Ricoeur e o tema do perdão

Ricoeur et la méditation sur le pardon

Constança Marcondes Cesar
Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora Adjunta (aposentada) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professora Titular (aposentada) da PUC – Campinas.cmarcondescesar@gmail.com


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Resumo: Estudaremos como o tema do perdão surge ao longo, da reflexão de Ricoeur, no La mémoire, l´histoire et l´oubli, à meditação sobre o perdão difícil.

Palavras-chaveMemória; História; Esquecimento; Perdão difícil.

Résumé: On va étudier comment le thème du pardon surgit dans la réflexion de Ricoeur, jusqu’à aboutir, dans l’œuvre La mémoire, l´histoire et l´oubli, à la méditation sur le pardon difficile.

Mots-clés: Mémoire; Histoire; Oubli; Pardon difficile.


Quando escolhi o tema do perdão difícil que aparece como epilogo da obra Ricoeur, La Mémoire, l´histoire et l´oubli (RICOEUR, 2000), não podia imaginar o impacto que a releitura do texto provocaria em mim, pela espantosa atualidade que apresenta, vinte anos depois de sua publicação e quinze anos após a morte do filosofo.

Lembro também que o jovem Ricoeur, preso pelos alemães em um campo de concentração, com outros intelectuais, era muito bem tratado pelo oficial responsável pelo campo. Os alemães queriam parecer civilizados, respeitando os prisioneiros intelectuais. Ricoeur não se sabia o que se passava no campo de concentração – lugar de morte e de violências inauditas – descobrindo a amplitude do ocorrido só após a sua libertação, no fim da guerra.

O filosofo preparou, com anotações que fizera durante o tempo de prisão, o que ulteriormente viria a ser sua tese de mestrado.

O percurso Ricoeur acha-se retratado no Réflexion faite, sua auto-biografia intelectual (RICOEUR, 1995. Esse texto reúne ensaios de origem diversa e é a versão francesa da obra The Philosophy of Paul Ricoeur, publicada na série The library of Living Philosophers, editado originalmente em Chicago, pela Open Court, em 1995.

A versão francesa está acrescida da contribuição do diretor da Révue de Méthaphysique et de Morale, no número do Centenário da revista publicado em 1994; é intitulada De la Méthaphysique à la Morale.

Entre 1991 e 1995 Ricoeur discutiu em diversos textos, o conceito de responsabilidade, mostrando as suas implicações éticas.

A dupla dimensão da responsabilidade, em relação à natureza e à vida política, é abordada nesses escritos: passando pelo posfácio ao Temps de la responsabilité, pelo Fragility and Responsability, a entrevista a Aeschlimann no Éthique et resposabilité, culminando no Le Juste. Essa ampla reflexão faz surgir o contorno de uma ética exigida pelo tempo em que vivemos. Ser responsável é ser fiel, é entregar-se à busca da eficácia das ações, em relação ao presente e ao futuro.

A responsabilidade, na ética contemporânea, ultrapassa as ideias de reparação de danos, de suportar castigo; ou seja, de imputação, reparação, punição – e envolve hoje, conceitos novos: o de dever, de obrigação moral e também o de solicitude para com outro que está a nosso encargo, diz Ricoeur inspirado em Hans Jonas e Levinas.

Supõe a busca da preservação da humanidade futura: responsabilidade, precaução, prudência – herdando nesses termos, algo do conceito antigo de phrónesis, sabedoria.

No âmbito da meditação sobre a responsabilidade estão presentes na filosofia contemporânea, a tragicidade e o paradoxo da nossa condição: o conflito inelutável entre a violência e o poder no próprio Estado democrático: a competição política.

Daí Ricoeur dizer que é preciso refletir sobre os efeitos negativos das ações, identificando os responsáveis; explicitar o alcance, no espaço e no tempo, da responsabilidade individual; refletir sobre os riscos desencadeados pela utilização sem limites da técnica; sobre a negligência quanto aos resultados da ação e sobre a responsabilidade exagerada que impossibilita o agir.

Contra a impessoalidade que caracteriza o problema da ação no mundo contemporâneo, Ricoeur evoca a meditação sobre a identidade como caminho privilegiado para devolver o homem a si mesmo. Trata-se de tornar o homem centrado em sí, capaz de reconhecer, no sí que o fundamenta, o ponto de acordo com todos os homens.

É para o homem assim centrado, capaz de vivenciar, pela poesia e pela arte, alternativas de ser, que a responsabilidade assume as conotações de prudência e de amizade à a totalidade do existente – expressas pelo sim à vida da natureza e da comunidade.

