ID, logo mais vinculado à dinâmica específica do mundo digital.

Finalmente, a terceira perspectiva é a da ecologia da informação ou comunicação, que nos parece determinante como base para a aderência de seus seguidores. Afirma a autora:

Nesse caso, são observadas as habilidades dos IDs em amplificar ou suprimir alguns tipos de informação, tensões, pensamentos e conversações. Em alguns casos, os influenciadores são capazes de angariar atenção e endossar mensagens que podem ser tanto de clientes, promovendo produtos específicos, quanto a promoção de mensagens sociais, de direitos humanos ou políticas (Abidin, 2021, p. 291).

Em definitivo, os IDs desempenham duplo papel comunicativo. Podem realizar importante ampliação de determinados assuntos ou podem usar sua força de comunicação para desviar a atenção, distrair pessoas e, portanto, suprimir alguns tópicos de conversa. Esses elementos criam o fluxo de comunicação e conteúdo envolvidos no processo comunicativo que impactam mais ou menos seus públicos.

Ora, é pensando nessa dinâmica comunicativa que buscamos a continuidade, de modo a situar a reflexão sobre os paradigmas teológicos para a comunicação do Evangelho.

2. Processos de evangelização nas redes sociais: isso é possível?

Nossa análise ocorrerá a partir da compreensão teológica do termo evangelizar e dos processos e objetivos advindos dessa ação. O significado da palavra evangelizar (ευαγγελίζομαι – evangelízomai) está relacionado com boa nova, referindo-se, portanto, em sua origem, ao ato de divulgar a mensagem de Cristo e o conhecimento de sua pessoa por diversos caminhos. Se o Concílio Vaticano II ressalta que a responsabilidade do anúncio do Evangelho e da pessoa de Jesus cabe a todo batizado (AG, 2), posteriormente o papa Paulo VI destacará que essa ação é central para a Igreja: “evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar” (PAULO VI, Evangelii Nutiandi, n.º 14). Contudo, somente dizer algo sobre Jesus e a Igreja não comporta todo o processo de evangelização. Em sentido estrito do anúncio, espera-se a transformação da realidade pessoal e contextual. Esse efeito posterior é condensado na fala de Jesus, na expressão Reino de Deus. Expressado por parábolas e gestos, o Reino de Deus é instaurado na história da pessoa de Jesus e em sua prática, apontando para sua reconfiguração a partir da concretização de novas formas de relações fraternas realizadas no já da história por aqueles e aquelas que entram na dinâmica do viver de Jesus. Nesse sentido, evangelizar não consiste unicamente em dizer algo sobre o Reino de Deus, mas, sim, em um processo que leve os demais, pela compreensão e liberdade de transformação pessoal, a uma nova práxis que expresse a concretização do Reino de Deus na história.

Um segundo elemento central a ser percebido faz referência à intencionalidade da utilização das mídias digitais para comunicar-se a partir da premissa da vinculação à Igreja Católica e/ou ao elemento religioso de forma geral. Dizer algo em nome da Igreja requer como premissa básica um alinhamento com os elementos basilares de seu discurso, a saber: escritura, tradição e magistério. Acima de suas características próprias, em escopo mais amplo, essa tríade deve ser interpretada em seu conjunto e em conjunto com a Comunidade Eclesial a partir do reconhecimento das transformações da sociedade e de suas demandas atualizadas no tempo presente, realizando-se a articulação entre doutrina e pastoralidade. Nesse sentido, o anúncio do Evangelho e o que se diz em “nome” ou utilizando o nome da Igreja, devem ser necessariamente expressados em linha com o conjunto eclesial do tempo presente, isto é, atualmente com o magistério do papa Francisco. Isso não quer dizer que não possa haver diversidade do pensamento. Pelo contrário, é da diversidade em busca da convergência que nasce o avanço do pensamento. Contudo, acima das mais diversas narrativas fragmentadas, existe desde o princípio no cristianismo uma exigência regular da fé que se vincula ao acontecimento querigmático e à explicitação doutrinal ou dogmática da fé que constitui sua transmissão (Theobald, 2011, p. 37). É tendo por base essas duas premissas teóricas acerca dos processos de evangelização que situamos nossa reflexão.

