PAULO, E A TEOLOGIA DE FRONTEIRA:A EPISTEME PÓS-CRÍTICA E O PARADIGMA DA PAZ

PAUL, AND BORDER THEOLOGY: THE POST-CRITICAL EPISTEME AND THE PEACE PARADIGM

Eduardo Sales de Lima

Doutor em Teologia (EST). Professor na Unicesumar. Contato: pf.eduardo.sales@hotmail.com


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Resumo: O presente minicurso se propõe a dialogar com as teorias pós-críticas a fim de identificar possibilidades hermenêuticas válidas para interpretação de textos bíblicos em busca de um paradigma direcionado à promoção da Paz. O objetivo é ler a bíblia pela perspectiva pós-crítica, especificamente, por meio da mentalidade de fronteira. A metodologia de pesquisa será exploratória, a fonte de dados, bibliográfica, fundamentada na teoria de fronteira de Glória Anzaldúa. Para aplicação da metodologia serão estudados alguns trechos das cartas paulinas, e relacionados com elementos da episteme pós-crítica. Ao término desse trabalho espera-se que os leitores identifiquem Paulo como um teólogo de fronteira entendendo seus textos a partir da episteme pós-crítica de forma a ressignificar uma teologia voltada para o diálogo e para a paz.  

Palavras-chave: Hermenêuticas, Bíblia, Colonialidade

Abstract: This mini-course proposes to dialogue with post-critical theories in order to identify valid hermeneutical possibilities for the interpretation of biblical texts in search of a paradigm aimed at promoting Peace. The objective is to read the bible from a post-critical perspective, specifically, through the frontier mentality. The research methodology will be exploratory, the data source, bibliographic, based on Glória Anzaldúa's frontier theory. For the application of the methodology, some excerpts from the Pauline letters will be studied, and related to elements of the post-critical episteme. At the end of this work, readers are expected to identify Paulo as a frontier theologian, understanding his texts from the post-critical episteme in order to reframe a theology focused on dialogue and peace.

Keywords: Hermeneutics, Bible, Coloniality

Introdução

Esse trabalho, produzido para ao Minicurso do III SIMPEB, relaciona-se com o tema da Paz. Nossa abordagem será de cunho epistemológico com objetivo exploratório e visa atender às mudanças recentes, em especial, em compreender as possibilidades e contribuições do pensamento pós-crítico para a interpretação das Escrituras e da vida

A partir da compreensão da proposta pós-crítica, estudaremos a consciência “Mestiza” de Glória Anzaldúa. O objetivo é entender o que ela chama de mentalidade de fronteira, e identificar possibilidades reais de uma interpretação da vida e das escrituras, considerando as contribuições para o discurso da paz. 

Diante dessa reflexão pretende-se reler alguns trechos das cartas paulinas a fim de identificar e entender as possíveis relações entre a fé cristã nas primeiras comunidades e o paradigma pós-crítico.

Espera-se que ao término, por meio da pesquisa e relação entre a proposta pós-crítica de Anzaldúa e as cartas Paulinas, seja possível resgatar elementos abandonados pelas interpretações tradicionais e críticas, formando assim um caminho epistemológico que contribua para a formação da paz.

1. Crítica e pós-crítica: “descompassos” hermenêuticos

Os conceitos de crítica e pós-crítica são geralmente relacionados ao currículo e à área de educação. Estes conceitos identificam períodos e perspectivas de desenvolvimento social, propondo uma compreensão ampla das sociedades. Usaremos a definição classificada em períodos: “clássico” ou “tradicional”; período “crítico” e período “pós-crítico”. 

De forma resumida, o primeiro período, clássico, se refere a uma mentalidade centrada no objeto como verdade final; o segundo, crítico, rompe com os conceitos do primeiro e percebe a realidade social além do objeto, questionando as possibilidades ideológicas e as disputas de classes; e o terceiro, pós-crítico, questiona os limites do segundo, geralmente, por deficiência e insuficiência das classificações categóricas, propondo horizontes mais abrangentes para compreensão da verdade (FREIRE; VIEIRA, 2019). 

