“Bem-aventurados os pacificadores”: a identidade dos εἰρηνοποιοί em Mateus 5,9

“Blessed are the peacemakers:” the identity of the εἰρηνοποιοί in Matthew 5,9

Adenilton Tavares de Aguiar

Doutor em Teologia (com concentração em Novo Testamento) pela Andrews University. Professor de Novo Testamento no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, Cachoeira/BA. Contato: adenilton.tavares@adventista.edu.br


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Resumo: Palavras da raiz-εἰρην são raras no Evangelho de Mateus. Porém, isto não significa que o tema da paz seja um assunto de menos importância no Primeiro Evangelho. Por exemplo, o tema é abordado no Sermão da Montanha (Mt 5–7) e, mais diretamente, na sétima bem-aventurança: “bem-aventurados os pacificadores” (Mt 5,9). Não existe consenso na literatura quanto ao significado e aplicação do substantivo εἰρηνοποιοί/pacificadores. O fato de que se trata de um hápax legomenon dificulta ainda mais sua interpretação. A forma verbal cognata εἰρηνοποιέω também ocorre apenas uma vez no Novo Testamento (Cl 1,20). Este artigo defende que o termo “pacificadores” se refere a pessoas que levam outros a experimentarem um estado de bem-estar e harmonia com Deus bem como promovem reconciliação entre membros na comunidade. 

Palavras-chave: Exegese Bíblica; Bem-aventuranças; Pacificadores

Abstract: Words from εἰρην-root are rare in the Gospel of Matthew. However, this does not mean that the theme of peace is a minor issue in the First Gospel. For instance, this theme is addressed in the Sermon on the Mount (Mt 5–7) and, more directly, in the seventh beatitude, “Blessed are the peacemakers” (Mt 5,9). The meaning of εἰρηνοποιοί/peacemakers is disputed. The fact that it is a hapax legomenon makes its interpretation even harder. The cognate verb form εἰρηνοποιέω/peacemakers also occurs only once in the New Testament (Cl 1,20). This paper argues that the term “peacemakers” refers to people who lead others to experience a state of well-being and harmony with God as well as promote reconciliation between members in the community.

Keywords: Biblical Exegesis; Beatitude; Peacemakers

Introdução

O termo “pacificadores” em Mateus 5,9 tem sido interpretado de diversas formas. Thomas G. Long afirma que esse substantivo “abraça aqueles que trabalham para interromper guerras entre as nações bem como aqueles que buscam harmonia nas relações interpessoais” (LONG, 1997, p. 50, tradução nossa). Turner (2008, p. 152-153, tradução nossa) defende que os pacificadores são reconciliadores ativos e que “sua experiência de paz com Deus os capacita a buscar o fim das hostilidades e o bem-estar final do mundo”. De modo semelhante, Morris (1992, p. 101, tradução nossa) argumenta que o termo se refere a “pessoas que cessam hostilidades e reconciliam os briguentos”. Por sua vez, Blomberg (1992, p. 100) sugere que o foco do termo “pacificadores” recai sobre as relações interpessoais. São pessoas que promovem reconciliação de outros com Deus trazendo para elas um senso de inteireza e harmonia por meio da mensagem do evangelho. Para Hagner (1993, p. 94), os pacificadores são aqueles que vivem pacificamente e até amam os inimigos. De modo semelhante, France (2007, p. 169, tradução nossa) propõe que “esta bem-aventurança vai além de uma mera disposição pacífica para uma tentativa ativa de ‘promover’ paz, talvez buscando reconciliação com os próprios inimigos, mas também, em um sentido mais genérico, reunindo aqueles que estão distante uns dos outros”. Em síntese, as propostas se dividem em três direções: 1) o termo εἰρηνοποιοί/pacificadores se refere a pessoas que promovem paz entre nações em conflito; 2) o termo εἰρηνοποιοί/pacificadores se refere a pessoas que resolvem conflitos entre outras pessoas, trazendo-as a um estado de harmonia e recongraçamento entre si; 3) o termo εἰρηνοποιοί/pacificadores se refere a pessoas que exercem um papel de reconciliação entre Deus e os outros.

A seguir, este artigo avalia o uso de εἰρηνοποιοί/pacificadores em Mateus 5,9, valendo-se (1) de uma breve análise de palavras no Novo Testamento oriundas da raiz-εἰρην, (2) da relação entre εἰρήνη/paz e שָׁלוֹם/paz e (3) de um estudo do termo εἰρηνοποιοί/pacificadores em seu contexto imediato do sermão da montanha. 

1. Campo semântico da “paz” no Novo Testamento

Diversas palavras derivam da raiz-εἰρην no Novo Testamento:   os substantivos εἰρήνη/paz e εἰρηνοποιός/pacificador, o adjetivo εἰρηνικός/pacífico e os verbos εἰρηνεύω/estar ou viver em paz e εἰρηνοποιέω/promover paz. O substantivo εἰρηνοποιός/pacificador ocorre apenas em Mateus 5,9 e é uma forma composta formada pelo substantivo εἰρήνη/paz e a forma substantivada do verbo ποιέω/fazer. Portanto, o termo significa literalmente “aquele que faz paz”. Nesse sentido, uma tradução literal de εἰρηνοποιέω — que também é um hapax legomenon — é “fazer paz”. O verbo εἰρηνοποιέω/promover paz é a forma sintética da construção ποιεῖν ou ποιέω εἰρήνην. Esta forma desenvolvida ocorre em Efésios 2,15 e Tiago 3,18. Ao que parece, não é necessário defender que há uma diferença entre εἰρηνοποιέω e ποιέω εἰρήνην. A composição verbal é um fenômeno comum no Grego do Novo Testamento. Tome-se como exemplo o uso abundante que o apóstolo Paulo faz das formas compostas, quer sejam verbais ou nominais (AGUIAR, 2012). Em muitos casos, a alternância entre formas verbais compostas e simples deve-se a razões meramente estilísticas. 