3. As narrativas fragmentadas na contemporaneidade

Queremos propor, de forma mais ampla, a reflexão sobre a fragmentação do pensamento no momento presente. Se a interrogação relativa ao lugar das narrativas nas sociedades atuais constitui uma preocupação da teologia atual, sua forma fragmentada amplia ainda mais a questão quando elas se expressam nas redes digitais. Para avaliarmos a questão, consideramos o instrumental da Teologia Narrativa. Para Theobald (2007, p. 461), essa nova forma de estabelecimento das narrativas representa uma nova racionalidade teológica no contexto da contemporaneidade. Seu diagnóstico aponta para o fato de a Teologia Narrativa ter se tornado “uma forma principal de apresentação da dogmática cristã e da pastoral catequética e litúrgica da Igreja” (Theobald, 2001, p. 5).

Podemos buscar a chave de tais preocupações à luz das transformações das sociedades pós-modernas ou pós-metafísicas, que estabelecem uma diferença diante do que, em filosofia e na teoria da cultura, se condensava nas grandes narrativas fundacionais ou de sentido. É precisamente contra a pretensão de um conhecimento abarcante de toda a realidade que contesta Lyotard (1979), ao referir-se ao fim das grandes narrativas. Para esse autor, o estatuto do saber das coisas na pós-modernidade está em relação direta com o que vai chamar de crise de narrativas. Essa crise nasce de sua compreensão pós-moderna como “o estado da cultura depois das transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX” (Lyotard, 1979, p. 9). As incidências dessas transformações postulam uma crise entre ciência e narrativa, concedendo à primeira a legitimação do conhecimento e à segunda, uma destituição do nível cognitivo. Nesse sentido, o pós-modernismo coincide com uma crise da filosofia metafísica e com as suas pretensões de verdade universal. Afirma Lyotard:

Simplificando ao extremo, entende-se por pós-moderna a incredulidade em relação às metanarrativas. Este é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, a supõe. [...] A função narrativa perde seus atores e seus grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também donativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas sui generis. Cada um de nós vive em muitas dessas encruzilhadas. Não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis, e as propriedades destas por nós formadas não são necessariamente comunicáveis (Lyotard, 1979, p. 16).

Por sua vez, convergindo com Lyotard, Schlegel (2012, p. 10), ressalta que a pós-modernidade transporta com ela o poder legitimador de uma pluralidade de formas de compreensão do mundo, que caminha a par de um individualismo crescente. Essa diversidade abre caminho para um pensamento cada vez mais fragmentado e plural. No que diz respeito à narrativa, o pensamento pós-metafísico distancia-se da noção de metanarrativa global e universalizante. Ao criticar a ideia de totalidade, o autor abre espaço para o pequeno, o singular em convívio com uma multiplicidade redacional (Schlegel, 2012, p. 10).

Ora, considerando que o cristianismo é por excelência uma grande narrativa de salvação, podemos pressupor que esse seja o principal obstáculo ao processo de evangelização nas mídias digitais que se apresenta com essa linguagem fragmentada? Isso não quer dizer que se inviabilize a dimensão narrativa da fé nem que Deus não possa ser dito nas sociedades pós-modernas e pós-metafísicas. As últimas décadas e as redes sociais no momento atual testificam esse fato.

Theobald (2001, p. 6-7) destacará que, do ponto de vista teológico, se reconhecem não só a legitimidade e a utilidade da narrativa em geral, mas também a pertinência de narrar Deus nos dias atuais. Contudo, seria ingênuo propor a substituição simples da Teologia Clássica pela Teologia Narrativa. Antes, é necessário que a teologia clarifique e aprofunde a relação entre o contexto radicalmente novo da situação atual em que vivemos e a narração de Deus, e que o faça tanto do lado desta situação nova como do lado de Deus.

