Walace Alexsander Alves Cruz
Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Contato: professorwalacealexsander@yahoo.com
Resumo: Ao escolher o nome Francisco, Jorge Mário Bergoglio enunciava seu programa de pontificado. Francisco é um projeto de Igreja, uma forma de pensar a existencialidade cristã. Carrega o espírito profético que denuncia as estruturas injustas no interior da Igreja, e da sociedade. Intenciona erradicar as tensões que fragmentam a solidariedade humana, e milita pela esperança (ou utopia) de uma sociedade onde sejamos todos irmãos. Martinho Lutero situa-se entre os personagens mais revolucionários da história. Não é acaso, sua alcunha de protestante. Para o reformador alemão, é intrínseco ao espírito cristão a contestação contra toda as estruturas injustas da sociedade. No presente artigo nos debruçamos sobre um aspecto fulcral do pontificado de Francisco, seu profetismo. Objetivamos assim, a) evidenciar o profetismo de Lutero e Francisco; b) apontar como a tradição católica e protestante se encontram no devir profético que deve mover os cristãos.
Palavras-chave: Francisco; Lutero; Resistência; Evangelho
Abstract: By choosing the name Francisco, Jorge Mário Bergoglio enunciated his pontificate program. Francis is a Church project, a way of thinking about Christian existentiality. It carries the prophetic spirit that denounces the unjust structures within the Church and society. It intends to eradicate the tensions that fragment human solidarity, and fights for the utopia of a society where we are all brothers. In this article we focus on a key aspect of Francis' pontificate, his prophetism. Our analysis focuses on the speeches of Pope Francis to the participants of the World Meeting of Popular Movements and his speeches on the World Day of the Poor. We aim to a) highlight Francisco's prophetism; b) its convergence with the Protestant/Lutheran spirit and c) point out how the Franciscan prophetic role dialogues with the Lutheran.
Keywords: Francis; Prophetism; Luther; Complaint; Gospel
O profetismo era um elemento de importância salutar na tradição judaica. Os profetas eram homens/mulheres que representavam Iahweh, porta-vozes da divindade. O escopo do ministério profético estava na denúncia, fosse de uma religiosidade hipócrita, de uma espiritualidade que não tivesse incidência na realidade/concreta, ou de estruturas e conjunturas instauradas na sociedade que oprimiam, marginalizavam e coisificavam a pessoa humana. Os profetas caracterizavam-se ainda pelo anúncio de uma esperança escatológica. Anunciavam a vinda de mashiach, daquele ungido/separado por Deus, que instauraria um novo mundo, fazendo emergir um novo homem/mulher, a Nova Criação; o almejado Reino de Deus.
S. Pedro reconheceu em Jesus de Nazaré o mashiach. Sua confissão representa a fé cristã declarada no transcorrer de toda a história, “tú és o Cristo, o filho do Deus vivo” (Mt 16, 16). Reconhecer nele o prometido, implica em assumir que em Jesus de Nazaré se realizou o todo das profecias messiânicas. É o que S. Lucas afirma, “hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura” (Lc 4,21). Qual Escritura é esta? A de Isaías 61, que enunciava mashiach, aquele responsável por “anunciar a boa nova aos pobres, curar os quebrantados de coração e proclamar liberdade aos cativos, libertação aos que estão presos” (vv. 1-2).
Jesus de Nazaré veio na esteira dos profetas e paradoxalmente transcendeu os profetas. Seu profetismo está no reconhecimento da própria multidão que o identifica como “um dos profetas” (Mt 16,14). Mas sua transcendência se nota, por exemplo, na narrativa de S. João, de que essa mesma multidão, “procurava matá-lo, pois, além de violar o sábado, ele dizia ser Deus seu próprio pai, fazendo-se, assim, igual a Deus” (Jo 5,18). Neste trabalho, nos deteremos sobre seu profetismo porque objetivamos identificar no pontificado de Francisco e no pastorado de Lutero, a identificação com o espírito profético que emerge no judaísmo e se plenifica/realiza em Jesus de Nazaré. O que significa dizer, que é intrínseco ao próprio cristianismo uma existencialidade que nos exige sermos proféticos.