Em relação ao uso de ποιέω εἰρήνην/promover paz em Efésios 2, é importante notar o paralelismo entre essa expressão no verso 15 e ἀποκαταλλάσσω/reconciliar no verso 16. Além disso, tanto ποιέω εἰρήνην/promover paz quanto ἀποκαταλλάσσω/reconciliar estão em paralelo com a construção εὐαγγελίζω εἰρήνην/evangelizar paz no verso 17. Desse modo, essa passagem nos dá um indício de que o conceito de “pacificar” (ποιέω εἰρήνην ou εἰρηνοποιέω) está muito próximo dos conceitos de “reconciliar” e “evangelizar”. Curiosamente, o parágrafo contido em Efésios 2,14-18 começa com a afirmação de que Cristo “é a nossa paz” (Ef 2,14). Obviamente, os comentaristas discutem quais são as partes envolvidas na pacificação promovida por Cristo. Alguns defendem que o texto sugere paz entre Deus e os homens (e.g., LINCOLN, 1990, p. 146-147; BOICE, 1988, p. 85, 202). Outros defendem que o texto sugere paz entre judeus e gentios (e.g., BRATCHER & NIDA, 1993, p. 59). Porém, provavelmente, não é necessário optar entre uma coisa e outra. Conforme é defendido por alguns intérpretes, as duas posições podem ser harmonizadas, uma vez que possivelmente a ideia da passagem é de que a paz entre judeus e gentios de forma específica só pode ser uma realidade como resultado da paz que, de forma geral, Deus trouxe aos homens (BARTH, 2008, p. 266-267; BRUCE, 1984, p. 300-301). Por sua vez, em Tiago 3,18, a frase ποιέω εἰρήνην/promover paz aponta para a experiência de paz dentro da comunidade (DAVIDS, 1982, p. 155; GUTHRIE, 2006, p. 251). Com efeito, esta é uma preocupação geral dessa carta neotestamentária (McKNIGHT, 2011, p. 316-317). 

O verbo εἰρηνεύω/viver em paz ocorre quatro vezes no Novo Testamento (Mc 9,50; Rm 12,18; 2Cor 13,11; 1Ts 5,13). Este é um verbo estativo que aponta para a condição de estar em paz com os outros. A propósito, com exceção de 2 Coríntios 13,11, εἰρηνεύω/viver em paz sempre aponta para a relação horizontal entre indivíduos dentro da comunidade. Essa horizontalidade é percebida a partir de construções sintáticas formadas com pronomes recíprocos tais como ἐν ἀλλήλοις (Mc 9,50) e ἐν ἑαυτοῖς (1Ts 5,13), os quais comumente são traduzidos por “uns com os outros”. Em Romanos 12,18, a forma pronominal recíproca é substituída por μετὰ πάντων ἀνθρώπων/com todos os homens, que, a rigor, exerce a mesma função sintática. Mesmo em 2 Coríntios 13,11, onde não se vê qualquer pronome recíproco ou frase equivalente, a ideia de horizontalidade é facilmente percebida no contexto em função do vocativo ἀδελφοί/irmãos. A essa altura, é importante observar que εἰρηνεύω/viver em paz difere de εἰρηνοποιέω/promover paz no sentido de que o primeiro é estativo e, portanto, intransitivo, enquanto o segundo possui objeto interno, i.e., “paz”. Para dizer de outro modo, enquanto, do ponto de vista sintático, o primeiro possui um sujeito que se concentra em estar em paz com os outros, o segundo possui um sujeito que se preocupa em promover paz aos outros. 

