Nelson Maria Brechó
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor da Faculdade de Teologia João Paulo II (FAJOPA). Contato: nelsonbrecho@yahoo.com.br
Vamberto Marinho de Arruda Junior
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: prvambertojr@gmail.com
Benedito Antônio Bueno de Almeida
Doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: benedito.antonio@gmail.com
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre a paz em Lucas, através da metodologia da leitura comparativa e interpretativa. Pretende-se, por um lado, apresentar as semelhanças entre o relato da aparição de Cristo ressuscitado e o relato do nascimento de Jesus, em Lucas 2,8-20. Por outro lado, destaca-se elementos como a manifestação divina, o temor, a saudação de paz e a alegria. Nesse contexto, em Lucas 24:36-49, destaca-se a conexão entre a paz com o espanto e o temor. Portanto, a literatura lucana incentiva a comunidade cristã a aprofundar a relação mestre-discípulo através do temor e da alegria na experiência com o Cristo ressuscitado. Essa reflexão possibilita ampliar os horizontes na área exegética diante dos desafios atuais, como a pandemia, as guerras e as polarizações políticas. Dessa forma, a atitude cristã implica ser capaz de aplicar a paz no âmbito comunitário.
Palavras-Chave: Evangelho; Paz; Espanto; Temor; Alegria.
Abstract: This article aims to reflect on peace in Luke, using the methodology of comparative and interpretive reading. On one hand, the intention is to present the similarities between the account of the appearance of the resurrected Christ and the account of the birth of Jesus in Luke 2:8-20. On the other hand, elements such as divine manifestation, fear, the greeting of peace, and joy are highlighted. In this context, in Luke 24:36-49, the connection between peace, astonishment, and fear is emphasized. Consequently, the Lucan literature encourages the Christian community to deepen the master-disciple relationship through fear and joy in the experience with the resurrected Christ. This reflection allows for broadening horizons in the exegetical field in the face of current challenges such as the pandemic, wars, and political polarizations. Thus, the Christian attitude implies being capable of applying peace within the community context.
Keywords: Peace; Amazement; Fear; Happiness.
O contexto histórico da pesquisa na Literatura Lucana abrange diversas direções (história, teologia, cristologia, pneumatologia, etc.) e abordagens variadas (histórico-crítica, feminista, narrativa, latino-americana, etc.) (BOVON, 2006; GREEN, 2010). Além disso, destaca a união entre o Evangelho segundo Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos.[1] As pesquisas mais recentes apontam para diversos horizontes, a saber: histórico-teológicos, cristológicos (RODRÍGUEZ CARMONA, 2008, p. 282). Com base no último horizonte mencionado (cristológico), esta análise é fundamentada.
O texto do artigo tem como foco a análise do relato de Lucas 24,36-49, que descreve a aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos. O objetivo principal é examinar os elementos presentes nesse relato, identificar conexões com outros trechos do Evangelho de Lucas e compreender os significados subjacentes aos eventos narrados.
O método utilizado para a análise é comparativo e interpretativo. São examinadas as semelhanças entre o relato da aparição de Jesus ressuscitado e o relato do nascimento de Jesus, em Lucas 2,8-20. São destacados elementos como a manifestação divina, o temor dos presentes, a saudação de paz e a subsequente alegria.
Vale mencionar que as citações bíblicas referentes à passagem indicada, foram consultadas na edição crítica Novum Testamentum Graece (28ª edição) e no BibleWorks. As demais citações são da Bíblia de Jerusalém. De fato, o propósito desta pesquisa é trazer contribuições mais significativas ao dossiê "Bíblia e paz" da Revista de Cultura Teológica.
Em Lc 24,36-49, encontra-se o relato da aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos, logo após a narrativa sobre o encontro no caminho de Emaús. Nesse relato Jesus se manifesta, e em suas primeiras palavras declara paz aos presentes. Eles temem e pensam ser um espírito, mas depois se enchem de alegria. O último capítulo do Evangelho segundo Lucas apresenta elementos que conferem a ele status conclusivo, detalhes que são vistos a seguir; dentre esses pontos está a retomada de temas ou relatos vistos no Evangelho. Na narrativa encontrada em Lc 24,36-43 há 4 pontos que conectam essa perícope com a encontrada no início do livro (Lc 2,8-20)[2], onde pastores recebem a visita de um anjo e depois de um grupo de anjos, tais pontos são: manifestação miraculosa (doxa), temor, paz e alegria, esses componentes permeiam ambos os episódios, mas no relato da manifestação pós-ressurreição há um ápice e fechamento. Aqui está o texto traduzido do grego ao português:
36Falavam ainda, quando ele próprio se apresentou no meio deles e disse: “A paz esteja convosco!”