A existência cristã deve configurar-se numa tentativa contínua de imitação da vida de Jesus Cristo. Segundo S. Mateus, “basta ao discípulo ser como seu mestre” (Mt 10,25). Isto significa que para o cristão, Jesus Cristo está posto, em definitivo, como seu paradigma existencial absoluto. O ser/fazer do discípulo cristão está enraizado e fundamentado na vida e práxis do próprio Jesus. Portanto, é olhando para sua vida, narrada nos evangelhos, que o discípulo cristão encontra o arquétipo perfeito, o modelo ideal, o homem a ser imitado.
A contestação das estruturas injustas, a denúncia dos abusos estatais, a reprovação à objetificação da pessoa humana, o posicionamento ao lado dos desclassificados sociais, o teor contundente contra as elites que usam dos privilégios para explorar e marginalizar, portanto, não se fundam em ideologismos político-partidários. Nos dias hodiernos, é comum “acusar” cristãos que se posicionam nessa trincheira como comunistas. Mesmo o Papa Francisco foi acusado de comunismo. Mas, em seu discurso aos participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, reagiu com ironia e contundência, “é estranho, mas se falo disto para alguns, o Papa é comunista [...] não se compreende que o amor pelos pobres está no centro do evangelho. Terra, casa e trabalho, aquilo pelo que lutais, são direitos sagrados. Exigi-lo não é estranho, é a doutrina social da Igreja” (FRANCISCO, 2015, p.7-8).
Francisco recorda que o compromisso profético do cristão/Igreja está enraizado no próprio Jesus, no evangelho. É na observação da prática dele, que o discípulo cristão encontra subsídios para a sua própria atuação no mundo. A forma como as narrativas evangélicas são costuradas evidenciam o elemento profético na vida de Jesus de Nazaré, donde, como observa Francisco, o cristão/Igreja encontra sua fonte alimentadora.
Segundo os evangelhos, Jesus foi criado na aldeia de Nazaré, sua origem e identificação com os marginalizados é tão profunda, que S. João coloca na boca de Natanael a expressão de ceticismo em relação a Jesus, porque “de Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46). É interessante observar a leitura dialética que Francisco realiza da bíblia e da realidade, quer dizer, para o pontífice, bíblia e realidade estão amalgamadas, não podem ser lidas de modo divorciado. A realidade interpela a bíblia, a bíblia incide sobre a realidade. Lidar com o fato de que Jesus era de Nazaré provoca-nos. Situa o Deus-Filho na condição dos marginalizados, coloca-o no cenário de uma experiência humana, que estava atravessada pela sub-humanidade. Em Jesus estava alocada a vivência hoje experimentada pelos favelados e subalternizados.
S. Mateus coloca a sagrada família em fuga. Quer situá-la no contexto de uma suposta profecia messiânica de Oséias 11,1ss. Entretanto, Jesus está encaixado na condição de um refugiado, provavelmente, entre a população negra do Egito (Mt 2,13-23). Segundo dados da Agência da ONU para refugiados, “apenas em 2022, no Brasil, foram feitas 50.355 solicitações da condição de refugiado, provenientes de 139 países. As principais nacionalidades solicitantes em 2022 foram venezuelanas (67%), cubanas (10,9%) e angolanas (6,8%)” (ACNUR, 2023). A tentativa de dominação russa da Ucrânia, por exemplo, promove uma evasão massiva de homens/mulheres que lutam pela sobrevivência, na condição de quem implora refúgio.