No plano político a responsabilidade é a garantia da justiça e a proteção contra a violência e arbitrariedade, em nome de uma moral da justa medida.

Ricoeur não ignora que o homem, no mundo contemporâneo, tornou-se um perigo para si mesmo. Reconhece, com Jonas, que a natureza e a sociedade estão ameaçadas pelo surto desordenado da técnica.

Mas sua filosofia não é caracterizada pelo medo, mas pela fé nas virtudes da solidariedade, da prudência; assinala também o papel decisivo dos filósofos, na busca de valores comuns; e reitera que a democracia é o lugar privilegiado da sua expressão.

São intoleráveis, para nosso filosofo, o açambarcamento pelo Estado, da pretensão à verdade do discurso; no plano religioso, a pluralidade das religiões não pode se tornar campo de conflitos – trata-se de buscar o diálogo entre todas as religiões, porque Deus, o absolutamente outro, se revela não só através de uma religião mas também por intermédio das outras Escrituras; implica a tolerância, o diálogo entre cristãos e leigos, cristãos e sacralidades não-cristãs -  ou seja, à abertura a diferentes conjuntos simbólicos.

É intolerável o intolerante, porque não respeitoso; e o poder político, quando tenta se apropriar da verdade – pois cabe ao Estado expressar a justiça – “ascese do poder” – e não o impor a sua verdade.

No plano filosófico a tolerância consiste na tentativa de superação dos conflitos das interpretações, mediante o reconhecimento da pluralidade da verdade, pela valorização do anti-dogmatismo e também pela busca da articulação de hermenêutica rivais.

Inspirando-se em Lenhardt, Van der Leeuw, Eliade, Ricoeur faz da hermenêutica um instrumento de escuta, descrevendo e compreendendo a linguagem simbólica, buscando o denominador comum de hermenêuticas opostas.

A tolerância é uma das formas da justiça; está ligada à não-violência, cujo modelo paradigmático é Gandhi, que expressou, na resistência não-violenta, a sua busca da verdade.

Nessa perspectiva, a amizade, o amor a todos os homens tornam-se as virtudes politicas por excelência, que conduzem a uma civilização universal, na qual diferentes culturas dialogam.

A descoberta da pluralidade das culturas é a descoberta da alteridade e “de nós mesmos, como um outro entre os outros”, diz Ricoeur no seu Histoire et Vérité (RICOEUR, 1967, pp. 265-356).

O tema reaparece na obra de Ricoeur, Parcours de la Reconnaissance. Trois études (RICOEUR, 2004).

Segue-se um opúsculo, Amour et Justice (RICOEUR, 2008), no qual Ricoeur diz que “falar de amor é muito fácil, ou então muito difícil” (...) e para falar sobre isso é preciso que nos guiemos “pela dialética do amor e da justiça”, reconhecendo “a desproporção inicial entre os dois termos”, e buscando “as mediações práticas entre os dois extremos – mediações (...) sempre frágeis e provisórias” (RICOEUR, 2008, p. 15).

A reflexão - só a reflexão - pode oferecer-nos um caminho para a superação do conflito entre a exigência de justiça e a capacidade de fazer tal julgamento: imitar Cristo, nosso “mestre interior” (RICOEUR, 2008, pp. 86-88).

O tema reaparece na obra de Ricoeur Parcours de la reconnaissance. Trois études (RICOEUR, 2004).

O texto La Mémoire, l´histoire et l´oubli (RICOEUR, 2000) fala dos julgamentos que se seguiram ao término da guerra, através dos quais a França tentava pacificar os ódios levantados pela colaboração de alguns com os alemães e pela co-responsabilidade que assim assumiram perante os vencedores da guerra.

A meditação de Ricoeur deixou-me, em plena pandemia, sob o impacto da espantosa semelhança, no mundo atual, da obscuridade e da violência, que vem matando os menos favorecidos, de fome, da doença sem cura, e celebrando a negação da gravidade do problema que atinge a todos e que implica uma mortandade mais eficaz que a produzida por qualquer guerra.

No texto Ricoeur, La Mémoire, l´histoire et l´oubli, o perdão aparece como o horizonte comum da memória, da história e do esquecimento (RICOEUR, 2000, p. 593). O perdão não é fácil, não é impossível – é difícil de dar e de receber – mas é um caminho a ser trilhado.