As Teorias Clássicas/Tradicionais (séc. XVI-XX), surgiram numa sociedade que classificava as pessoas entre elite dominante e mão de obra rural/artesã. Uma época em que o ensino era centrado no valor do conhecimento, na prática de memorização e fixação dos saberes da elite. Foram as mudanças sociais, e as revoluções industriais que propiciaram a formação de uma nova sociedade, dividida em classes e uma nova escola para atender à necessidade dessa sociedade (BARBOSA; FAVERE, 2013).

Na filosofia, essa proposta clássica/tradicional pode ser identificada com o paradigma científico e a metodologia cartesiana, fundamentados no humanismo, na possibilidade de chegar à verdade por meio de análise metodicamente guiada. A ideia de dominação da realidade, a categorização, e a formação de um saber universal resultaram na razão clássica/tradicional. Na sociologia e linguística, essa percepção pode ser observada pelos modelos estruturalistas, com representantes como Durkheim, Lévi-Strauss, e Saussure, por exemplo. 

O paradigma clássico/tradicional ainda é presente em diversos trabalhos e pesquisas acadêmicas. Ele está vinculado com a episteme racionalista, com a proposta cartesiana, com a dúvida, os métodos de observação, classificação e produção de verdades por universalização. 

Quanto às Teorias Críticas (séc. XX), embora remetam à origem da filosofia, o termo “crítica” tem sentido mais amplo. Na filosofia, o ápice da teoria crítica foi o criticismo de Kant, de onde temos as críticas da razão pura, da razão prática e a crítica do julgamento. A base de sua proposta repousa na ideia de que nenhum saber deve ser aceito como válido a menos que tenha sido submetido à crítica (KANT, 2001). 

A teoria crítica fez frente às mudanças sociais e ao “novo mundo”, produtos da revolução industrial e do capitalismo. Desse contexto resultaram diversos problemas sociais, para os quais, a episteme clássica/tradicional não tinha resposta, ou seus posicionamentos eram insuficientes para traduzir as novas dinâmicas dessa sociedade. 

Dentre os principais expoentes dessa nova crítica, agora social, destacamos Karl Marx e a Escola de Frankfurt. Nelas, observa-se as mudanças, e se propõem teorias que abarquem as diferenças sociais, as divisões e lutas de classes, as injustiças e as reproduções de ideologias de controle. Assumiram a necessidade de confrontar a sociedade: seus excessos; a propaganda; a violência; a exploração da vida; a naturalização das diferenças sociais; e outras críticas que abarcaram os fenômenos negligenciados pelas teorias clássicas/tradicionais, todavia, continuavam limitados pelo paradigma científico e cartesiano (NOBRE, 2004).

Destaco que na atualidade ainda é possível identificar diversos movimentos que seguem os pressupostos da escola crítica, principalmente Marx a Escola de Frankfurt, todavia, sofrem com o enfraquecimento das esquerdas em todo o mundo.

As Teorias Pós-Críticas (séc. XXI), se formam a partir das teorias críticas. Assim, propõem que o modelo tradicional, mesmo com as reformulações críticas, ainda é insuficiente para traduzir os fenômenos das sociedades atuais (BARBOSA; FAVERE, 2013). 

Ambos os modelos anteriores estão diretamente ligados com formatos epistemológicos. Há um fundamento tradicional, baseado na metodologia científica racional e nos paradigmas estruturais. E, por outro lado, as perspectivas pós-críticas partem de pressupostos diferentes, por isso a compreensão de que as propostas clássicas/tradicionais e críticas são insuficientes para compreender a sociedade contemporânea. 

 Mas o que mudou tanto? A sociedade. Em 1900 que era de 1,6 bilhões de pessoas, saltou para 3 bilhões em 1960, (um crescimento de 89%) e saltou novamente para 7,8 bilhões em 2020 (crescimento de 158%) (DURÃO; CHENIAUX, 2021). A principal característica dessa nova sociedade gigantesca é a diversidade e pluralidade, até as minorias possuem grandes representatividades. Com isso, novos estudos passaram a focar nas lacunas e “descompassos” resultantes das teorias tradicional e critica. 