37Tomados de espanto e temor, imaginavam ver um espírito.
38Mas ele disse: “Por que estais perturbados e por que surgem tais dúvidas em vossos corações?
39Vede minhas mãos e meus pés: sou eu! Apalpai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho”.
40Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e os pés.
41E como, por causa da alegria, não podiam acreditar ainda e permaneciam surpresos, disse-lhes: “Tendes o que comer?”
42Apresentaram-lhe um pedaço de peixe assado.
43Tomou-o, então, e comeu-o diante deles.
44Depois disse-lhes: “São estas as palavras que eu vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”.
45Então abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras,
46e disse-lhes: “Assim está escrito que o Cristo devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
47e que, em seu Nome, fosse proclamado o arrependimento para a remissão dos pecados a todas as nações, a começar por Jerusalém.
48Vós sois testemunhas disso.
49Eis que eu vos enviarei o que meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade até serdes revestidos da força do Alto”. (ALAND, 2018; BibleWorks, v. 10; Bíblia de Jerusalém, 2016, tradução nossa).
No encontro, após o relato envolvendo os discípulos no caminho de Emaús, Jesus ressurreto entra no meio deles, oferecendo as palavras que transcendem o tempo: “A paz esteja convosco!” Surpreendidos e assustados, os discípulos acreditam estar diante de um espírito. Contudo, Jesus busca dissipar suas dúvidas, apontando para suas mãos e pés marcados pelas feridas da crucificação. Ele demonstra a tangibilidade de sua ressurreição, convidando-os até mesmo a tocá-lo, para que compreendam que Ele não é um mero espectro. Esse ato de mostrar suas feridas e permitir que o toquem não só confirma sua identidade, mas também evoca um paralelo com o início do Evangelho de Lucas, onde sua entrada no mundo foi testemunhada por pastores e sua presença física. Ao aceitar o peixe assado e comê-lo diante deles, Jesus solidifica sua realidade ressurreta e supera a incredulidade dos discípulos, selando assim a mensagem de sua vitória sobre a morte e inaugurando uma nova fase de ensinamentos e missão.
A conexão profunda entre o episódio da manifestação pós-ressurreição e os momentos iniciais da história de Jesus em Lucas se aprofunda ainda mais quando consideramos as palavras que Ele compartilha em seguida. Assim como a mente dos discípulos é aberta para compreender as Escrituras, Jesus revela a eles a trama divina que unifica toda a narrativa: Sua paixão, morte e ressurreição, conforme predito nas Leis de Moisés, Profetas e Salmos. Ele reafirma o propósito de sua vinda à terra, não apenas para cumprir as profecias, mas também para estender a salvação a todas as nações, começando por Jerusalém. O fechamento dessa narrativa, reforçado pelos elementos em comum com o início do Evangelho, ressoa com poderosas implicações: o Cristo que foi anunciado naquela noite de paz aos pastores agora se revela como o cumprimento da promessa de redenção, um vínculo inquebrável entre o início e o ápice da história da salvação.
Ao seguir Bovon (2010, p. 658), atesta-se neste artigo a unidade de Lc 24,36-49, de sorte que “os vv. 36-43 apresentam a identidade do que fala, e os vv. 44-49 deixam ouvir o último discurso que este pronuncia.” Dillmann e Mora Paz (2006, p. 571) também assumem essa dupla divisão, quando afirmam que a primeira parte apresenta “a estrutura de um relato típico de aparição”, e a segunda contém palavras de Jesus. Além de estar colocado na parte final do evangelho, este texto e o capítulo como um todo trazem elementos que demonstram seu caráter conclusivo. Para ajudar, neste pormenor, apresentam-se aqui os resultados do artigo de Troftgruben (2021), que trata do final de Lucas.
Troftgruben aponta 3 elementos que compõem o fechamento de uma obra literária antiga:
Sugiro que, para os ouvintes e leitores antigos, uma sensação de encerramento ocorria de três maneiras diferentes, mas não mutuamente exclusivas. A primeira é a resolução (para conflitos, tensões ou questões). [...] Uma segunda estratégia de fechamento – a mais usada pelos intérpretes bíblicos no final do século XX – é o que chamo de conclusão (cf. a circularidade e o paralelismo de Parsons). Isso ocorre quando um final lembra ou preenche eventos narrativos anteriores, sejam eventos no início (circularidade) ou eventos ao longo da narrativa (paralelismo). Nesses casos, as conexões do final com eventos anteriores criam a sensação de que a história chega ao fim. [...] Uma terceira estratégia de fechamento é o que chamo de marcadores terminais: cenas finais, declarações, linguagem, imagens ou marcas que inerentemente geram fechamento – por exemplo, linhas finais (“Assim terminou a guerra”), palavras finais (“O Fim” ou “Amém”), comentários autorais (“Essa é a minha história”), imagens finais (morte) ou cenas finais (um funeral). Esses marcadores ajudam a deixar claro que o fim foi alcançado, haja ou não resolução ou sensação de conclusão. (TROFTGRUBEN, 2021, p. 327-329, grifo e tradução nossa).