O termo εἰρηνικός/pacífico ocorre apenas duas vezes (Hb 12,11; Tg 3,17). Ele pode ser definido como um adjetivo que se refere a algo “propício a um relacionamento harmonioso” (DANKER et al., 2000, p. 288, tradução nossa). Nessa mesma direção, Louw & Nida (1996, p. 314, tradução nossa) explicam que εἰρηνικός/pacífico se refere à “liberdade da ansiedade e agitação interior”. O termo ocorre 49 vezes na Septuaginta. Curiosamente, embora seja um adjetivo, a palavra é usada como equivalente hebraico do substantivo שָׁלוֹם/paz 12 vezes (Gn 37,4; Dt 2,26; 20,11; 23,6; Sl 34,20; 36,37; 119,7; Jr 9,8; 45,22; Ab 7; Zc 6,13; 8,16) e do substantivo cognato שָׁלֵם/oferta pacífica 11 vezes (1Sm 10,8; 11,15; 13,9 [LXX 1Rs 10,8; 11,15; 13,9]; 2Sm 6,17.18; 24,25 [LXX 2Rs 6,17.18; 24,25]; 1Rs 3,15; 8,63.64 [LXX 3Rs 3,15; 8,63]; 2Rs 16,13 [LXX 4Rs 16,13]; Pr 7,14). O fato é que, como εἰρηνικός/pacífico é uma palavra rara, seu uso no Novo Testamento não lança muita luz sobre o uso de εἰρηνοποιός/pacificador. Em todo caso, é importante levar em consideração que a relação entre εἰρηνικός/pacífico e שָׁלֵם/oferta pacífica sugere uma ideia de bem-estar e harmonia que é compatível com o termo εἰρήνη/paz, conforme se verá abaixo. Antes, porém, vale ressaltar que, no contexto do ritual israelita no Antigo Testamento, uma oferta pacífica é “uma refeição pactual que servia para afirmar o relacionamento entre o adorador, Deus e a comunidade de crentes” (GOSSAI, 2000, p. 1022, tradução nossa). Se o uso de εἰρηνικός/pacífico em Hebreus 12,11 e Tiago 3,17 expressa essa noção, é um tema para mais estudo. Por ora, resta afirmar que mais importante para entender o significado de εἰρηνοποιοί em Mateus 5,9 é o uso constante do termo εἰρήνη/paz, o qual é usado mais de noventa e uma vezes no Novo Testamento, com quatro ocorrências no Evangelho de Mateus (cf. Mt 10,13.34). 

2. A relação entre εἰρήνη/pazשָׁלוֹם/paz

O substantivo εἰρήνη/paz ocorre na Septuaginta 280 vezes. Quase sempre, o termo é usado para traduzir a palavra hebraica שָׁלוֹם/paz. Por si só, esse é um dado que aponta para uma relação íntima entre os dois termos; relação esta que é semelhante à relação de equivalência entre o termo hebraico אַשְׁרֵי/bem-aventurado e o termo grego μακάριος/bem-aventurado (HANSOM, 1995, p. 87-93). A propósito, os dois pares de palavras extrapolam semanticamente o que pode ser expresso por qualquer palavra na língua portuguesa. Hanson (1995, p. 89) argumenta que a tradução de μακάριος, assim como de אַשְׁרֵי, como “feliz” ou “bem-aventurado” não reflete a realidade expressa por esses termos. O termo hebraico שָׁלוֹם também é difícil de traduzir. Ele pode apontar para um estado de bem-estar, segurança, completude, saúde, amizade, bênção, satisfação, sucesso, prosperidade, tranquilidade, livramento ou salvação, etc. (BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 1022). Dada a sua natureza polissêmica, não é fácil encontrar na língua portuguesa uma palavra que tenha a mesma valência semântica de שָׁלוֹם. Ao se referir a esse termo, este artigo segue o costume geral de traduzir שָׁלוֹם por paz

Tanto שָׁלוֹם/paz quanto εἰρήνη/paz podem ocorrer numa ampla variedade de situações. De modo geral, שָׁלוֹם “descreve a experiência da pessoa que desfruta completamente da presença de Yahweh” (SILVA, 2014, p. 113), pois apenas Yahweh pode dar o senso de completude sugerido pelo termo. Assim, não é de surpreender que שָׁלוֹם/paz apareça na Bíblia Hebraica em paralelo com o termo יְשׁוּעָה/salvação, como ocorre em Isaías 52,7. Igualmente, o conceito de שָׁלוֹם/paz também está próximo do conceito expresso pelo termo חֶסֶד, comumente traduzido como “misericórdia” (Sl 85,10; Is 54,10; Jr 16,5). No livro de Salmos, חֶסֶד/misericórdia é um termo frequentemente usado para se referir ao amor pactual de Yahweh em sua aliança com o povo eleito (Sl 25,10; 89,28; 106,45). Não raro, חֶסֶד/misericórdia também expressa a ideia de graça divina, como se pode ver na Almeida Revista e Atualizada (Sl 6,4; 13,5; 40,10-11; 62,12; 63,3; 66,20; 69,13.16; 77,8; 85,10; 89,14.28; 103,4; 143,8). 

A íntima relação semântica entre שָׁלוֹם e εἰρήνη “afeta o significado e a distribuição da palavra grega de uma forma significativa” (SILVA, 2014, p. 112, tradução nossa). A esse respeito, o uso de εἰρήνη/paz no Novo Testamento “permanece firme na tradição da LXX” (SILVA, 2014, p. 115, tradução nossa). Embora escritores seculares subsequentes ao Novo Testamento tenham associado ocasionalmente εἰρηνοποιός/pacificador com o estabelecimento da paz como resultado da imposição de governantes, “por outro lado, a bem-aventurança de Mateus sem dúvida tem como pano de fundo os sentidos associados a שָׁלוֹם” (SILVA, 2014, p. 116, tradução nossa). A esse respeito, o comentário abaixo é pertinente.

A LXX costuma traduzir šālôm por eirēnē, o que abrange grande parte dos significados sem. da palavra de origem, exceto por “recompensa/retribuição”. Pelo fato de a paz em seu sentido religioso ser vista exclusivamente como a bênção de Deus de um relacionamento restaurado, o NT pode proclamar o cumprimento do estado escatológico de paz (Zc 9,10) em Jesus (Mt 5,9; 21,1; Lc 2,14). Por intermédio da morte de Cristo, é possível haver reconciliação e paz com Deus (Rm 5,1; Ef 2,14) e entre os homens (Ef 4,3; Tg 3.18). Assim, o NT dá continuidade ao conceito religioso de šālôm e considera o triunfo do Messias a concretização de šālôm (Lc 10,18; Rm 8,6; 16,20) (NEL, 2011, p. 135, tradução nossa).