Nos estudos do currículo, as teorias pós-críticas compreendem o multiculturalismo; os estudos de gênero (feministas, queer); o pós-modernismo; o pós-estruturalismo; o pós-colonialismo e os estudos culturais. Esses estudos deslocaram o conhecimento e a “verdade” de uma percepção universalista, e de centro, crítica às formas de capitalismo, para um olhar periférico, atento para outros saberes e outras formas de conhecer, não restrito às categorizações clássicas e às críticas ao capitalismo, mas atento a outros fenômenos de identificação da “verdade”, a outras percepções particulares, contextuais e divergentes (BARBOSA; FAVERE, 2013; SANTOS; MENESES, 2010).

A partir dessa compreensão, uma mudança no paradigma crítico, também influencia o paradigma hermenêutico. E, ao questionar os métodos tradicionais e críticos de interpretação, esbarramos primeiro em uma questão de validade do saber. Seria a percepção pós-crítica uma construção de saber válida? Ela pode agregar valor aos métodos tradicionais de interpretação? Ambas as respostas são positivas. Na sociedade atual, a diversidade e pluralidade nos levam, todos os dias, a outro mundo possível. As metanarrativas, por sua vez, embora também se renovem, costumam não dar conta da realidade integral, deixando vários espaços sem tratamento, ou, abertos para múltiplos tratamentos (LYOTARD, 1991). Com a valorização da individualidade, do pessoal, do diferente em detrimento do universal, revelam-se também as “sobras”, os “descompassos”, as “diferenças”, que, a bem da verdade, quando tratados em conjunto, geralmente são maiores ou tão grandes quanto as “grandezas”, as “razões” e os “valores integrais”. Assim, entende-se que questões da pós-crítica sempre existiram, mas não eram consideradas, ou eram tratadas como variantes a ser isoladas da equação. 

E será que essa dimensão entendida pela pós-crítica é relevante para a leitura bíblica? E os métodos tradicionais e críticos? São capazes de dar conta dessas realidades?

Assim, conclui-se inicialmente que, devido ao papel da episteme pós-crítica na formação do pensamento contemporâneo, torna-se necessário integrar a pós-crítica às formas de interpretação e leitura da Bíblia. Isso já acontece na prática popular, onde as pessoas estão constantemente lendo nas entrelinhas e percebendo os espaços não interpretados, os “descompassos” presentes nas interpretações clássica e crítica da narrativa bíblica. O resultado é a possibilidade de novas observações do texto e da vida nos conduzam para outros lugares, mais diversos e inclusivos. 

2. A identidade de fronteira: contribuições pós-coloniais

Um dos principais elementos da pós-crítica é a questão da identidade. Nas percepções clássicas e críticas ainda perseverava um paradigma coletivo, onde a identidade era vinculada a um local ou a um determinado grupo. A partir da consideração pós-crítica as identidades assumiram dimensões plurais. Assim, os teóricos da pós-modernidade identificaram isso como a diluição e esfacelamento da identidade (BAUMAN, 1998; JAMESON, 1985); as propostas pós/decoloniais perceberam diversas estruturas e poderes atuando na formação, redução e controle das identidades, com percepções positivas e negativas em relação às mudanças no ser (ANZALDÚA, 2005). O fenômeno das identidades também foi relacionado com o pensamento sistêmico (SILVA; RAMALHO, 2019), onde surgem infinitas possibilidades de configurações sociais, seja por preferências de mercado, seja pelas configurações da moda, por segmento nas redes sociais, ou mesmo por conexões com pessoas diversas de diversas partes do mundo, esses fenômenos têm influenciado esse movimento de identidades plurais. 

Diante disso, as teorias pós-coloniais têm, em particular, uma proposta relevante para promoção da paz: o pensamento de fronteira. Inicialmente notamos que, dentre os/as representantes pós/de-colonialistas[1], há pelo menos três discursos de condução: 1) as teorias de resistência cultural; 2) as teorias de assimilação cultural; 3) as teorias de fronteira. Essa não é uma classificação fácil, pois uma pessoa pode assumir os três discursos. Mas, seguindo a lógica de dominação colonial, entendemos que, com a invasão colonial, a cultura local foi subjugada e, em muitos casos, aniquilada (epistemicídios). Isso resultou no primeiro discurso de defesa e restauração da cultura local contra a cultura invasora. 