A dificuldade – o perdão difícil – ocorre pela disparidade, a desproporção entre a falta e o perdão: a profundidade da falta e a estatura do perdão, a altura, a grandeza do perdão. É pela complexidade e disparidade entre os dois extremos abarcados pela reflexão sobre o perdão que se põe o problema.

Tem implicações jurídicas, políticas e morais, e envolve a questão da imputabilidade.

No nível jurídico, esbarra no caráter imprescritível dos crimes cometidos contra o ser humano; e nos planos político e moral, nas punições que implicam a discussão da cidadania e da justiça, e tornam a mera boa vontade impossível de ser assumida em caráter institucional.

O pedido de perdão – quando ocorre – supõe a igualdade e a reciprocidade entre os cidadãos que recorrem a ele. Supõe que o pedido e a oferta do perdão estejam equilibrados, diminuindo os atritos e promovendo a pacificação social. Supõe também que o pedido de perdão e a promessa de cessar as hostilidades – apesar da imputabilidade do crime ser reconhecida – esbarram na promessa de reconhecimento, por parte do acusado, da imputabilidade do crime.

A meditação de Ricoeur põe em cena a problemática da memória - que precisa tornar-se memoria feliz e apaziguada – graças ao perdão, que conduz à superação – ou seja, ao esquecimento do conflito – e que instaura a possibilidade de um recomeço, de uma reconciliação entre os grupos opostos, no plano da ação prática.

A equação do perdão, ou seja, sua conscientização – em Ricoeur principia pelo exame dos dois elementos que a compõem: o primeiro é a profundidade da falta cometida, que se caracteriza como o pressuposto existencial do perdão (RICOEUR, 2000, p. 595).

É fundamentalmente no plano do sentimento que se dá a experiência da falta, assim como as de fracasso e solidão, como assinalou Jean Nabert na sua ética, citado por Ricoeur (2000, p. 596). E também a de culpa, entendida como situação – limite, análoga às da morte, do sofrimento, da luta, conforme Jaspers apontou, assinala Ricoeur (2000, p 596).

A falta evidencia que o ato é nosso, ou seja, põe em relevo a imputabilidade do ato, condição de poderem existir culpa e perdão (RICOEUR, 2000, p. 596).

A imputabilidade supõe ainda a existência do homem capaz e a permanência em nós de um nós-mesmos, pela memória. E ainda implica uma compreensão fenomenológica da memória, na confissão da falta, que estabelece o laço entre o ato e o sujeito agente.

A falta cometida por alguém está relacionada ao mal: “o mal sugere sempre a ideia de um excesso, um exagero insuportável” (RICOEUR, 2000, p. 600): injustiça, crueldade, baixeza, desigualdade extremas (RICOEUR, p. 601), associadas a uma negação do valor do outro, que se exprime pelo “assassinato (...) morte infligida a outro, ápice da vontade de fazer o outro sofrer, por meio de um ódio que o desqualifica” (RICOEUR, 2000, p. 601).

No plano da justiça penal, esse tipo de comportamento, que produz o irreparável, gera como contrapartida o imprescritível da pena.

Mas no plano das narrativas míticas sobre a origem do mal, abre-se, contudo, um lugar para o perdão como veremos, diz Ricoeur (2000, p. 603).

O segundo tópico da equação do perdão põe em relevo a altura: o perdão; ou seja, aborda a meditação sobre a possibilidade de superação do mal.

O imperdoável é a expressão que surge quando se constata a imensidão do sofrimento das vítimas; e é sinônimo de injustificável. Aplica-se ao culpado do crime nos planos do Direito e da Ética.

Se o perdão fosse possível nesses planos, constituiria um mal moral; implica também a imputabilidade das ações ao seu autor, como assinalaram Hartmann e Kodalle, invocados por Ricoeur (2000. pp. 604-605).

Apesar disso, nosso filósofo assinala: “existe perdão” conforme Levinas apontou. O perdão e o amor são da mesma família, diz ele. E Ricoeur evoca São Paulo, que na Primeira Epístola aos Coríntios (RICOEUR, 2000, pp. 604-605), ao falar da caridade – dom espiritual – a põe em primeiro plano, superando todos os outros dons espirituais.

No segundo tópico do seu texto, Ricoeur aborda A Odisseia do espírito do perdão: A travessia das instituições, considerando a culpabilidade criminal, a política e a moral.

No plano social institucional a falta é vinculada à regra social da culpabilidade (RICOEUR, p. 608). De que modo isso se dá? Através da vinculação entre culpa e punição. Onde existe regra e infração da regra, há punição.