Os comentários acima revelam que εἰρήνη/paz no NT tem um comportamento semelhante ao de שָׁלוֹם/paz na Bíblia Hebraica. Tome-se como exemplo a seguinte fala de Jesus nos evangelhos: “a tua fé te salvou; vai-te em paz” (Mc 5,34; Lc 7,50; 8,48). Nessas passagens, a relação entre εἰρήνη/paz e σωτηρία/salvação, saúde, restauração ou σῴζω/salvar, curar, restaurar vem à tona. Igualmente, o paralelismo entre εἰρήνη/paz e ἀγάπη/amor (2Cor 13,11; Ef 6,23; 2Tm 2,22; Jd 2; cf. também Gl 5,22; 1Pd 5,14) e entre εἰρήνη/paz e χάρις/graça ocorrem com relativa frequência. Aparentemente, esse paralelismo é reminiscente da relação entre שָׁלוֹם/paz e יְשׁוּעָה/salvação e שָׁלוֹם/paz e חֶסֶד/misericórdia, graça na Septuaginta.

Um dado relevante diz respeito ao fato de que εἰρήνη/paz e χάρις/graça comumente vêm da parte de Deus e de Cristo (e.g., Rm 1,7; 1Cor 1,3; 2Cor 1,2, etc.). Isto significa que, embora o termo εἰρηνοποιοί/pacificadores não apareça nesses contextos, Deus e Cristo são retratados como tais. 

A relação entre εἰρήνη/paz e εὐαγγέλιον/evangelho também é atestada (At 10,36; Ef 2,17; 6,15). Vários intérpretes do NT defendem que essas passagens em Atos e Efésios são ecos de Isaías 52,7, onde os conceitos de paz, salvação e evangelho estão intimamente relacionados. Em Atos 10,36 a confluência desses conceitos vem à superfície no sentido de que Jesus é retratado como o cumprimento da esperança profética (FAW, 1993, p. 128; FITZMYER, 2008, p. 463; SCHNABEL, 2012, p. 508). Assim como na Septuaginta de Isaías 52,7, também em Atos 10,36 o substantivo εἰρήνη/paz aparece como o objeto do verbo εὐαγγελίζω/anunciar boas novas. Esse fenômeno linguístico também ocorre em Efésios 2,17. Lincoln (1990, p. 147, tradução nossa) comenta que a interpretação cristológica que Efésios faz de Isaías 52,7 permite um link entre o que é dito sobre Jesus como “personificação da paz e sua obra de reconciliação nos versos 14-16 com a linguagem da ‘paz para os que estão longe e para os que estão perto’ de Isaías 57,19”. Embora o verbo εὐαγγελίζω/anunciar boas novas seja usado em Isaías 52,7 em seu sentido basilar de anúncio de boas novas, em Efésios ele assume o tom cristão de anúncio do evangelho de Jesus. Desse modo, em Efésios, a proclamação de paz é aplicada “não apenas ao povo de Israel, que está na terra e no exílio, longe da terra, mas a judeus (‘os que estão perto’) e os gentios (‘os que estão longe’)” (ARNOLD, 2010, p. 166, tradução nossa). Em Efésios 6,15, essa mensagem será chamada de “evangelho da paz”.   

A relação entre εἰρήνη/paz e εὐαγγέλιον/evangelho também se revela em Colossenses 1,20, uma vez que a ideia de que Jesus promoveu paz (εἰρηνοποιέω) e reconciliação pelo sangue da cruz (Cl 1,20; Ef 2,15) é a própria essência do evangelho. Nesse sentido, pacificar e evangelizar são conceitos correlatos. Vistos desta perspectiva, os “pacificadores de Mateus 5,9 se referem àqueles que, ao experimentarem o Shalom de Deus, tornam-se seus agentes estabelecendo essa paz no mundo” (OSBORNE, 2010, p. 168-169, tradução nossa). 

Todos os dados acima devem ser levados em consideração ao se analisar o uso de εἰρηνοποιοί em seu contexto imediato, o qual é tratado na seção que se segue.  

3. O termo εἰρηνοποιοί/pacificadores em seu contexto imediato

O termo εἰρηνοποιοί/pacificadores aparece na seção do Sermão da Montanha comumente conhecida como “as bem-aventuranças” (Mt 5,3-12). A frase “bem-aventuradores os pacificadores” constitui a prótase da sétima bem-aventurança (Mt 5,9). As bem-aventuranças seguem um padrão consistente de prótases introduzidas por μακάριοι/bem-aventurados ou felizes e de apódoses introduzidas pela conjunção ὅτι/porque. Essa consistência tem levado alguns intérpretes a defenderem que as bem-aventuranças possuem oito e não nove itens.  Tal discussão, porém, não faz parte do escopo deste artigo. Se a estrutura da perícope onde se encontram as bem-aventuranças é constituída por oito elementos, então a perícope começa e termina com a seguinte apódose: “porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3.10), a qual se constrói sobre um verbo estativo (εἰμί). Em contrapartida, há uma ênfase sobre verbos passivos no interior da estrutura de tal modo que alguns autores defendem uma estrutura concêntrica subjazendo o texto das bem-aventuranças (GUNDRY, 1994, p. 73), mas isto é disputado. Em todo caso, o fato de que verbos passivos abundam no interior de sua estrutura é, de fato, um fenômeno que chama a atenção. Essa estrutura pode ser mais bem visualizada na tabela a seguir. 