O segundo discurso, entende que a colônia assimilou a cultura colonizadora de forma positiva e que não é possível retornar ao paradigma inicial, assim, aceitam e desenvolvem perspectivas hibridistas. Um novo lugar onde não há identidade inicial, e não se está totalmente identificado com o colonizador. Nesses casos, mesmo com a aceitação da cultura colonizadora, e ciente da dominação, não há vontade de deixá-la. 

O terceiro discurso surge de situações em que há aceitação da outra cultura concomitante à preservação da cultura local. Isso ocorre sem a necessidade de eliminação, subjugação ou assimilação das culturas. Destes, surgem as identidades de fronteira. 

Para definirmos os parâmetros de nossa pesquisa, vamos analisar o texto de Glória Anzaldúa (2005) “La consciencia de la mestiza”. Essa obra possui destaque devido a sua proposta de adaptar as ideias do filósofo mexicano José Vasconcelos ao questionar o conceito de pureza racial “raça ariana”, com o conceito inclusivo e plural de “raça mestiça”. 

Anzaldúa relaciona a consciência mestiza com as possibilidades multiculturais propondo uma consciência de fronteira. Sua aproximação é relatada a partir da experiência chicana (mexicanos nascidos e naturalizados estadunidenses), e traduz na prática o funcionamento da mentalidade de fronteira, incluindo, também as fronteiras entre as tradições dos povos originários na qual a chicana também precisa vivenciar (ANZALDÚA, 2005). 

Assim, para uma melhor observação, vamos destacar alguns pontos centrais da consciência de fronteira:

1) O reconhecimento das ambiguidades

Anzaldúa inicia a narrativa apontando para a ambivalência do choque de vozes que resulta em insegurança e indecisão. Esse estado de confusão se deve a uma espécie de personalidade dupla, e até tripla, que conecta a mestiza a cultura branca e com os povos originários astecas, “la mestiza é um produto da transferência cultural” (p.705) em transição constante, situação que impõe um dilema: A qual coletividade ela pertence? “Nascida em uma cultura, posicionada entre duas culturas, estendendo-se sobre todas as três culturas e seus sistemas de valores” (p.705). Vivência que não acontece sem choques culturais, “Dentro de nós e dentro de la cultura chicana, crenças arraigadas da cultura branca que atacam crenças arraigadas da cultura mexicana, e ambas atacam crenças arraigadas da cultura indígena” (ANZALDÚA, 2005, p.705). 

Desse conflito surge a necessidade de pacificação, pois, ao escolher um lado, uma cultura, “um ponto de vista contrário nos prende em um duelo entre opressor e oprimido”, uma disputa contínua onde o resultado é a violência. Anzaldúa, começa pelo questionamento dessa posição. Ela entende a resistência, sabe da necessidade de enfrentamento, de libertação da dominação cultural, mas, tem consciência de que isso não pode ser assumido como “um meio de vida” (p.705). Por isso é necessário formar uma nova consciência, pois, em determinado momento é preciso deixar o campo de batalha, largar as armas e assumir uma sobreposição, construir uma forma de estar nos dois lados ao mesmo tempo (p.706). 

Para Anzaldúa é necessário manter essa ambiguidade, valorizar os pontos diferentes e aprender a viver neles, atuando sobre eles. Pois não há paz na escolha de um dos lados. Por isso uma opção pela paz não pode escolher lados. 

2) Tolerância e flexibilidade

Em linhas gerais essa mentalidade de fronteira se forma pela superação das ambiguidades sem diluir as diferenças. Num fenômeno subjetivo, onde a mestiza adapta sua psique às diferenças culturais. Fenômeno identificado pelo conceito de “flexibilidade” para que ela possa transitar entre o convergente e o divergente, entre conceitos exclusivos e inclusivos. 