Ricoeur invoca um texto de Jaspers, A culpabilidade alemã, para assinalar as diferenças entre quatro tipos de culpabilidade: “a culpabilidade criminal, que viola leis e cujo efeito é o castigo; a culpabilidade política quando o cidadão pertence ao mesmo grupo político dos criminosos do Estado; a culpabilidade moral, que se refere aos atos individuais que contribuíram para os crimes do Estado; e a culpabilidade que é solidária do fato de o ser humano ser ligado a uma tradição transhistórica do mal” (RICOEUR, 2000, p 608) .

A primeira afirmação é de que a culpabilidade criminal é imprescritível.

No século XX, foram postos no mesmo plano da culpabilidade criminal os crimes injustificáveis, julgados em Nüremberg, Tóquio, Buenos Aires, Paris, Lyon e Bordeaux e perante o Tribunal Internacional de Haya.

Ou seja, estão nessa categoria os crimes de guerra, injustificáveis; os crimes de violação dos direitos da pessoa humana, em razão de pertença a uma raça ou classe social. E também os crimes cometidos por cidadãos que apoiaram o mesmo corpo político de criminosos do Estado. Cabe a eles a culpa moral, que se vincula esse apoio.

Finalmente, Ricoeur aborda a culpa metafísica, associada à condição humana numa tradição transhistórica do mal.

Examinando a culpabilidade criminal e o imprescritível, Ricoeur mostra que o século XX trouxe para o primeiro plano essa categoria de crimes, nos Tribunais Internacionais que julgaram os crimes de genocídio. O problema que se põe é o do perdão, como tentativa de superar os conflitos e de reestabelecer a paz social.

Mas o caráter imprescritível dos crimes cometidos impede esse tipo de paz. O perdão dos crimes corresponderia a perdoar o imperdoável, ratificar a impunidade, injustiçar as vítimas desses crimes: “não há castigo apropriado a um crime desproporcional” (RICOEUR, 2000, p 613).

Os crimes são imprescritíveis; mas é preciso levar em consideração as pessoas.

E o que Ricoeur assinala é: “que o horror a crimes imensos impeça de desvincular esse horror de seus autores, é a marca de nossa incapacidade de amar absolutamente”. Evocando as contribuições de Jankélevitch, Ricoeur assinala: “o perdão é forte como o mal, mas o mal é forte como o perdão”. E evocando Freud, refere-se à gigantomaquia “onde se confrontam Eros e Thanatos” (RICOEUR, 2000, p. 614) - o Amor e a Morte.

O significado dessa incerteza, veremos ao longo do texto, marca toda a reflexão de Ricoeur sobre o tema. Distingue a culpa política dos cidadãos assim como “as politícas de responsabilidade criminal”, examinadas pelos Tribunais que regem o curso dos processos (RICOEUR, 2000, p. 615).

Porém mais importante que a punição e até mesmo a reparação, é a palavra de justiça que estabelece publicamente as responsabilidades de cada um dos protagonistas e designa os lugares respectivos do agressor e da vítima, em uma relação de justa distância (RICOEUR, 2000, p. 615).

Nesse julgamento deve haver também lugar para o perdão, evitando a violência, mediante a clemência e a magnanimidade na atribuição das penas. O terceiro tipo de culpa assinalado por Ricoeur é a culpa moral. Aqui o filósofo examina a má vontade e as implicações dela nos atos individuais que contribuíram para aceitação da atividade criminosa de políticos e do corpo político. Não se trata mais de responsabilidade política, mas de responsabilidade pessoal pela recusa de amar e de se interessar pela sorte do outro. Aqui a honestidade intelectual é essencial. São obstáculo a justiça a cegueira voluntaria e a recusa de saber, o esquecimento passivo; mas também a autoacusação ostensiva, característica de partidários dos totalitarismos, e as guerras que esmagam minorias étnicas, culturais, religiosas.

E Ricoeur indaga: “os povos são capazes de perdoar? (RICOEUR, p. 615). A mistura do privado e do público, em tais julgamentos, parece dificultar e até mesmo impedir a conciliação entre os povos. Kodalle, citado por Ricoeur, afirma que “O amor e o ódio funcionam de modo diverso na escala coletiva da memória” (RICOEUR, 2000, p. 618). Trata-se remediar essa situação exaltando a confraternização, favorecendo a correção das relações, a moderação e a clemência, para superar os ódios herdados e a violência que opõe pessoas e povos. Mansidão, moderação e clemência devem ser as linhas – mestras da relação com o estrangeiro, inimigo ou ex-inimigo. Trata-se de aprender a narrar de outro modo as relações humanas, valorizando a consideração entre povos e pessoas, valorizando perdão (RICOEUR, 2000, p. 618). Em vez de enfatizar o imperdoável, trata-se de celebrar a troca entre o pedido e a oferta do perdão – de modo que o imperdoável comece a se desvanecer (RICOEUR, 2000, p. 619).