A negação de refúgio pode implicar na própria negação da humanidade alheia. Do direito de existir, de estar como ser vivente no planeta, que parece ter sido colonizado pelos imperialismos ainda persistentes mundo afora. A negação de refúgio a Jesus de Nazaré implicaria na anulação da própria história da salvação. Nesse sentido, Francisco faz uma denúncia contundente:
Todos os dias encontramos famílias obrigadas a deixar a sua terra à procura de formas de subsistência noutro lugar; órfãos que perderam os pais ou foram violentamente separados deles para uma exploração brutal; jovens em busca duma realização profissional, cujo acesso lhes é impedido por míopes políticas econômicas; vítimas de tantas formas de violência, desde a prostituição à droga, e humilhadas no seu íntimo. Além disso, como esquecer os milhões de migrantes vítimas de tantos interesses ocultos, muitas vezes instrumentalizados para uso político, a quem se nega a solidariedade e a igualdade? E tantas pessoas sem abrigo e marginalizadas que vagueiam pelas estradas das nossas cidades? Quantas vezes vemos os pobres nas lixeiras a catarem o descarte e o supérfluo, a fim de encontrar algo para se alimentar ou vestir! Tendo-se tornado, eles próprios, parte duma lixeira humana, são tratados como lixo, sem que isto provoque qualquer sentido de culpa em quantos são cúmplices deste escândalo. Aos pobres, frequentemente considerados parasitas da sociedade, não se lhes perdoa sequer a sua pobreza. A condenação está sempre pronta. Não se podem permitir sequer o medo ou o desânimo: simplesmente porque pobres, serão tidos por ameaçadores ou incapazes (FRANCISCO, 2019, n.2).
Há claramente uma posição assumida por Jesus de Nazaré, de acordo com as narrativas dos evangelhos. Seus algozes o acusavam de ser amigo de publicanos, pecadores e prostitutas (Mt 9,11; Mc 2,16). Notadamente ele aglutinava em torno de si e tinha no núcleo duro de seus principais discípulos e seguidores, aqueles que eram desclassificados ou descartados sociais. A narrativa de S. João 8,1-11 é insinuante, afirmativa. Enquanto a religiosidade legalista vigente queria apedrejar uma mulher pega em adultério (e o homem?), Jesus de Nazaré se coloca em sua defesa. Aponta o posicionamento a ser assumido pelo cristão/Igreja, ou seja, colocar-se ao lado daqueles que estão ameaçados de apedrejamento, não daqueles que apedrejam. Francisco é cirúrgico em nos recordar que o compromisso social com os descartados ou marginalizados é intrínseco ao ser-existir (ou quefazer) cristão,
A promoção, mesmo social, dos pobres não é um compromisso extrínseco ao anúncio do Evangelho; pelo contrário, manifesta o realismo da fé cristã e a sua validade histórica. O amor que dá vida à fé em Jesus não permite que os seus discípulos se fechem num individualismo asfixiador, oculto nas pregas duma intimidade espiritual, sem qualquer influxo na vida social (FRANCISCO, 2019, n.6).
A opção primeira de Jesus de Nazaré demarca a dos cristãos/Igreja. Segundo S. Mateus 25, 35-40 no Dia do Senhor, o compromisso ético, a práxis evangélica, a relação de atenção/cuidado com o próximo serão critérios definidores dos bodes e ovelhas. Lidamos aqui com a experiência cristã como uma vivência que está enraizada no chão bruto da vida, atenta às realidades que a atravessam. O seguimento de Jesus de Nazaré, segundo anunciam os evangelhos, e o pontificado de Francisco insiste em demonstrar, não permite nenhum tipo de alienação, individualismo ou passividade. O discípulo cristão está amarrado à causa daqueles que estão vitimados pelas estruturas injustiças e desumanizadoras do mundo.
S. Mateus 6,33 coloca na boca de Jesus de Nazaré o dever de “buscar o Reino de Deus e sua justiça”. Reino de Deus e justiça estão conjugados de modo intrínsecos, porque quando o reinado de Deus se instaura as injustiças são solapadas, erradicadas. Logo, não há margem no evangelho, sob as luzes da práxis de Jesus de Nazaré, assim como no pontificado de Francisco, para imaginar uma espiritualidade abstrata, especulativa, alienada. O profetismo de Jesus e de Francisco afirmam que a espiritualidade cristã é uma espiritualidade de incidência.