Ao perceber informações e pontos de vista conflitantes, ela passa por uma submersão de suas fronteiras psicológicas. Descobre que não pode manter conceitos ou ideias dentro de limites rígidos. As fronteiras e os muros que devem manter ideias indesejáveis do lado de fora são hábitos e padrões de comportamento arraigados; esses hábitos e padrões são os inimigos internos. Rigidez significa morte. Apenas mantendo-se flexível é que ela consegue estender a psique horizontal e verticalmente. La mestiza tem que se mover constantemente para fora das formações cristalizadas – do hábito; para fora do pensamento convergente, do raciocínio analítico que tende a usar a racionalidade em direção a um objetivo único (um modo ocidental), para um pensamento divergente, caracterizado por um movimento que se afasta de padrões e objetivos estabelecidos, rumo a uma perspectiva mais ampla, que incluem vez de excluir.” (ANZALDUA, 2005, p. 706)

Esse trânsito só é possível porque a mestiza procura uma forma de conciliação, porque sua episteme é direcionada para a vida, para a paz. Assim, ela precisa desenvolver a “tolerância às contradições” o que lhe dá a capacidade de “equilibrar as culturas” e de ser entre as culturas. Operar dessa forma impõe a necessidade de não qualificar ou moralizar as culturas. Assim,

A nova mestiza enfrenta tudo isso desenvolvendo uma tolerância às contradições, uma tolerância às ambiguidades. Aprende a ser uma índia na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vista anglo-americano. Aprende a equilibrar as culturas. Tem uma personalidade plural, opera em um modo pluralístico – nada é posto de lado, o bom, o ruim e o feio, nada é rejeitado, nada abandonado. Não apenas sustenta contradições como também transforma a ambivalência em uma outra coisa. (ANZALDUA, 2005, p. 706)

3) Uma Nova Consciência Mestiza

Nesse ponto, a mestiza pode ser lançada para fora da ambivalência num momento em que toda a diferença é reduzida e em sua personalidade tudo é reunido. Nesse momento ela desenvolve uma compreensão do todo, onde a nova consciência torna-se a resposta aos conflitos étnico-raciais e de gênero, uma proposta de rompimento com a violência e com a guerra.

na cicatrização da divisão que se origina nos próprios fundamentos de nossas vidas, nossa cultura, nossas línguas, nossos pensamentos. [assim] Extirpar de forma massiva qualquer pensamento dualista no indivíduo e na consciência coletiva, isso representa o início de uma longa luta, que poderá, com a melhor das esperanças, trazer o fim do estupro, da violência, da guerra. (ANZALDUA, 2005, p. 707)

A partir desse pequeno trecho, destacamos um roteiro, uma chave de leitura para formação de um “paradigma mestiço” para a construção da paz. Assim, primeiro, pelo reconhecimento das ambiguidades; em segundo, pela tolerância e flexibilidade, e em terceiro, pela consciência mestiza, identificada no rompimento com as formas de classificação dualistas. Momento em que todas as coisas são reunidas, em que as cicatrizes são reparadas, em que as divisões e classificações são superadas. Neste momento é possível construir caminhos para o fim da violência e que possibilitem a paz, mesmo entre diferentes. 

Não se trata de uma diluição dos valores, ou uma forma de assimilação cultural, ou ainda outra forma de totalitarismo. Trata-se de algo que deve acontecer na consciência, pela compreensão de que mesmo com todas as diferenças e ambiguidades, nós podemos ser flexíveis e viver entre as culturas a partir de uma visão do todo, compreendendo que não há lados, e que não é necessário qualificar, moralizar ou reduzir as diferenças. Dessa forma, o desafio da paz, antes de ser algo econômico ou ético, é um desafio epistemológico. 