O terceiro tópico Ricoeur aborda é intitulado A Odisseia do espírito do perdão. O revezamento da troca.

Nele nosso pensador assinala que fora do círculo de acusação e punição, há um lugar para o perdão. Lugar marginal, por que há casos em que o perdão não é solicitado, nem o crime confessado.

Apesar de Derrida afirmar que o perdão pode ser concedido mesmo quando não é solicitado, Ricoeur sublinha que há sempre uma relação bilateral, entre a solicitação do perdão e sua concessão.

Contudo há situações em que os culpados não reconhecem a falta cometida e há um difícil trajeto entre a confissão do culpado e a concessão do perdão por parte das vítimas.

Muitas indagações surgem em torno da falta e do perdão. A primeira é: pode-se perdoar quem não confessa a sua culpa? Quem concede o perdão, precisa ser aquele que foi ofendido? Em qualquer caso pode acontecer de se recusar a concessão do perdão; mais ainda, a concessão tem que respeitar a dignidade do culpado; o círculo de ofendidos pode ser amplificado, abarcando não só a vítima direta, mas também os que têm laços com ela podem exigir reparação – pondo-se assim o problema da extensão da culpa e do perdão. Ou seja: há possibilidade de se falar em culpa coletiva e perdão oferecido por uma coletividade? Nessa indagação, a verticalidade do perdão esbarra na horizontalidade da sua concessão.

Em breve nota de rodapé nas páginas 620 e 621 do texto que examinamos, Ricoeur evoca as crises contemporâneas na América, no Japão, na África do Sul; lembra também os excessos cometidos pelas Cruzadas e pela Inquisição – que só podem ser superados pela solidariedade e o amor, na perspectiva ensinada por Santo Agostinho.

Ricoeur assinala ainda que a contrapartida do dom não é receber algo em troca, mas devolver algo, dar algo. Assim Ricoeur abordou os paradoxos contidos na economia do dom. No segundo tópico, dom e perdão, põe em primeiro plano o mandamento de amar os inimigos sem esperar qualquer recompensa. Ou seja, mesmo que o inimigo não tenha pedido perdão, é preciso amá-lo tal como ele é, pondo em questão a reciprocidade do dar e receber. Conceder o perdão supõe uma retribuição, ao menos a do reconhecimento do dom oferecido. Mas também “esmaga o beneficiário com o peso de uma dívida que não tem resgate” RICOEUR, 2000, p. 624). Repetindo a regra proposta por Jesus Cristo, nosso filósofo recorda que o Mestre ensinou que amar quem nos ama é fácil; o difícil é amar os inimigos sem esperar nada de troca (RICOEUR, 2000, p. 625).

Citando a obra de Sophie Pons, Apartheid. L´aveu et la parole, publicada em Paris no ano 2000, Ricoeur assinala que o perdão era concedido a criminosos de guerra, sob a condição de confissão completa que provasse a motivação política dos crimes (RICOEUR, 2000, pp. 626-629).

Ao contrário dos processos criminais de Nüremberg e Tóquio, o propósito não era punir, anistiar, dar imunidade coletiva - mas empreender a justiça reparadora, estabelecendo a reconciliação no plano político.

Mas como indenizar nos planos moral, terapêutico, político? Promovendo um exercício público de memória e do luto, fazendo emergir uma catarse dos males abrindo caminho para o verdadeiro perdão. Do lado dos acusados pedir perdão significava escapar da punição final, mediante a auto-denúncia pública, que produzia anistia ao preço da verdade e recompensava confissões sem arrependimento, além de esbarrar na recusa de chefes políticos vencidos de pedirem perdão, expressando seu desprezo pelos vencedores (RICOEUR, 2000, pp. 628-629).

A dupla face da troca entre confissão e perdão vem à tona: as feridas abertas entre facções rivais que precisavam partilhar a vitória; a discriminação que auditorias públicas não puderam superar; o fato de que os vencidos não perdoam os vencedores e que a tentativa de superação dos conflitos, esbarrava no problema da memória e do luto, que apreende verdades brutais na discussão pública na qual ocorria tentativa de estabelecer a reconciliação.