            QUADRO 1 – ESTRUTURA LINGUÍSTICA DAS BEM-AVENTURANÇAS

PRÓTASE

APÓDOSE

VERBO

Bem-aventurados os humildes de espírito

porque deles é (ἐστιν) o reino dos céus

Estativo

Bem-aventurados os que choram

porque serão consolados (πενθοῦντες)

Passivo

Bem-aventurados os mansos

porque herdarão (κληρονομήσουσιν) a terra

Ativo

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça

porque serão fartos (χορτασθήσονται)

Passivo

Bem-aventurados os misericordiosos

porque alcançarão misericordia (ἐλεηθήσονται)

Passivo

Bem-aventurados os limpos de coração

porque verão a Deus (ὄψονται)

Médio

Bem-aventurados os pacificadores

porque serão chamados (κληθήσονται) filhos de Deus

Passivo

Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça

porque deles é (ἐστιν) o reino dos céus

Estativo

FONTE: autoria própria

Vários intérpretes defendem que o caso acima se trata do que muitos têm chamado de “passivo divino” (DAVIES & ALLISSON JR., 2004, p. 429; OSBORNE, 2010, p. 166-167, entre muitos outros). Deus é o agente das bem-aventuranças. No caso da sétima, Deus é não apenas aquele que chama os pacificadores de filhos, mas também aquele que promove paz aos discípulos de Jesus. Em outras palavras, Deus é retratado como εἰρηνοποιός/pacificador — ainda que indiretamente — uma vez que o termo não é aplicado a ele na passagem. De fato, há inúmeros lugares no Novo Testamento em que Deus é apresentado como agente de paz. Ele é chamado de o “Deus da paz” (Rm 15,33; 16,20; Fl 4,9; 1Ts 5,23; Hb 13,20; cf. também 1Cor 14,33; 2Cor 13,11). Paz procede dele e de Jesus Cristo (e.g., Rm 1,7; 1Cor 1,3; 2Cor 1,2; Gl 1,3; Ef 1,2; 6,23; Fl 1,2; 4,7; etc.). Em Lucas 2,14, existe um paralelo entre a frase “glória a Deus nas alturas” e “paz na terra”. Em Romanos 14,17, o reino de Deus é paz. Em Romanos 15,13, Deus enche as pessoas de paz. Em 1 Coríntios 7,15, Deus chama as pessoas à paz. Além disso, na Epístola aos Romanos, vale notar que a paz de Deus chega aos homens por meio de Jesus Cristo (Rm 5,1). Portanto, Deus e Cristo aparecem no Novo Testamento como εἰρηνοποιοί/pacificadores ainda que o termo não seja atribuído a eles. Isto pode ser visto de outras formas ao longo do Sermão da Montanha.

Por exemplo, linguagem de reconciliação é usada nas falas introduzidas pela fórmula ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν/eu, porém, vos digo. Esta fórmula ocorre seis vezes em Mateus 5,21-48 e faz parte da introdução aos seis parágrafos que compõem a perícope. Cada parágrafo traz um contraste entre um mandamento expresso na Torá e um ensino de Jesus transmitido na forma de “novo mandamento”.  Tal contraste ocorre por meio da fórmula: “ouvistes que foi dito... Eu, porém, vos digo”. Ao longo da perícope, o leitor encontra injunções que transmitem o interesse de promover um ambiente de paz e reconciliação: “vai primeiro reconciliar-te com teu irmão” (Mt 5,24); “entra em acordo... com teu adversário” (Mt 5,25); “a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (Mt 5,39); “ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa” (Mt 5,40); “Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas” (Mt 5,41); “não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes” (Mt 5,42). Além disso, o trecho do discurso que se encontra em Mateus 5,38-42 é uma advertência contra a vingança pessoal. De fato, o texto sugere a rejeição da retaliação para aplicar em troca uma generosidade radical (OSBORNE, 2010, p. 206). O ápice dessa inversão consiste no mandamento para amar os inimigos (Mt 5,43-48). Esse tópico requer um comentário adicional. 

O mandamento para amar até mesmo os inimigos apela para a suprema oferta de paz. Nada pode promover uma atmosfera mais repleta de harmonia do que o amor. Não é de admirar que o parágrafo que trata do mandamento do amor (Mt 5,43-48) vem logo depois de um parágrafo que adverte contra a retaliação (Mt 5,38-42). Amor aos inimigos é o antídoto contra a vingança. Na perícope como um todo (Mt 5,21-48), Jesus intensifica o ensino da Torá colocando-o sob uma nova perspectiva à luz de seus ensinos. Por exemplo, em Êxodo 20:13, proíbe-se matar. Agora, proíbe-se até mesmo a ira que leva ao homicídio (Mt 5,21-26). Esta intensificação mantém-se de forma consistente até o último dos seis parágrafos da perícope (BROWN, 2015, p. 59-60). Ao que parece, tal intensificação ocorre não apenas quando se comparam os mandamentos em Mateus 5,21-48 com a Torá, mas também quando se avança do primeiro para o último mandamento nessa perícope. Em outras palavras, não é suficiente evitar a ira que leva a matar o inimigo, é necessário amá-lo e orar por ele. De fato, a obediência aos cinco primeiros mandamentos — i. proibição da ira que leva ao homicídio (Mt 5,21-26); ii. proibição da luxúria que leva ao adultério (Mt 5,27-30); iii. proibição da imoralidade sexual que leva ao divórcio (Mt 5,31-32); iv. proibição dos juramentos (Mt 5,33-37); e v. proibição da retaliação e vingança pessoal (Mt 5,38-42) —só é possível em obediência ao mandamento do amor (Mt 5,43-48). 