Para o autor, um dos traços marcantes da pós-modernidade é a aporia que resulta da pluralidade de visões do mundo. No caso das religiões, ela se manifesta na pretensão de verdade diante de seus fiéis, dos de outras religiões e dos não crentes. Há um diagnóstico específico:

Efetivamente muitos crentes consideram a sua fé como uma opinião (doxa) entre outras, enquanto muitos crentes simplesmente afastam a sua liberdade de qualquer questionamento último, ficando numa chamada reserva agnóstica. Na realidade uns e outros adoram institivamente a mesma atitude de fundo face ao plural que é seu elemento, ou contentando-se com o estado de sua crença, recusando-se a envolver-se (Theobald, 2001, p. 13).

Entretanto, a fé cristã não pode ser reduzida ao estatuto de mera opinião. Se, por um lado, pertence ao ato de fé um alto grau de compromisso com a verdade, em primeiro lugar do sujeito crente consigo próprio e simultaneamente com a verdade conhecida e acreditada, por outro lado, a condição de verdade exigida pela fé não pode ser ofuscada em uma sociedade pós-metafísica, onde se garante a possibilidade de um ato de fé totalmente livre sem qualquer tipo de pressão. Daí se segue o desafio diante do que se denomina utopia do consenso universal sem limitações, que, num clima de niilismo suave, apenas garante duas opções: o ceticismo (nada é verdadeiro) ou o dogmatismo (eu conheço a verdade) (Theobald, 2001, p. 16-17).

Buscando uma solução para essa dualidade, Theobald parte para uma postulação antropológica, que, do ponto de vista bíblico e filosófico, surge ligada à autonomia da consciência moral e, portanto, é considerada racionalmente aceitável para resistir ao absurdo e ao mal de fundamentar a fé e a possiblidade de o ser humano ser ele próprio. É dessa postulação antropológica que surge a dimensão teológica ou doxológica da fé, ou seja, a possibilidade de argumentar em prol da dimensão do caráter absoluto e de uma verdade da fé cristã em termos propriamente teologais. Em outras palavras: uma fé que se manifesta como “gratuidade absolutamente discreta, sem exigência de reconhecimento ou retorno” (Theobald, 2001, p. 22), uma atitude de espanto e admiração diante d’Aquele que se reconhece como sujeito. Em última instância, a razão contribui para resistir ao mal e fundamentar a existência, sendo possível, a partir daí, estabelecer uma perspectiva de salvação que dá existência a Deus. Esse é o caminho aberto na dinâmica da secularização.

A livre criatividade da fé, que perpassa essa experiência doxológica, consiste em dar existência a Deus e recebê-lo como sujeito. A perspectiva intercomunicacional da autorrevelação de Deus permite compreender o ato de fé simultaneamente como certeza da gratuidade de Deus na história dramática da humanidade e como ato de conversão humana, olhando-o constantemente como interesse e paixão divina (Theobald, 2013, p. 207). Para Theobald, a interpretação das possibilidades abertas pelo pensamento pós-metafísico é justamente onde se encontram reunidas as condições para introduzir as narrativas de Deus e sobre Deus “numa teologia narrativa que não se esquiva da pretensão de colocar Deus em posição de sujeito de uma trama universal” (Theobald, 2001, p. 27).

Então, podemos perguntar-nos: se há possibilidade de um caminho antropológico que permite realizar narrativas que postulem Deus como sujeito em meio a trama universal da humanidade, quais são os critérios de narração do Evangelho que permitem a possibilidade do estabelecimento dessa relação?