Era como se Verdade e Reconciliação – nome da comissão que tentava trazer a paz pública de volta – esbarrasse sempre na dificuldade de relacionar perdão, troca e dom, assinala nosso filósofo.

O quinto item do texto de Ricoeur aborda O retorno a sí. Trata-se de investigar o problema que se evidenciou no centro mesmo da ipseidade: como ter coragem de pedir perdão? Quem tem o poder de perdoar? Dois temas serão abordados por Ricoeur no desenvolvimento desse tópicoo primeiro relaciona perdão e promessa; o segundo, trata de desvincular o agente do seu ato.

É a Hannah Arendt que Ricoeur se atém, examinado a obra da pensadora: A condição do homem moderno. Trata-se aí, de estudar a importância de uma simbologia antiga: a de ligar – desligar e de considerar a dialética entre o perdão e a promessa, para entendermos como se expressam as capacidades humanas, no âmbito das implicações da ação no campo da vida humana. A ação está ligada ao labor, à obra, que vinculam as estruturas antropológicas ao nexo entre o que é fundamental e o que é histórico. A temporalidade da ação distingue entre os seguintes termos: o labor, que se conclui na sua realização, a obra, que dura mais que seus autores; a ação, que se liga ao tempo, ao cuidado, à oposição do falar e do agir no espaço político. Que é que isso significa? Que o que foi feito, não poderá ser revertido, ou seja, estamos perante o irreversível, quer dizer, o que passou não pode ser refeito nem anulado. O remorso por sua vez, desejaria desviver o já vivido, apagá-lo; mas está ligado ao irrevogável, ao irreparável. O que foi feito não pode deixar de existir, de ter sido cometido, de estar ligado ao imperdoável do luto.

Como passar então à consideração do poder de perdoar e de prometer mudanças? É possível fazer isso porque apesar da irreversibilidade do já feito, sempre podem existir perdão e promessa. Na obra A condição do homem moderno, de Arendt – citada por Ricoeur – é na linguagem que reside a faculdade de perdoar, de fazer e manter promessas. Perdão e promessa se apoiam em experiências que envolvem a presença do outro. Ocorre na dimensão política do viver: “o poder de perdoar, é um poder humano” (RICOEUR, 2000, p. 632); surge quando se supera a busca de vingança e castigo, em razão de males infligidos por outrem; mas tem também uma dimensão religiosa, a qual interrompe o laço entre ofensa e castigo.

A promessa supõe que o homem possa “dominar o futuro, como se se tratasse do presente” (RICOEUR, 2000, p. 633); e essas promessas se inscrevem na vida política mediante tratados, que procuram tornar as promessas invioláveis “como memória da vontade”, superação do esquecimento(RICOEUR, 2000, p. 633), inscrevendo-as no campo político.

Ricoeur mostra, contudo, que o amor é mais amplo que os tratados. E o filósofo chama a anistia de “caricatura do perdão” – porque ela é “a forma institucional do esquecimento” (RICOEUR, 2000, p 634). Nosso pensador faz assim, um jogo de palavras: relaciona anistia e amnésia. Para Ricoeur perdoar não é esquecer. A memória, ligada à promessa, é memória de sí mesmo, para o homem capaz de vincular-se ao futuro (RICOEUR, 2000, p. 364). Não se trata tampouco de perdoar anulando a liberdade: e Ricoeur evoca como símbolo dessa anulação da liberdade, a figura do Grande Inquisidor, no romance de Dostoiewsky, Os irmãos Karamazov. Assimilado à figura do Anti-Cristo, o Inquisidor representa a anulação da vida e do respeito ao homem, conforme assinalou, uma vez mais, Hannah Arendt, evocada pelo filósofo. O polo a ser lembrado, como antitético àquele que perdoa – anulando a liberdade de quem recebe o perdão – é, para Arendt – e também para Ricoeur – o amor: o ágape, a philia politiké (RICOEUR, 2000, p 635).

No estudo de Arendt, A condição do homem moderno  examinado por Ricoeur – a pensadora evoca o milagre da ação, na origem do milagre do perdão. A faculdade de perdoar é, para ela, a faculdade de inovar, de tornar a ação algo de semelhante a um milagre – porque “os homens nasceram, não para morrer, mas para inovar” (RICOEUR, 2000, p. 636), diz ela, citada por Ricoeur.