3. Paulo e a teologia de fronteira

Ao reconhecer a pós-crítica como fonte de saber válido para a interpretação e reflexão contemporânea propomos uma possibilidade de aprofundamento pela identificação de possíveis “descompassos” formados nas interpretações tradicionais e críticas da Bíblia. Assim, propomos a leitura de trechos das cartas paulinas à luz das três observações destacadas do pensamento de fronteira de Glória Anzaldúa:

  1. Reconhecimento das Ambiguidades
  2. Tolerância e Flexibilidade
  3. Uma nova Consciência Mestiza 

Partimos da perspectiva de que Paulo era um personagem que vivenciou profundamente a realidade de fronteira. Ele assumiu o desafio de aprender aos pés de Gamaliel; de Tarso na Grécia, foi para Jerusalém; depois assumiu uma identidade de judeu “perseguidor” entre os diversos judaísmos, inclusive, do judaísmo-cristão; após sua experiência de chamado, assumiu uma posição de judeu entre os judeus-cristãos; e logo se tornou um judeu-cristão entre os judaísmos diaspóricos; e por fim um judeu-cristão entre os gentios. Todas essas vivências ocorrem durante suas viagens missionárias. Assim, Paulo, como cidadão do mundo, ora está na Macedônia, ora na Grécia, ou na Síria; Jerusalém; Roma; etc. Toda essa intensa atividade nos leva a perguntar se Paulo seria um pensador de fronteira? 

Seguindo o paradigma estabelecido no texto de Anzaldúa, observamos:

1) O reconhecimento da ambiguidade

Em Paulo pode-se observar a formação da consciência mestiza pela compreensão de seu próprio conflito interior. Inicia no conflito cultural de ser um judeu vivendo numa cultura grega, o que o leva a estudar aos pés de Gamaliel (At 22:3) com a intensão de retornar defendendo a cultura judaica frente à influência cultural da dominação greco-romana (Gl 1:13-14; Fp 3:4-6; 1Tm 1:13; e\em At 8:1,3; 9:1-4, 21) (BORNKAMM, 1978). O conflito é ampliado quando Paulo tem uma experiência com Cristo ressuscitado. Ele, se torna um Judeu-Cristão-helênico e seu ministério volta-se para os gentios. Paulo deixou a posição conservadora da cultura judaica contra os gentios e assumiu uma posição divergente, judaico-cristã, de inclusão dos gentios, inclusive, dos gregos. Paulo conhecia e vivenciava na pele o conflito, principalmente entre judeus e gregos (STENDHAL, 1976), herança da violência colonizatória que deixou profundas marcas na sociedade. 

E, conforme registrado na sua Carta aos Gálatas, Paulo também abandonou os lados e assumiu uma posição sobre todos, primeiro diante de Pedro e da Igreja de Antioquia (Gl 2:12-21) porque não aceitava as classificações e a segregação dos gentios. Ele já vivia sob a nova consciência. Isso fica consagrado em sua teologia que vai se impor contra essa forma de classificação dualista que separava os judeus dos gentios. Essa separação invalidava a graça de Deus, pois nesta Graça não há diferença, “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3:28).

É preciso reforçar que Paulo não assume um lado, ele não se converte no sentido moderno do termo. Ele continua fiel ao judaísmo. Não elimina ou subjuga a cultura judaica ao cristianismo (STENDHAL, 1976). Ele mantém a cultura judaica e aconselha que os judeus continuem judeus, defendendo o valor sagrado do judaísmo (1Co 7:18-24; Rm 9-11).

2) Tolerância e Flexibilidade

Paulo demonstra flexibilidade de sua psique na capacidade de inclusão dos diferentes. Ele não só aprende, como ensina a transitar entre as culturas, entre os pensamentos, do convergente para o divergente. Logo, ele propõe uma identidade multicultural, baseado na Graça.

Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. (1 Coríntios 9:19-22)

Isso não significa que Paulo era perfeito e que não tinha seus limites. Não é disso que trata o texto, mas da construção da paz. Como bom judeu, criado aos pés de Gamaliel, Paulo mantinha alguns conceitos de puro e impuro, mas eram conceitos subjugados à superioridade da Graça que tratava todos sem distinção, a sobreposição de Paulo, sem escolher lados. 