A ideia de amar os inimigos introduzida em Mateus 5,44 é desenvolvida nos versos seguintes. A partir de Mateus 5,45, infere-se que Deus ama até aqueles que não o amam. Isto fica claro no fato de que Deus não faz acepção de pessoas. Afinal, ele concede sol e chuva a bons e maus, justos e injustos. Ao dizer isto, Jesus está afirmando que essas graças são outorgadas mesmo àqueles que se colocam voluntariamente numa posição de inimizade contra Deus. Portanto, a ideia apresentada em Mateus 5,46 de que os seguidores de Jesus devem amar mesmo aqueles que não os amam tem origem no exemplo divino. Deus é promotor de paz, e sua perfeição mencionada em Mateus 5,48 deve ser entendida à luz dos versos anteriores. Para dizer de outro modo, sua perfeição nesse contexto deve ser definida como sua capacidade de amar mesmo os que não o amam. Igualmente, a perfeição humana nesse contexto se refere à iniciativa dos seguidores de Jesus de amar os inimigos e orar pelos que os perseguem. Em uma frase, eles devem promover um ambiente de paz e harmonia. A noção de pacificação em Mateus 5,43-48 pode ser vista ainda a partir de pelo menos mais quatro práticas associadas ao conceito de paz. 

O primeiro diz respeito ao uso do verbo ἀσπάζομαι/saudar (Mt 5,47). Esse verbo pode significar algo como “desejar paz” ou “desejar bênção” a alguém (HAGNER, 1993, p. 135); não é de surpreender que εἰρήνη/paz seja um termo comumente usado em saudações apostólicas nas cartas do Novo Testamento. 

O segundo deriva da perífrase verbal “Ἔσεσθε... τέλειοι” (Mt 5,48). O termo τέλειος/perfeito expressa uma ideia de completude tal como ocorre com o substantivo εἰρήνη/paz (BOICE, 2002, p. 147). Assim, no contexto de Mateus 5,43-48, ser perfeito significa duas coisas: (1) ser completo em amor a ponto de amar até os inimigos; (2) promover um ambiente de paz. 

O terceiro está relacionado com o tema do perdão. Na oração modelo, a necessidade de perdoar vem à tona no fragmento: “perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores. [...] Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se, porém, não perdoardes aos homens [as suas ofensas], tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas” (Mt 6,12.14-15). De fato, a oração modelo como um todo (Mt 6,9-13) é um discurso de paz, como bem percebeu São Francisco de Assis. Ele introduz seu belo poema sobre essa oração com o tocante pedido: “Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz”. Em determinado momento, ele menciona: “É perdoando que se é perdoado”. Não existe paz sem perdão. Um trecho da oração modelo diz: “faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6,10b). Para que a vontade de Deus seja feita na terra assim como é feita no céu, é necessário que haja uma atmosfera de paz e harmonia, que, por sua vez, só pode existir onde existe perdão. Curiosamente, o pedido por perdão ocorre logo depois do pedido pelo pão diário. Possivelmente, isto indica que há uma relação entre os dois pedidos. O significado específico do pedido por pão é disputado (LUZ, 2007, p. 319). No entanto, quer esse pão represente a necessidade física de alimento, todas as necessidades físicas ou ainda tudo o que é necessário para a manutenção da vida, ele é uma necessidade diária, assim como é a prática do perdão. A relação entre perdoar os outros e receber o perdão de Deus também é objeto de acalorado debate. Em todo caso, parece que o ponto diz respeito ao fato de que o perdão deve seguir o princípio da reciprocidade, no sentido de que seria incoerente buscar o perdão de Deus sem estar disposto a perdoar os outros (FRANCE, 2007, p. 249). O texto sugere que paz com Deus precede a paz entre os homens. Nesse sentido, Grant Osborne comenta que 

O ponto aqui é que nossa experiência de perdão deve resultar em uma mudança de coração de nossa parte e uma disposição para perdoar aqueles que nos feriram muito menos do que ferimos a Deus. [...] Uma comunhão renovada com Deus significa uma comunhão renovada com os outros na comunidade. Não é que nosso perdão seja a base para o perdão de Deus [...], mas que assim como experimentamos o perdão de Deus, devemos exercitar perdoar os outros com uma maior disposição (OSBORNE, 2010, p. 230, tradução nossa).

Numa posição similar, David Garland argumenta que receber o perdão de Deus “é um privilégio imenso, porém ele vem com a responsabilidade correspondente de estender perdão aos outros. Uma pessoa perdoada é uma pessoa perdoadora” (TURNER, 2008, p. 188-189, tradução nossa). 