4. Elementos constituintes do cristianismo narrado

Não foram poucos os autores que teorizaram sobre a dizibilidade de Deus[2] e o fato de que Deus mesmo exige ser narrado. Contudo, para além da identificação do crucificado com a história e suas analogias, tomamos como contribuição à nossa reflexão a articulação de Theobald, que propõe a leitura acerca da narratividade que gera a convergência entre conteúdo e forma no discurso estilístico cristão. Ele aponta nesse caminho a possibilidade de favorecimento do discurso sobre Deus no mundo contemporâneo e, acrescente-se, talvez nele encontremos possibilidades de parâmetro para os discursos nas mídias digitais.

Na obra O Cristianismo como estilo (Theobald, 2007)[3], apresenta-se a proposta de uma qualificação estilística[4] do cristianismo baseada no princípio de concordância entre conteúdo e forma. Para o autor, o conceito de estilo[5] é apropriado para caracterizar a essência do cristianismo e a identidade cristã, tanto do ponto de vista do desenvolvimento da linguística moderna como do ponto de vista do fenômeno religioso.

Para tanto, Theobald toma o contexto da pós-modernidade como aquele que identifica uma saturação do paradigma doutrinal do cristianismo e a exigência de uma transformação que diz respeito a sua forma e conteúdo. Por isso, busca pensar uma postura de aprendizagem que leve o cristianismo a assumir em seu interior e em total liberdade aquilo que lhe é exigido pelo exterior. Nesse processo, sem ceder a tudo o que é exterior, o cristianismo poderia descobrir seu novo lugar na sociedade atual. Compreendendo-se, no mundo contemporâneo, como uma tradição entre tantas outras e aprendendo a se colocar diante de múltiplas perspectivas internas e externas, o cristianismo descobre, a partir da noção de estilo, a sua própria personalidade.

Conteúdo e forma

O princípio de concordância entre forma e conteúdo se define simultaneamente como estético e teologal. O primeiro (estético) refere-se à relação estabelecida entre narrador e leitor (ouvinte) na possibilidade de aquilo que se passa na narrativa se tornar realidade na vida dos leitores/ouvintes. O segundo refere-se ao estatuto teologal da fé, isto é, à conformidade entre conteúdo e forma do discurso assegurada pelo princípio teologal da intervenção de Deus. Por isso, a “transmissão do intransmissível” não pode acontecer com base em argumentos unicamente da sabedoria humana, mas somente mediante a manifestação poderosa da ação de Deus, a única que garante conformidade entre conteúdo e forma (Theobald, 2007, p. 27).

Outro aspecto evidenciado pelo autor quanto à concordância entre conteúdo e forma refere-se à elaboração do conceito de inspiração à medida que este faz referência à comunicação. Para ele, o evangelizador não é um mero relator ou comentador dos textos bíblicos, mas um facilitador da relação texto-ouvinte, texto-leitor. Por isso, deve inspirar-se em múltiplos modelos evangélicos e promover a conexão entre os textos e seus leitores e ouvintes. Da mesma forma, seu destinatário deve acolher a escuta e a leitura de modo a permitir que elas abram espaço em sua vida para a reconfiguração do tempo presente. Esse movimento permite que o narrador participe da reconstrução do texto através de suas narrativas, estabelecendo entre elas e o ouvinte um envolvimento existencial em que o princípio da concordância entre conteúdo e forma encontra seu sentido estritamente teológico. Afirma o autor:

De fato, o princípio estético de concordância entre forma e conteúdo encontra o seu significado propriamente teológico quando se aplica não só aos textos, mas também e sobretudo às testemunhas que lhes deram forma e por eles vivem. Isso tem então o nome mais concreto de santidade, é dizer, uma forma de vida que corresponde absolutamente ao que significa, ou seja, a própria santidade de Deus (Theobald, 2001, p. 52).