A seguir, apresenta-se um quadro que aponta para o primeiro destes elementos conclusivos em Lc 24:
Quadro 1 – 4 Eventos que mostram Circularidade: Fechando o Círculo dos Eventos
1. Os personagens voltam onde tudo começou: templo (início: Zacarias 1,5-23; Ana 2,37; final: discípulos 24,53). |
2. Adoração é um tema retomado do início do Evangelho (início:1,5–23.67–79; 2,13–14.20.24. 28–32.37.41–42; final: 24,52-53). Tanto o início quanto o fim da narrativa usam a linguagem da “bênção” (εὐλογέω, εὐλογητός) de maneiras predominantes (início: 1,42.64; 2:28.34; final: 24,30.50–51. 53). |
3. O início e o fim do Evangelho de Lucas enfatizam a expectativa e a grande alegria. O final mostra os discípulos em um estado de espera (24,49), comparável à espera de Zacarias, Maria, Simeão e Ana por chegadas distintas da salvação de Deus (1,20.38; 2,26.38; cf. Atos 1). Ao mesmo tempo, o Terceiro Evangelho termina com “grande alegria” (24,52), usando uma frase que aparece apenas uma vez em outro lugar – na declaração do anjo do Senhor nos capítulos iniciais: “Anuncio-vos uma grande alegria que é para todo o povo” (2,10). |
4. As histórias do capítulo final de Lucas refletem o imediatismo dos encontros divinos encontrados nos capítulos iniciais. Marcados por mensageiros angelicais, figuras proféticas e previsões reveladoras, os capítulos de abertura e encerramento do Evangelho de Lucas descrevem cenas de encontros extraordinários e significativos com o divino. Dessa forma, a aura geral do capítulo final de Lucas retorna à atmosfera encontrada em outros lugares apenas no início. |
Fonte: TROFTGRUBEN, 2021, p. 332-333, tradução nossa.[3]
Para este artigo, os pontos 3 e 4 são os que mais interessam: expectativa e alegria, encontro com divino/sobrenatural. Embora encapsulados e unidos pelo tema da paz, algo que será mais analisado no próximo tópico.
A construção desta seção se dá por duas vias: comparação do relato da anunciação angélica em Lc 2,8-20 com o da aparição do Cristo ressurreto em Lc 24,36-49; e, foco nos elementos semelhantes da manifestação da doxa angelical e divina, do temor provocado por tal ocorrência, da evocação da paz e da alegria resultante destes eventos.
Para fins comparativos se usa aqui um quadro demonstrando as semelhanças entre Lc 2,8-20 e Lc 24,36-49.
Quadro 2 – Semelhanças entre Lc 2,8-20 e Lc 24,36-49
Lc 2,8-20 |
Elementos |
Lc 24,36-49 |
Elementos |
Lc 2,8 |
Período do dia em que a epifania ocorre: noite (τῆς νυκτὸς) |
Lc 24,29[4] |
Período do dia em que a epifania ocorre: noite (ἑσπέραν[5] ἐστὶν κέκλικεν ἤδη ἡ ἡμέρα – “é tarde e já declina o dia”) |
Lc 2,9 |
Manifestação/aparição, O anjo do Senhor aparece |
Lc 24,36 |
Manifestação/aparição, Jesus aparece |
Lc 2,9 |
Resultado: pastores tomados de grande temor |
Lc 24,37 |
Resultado: discípulos tomados de espanto e temor |
Lc 2,14 |
Declaração de paz |
Lc 24,36 |
Declaração de paz |
Lc 2,10 |
Mensagem da vinda do Senhor e Salvador traz alegria |
Lc 24,41 |
Presença do Cristo ressurreto traz alegria |
A primeira via, centrada na comparação direta desses dois eventos cruciais, evidencia a intencionalidade do autor em criar um paralelismo entre a manifestação do divino no nascimento e na ressurreição. Essa conexão se fortalece ainda mais ao enfatizar elementos recorrentes, como o momento do dia em que as epifanias ocorrem, a natureza das manifestações angelicais e divinas, bem como as reações humanas provocadas por esses encontros extraordinários. Ademais, ao trazer à tona essas semelhanças, a narrativa conecta o nascimento e a ressurreição em uma narrativa teológica coesa. A próxima via aprofundará os elos entre essas duas narrativas lucanas.