O quarto se refere à advertência contra julgamentos em Mateus 7,1-5. Vale ressaltar que “isto não é uma declaração indiscriminada contra criticar e condenar o mau comportamento. É contra a crítica hipócrita que tem como objetivo destruir o outro para edificar a si mesmo” (DYBDAHL, 2010, p. 1257, tradução nossa). Assim, o julgamento a que essa passagem se refere diz respeito a “olhar uma pessoa de cima para baixo com uma atitude de superioridade, criticando-a ou condenando-a sem uma amorável preocupação [...]. O ponto chave aqui é a falta de amor” (OSBORNE, 2010, p. 258, tradução nossa). O tema da paz em Mateus 7,1-5 decorre do fato de que essa advertência está relacionada com “os mandamentos anteriores sobre reconciliação (Mt 5,21-26), amor, amar os inimigos (Mt 5,43-48) e perdão (Mt 6,12.14-15; cf. Mt 18,21-22)” (TURNER & BOCK, 2005, p. 109, tradução nossa). A propósito, como frisou Betz (1995, p. 139, tradução nossa), o material contido em Mateus 5 demonstra que a discussão gira em torno de questões pessoais, não havendo, portanto, “interesse nos discípulos de agir como um grupo político”. Logo, o que está em pauta é reconciliação entre indivíduos na comunidade e não entre grupos maiores como países. 

Ao integrarem às suas vidas as práticas mencionadas acima, os discípulos de Jesus imitam a natureza pacificadora de Deus. Conforme a discussão anterior, o Sermão da Montanha ensina que Deus ama (Mt 5,45) e perdoa (Mt 6,12a.14-15). De igual modo, os discípulos de Jesus devem amar os inimigos (Mt 5,44) e praticar perdão (Mt 6,12b). Acertadamente, Betz (1995, p. 138, tradução nossa) comenta que o Sermão da Montanha pressupõe que “Deus é o principal pacificador [...]. Consequentemente, toda pacificação humana é feita em imitação de Deus”. Em consonância com esse pensamento, Carson (1999, p. 27, tradução nossa) afirma que “as boas novas a respeito de Jesus Cristo é a maior mensagem de pacificação, e o cristão que compartilha sua fé é, fundamentalmente, um arauto da paz, um pacificador”. Ele acrescenta que “o papel do cristão como pacificador se aplica não apenas à divulgação do evangelho, mas também a diminuir tensões, buscar soluções, assegurando que a comunicação seja entendida” (CARSON, 1999, p. 28tradução nossa). 

Com respeito ao pensamento acima, vale notar que o termo “paz” é usado no discurso da missão dos discípulos registrado em Mateus 10. Ao que parece, o anúncio de paz nesse discurso faz parte da proclamação de que o reino de Deus irrompeu no mundo. Como declara France (2007, p. 386-387, tradução nossa), o anúncio da paz é “um aspecto da vinda do reino de Deus”. Isso se torna evidente no fato de que a afirmação registrada em Mateus 10,13 é possivelmente um eco de Isaías 52,7, onde se ouve um grito de expectação em relação ao reino messiânico. O texto afirma “que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina!” (grifos acrescentados). Porém, o uso de εἰρήνη/paz um pouco mais adiante nesse discurso (Mt 10,34) expressa a advertência de que o caminho para a paz não é isento de conflitos. Conforme o leitor avança no Evangelho de Mateus, ele percebe que 

Jesus estará continuamente engajado em robusta controvérsia, especialmente nos capítulos 21-23, e toda sua experiência será o oposto de um modo de vida “pacífico”. Seus seguidores não podem esperar menos, e sua missão para estabelecer o governo pacífico de Deus só pode ser realizada compartilhando sua experiência de conflito (FRANCE, 2007, p. 408, tradução nossa). 

Que o caminho para a paz não é isento de conflito é algo também presente no Sermão da Montanha. O texto de Mateus 7,21-23 sugere que uma atmosfera de paz é um lugar onde não existe a iniquidade. Os discípulos de Jesus devem trabalhar para fazer cessar o mal no mundo. Como pacificadores, eles refletem o caráter pacificador de Deus. Por essa razão, eles são chamados de filhos de Deus. Aqui, vale ressaltar que, na mentalidade hebraica, o termo “filho” frequentemente expressa igualdade de status ou caráter. Assim, por exemplo, a frase “filhos do reino” (Mt 8,12; 13,38) descreve aqueles que expressam o caráter que os habilita a fazer parte do reino. A frase “filhos do trovão” reflete a ideia de que os filhos de Zebedeu tinham temperamento tempestivo. A frase “filhos da luz” (Jo 12,26) possivelmente denota a ideia de pessoas que receberam uma revelação (ou luz) especial a respeito do evangelho de Jesus; desse modo, essa frase assume um tom irônico em Lucas 16,8, uma vez que ela aponta para pessoas que deviam viver à altura dessa luz revelada, mas não viviam. A frase “filhos da desobediência” (Ef 5,6) descreve pessoas desobedientes, e assim por diante. Em Mateus 5,45, à semelhança do que ocorre em Mateus 5,9, ser filho do Pai celeste significa refletir o caráter do Pai Celeste, embora 

um sentido mais relacional também seja provavelmente aplicado uma vez que, embora Mateus geralmente reserve a linguagem de “filho de Deus” para Jesus e não reflita em outros lugares a linguagem paulina de “tornar-se filhos de Deus” como um termo para salvação (e.g., Rom 8,14-17), ele frequentemente registrará Jesus falando a seus discípulos sobre “vosso Pai que está nos céus (5,16.45.48 etc.) (FRANCE, 2007, p. 169, tradução nossa). 