Apesar disso, o filósofo critica Arendt: a análise da faculdade de perdoar deve lançar, na verdade, a reflexão sobre o vínculo entre o agente e o seu ato. O perdão deveria, diz Ricoeur, explicitar a possibilidade de desligar o agente do seu ato. É sobre esse tema que se prolonga meditação de Ricoeur. Assinala a contradição entre a confissão da culpa e o culpado assumindo a sua falta. Isso não impede, diz o filósofo, que os códigos penais punam as pessoas. Então esse jogo entre a infração da lei e a punição de pessoas – torna o perdão impossível.

Mesmo em casos excepcionais de perdão, o tríplice plano: culpa criminal, culpa política e culpa moral – dificulta a concessão do perdão, por causa da impossibilidade de separar o agente do seu ato.

Essa impossibilidade reestabelece, diz Ricoeur, um abismo entre a culpa e o perdão.

Dissociando o autor de seu ato, o perdão se torna possível, mediante um ato de fé dirigido aos recursos de regeneração do sí, presente em todo ser humano.

O caráter paradoxal dessa confiança é assumido pelas religiões judaico-cristãs, pressupondo que o perdão possa ser ligado ao arrependimento – e não à mera confissão da culpa.

O arrependimento significa uma busca de retorno a Deus, de quem o culpado teria se afastado. E Ricoeur evoca o batismo proposto por João Batista, referido nos livros da tradição judáico-cristã, como um símbolo da metanóia, do retorno à condição inaugural, que antecedeu a falta. Nosso filósofo se refere também aos trabalhos do Centro J. Festugière, que estudou o entrecruzamento do tema do arrependimento na Bíblia e o do retorno ao Princípio, no neo-platonismo. Evoca ainda no Novo Testamento, o Evangelho de São Marcos, que lembraria o papel do arrependimento na metanóia entendida como conversão (convertio, em latim) (RICOEUR, 2000, p. 638). Evoca também as Enéadas de Plotinoque se referem à epístrofe: retorno, reviravolta, volta ao Princípio, como regeneração do ser humano; e assinala, em Proclo, o retorno ao Princípio, à Unidade Primordial, à identificação com a totalidade divina.

Estaríamos, assim, diante de algo implicado no próprio ato do arrependimento: a celebração do amor, e de sua grandeza: a conversão profunda que supera o mal. “Por mais radical que seja o mal (...) ele não é originário (...) Radical é a tendência ao mal, originária é a disposição ‘ao bem’ ”,  assinala Kant, citado por Ricoeur. Um longo comentário do pensador francês sobre as teses kantianas, assinala nelas a evocação da tendência primitiva do homem ao bem. E o problema que se destaca, no percurso de Ricoeur através das diferentes obras de Kant, é o enigma do poder. O perdão significa que o culpado de crimes pode recuperar sua capacidade de agir corretamente, por causa da palavra libertadora do perdão, a qual assinala ao culpado “que ele vale mais do que seus atos” (RICOEUR, 2000, p 642). Kant, invocado por Ricoeur, teria solucionado dessa forma exemplar a contradição perdão – culpa.

No item V do tema O perdão difícil, Ricoeur recapitula o itinerário feito, e indaga: “O que acontece com a memória, a história e o esquecimento, tocados pelo espírito do perdão? A resposta a esse questionamento, dá-se no Epílogo [do livro de Ricoeur] (RICOEUR, 2000, p. 642).

Recapitular a trajetória feita, não é, diz nosso pensador “uma fenomenologia, nem uma epistemologia, nem mesmo uma hermenêutica, mas é [o discurso] da exploração de um horizonte de realização de uma cadeia de operações constitutivas desse vasto memorial do tempo, que inclui a memória, a história e o esquecimento” (RICOEUR, 2000, p. 642).

O pensador diz ainda, que só tardiamente identificou o laço entre o espírito do perdão e o horizonte dos seus estudos: o da busca da felicidade.

O primeiro tópico da recapitulação do conhecimento alcançado no percurso desses estudos é o da meditação sobre a memória feliz; o segundo, o da indagação sobre a história infeliz; o terceiro trata do perdão e o esquecimento.

É entrelaçando os resultados obtidos em relação aos três tópicos, que Ricoeur concluirá sua contribuição.