Ao comentar sobre o final de Lucas e sua conexão com o resto da obra, em especial os temas iniciais, Troftgruben esclarece:
O final do Evangelho de Lucas oferece uma forma sofisticada, complexa e diferenciada de fechamento narrativo. Sem arrumar cada fio solto, o final encerra significativamente o ministério de Jesus: a ressurreição é confirmada, o Jesus ressurreto é reconhecido, as expectativas bíblicas são atendidas, as tensões são resolvidas e as conexões com temas anteriores são feitas. Além disso, Jesus parte em uma cena final marcada por alegria, louvor e bênção. Ao mesmo tempo, o final permite explicitamente que a história continue, nomeando eventos específicos que estão por vir. Como resultado, o final termina sem cortar, juntando as coisas sem negar a presença de fios não resolvidos. (TROFTGRUBEN, 2021, p. 339, tradução nossa).
Dentre esses temas estão os que se conectam com mensagem do anjo e do coro angelical. Dois temas aparecem juntos no Evangelho lucano e estão presentes nessa perícope de anunciação e na da aparição do Cristo ressurreto: manifestação e temor, ambos como elementos cristológicos[6]. Esses dois elementos também ocorrem no relato da transfiguração em Lc 9. Holtz (2009, p. 485, tradução nossa) comenta esse link: “Lucas localiza a revelação mais importante da glória nos principais textos cristológicos do nascimento, transfiguração e histórias da Páscoa. Neles, o medo dos presentes é interpretado como uma reação humana a uma revelação da doxa.” (HOLTZ, 2009, p. 485, grifo e tradução nossa).
Essa ligação de revelação (manifestação) da doxa divina, e o temor correspondente, é vista no AT, especialmente no Êxodo, onde Deus aparece e se manifesta para salvar seu povo[7]. Assim, em Lc 2, há a mensagem do nascimento do Salvador, e, em Lc 24, há a presença do Salvador que venceu a morte e concede vitória e salvação aos que nEle creem. Esse aspecto revelatório ligado à doxa-temor é abordado por Arruda Junior:
Essas manifestações da glória divina ligadas ao Messias, ou presentes nele mesmo, apontam para sua identidade divino-humana, isso pode ser visto em outras ocasiões no Evangelho segundo Lucas, como nas ocorrências de milagres. Por exemplo, em Lucas 5,1-11, Jesus realiza um milagre proporcionando uma pesca maravilhosa, num horário impróprio para tal atividade (dia, quando o normal era noite); diante disso Simão Pedro cai aos seus pés e pede para Cristo se afastar dele, isso devido ao reconhecimento de que Jesus estava em uma esfera superior à humana, como explica Fitzmyer (2008, p. 567, grifo e tradução nossa): “‘Afasta-te de mim,’ mas, não no sentido de ‘saia do barco’, mas sim, ‘saia da minha vizinhança’. A reação de Simão ao poder demonstrado no miraculoso arrasto de peixes relaciona Jesus a um reino ou esfera a que ele próprio não pertence... Essa dupla, epifania-temor é vista nas Sagradas Escrituras e geralmente indica manifestação da doxa divina, seja Sua Pessoa ou seres a seu serviço (anjos, serafins, querubins).” (ARRUDA JUNIOR, 2023, p. 94).
Além da ênfase no revelatório, doxa-temor também traz à lume o aspecto do encontro e da comunhão, esses encontros não apenas avançam a trama, mas também revelam aspectos do plano divino. Isso pode ser interpretado como uma representação da comunhão entre Deus e a humanidade. Os encontros divinos ilustram a iniciativa de Deus em se comunicar com a humanidade, oferecendo orientação, conforto e direção. A repetição desse padrão ao longo da narrativa ressalta a consistência do desejo divino de se relacionar com as pessoas.
Quando entendidas, essas manifestações graciosas e portentosas geram um sentimento bom: alegria! Do temor se passa à alegria quando a mensagem é devidamente entendida. A presença graciosa e poderosa de Deus é para salvar e não destruir, isso gera euforia e paz. No encontro dos discípulos com o Salvador e no dos pastores com os anjos, dois elementos chave fazem com que essa mudança de sentimentos (medo-alegria) ocorra: entendimento da mensagem e experiência como o Salvador. Os pastores ouviram o anjo do Senhor e a milícia celestial e foram ver o menino. Os discípulos viram o Cristo e ouviram sua explicação do que de fato ocorrera com Ele (Lc 24,44-49. Esse binômio Escritura e experiência com o Cristo é enfatizado por Boesenberg (2022, p. 160, grifo e tradução nossa): “As Escrituras e as palavras de Jesus são essenciais para os primeiros discípulos de Jesus e para as audiências posteriores de Lucas, tanto para dissipar as dúvidas quanto para levar os crentes a dar testemunho.”