O nome próprio do princípio de concordância entre a forma e o conteúdo, para Theobald, é santidade. Essa é uma das palavras pelas quais se podem definir os protagonistas principais da história bíblica: Deus e o humano. Ela exprime a comunicação da santidade concordante de Deus, sobre o que diz seu modo de proceder, cuja manifestação plena são a pessoa de Jesus (Lc 4,34) e a continuidade dos santos pela força do Espírito Santo (Rm 1,7; 1Cor 1,2; Rm 8,15). É atestada nos textos bíblicos através da credibilidade e concordância coerente das testemunhas que a assumem, e deve ser suscitada por aqueles/as que entram em contato com as narrativas evangelizadoras.

A pluralidade das linguagens textuais do Novo Testamento apresenta igual multiplicidade de pontos de vista relativa à dimensão escatológico-messiânica de Jesus, enquadrada em uma pedagogia da liberdade. Esta pretende, sobretudo, afirmar a liberdade nas situações concretas e limites que os leitores atravessam, isto porque o texto bíblico mantém um modelo de humanidade muito específico, apto a desenvolver uma fé humana, uma confiança na vida que ajuda a enfrentar e a viver diversas passagens da existência (Theobald, 2001, p. 52). A pluralidade de linguagens, ao contrário de desvirtuar, antes deve sempre levar ao exercício de santidade, de conformação (tornar-se conforme) aos ensinamentos de Jesus, que têm seu centro e chave na expressão Reino de Deus, que, por sua vez, emerge na história conforme assumimos novas formas de relações humanas que passam pela transformação da história.

O princípio teologal da concordância entre conteúdo e forma, ou seja, a santidade, evita a absolutização do gênero narrativo e abre-se à pluralidade de gêneros literários e teologais que justamente permitem a regulação, o debate e a argumentação. O fundamento da teologia narrativa e do exercício das narrações deve estar sempre em consonância com a memória bíblica e, por isso, apresentar Deus em sua santidade e concordância absoluta com seu ser, agindo para nós como sujeito de uma história universal que pede para ser recontada (Theobald, 2001, p. 52).

5. Os limites da narratividade religiosa

Theobald destaca ainda os limites e riscos constituintes da Teologia Narrativa como consequência do ato de narrar. Ele o faz propondo uma revisão dos pontos epistemológicos essenciais dessa dinâmica narrativa.

O primeiro trata da relação intrínseca entre Deus e a narrativa da humanidade, pensada à luz do ato de fé, que pelo autor é considerado um ato de ponderação. Ponderar significa uma ação através da qual as grandes questões da existência humana podem ser narradas relativamente à existência individual. A questão-chave a não se perder de vista é perceber que as questões fundamentais da existência humana implicam primeiramente uma formulação narrativa inscrita nas tradições narrativas existentes que constituem para um patrimônio comum da humanidade. Neste sentido, não há razão para crer que o novíssimo está sendo criado, mas, sim, para que se pense em desenvolver a comunicação em linha de conjunto.

O segundo ponto toca à inversão doxológica, “que faz de Deus o sujeito de uma narrativa de transformação espiritual do mundo” (Theobald, 2011, p. 257). A narração encontra o seu estatuto propriamente dito, e a Teologia Narrativa, à medida que se centra na santidade de Deus mesmo que se comunica ao ser humano. Os limites do desmedido tamanho de Deus diante do ser humano são vencidos pelo evento da encarnação. Ao se revelar na pessoa de Jesus, torna-se presente na medida de alguém, de qualquer um/a, de todos (Lc 6,38). Por isso, é Jesus mesmo quem permite essa multiplicidade de narrações, e fora dele não é possível dizer sobre Deus. A multiplicação e a pluralidade de narrativas somente são possíveis porque a própria santidade (Deus) assumiu a encarnação em Jesus, em que se diz completamente de uma única vez.