À guisa de conclusão, a oração “para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste” em Mateus 5,45 é reminiscente de “serão chamados filhos de Deus” em Mateus 5,9b. Se for este o caso, o mandamento para amar os inimigos em Mateus 5,44 é, em maior ou menor grau, uma explicação da frase “bem-aventurados os pacificadores” em Mateus 5,9a. Isto confirma a ideia de que a promoção de um ambiente de paz passa necessariamente pela prática de amar até mesmo os inimigos, assim como Deus ama justos e injustos e lhes concede os elementos essenciais à vida indiscriminadamente (Mt 5,45). Conforme destacam Davies e Allison Jr. (2004, p. 458, tradução nossa), “ao ser um pacificador, o discípulo está imitando seu Pai no céu”. Eles refletem seu caráter pacificador (CARSON, 1999, p. 28). 

Conclusão

A palavra εἰρηνοποιοί/pacificadores na sétima bem-aventurança de Mateus 5 tem sido interpretada de diversas formas. O fato de que se trata de um hápax legomenon aumenta o grau de dificuldade no que se refere à sua interpretação. Dada a falta de consenso na literatura em relação ao referente do termo εἰρηνοποιοί/pacificadores em Mateus 5,9, este artigo buscou compreender sua aplicação e significado nessa passagem, levando em conta o campo semântico da paz no Novo Testamento, a relação entre εἰρήνη/paz e שָׁלוֹם/paz e, por fim, o contexto imediato em que Mateus 5,9 está inserido, ou seja, as bem-aventuranças e o Sermão da Montanha. 

A breve análise do campo semântico da paz demonstrou que existe uma relação semântica entre termos da raiz-εἰρήν e o conceito de evangelho e reconciliação. Também ficou evidente que, embora o termo “pacificadores” não seja aplicado diretamente a Deus e Cristo, eles são retratados como tais em diversas passagens. Isto sugere que os discípulos de Jesus são promotores de paz à medida que imitam o caráter pacificador de Deus e de Cristo. 

A relação entre εἰρήνη/paz e שָׁלוֹם/paz sugere que o termo εἰρηνοποιοί/pacificadores aplica-se a indivíduos que levam pessoas a experimentarem um estado de bem-estar e harmonia com Deus. Neste sentido, os εἰρηνοποιοί/pacificadores são anunciadores das boas novas a respeito de Jesus Cristo. Isto pode ser visto em Colossense 1,20, onde Jesus aparece como o sujeito do verbo εἰρηνοποιέω/promover paz e, por assim dizer, é apresentado como um modelo supremo de εἰρηνοποιός/pacificador no sentido de que ele promoveu paz por meio de seu sangue. Essa ideia também ocorre em Efésios 2, onde Jesus é descrito como “a nossa paz” (v. 14) e aparece como sujeito das ações de promover paz (ποιέω εἰρήνην, v. 15), reconciliar (v. 16) e evangelizar paz (εὐαγγελίζω εἰρήνην, v. 17). Conforme já foi mencionado, os dados analisados acima indicaram que os conceitos de evangelho e paz estão relacionados de tal modo que é possível afirmar que paz vem por meio do anúncio das boas novas a respeito de Jesus. Essa relação entre evangelho e paz pode ser vista claramente em Atos 10,36 e Efésios 6,15. 

A análise do contexto imediato em que Mateus 5,9 está inserido demonstrou que Deus é o agente das bem-aventuranças e, portanto, ele é retratado como o “pacificador” por excelência. Na linguagem de Romanos 5,1, ele promove paz por meio de Jesus Cristo. Cristo promove paz entre Deus e os homens. O Sermão da Montanha explora a ideia de pacificação por meio de linguagem de reconciliação. A esse respeito, o ápice da reconciliação é a prática do amor. Porém, o mandamento de Jesus traz à tona uma generosidade tão radical a ponto de levantar a necessidade de amar até os inimigos e orar por eles. O Sermão da Montanha explora ainda mais quatro práticas que se relacionam com o conceito de pacificação, quais sejam: (1) a prática de desejar paz ou bênçãos aos outros (Mt 5,47); (2) a prática de buscar perfeição (Mt 5,48), com a ressalva de que perfeição neste contexto significa i) ser completo em amor a ponto de amar até os inimigos e ii) promover um ambiente de paz; (3) a prática do perdão (Mt 6,12.14-15); e (4) a prática de pôr de lado qualquer atitude de superioridade e criticismo hipócrita (Mt 7,1-5). 

Por fim, os dados acima revelaram que os discípulos de Jesus o imitam à medida que buscam trazer pessoas à harmonia com Deus. Ao mesmo tempo, eles atuam como reconciliadores entre indivíduos dentro da comunidade de fiéis. Este pensamento se baseia nas afirmações de Jesus introduzidas pela fórmula “eu, porém, vos digo” (Mt 5,21-48) bem como as referências à necessidade de amar e perdoar assim como Deus ama e perdoa. De fato, um ambiente de paz pode ser caracterizado como um lugar onde as pessoas desfrutam da paz de Deus trazida pela mensagem do evangelho, internalizam essa paz ao experimentar um senso de harmonia com Deus por meio de Jesus Cristo e externalizam essa paz, levando-a às pessoas dentro da comunidade em que atuam. 

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