O ponto de destaque neste artigo vai para a saudação de paz. Nolland (1993, p. 1212, tradução nossa) explica: “É uma saudação judaica padrão e uma saudação usada em encontros do AT com figuras angelicais (veja Dan 10,19; cf. Juízes 6,23).”
Ao se perguntar sobre o sentido do termo paz em Lucas, já que o vocábulo “paz” pode significar várias coisas, como paz entre os indivíduos, entre as nações, entre o homem e Deus, paz de alma etc., tem-se a contribuição de Green, que destaca que, no Terceiro Evangelho o enfoque é soteriológico:
“Paz” em Lucas não tem conexão com a harmonia com o Império Romano ou com a liderança do templo, nem se refere à tranquilidade subjetiva ou individualista. Paz, ao contrário, é um termo soteriológico - shalom, paz e justiça, o dom de Deus que abrange a salvação para todos em todas as suas realidades sociais, materiais e espirituais. Dentro deste cotexto (ver “neste dia”), “as coisas necessárias para a paz” devem incluir tanto o rei (que traz, estabelece e perpetua a paz) quanto as respostas de boas-vindas e bênçãos pelas quais as pessoas devem cumprimentar este rei . Jesus, no entanto, antecipa sua rejeição - e, portanto, a recusa da paz - em Jerusalém. Como consequência, a visitação divina será experimentada não como redenção, mas como julgamento (cf. 10:8-15). Além disso, o “agora” de Lucas (v 42b) indica que Jerusalém, em seu fracasso em reconhecer o significado do advento de Jesus em seus portões, chegou a um ponto sem volta. A sua falta de abertura à intervenção salvífica de Deus resultou na incapacidade de Jerusalém para ver a sua obra. (GREEN, 1997, p. 690, grifo e tradução nossa).
Os anjos em Lc 2 falam com pastores, dão uma mensagem de esperança e salvação e declaram paz aos homens na terra; a paz e a irrupção da salvação alcançam a todos, a começar, neste relato, pelos que ouvem a mensagem angelical, como informa Saoût:
No séc. I, o poeta latino Virgílio (Églogas 4) via os pastores como pessoas simples e inocentes, enquanto os rabinos judeus os consideravam como ladrões e impuros. Lucas os vê, sobretudo, como pobres. A “boa-nova” (v. 10) anunciada pelo anjo, aos pastores, Jesus a dirá “anunciada aos pobres” (7,22). Porém não há nada de exclusivo: isto “será uma grande alegria para todo o povo”. (SAOÛT, 2012, p. 18, tradução nossa).
Assim, a mensagem de paz vem a todos, inclusive aos pobres e excluídos da Palestina no séc. I d.C. Isso também fica explícito na instrução de Jesus aos discípulos em Lc 24,44-49, onde é dito que a mensagem de salvação deve ser pregada, o querigma de “arrependimento para remissão dos pecados” (Lc 24,47), a todas as nações, e os discípulos eram testemunhas disso. Essa saudação de paz alcançou primeiro aos discípulos, e devia circundar o globo terrestre. Esse link, feito pela utilização do termo εἰρήνη, entre Lc 2 e Lc 24 é ressaltado por Arruda Junior:
Essa demonstração de favor aos homens é anunciada aos pastores nas colinas de Belém, “Eles eram, então, camponeses, situados na base da escala de poder e privilégio [...]. Boas notícias chegam aos camponeses, não aos governantes; os humildes são exaltados”. (GREEN, 1997, p. 130-131, tradução nossa). A paz messiânica chegou! Essa mesma paz é expressa pela fala do Cristo ressurreto em sua manifestação aos discípulos: “Paz seja convosco!” (Lc 24,36), tudo que foi dito até aqui sobre o sentido soteriológico de εἰρήνη é revisitada nessa declaração de Jesus, algo que ele ensinara aos discípulos, e que pode ser entendida como uma bênção, um dom: “A saudação que eles fazem ao entrar em uma casa não é um desejo. É um dom que é recebido ou rejeitado como tal.” (VON RAD; FOERSTER, 1964–, p. 413, tradução nossa). (ARRUDA, JUNIOR, 2023, p. 97).
O tema da paz é um fio condutor ao longo do Evangelho de Lucas. A conexão entre a expectativa, a alegria e os encontros divinos no fechamento da narrativa pode ser interpretada como uma afirmação de que a paz é um resultado direto da salvação divina. A paz é estabelecida não apenas como ausência de conflito, mas como uma harmonia profunda com Deus, harmonia esta gerada pela iniciativa divina.