Em que consiste a memória feliz? A descrição fenomenológica apresentada por Ricoeur envolve a fidelidade ao passado – a qual não é mera descrição de um dado, mas um voto, uma aspiração. E que “como todos os votos, pode ser traído” (RICOEUR, 2000, p. 645). O desejo (ou esperança) da fidelidade ao acontecido é “uma pretensão ou reivindicação” de que algo ausente, marcado pela distância temporal, seja revivido através de uma evocação das imagens a ele atinentes (RICOEUR, 2000, p. 643). O perdão aparece assim não mais apoiado na confissão dos crimes, mas na reconciliação, através do reconhecimento do outro. A memória feliz é a memória apaziguada; é nela que se inscreve para Ricoeur, o tema do perdão, entendido como “consideração dirigida à dignidade do outro” (RICOEUR, 2000, p. 645) – mesmo que o outro seja um antigo inimigo.

O segundo tópico que Ricoeur aborda, consiste na recapitulação dos resultados de suas investigações sobre a história infeliz. Examinando o projeto de dizer a verdade, que a história se propõe, nosso pensador estuda a fidelidade da memória na busca do reconhecimento do outro. Nesse estudo o filósofo nos diz do abismo entre os dois propósitos: a busca da verdade e de fidelidade da história – e o reconhecimento do outro, pela memória. Há uma contradição apontada por Ricoeur, entre esses dois propósitos, cujo ápice é atingido quando se constata que a história pode ampliar, completar, corrigir e até refutar o testemunho da memória sobre o passado – mas não pode abolir o passado (RICOEUR, 2000, p. 647).

A memória sempre permanece como “guardiã da última dialética do (...) passado, a saber a relação entre o ‘não mais’ e o ‘ter sido’ que resguarda o caráter originário do passado e nesse sentido [é indestrutível]” (RICOEUR, 2000, p. 648).

Sabemos que algo aconteceu, que algo marcou “nossos corações e corpos” e precisa ser dito, narrado, retomado. Mas seu conhecimento é precário.

Ricoeur põe em relevo a constituição frágil do conhecimento histórico: de um lado essa possibilidade decorre do historiador tentar recontar, revisar, reconstruir o acontecido; de outro, “a competição entre a memória e a história, entre a fidelidade a uma e a verdade da outra, não pode ser resolvida no plano epistemológico (...) o phármakon da escrita é veneno ou remédio?”, pergunta Ricoeur.

Diz ele: O trabalho da história carrega “a carga dos mortos de outrora, dos quais somos herdeiros (...)”. É um trabalho de “sepultura escrita” (RICOEUR, 2000, pp. 648-649), de luto.

Por sua vez, o trabalho da memória é um trabalho de luto, que separa o passado do presente e dá lugar ao futuro.

A memória feliz é a memória equitativa, que abre a discussão do terceiro tópico do texto de Ricoeur: O perdão e o esquecimento. O esquecimento pode ter uma face abusiva, representada pela anistia – negação da violência ocorrida, para nela assentar – por decreto – a paz cívica. O decreto visa, fundado em um juramento, não lembrar dos males, ocultar a realidade da guerra interna.

Não se pode falar de esquecimento feliz, ao contrário do que sucede com a memória – revivescência da promessa de acordo, reconhecimento de algo ou de alguém, serenidade que supera o esquecimento.

Há uma dessimetria irredutível entre o esquecimento e a memória, no que diz respeito ao perdão. Diz o filósofo: “Para abraçar o futuro, é preciso esquecer o pecado, com um gesto de inauguração (...) de recomeço” (RICOEUR, 2000, p. 655), alcançando a despreocupação.

Evocando Kierkegard, e atento a exortação do Evangelho, trata de “considerar os lírios dos campos e os pássaros” para “com eles aprender a contemplar a si mesmo, na glória de ser um ser humano, de aprender como é magnifico ser homem (RICOEUR, p. 656). 

O fecho do texto de Ricoeur é instigante. Diz ele:

“Sob a história, a memória e o esquecimento.

Sob a memória e o esquecimento, a vida

Mas escrever a vida é outra história.

Inacabamento” (RICOEUR, 2000, p. 657).

Ou seja, para além do perdão difícil, há todo um trabalho a fazer sobre a memória e o esquecimento, para ser possível recuperar a vida. Um trabalho sempre inacabado, uma possiblidade sempre presente de renovação de si.

É com essa palavra de esperança que Ricoeur nos ensina a viver, em tempos sombrios. Apesar de todas as sombras.

Referências

RICOEUR, Paul. La mémoire, l´histoire, l´oubli. Paris: Seuil, 2000.

RICOEUR, Paul. Réflexion faite. Paris: Esprit, 1995.

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1967.

RICOEUR, Paul. Parcours de la Reconnaissance. Paris: Stock, 2004.

RICOEUR, Paul. Amour et justice. Paris: Points, 2008.