Para Paulo, a vida em Cristo, pela Graça, era a nova consciência. Ou seja, a inclusão e valorização do outros, independentemente de sua cultura. O próprio conceito de justificação pela fé, surge como resposta ao conflito cultural entre judeus e gentios. A “Justiça pela fé” é uma resposta da nova consciência à segregação religiosa e étnico-racial de sua época (Gl 2:15-20; 3:8 e 11; etc.). É uma mensagem da tolerância de Deus para com todos os povos (Rm 4:1-11) e que também deveria ser vivenciada pelas comunidades, não apenas de judeus, mas também de gentios. 

 Como a mestiza, Ele “reinterpreta a história e, usando novos símbolos, dá forma a novos mitos” (ANZALDUA, 2005, p. 709). Paulo relê passagens sobre a tradição de Abraão e propõe que, “tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão” (Gl 3:8-9, grifo nosso). Essa leitura foi formada a partir do próprio conflito, onde ele escolheu uma postura integral, que não escolhe lados, que não cria opostos. Paulo decide não entrar em uma batalha interminável que só resultaria em mais violência. Ele propõe uma nova episteme de leitura bíblica direcionada por sua experiência com Deus e com os diversos judaísmos entre os diferentes povos, propondo caminhos de reconciliação. 

A solução para a paz precisava de releitura das epistemes fundantes. Os dualismos excludentes deveriam ser interpretados pela nova consciência. Paulo faz isso em vários momentos no livro de Gálatas e Romanos (Rm 12:1-2 p.ex.). Não era uma teologia direcionada pela imaginação metafísica, mas pela prática pastoral, pelo cuidado diante das ambiguidades culturais em que as comunidades viviam.

A tolerância é aplicada a diversas tradições. Esse foi o caso no enfretamento das listas de pecados e práticas culturais condenatórias comuns a alguns grupos radicais dentre os judeus (Rm 2:1). Assim, para Paulo, a razão deveria deixar os padrões de classificação e exclusão e voltar-se para o cuidado, para o outro, porque “Deus não faz acepção de pessoas” (Rm 2:11). Todavia, na atualidade, os discursos classificatórios e dualistas interpretam Paulo e a Bíblia de maneira excludente e até violenta. 

A teologia de Paulo flui de uma nova consciência. Isso pela necessidade de superar o conflito judaico-gentílico que ele fundamentou a afirmação de que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3:23). Não era uma expressão condenatória da humanidade, mas de oposição às classificações teológicas que procuravam excluir os diferentes, os “pecadores” (geralmente os gentios), do cuidado e do amor de Deus.

Em Paulo, a tolerância à ambiguidade fundamenta-se num olhar que não assume lados, mas que reconhece a situação de todos e por isso é capaz de estender-se sobre as diferenças e transitar entre as realidades culturais sem se prender a razões dogmáticas, isso porque a Graça é a manifestação do perdão de Deus para todos, independentemente de sua fé ou cultura. Por isso defende que,

(7) Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos; (8) bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado. (9) Vem, pois, esta bem-aventurança exclusivamente sobre os circuncisos ou também sobre os incircuncisos? Visto que dizemos: a fé foi imputada a Abraão para justiça. (10) Como, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regime da circuncisão, e sim quando incircunciso. (Romanos 4:7-10)

3) Rompimento com as formas de classificação dualistas

Paulo apresenta esse rompimento de várias formas. Sem dúvidas a principal é a categorização “em Cristo”. Assim, não há diferenças, porque todos somos transformados nele (2Co 3:18). Por isso fala que “todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3:27,28). E novamente: “vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou; no qual não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos.” (Cl 3:10-11). 

Na história da igreja, essas passagens foram sujeitadas por leituras clássicas, que desconectaram os textos da reflexão de fronteira, dos sentimentos e ambiguidades da vida, criando os “descompassos hermenêuticos” em prol de interpretações universais. Assim, é preciso entender que essas passagens não são apenas textos falando que somos todos iguais perante Deus, mas textos apresentando uma nova consciência, nascida da ambiguidade das diferenças culturais e disposta a superar as barreiras de inimizade a favor da paz.