A declaração de paz, misturada com a manifestação do Cristo ressurreto, antes de gerar alegria, gerou temor, um medo e assombro advindos da percepção da doxa divina bem diante dos discípulos, e isso ressaltou a descrença deles, como bem coloca Hughes:
Enquanto ainda conversavam sobre isso, o próprio Jesus se apresentou entre eles e lhes disse: 'Paz seja com vocês! Eles concordaram em aparente aceitação do relatório de Pedro, continuaram acenando enquanto ouviam o relatório de Emaús, mas com a aparição repentina de Jesus eles se engasgaram, seus olhos se arregalaram e sua pele se arrepiou ao ver o que eles consideraram uma aparição fantasmagórica de Jesus. Na verdade, foi a voz de Jesus que os saudou: “Paz seja com vocês”. A paz na terra havia sido anunciada na vinda de Jesus (2,14), mas eles não tinham muita paz em seus corações - apenas uma descrença escandalosa. Esses apóstolos escolhidos a dedo eram tão “insensatos... e tardos de coração” (v. 25) e confusos quanto os discípulos de Emaús! (HUGHES, 1998, p. 414, grifo e tradução nossa).
A paz, em Lucas 24, está ligada à epifania, ao temor e à alegria. Nesse capítulo, a paz é intrinsecamente entrelaçada com a jornada de descoberta espiritual que se desdobra através da explanação das Escrituras e do encontro com o próprio Cristo ressurreto. A mensagem ressoa atualmente, pois a vivificação desses elementos é atingível através da imersão na leitura e no estudo das Sagradas Escrituras, assim como na comunhão mística com o Senhor da Glória, o Jesus vitorioso sobre a morte. Os relatos finais, no texto lucano, demonstram que antes de experimentar a paz precisa-se contemplar o Messias vivo, temer diante de sua doxa, entender que essa “visitação” é para salvar e um convite à partilha. Nesse percurso, a paz que Jesus generosamente outorga aos discípulos torna-se uma herança inestimável e um testemunho tangível da realidade transformadora do Evangelho.
Portanto, a análise de Lc 24,36-49 alarga mais o entendimento da paz, através dos pontos: primeiro, os links de fechamento do Evangelho segundo Lucas; segundo, a epifania, temor, paz e alegria no início do evangelho lucano; terceiro, os elementos paralelos em Lc 2,8-20 e Lc 23,36-49. O temor é a característica principal dos discípulos no desejo de serem confortados pela manifestação do Ressuscitado. Eles passam do medo à confiança de que o Senhor vive e eles o podem ver, à medida que se colocam a serviço da Palavra de Deus.
Com base nas informações apresentadas ao longo da análise lucana, destacam-se três aspectos relevantes sobre a paz em uma abordagem comparativa e interpretativa. Primeiramente, o texto de Lucas 24,36-49 identifica quatro pontos de conexão entre a passagem em análise e o início do livro (Lucas 2,8-20), onde os pastores são visitados por um anjo e, posteriormente, por um grupo de anjos. Esses pontos incluem a manifestação miraculosa, o sentimento de temor, a saudação de paz e a subsequente alegria; tais elementos perpassam ambos os episódios, mas alcançam um clímax e desfecho no relato da ressurreição.
Em segundo lugar, a aparição de Jesus restaura a paz nos corações dos discípulos por meio da saudação repetida: “A paz esteja convosco!” (Lucas 24,36). A paz resulta em uma transformação: antes havia espanto e temor diante da manifestação da divindade, enquanto depois, com a assimilação da paz, surge a alegria em torno da continuidade da vida na realização da missão voltada para a fraternidade.
Em terceiro lugar, a superação da Paixão e o cumprimento das Escrituras (conforme Lucas 24,45) culminam na plenitude de alegria e paz, tanto humana quanto espiritual, nos corações. É necessário contemplar o Messias ressuscitado e reverenciar diante da sua glória divina. A “visita” de Jesus representa um gesto salvífico e o compartilhamento de sua presença vivificante.
Finalmente, a literatura lucana incita o indivíduo a efetivamente vivenciar a experiência com o Cristo ressuscitado. Diante dos desafios atuais, como a pandemia, as guerras e as polarizações políticas, bem como interpretações excessivamente fundamentalistas, a pessoa pode se tornar um sinal de esperança no mundo. Além disso, ela desenvolve a capacidade de curar as feridas causadas pelo consumismo desmedido, além de praticar com alegria a Palavra de Deus e testemunhar a vivência com o Mestre Jesus. Assim, ser cristão implica estar disposto a entrar na escola da vida e aplicar a paz no serviço.