O terceiro e último ponto faz referência ao enquadramento propriamente cristão da linguagem narrativa, que pressupõe sua relação com outros tipos de linguagem que falem da santidade de Deus, tais como a doxológica e as diferentes linhas do pensamento teológico (Theolbald, 2001, p. 54). Contudo, para o autor, o caminho que leva a repensar as narrações na sociedade pós-metafísica leva essencialmente ao reconhecimento de Deus como sujeito principal da narrativa. Não cabe ao narrador dizer Deus, interpretá-lo à luz do que seria si mesmo. Deus é sujeito principal e objeto a ser narrado.

6.  Possibilidades e caminhos para o impacto das narrativas

Em linha com seu colega jesuíta, Bernard Sesboüé amplia a reflexão, propondo-a à luz dos três níveis de historicidade que são inerentes à dizibilidade de Deus. São eles: o nível natural, o humano e o sobrenatural, que constituem a narração bíblica (Sesboüé, 1994, p. 257). Visto que se trata de uma narrativa que atua na história, é necessário reconhecer que “o ato fundador não vive senão pela narrativa, e esta narrativa é, por seu lado, um ato ou um acontecimento” (Sesboüé, 1994, p. 414). Israel se narra e se conta sempre e de novo no caminho de Deus, e, à medida que isso acontece, a narrativa fundadora se cruza com a narrativa de cada situação histórica, particular ou comunitária, potencializando uma apropriação pessoal da história contada.

Nesse sentido, as narrativas da aliança e da salvação estão estruturadas como um encontro duplo de sentido de chamado e resposta. A história não terminada continua hoje em cada tempo e cada pessoa que constitui o presente da história que segue. Na medida em que tomamos a narrativa fundadora, a tornamos nossa e a atualizamos, fazemos com que ela não se perca no passado morto. Afirma Sesboüé[6] (1990, p. 231): “através da narrativa, a recordação permanece viva, continua a fluir e dar sentido a nossa existência”.

Ora, as narrativas que dão sentido à nossa existência não são ingênuas, acríticas ou um mero ato de contar, mas um exercício teológico narrativo que estabelece relação entre os limites da condição humana e a narratividade da salvação como possibilidade de redenção.

Esse é o papel do fazer teológico constituinte das narrativas: encontrar o homem na sua situação de ser finito e pecador, chamado à reconciliação e salvação. Assim, formaram-se os credos, que se tornaram relação entre narrativa e dogma como um resumo de uma vastidão de narrativas expressas em conceitos e categorias cuja função é regular a multiplicidade de narrações. Estes devem ser respeitados para as demais narrativas que serão construídas, de modo a regular e dar forma e coerência ao discurso sobre a salvação. Por isso, é necessário passar de simples contar ou narrar as categorias teológico-doutrinais e buscar narrá-las a fim de criar um vínculo de sentido e transformação prática de seus destinatários.

Resta-nos pensar em como fazer essa transição para categorias teológicas, que colaboram para o alinhamento entre narrativa e Evangelho. Para Étienne Grieu, essa correlação se dá entre narração e argumentação (Grieu, 2016, p. 18). O autor advoga a estreita ligação entre narração e argumentação para afirmar que a correlação permite pensar o récit (a narração), mas não de um tema qualquer: trata-se do tema da aliança entre Deus e os seres humanos. Esta deve ser realizada como um texto aberto, que necessariamente convoca os leitores/ouvintes a entrarem em uma história partilhada de fé, a se permitirem questionar a si próprios e a serem reenviados à sua própria realidade. Para Grieu, a fé cristã abre-se numa história que vem hors du récit, isto é, fora da própria narrativa, porque envolve a percepção humana. Afirma o autor:

Assim, o encontro do verdadeiro Deus é indissociável do engajamento na história e encontra-se precisamente na busca, nos combates de hoje em dia, onde é a maneira como a questão da salvação toma forma. Sem isso, arrisca-se sempre transformar a revelação em gnose, quer dizer, uma certa forma de “récit em boucle”, encerrado em si mesmo (Grieu, 2012, p. 23).