(11) Portanto, lembrai-vos de que, outrora, vós, gentios na carne, chamados incircuncisão por aqueles que se intitulam circuncisos, na carne, por mãos humanas, (12) naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo. (13) Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. (14)  Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, (15) aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, (16) e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. (17) E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; naquela época, representava uma revolução epistêmica. (Efésios 2:11-17)

Assim, nos textos paulinos, é possível identificar várias passagens onde a experiência de fronteira vem à tona. E não apenas na teologia, mas principalmente na prática pastoral onde os motivos relacionados ao cuidado com o outro assumem um tom central. 

A consciência mestiza é observada no trânsito paulino entre diversos temas, na compreensão de que estes não precisavam ser normativos para todas as comunidades. Dessa forma, em alguns momentos, podemos, inclusive, ler posturas praticamente opostas. Por exemplo, na Carta aos Gálatas, sua pastoral volta-se para o cuidado dos gentios e repreensão das comunidades judaico-cristãs (Gl 2-4); enquanto, na Carta aos Romanos, sua pastoral volta-se para o cuidado dos judeus e repreensão dos cristãos-gentios (Rm 9-11). Essa diferença se deve a um cuidado cultural, à compreensão das diferenças e à postura que assumiu os dois lados. Assim, em vários momentos Paulo se apresenta como la mestiza, equilibrando as culturas e propondo a seus leitores uma episteme voltada para a prática da paz por meio da inclusão e aceitação de todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos a esse ponto certos da afirmação de que Paulo era um teólogo de fronteira. E que sua teologia foi desenvolvida na e pela fronteira, propondo novas possibilidades em diversos textos e conceitos. Paulo assumiu uma posição entre-mundos, e por isso, vivenciou as ambiguidades culturais em suas crises, nas violências e perseguições impostas e sofridas. Seu papel como teólogo de fronteira é evidenciado por meio da tolerância às ambiguidades testemunhada no seu trajeto das formas de pensar e viver convergentes para as formas divergentes. E por fim, na formação de uma consciência capaz de romper com as classificações dualistas em busca de uma nova razão, capaz de ver o todo, que não escolhe lados e se orienta pela e para a paz.

Muito mais que uma nova leitura, essa proposta inclui a Bíblia em um novo contexto de defesa cultural pelos direitos dos excluídos. Isso pela compreensão de que estar “em Cristo" para Paulo, não significa pertencer a uma religião, mas ter uma visão sobreposta, de onde não há diferenças. Pois, mais que afirmar que Deus não faz acepção de pessoas, Paulo transforma essa afirmação num local real e habitável.

Saliento que não se trata de uma nova forma de ler Paulo. Essa leitura preocupa-se com a situação vivencial e contextual das cartas. É voltada para problemas específicos de sua época e de suas comunidades que viviam sob a dominação e cultura imperialista. A diferença, entretanto, é epistemológica. Nas propostas clássicas e críticas, havia o direcionamento por paradigmas estruturais como o racionalismo, por exemplo. E isso resultou em diferentes conclusões sobre Paulo. Todavia, no paradigma pós-crítico resgatamos temas antes tidos como “descompassos”, mas com potencial de ressignificar as narrativas.

Assim, Paulo foi estudado como Teólogo; Pastor; Pensador; Missionário, mas agora, no descompasso, ele é um Cidadão de Fronteira, alguém que vive entre-mundos, capaz de interagir com diferentes culturas e línguas, e principalmente, capaz de sustentar a fronteira como um local real, e ao mesmo tempo, fluído, integrado e independente. 

Logo, conclui-se pela necessidade de se empreender novas leituras no texto bíblico, observando os impérios, as lógicas de dominação e as várias situações de fronteira, como o caso de Ezequiel e do “Segundo” Isaías, em contexto Babilônico. Ou mesmo, a situação do evangelho de Mateus, entre diferentes judaísmos. Há várias situações de fronteira que podem ser ressignificadas em toda a experiência bíblica indicando a possibilidade de que haja vários “descompassos” a ser pesquisados e revistos. Inclusive, no reconhecimento de que o paradigma pós-crítico, longe de ser um obstáculo, pode servir para fundamentar uma interpretação que coopere na construção de paradigma que promova a paz. 

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Para uma compreensão geral das teorias pós-coloniais, vide o artigo “A América Latina e o Giro Decolonial” de Luciana Ballestrin.