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[1] RODRÍGUEZ CARMONA, A. Historia de la exégesis Lucana. In: AGUIRRE MONASTERIO, R. (ed.). La investigación de los evangelios sinópticos y Hechos de los Apóstoles en el siglo XX. 3a. ed. Estella (Navarra): Editorial Verbo Divino, 2008, p .279-281, esclarece que, na primeira metade do séc. XX, há um entendimento sobre a unidade de Lc-At; e, em outra obra (2012, p. 267), ele reafirma o que declara sobre a unidade alcançada no séc. XX (2008), embora faça a ressalva de que tal fato é aceito “pela maioria dos exegetas” (grifo acrescentado). AUNE, D. E. The New Testament in its literary environment. Philadelphia: The Westminster Press, 1989, p. 77, tradução nossa) assevera que “O Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos originalmente constituíam uma obra de dois volumes de um único autor”. BLOMBERG, C. L. Jesus and the Gospels: An Introduction and Survey. 2nd.Ed. Nashville: B&H Academic, 2009, p. 161-163, apresenta os dois livros como sendo obra de um mesmo autor e enfatiza o aspecto geográfico como item unificador. Tannehill (1986; 1990), em seus dois volumes, a defende. PERONDI, I. A compaixão de Jesus com a mãe viúva de Naim (Lc 7,11-17). O emprego do verbo splangxizomai na perícope e no Evangelho de Lucas. 2015. 300f. (Tese de doutorado) – Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humana, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015, p. 59. Em sua tese doutoral atesta que: “A dúplice obra lucana forma um único projeto literário. Isto fica evidente quando se olha com atenção o esquema geográfico-teológicos, dos dois livros, que se centram na cidade de Jerusalém, mas com diferenças que indicam a progressão do projeto lucano”. KARRIS, R. J. O evangelho Segundo Lucas. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (ed.). Novo comentário bíblico São Jerônimo: novo testamento e artigos sistemáticos. Santo André: Academia Cristã, São Paulo: Paulus, 2011, segue a mesma linha ao explicitar várias vezes a expressão “Lucas-Atos” no tratamento introdutório de seu comentário. Como Rodríguez Carmona aclarou, desde o segundo quarto do séc. XX, essa é a tendência da maioria.
[2] Embora haja semelhanças do relato pós-pascal, visado aqui, com Mc 6, onde Jesus anda sobre a água, há mais dessemelhanças, conforme elucida Nolland: “Há uma série de semelhanças entre a presente perícope e a caminhada sobre a água em Marcos 6,45-51 (aparição inesperada, medo [usando ταράσσειν], a ideia por parte dos discípulos de que eles poderiam estar vendo um fantasma, uso de ἐγώ εἰμι, “sou eu”), uma perícope que Lucas não reproduziu. Embora essas semelhanças sejam impressionantes, tudo menos a ideia de um fantasma e o uso de ἐγώ εἰμι são comuns às aparições ‘sobrenaturais’. Além disso, a explicação de fenômenos inexplicáveis em termos de fantasmas é um fenômeno universal, assim como o papel da autoidentificação. Apesar da notável semelhança, não é provável que haja qualquer ligação tradicional entre os relatos”. NOLLAND, J. Luke 18,35–24,53. Dallas: Word, Incorporated, 1993, p. 1211–1212, tradução nossa. (Word Biblical Commentary, vol. 35C). Há também semelhanças com o relato joanino de uma manifestação do Cristo ressurreto, mas como demonstra Fitzmyer, os relatos são diferentes: A principal diferença nas cenas lucanas e joaninas é o tratamento das reações dos discípulos: em João, eles se alegram ao ver o Senhor (que os comissiona e sopra o Espírito sobre eles); em Lucas, eles estão aterrorizados, surpresos e incrédulos. Existem, além disso, dois outros elementos menores nesta cena lucana que têm contrapartes em outros versos joaninos: (a) O desafio do Cristo lucano, “Toque-me e veja” (v. 39b), é semelhante ao desafio estendido a Tomé em João 20,27; e (b) o “peixe” que é oferecido ao Cristo ressurreto no v. 42 lembra o peixe que ele ofereceria aos sete discípulos em João 21,9 (embora a terminologia seja diferente). FITZMYER, J. A. The Gospel according to Luke X–XXIV: introduction, translation, and notes. New Haven; London: Yale University Press, 2008, p. 1573-1574, tradução nossa.