Nesse sentido, no contexto da aliança, a resposta de cada pessoa incorpora elementos de suas referências de mundo, de representações de suas próprias épocas históricas. Uma questão central e decorrente para Grieu é a razoabilidade que o auditor das narrações pode dar ao fato narrado. Normalmente, ele suspende suas reflexões e seu julgamento pessoal, e aceita diferentes elementos da narração que cada um poderia denominar opinião definitiva. Há, por cima da relação narrador/ouvinte, um comportamento ético da parte daquele que narra (Ricœur, 2012, p. 198-198 apud Grieu). Mesmo que seja uma simples proposição, podendo ou não ser seguida, e que o auditor não seja igualmente obrigado a dar crédito, a narração suscita o desejo e abre a possibilidade de credibilizar o narrador. A narração suscita no auditor o que ele tem de mais íntimo: seu desejo que provavelmente toca a vontade determinante de viver (Grieu, 2012, p. 24).

Ao final, questiona-se o autor sobre o que nós podemos perguntar: qual o papel da teologia na consideração das narrativas e da argumentação? Para ele, a teologia é constituída em boa parte pelo desenvolvimento desses debates argumentativos que visam a ajudar os cristãos a elaborar sua resposta – cada vez singular – à oferta da aliança que o Deus de Jesus não cessa de fazer à humanidade (Grieu, 2012, p. 23). Por isso, o discurso teológico não pode unicamente se prender a razões e fórmulas. Levando-se a sério o convite de entrar na dinâmica da aliança, é necessário confrontá-lo às visões do mundo, de Deus e do ser humano, até que o mundo presente se sinta tocado pela Boa Nova.

Como então podemos falar da articulação narrativa e dos argumentos teológicos? A partir da consideração de que a fé é a resposta ao convite para entrar na história da aliança com Deus, a humanidade se tornou particularmente sensível a essa dinâmica. A questão é que, por vezes, os auditores das narrativas efetivam o fenômeno denominado por Grieu de blocage, ou seja, corre-se o risco de remover da pessoa a possibilidade de fazer seu retorno à sua realidade, o que lhe permite entrar em outros mundos imaginários que não correspondem ao da aliança que se faz histórica.

Aqui se apresentam duas tentações para as Igrejas e seus componentes, que são bastante presentes nos tempos atuais e aparecem notadamente nos meios digitais. Por um lado, renunciar a confrontar o que elas descobrem em relação à história da salvação, que acontece nas trocas entre linguagens e racionalidades atuais, e, por outro lado, proteger-se atrás de elaborações sistemáticas que pretendem resolver e dar fórmulas para todas as tensões da economia da salvação. Nos dois casos, destaca Grieu, cede-se ao “espírito do mundo”: a segurança de uma identidade bem definida ou de uma estrutura que coloca em segundo plano a confiança em Deus que acompanha a história à medida que as distorções se estabelecem por cima do significado da Palavra.

Nessa dinâmica, a perspectiva de ver a teologia e o fazer teológico como lugar de correlação entre dois elementos essenciais (narração e argumentação), pode implicar que nenhuma das partes se faça compreender. Por um lado, manter a argumentação é indispensável à narração para a compreensão do que foi ressignificado a partir dela; por outro lado, isso permite formalizar o que foi deslocado à luz da narração mesma. Neste caminho, o pensador obriga o crente a se explicar, a dizer o que ele descobriu e igualmente a escutar o que os outros encontraram. Nessa perspectiva, a narração impede o discurso de esquecer que ele não pode pretender conter em si todas as possibilidades de compreensão, como se fossem fórmulas. É desse modo que o narrador lança sem cessar novos desafios a seu ouvinte.

Nesse jogo de narração e argumentação, o crente é chamado a responder de forma pessoal ao convite que ele percebe da Boa Nova. Nesse engajamento da liberdade de todo seu ser, ele se reconecta com sua própria experiência e a revisa em grande parte. Segundo Grieu, (2012, p. 21), encontra-se uma contribuição preciosa que as Igrejas podem dar ao mundo, sempre tentado a separar-se da própria realidade, confiando em seus ídolos que inevitavelmente acabarão por silenciar os humanos e sua própria existência.