[3] TROFTGRUBEN, Troy M. The Ending of Luke Revisited. Journal of Biblical Literature, Atlanta, v. 140, n. 2, 2021, apresenta os outros dois elementos (elemento que trata da resolução divide-se em 2 – expectativas cumpridas e resoluções de tensões) que indicam fechamento de uma obra; eles serão colocados aqui, pois o primeiro deles é o mais importante para o teor deste artigo. O referido autor aponta que em Lc 24 tem-se 1.“Expectativas atendidas: cumprindo as coisas antecipadas: Lucas 24 se sai muito melhor, pelo menos em relação a duas expectativas narrativas centrais: a ressurreição de Jesus e sua partida, além de enfatizar que a totalidade do ministério de Jesus cumpre as Escrituras.” (TROFTGRUBEN, 2021, p. 333-334, grifo e tradução nossa); 2. “Resolução de tensões: A primeira tensão envolve a incerteza se Jesus ressuscitou, a segunda tensão narrativa é o mal-entendido. No início da narrativa, os discípulos de Jesus não perceberam o significado de sua paixão (9,45, 18,34). No capítulo final de Lucas, todos os três segmentos retratam mensageiros divinos para garantir que os seguidores de Jesus entendam o significado desses eventos. Desta forma, a narrativa de Lucas conclui tanto com a alegre crença na ressurreição quanto com a compreensão de seu significado.” (TROFTGRUBEN, 2021, p. 335-336, grifo e tradução nossa); 3. “Marcadores terminais: dicas de que é ‘o fim’. Cenas silenciosas geralmente aparecem no início e no final de obras literárias como dispositivos de enquadramento que ajudam os leitores a entrar na história no início e sair no final. Em Lucas 24, a cena final (vv. 50-53) passa da intimidade do diálogo direto (vv. 44-49) para o modo mais distante do resumo em terceira pessoa. A cena final termina com bênçãos mútuas, estendidas com grande alegria.” (TROFTGRUBEN, 2021, p. 336-337, grifo e tradução nossa). E Troftgruben arremata: “Coletivamente, esses aspectos contribuem para uma forte sensação de encerramento: o final de Lucas se conecta ao início, atende às expectativas, resolve as tensões e termina com uma cena final de despedida e bênção.” (TROFTGRUBEN, 2021, p. 337, tradução nossa).
[4] Os discípulos a caminho de Emaús convidam o viajante a ficar com eles, “pois cai a tarde e o dia já declina” (Lc 24,29); após o desaparecimento do Cristo Ressurreto, eles voltam para Jerusalém na mesma hora (Lc 24,33), considerando que Emaús ficava a sessenta estádios (cerca de 12 quilômetros – DILLMANN; MORA PAZ, 2006, p. 563 apresentam este dado), eles gastaram mais de 2 horas de caminhada, e já era noite. Quando chegaram falaram com os onze sobre o ocorrido e foram surpreendidos pela declaração “É verdade! O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão” (Lc 24,34). Estavam ainda conversando (na mesma ocasião e no mesmo período – noite) quando Jesus apareceu (Lc 24,36.
[5] LOUW, J. P.; NIDA, E. A. Léxico Grego-Português do Novo Testamento: baseado em domínios semânticos. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013, p. 581, informam que ἑσπέρα corresponde a “um período que vai do final da tarde até ao anoitecer – ‘tarde’.”
[6] “O motivo do medo qualifica parte das histórias de milagres de Lucas como semelhantes a revelações e, portanto, cobre a conexão interna entre esses textos e as manifestações da Doxa em Lucas 2, 9 e 24 em diante. Essa conexão interior consiste na revelação da majestade de Deus na história de Jesus. Esta linha específica da cristologia de Lucas é resumida com a frase: ‘Mas todos se maravilharam com a majestade de Deus’ (9,43). O motivo do medo, portanto, contribui decisivamente para revelar a majestade de Deus revelada nos feitos poderosos de Jesus como o lado visível da invisível doxa celestial.” HOLTZ, G. Zur christologischen relevanz des furchtmotivs im Lukasevangelium. Biblica, Roma, v. 90, n. 4, 2009, p. 504, grifo e tradução nossa. Ainda, na p. 484 (grifo e tradução nossa), Holtz explica que: O motivo do medo não só desempenha um papel central no contexto das histórias de milagres, mas também em três textos cristológicos fundamentais do Evangelho: na história do nascimento no início, na história da transfiguração na transição da primeira à segunda parte principal, e no relato da última aparição no final do Evangelho.”
[7] “O desenvolvimento Lc do motivo do medo como uma reação humana à revelação de Deus na história de Jesus leva em muitos aspectos no AT, referência de textos; no entanto, há uma proximidade especial com a representação da revelação em Ex. Em particular, a conexão entre medo e doxa, por um lado, e medo e milagres, por outro, que é característica de Lucas, só encontra uma correspondência exata no Velho Testamento aqui.” (HOLTZ, 2009, p. 497, tradução nossa). E, ainda: “O reconhecimento da visão do ato divino da salvação, que leva ao temor, e o reconhecimento louvável do Deus que o revela, pertencem à base motívica comum de Ex e Lucas. Ambos também têm em comum o motivo da graciosa visitação do povo por Deus (επισκέπτομαι). (HOLTZ, 2009, p. 502-503, grifo e tradução nossa).