Conclusão

Percorremos um longo caminho para perceber que o dizer do Evangelho na contemporaneidade exige um processo mais amplo do que simplesmente recontá-lo nos mais diversos canais.

Detivemos nossa atenção no fenômeno dos “anúncios” realizados nas redes digitais, sob a pretensão de evangelizar. Encontramos, no decorrer de nosso texto, elementos que nos permitam responder às duas questões propostas no início. Não se trata de limitar, restringir ou desmerecer os canais de comunicação digital que estão postos e consolidados. Trata-se, antes, de colocar a discussão acerca do conjunto dos elementos básicos da teologia à luz da Teologia Narrativa, os quais podem ser determinantes para a compreensão e efetivação de um processo que possa ser efetivamente denominado evangelização.

Em última instância, temos um ponto de convergência que, acima de todas as especificidades técnicas e intencionais e das aparentes exigências do tempo presente, toca àqueles/as que comunicam o religioso nos meios digitais. O Evangelho igualmente traz em si suas especificidades, pois não consiste unicamente em uma história a ser recontada como um conto que pode ser consumido de forma fragmentada e interpretado à revelia, mas, acima de tudo, é Palavra anunciada que, quando pronunciada, deve buscar realizar através da história presente a ampliação do exercício de sermos cristãos/ãs, levando-nos a assumir, à luz da transformação de si, os desafios da transformação dos contextos, como nos recorda a Evangelii Nuntiandi, 19: “A Igreja procura transformar mediante a força do Evangelho, os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade que estão em contraste com a Palavra de Deus e o desígnio da Salvação”. Nesse sentido, podemos e devemos, sim, fazê-lo por todos os canais de comunicação.

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Notas

[1] Utilizaremos as siglas IDs – para Influenciadores Digitais e IDCats – para Influenciadores Digitais Católicos.

[2] Queremos destacar o clássico estudo linguístico e narrativo de Paul Ricœur, em especial nas obras Temps et récit e Soi-même comme un autre; de J. B. Metz em Breve apología de la narración [in: Revista Concilium n. 85 (1973), p. 233] — em que explicita cinco aspectos da narrativa de Deus: 1) narrativa e experiências ordinárias; 2) caráter prático e performático da narração; 3) sentido pastoral e crítico-social da narração; 4) narração com link entre salvação e história, e 5) história recontada que se converte em prática —, e de Eberhard Jungel, que ressalta na obra God as the Mystery of the world: on the Foundation of the Theology of the Crucifiedone in the Dispute between Theism and Atheism (New York: Bloomsbury Publishing, 2014), em especial no último capítulo, a dizibilidade de Deus a partir de sua humanidade.

[3] Theolbald, C. Le christianisme comme style. Paris: Editions du Cerf, 2007. Utilizo esta versão na escritura deste texto.

[4] O projeto de expressar a identidade cristã em termos estilísticos não é original do autor. Ele mesmo elege Friedrich Schleiermacher e Balthazar como base de sua construção teológica, conforme explicado na p. 51 da referida obra.

[5] Theolbald, C. Le christianisme comme style. Paris: Editions du Cerf, 2007, p. 85. Afirma o autor: “O estilo, que não é outra coisa senão esta finesse sapiencial que nasce do próprio seio da hospitalidade aberta do Nazareno – sua santidade comunicativa [...] que ao mesmo tempo a gera: isto é, a capacidade de ver e entender, no que é necessário ser visto e entendido, a invisível e inaudível concordância de qualquer um consigo mesmo, como aquela que funda sua unicidade.”

[6] Sesboüé, B. Jesucristo el único mediador: ensayo sobre la redención y la salvación. Ed. Secretariado Trinitario, Koinonía 27, Salamanca, 1990.