Martinho Lutero representou a encarnação do sentimento de contestação e protesto que perpassava as fileiras do catolicismo desde o século XIV, e que eclodiu no XVI. Era o alvorecer de um novo mundo, do Renascimento, do resgate de um livre pensamento crítico, aos moldes da filosofia grega, na recusa da fé como sobreposta à razão; o velho medievalismo imperialista, atravessado pelo catolicismo de Roma estava em irrecuperável ruína. Marc Bloch ponderou que um homem não pode ser compreendido fora de seu tempo (BLOCH, 2001), Lutero é, sem dúvidas, um homem perpassado pelo espírito de rompimento que caracteriza a sociedade na qual estava inserido.
Para Walter Altmann, Lutero foi um homem de “percepções verdadeiramente revolucionárias” (ALTMANN, 2016, p.15). Daí nossa consideração de que em Lutero encontramos a proposição de um cristianismo revolucionário, de resistência e incidência. É importante recordar-se, o reformador alemão não objetivava o desmantelamento da Igreja, ele era um homem da Igreja, o foi até o último dia de sua vida. De início, ao contestar os abusos dos prelados romanos, a extorsão do povo via indulgências etc., estava convicto de que prestava um serviço à Igreja. Sua crítica estava claramente delimitada, a saber, no fato de que o evangelho tal como proposto no próprio evangelho mostrava-se irrealizado. Alister McGrath pondera “Martinho Lutero [...] defende a ideia de que o evangelho havia se tornado cativo da Igreja instituída [....] a Igreja medieval havia aprisionado o evangelho em um complexo sistema de sacerdotes e sacramentos. A Igreja havia se tornado a senhora do evangelho, quando deveria ser sua serva” (MCGRATH, 2005, p. 102). Por isso, a expressão melhor, de fato, é reforma.
Lutero não coadunava com um cristianismo burocratizado, elitista, por conseguinte, abusivo, explorador. Como pontua Walter Altmann “através de Lutero [na sua compreensão] o evangelho é libertador num sentido pessoal e eclesial, bem como social e político” (ALTMANN, 2016, p. 16). Na compreensão do evangelho como dispositivo libertador da integralidade da pessoa humana, é que o reformador alemão encontra os subsídios para sua postura profética, contestadora, protestante.
Uma doutrina cara a Lutero e aos protestantes é a do sacerdócio universal de todos os crentes. Aqui, não vamos imiscuir pela discussão teológica/dogmática em si, mas, optamos por refletir sobre o pano de fundo e as implicações desta doutrina no pensamento luterano, em seu teor social. Em sua obra À nobreza cristã da nação alemã acerca da reforma do Estado cristão, de 1520, Lutero contesta a dicotomia existente no imaginário católico à época, entre clero x povo. No entender do reformador, essa dicotomia fomentava o elitismo, o classismo, a ideia de que os sacerdotes estavam em uma posição de superioridade em relação ao todo do povo. O que poderia justificar o abuso de poder, a extorsão, uma teologia supremacista que elevava o clero a uma condição de submeter o povo aos seus ditames. Como era de seu gênio, Lutero é contundente
É pura invenção que o papa, os bispos, padres e monges devam ser chamados de ‘classe espiritual’; príncipes, senhores, artesãos e camponeses de ‘classe secular’. Isso é, de fato, uma invenção e um engano muito sutis [...] todos os cristãos são a ‘classe espiritual’, e não há entre eles diferença alguma, a não ser a ocupação que possuem, como Paulo afirma em 1Coríntios 12,12: somos todos um único corpo, ainda que cada membro tenha seu próprio trabalho, por meio do qual serve os outro. Como consequência, temos um batismo, um evangelho, uma fé e somos cristãos da mesma classe; pois o batismo, o evangelho e a fé, e só eles nos tornam ‘espirituais’ e um povo [...] portanto, por meio do batismo todos somos consagrados como sacerdotes, como Pedro afirma em 1Pedro 2,9 ‘vós sois geração eleita e sacerdócio real’, e o livro de Apocalipse ‘por meio do teu sangue nos constituíste sacerdotes e reis’ (Ap 5,10)” (LUTERO, 2017, p. 92).
Para Lutero, no evangelho, as relações pressupostas por classismos estavam erradicadas. Na cruz de Jesus Cristo, os relacionamentos estavam horizontalizados. Daí a emergência do valor da igualdade que atravessa as reflexões de Lutero. Na contramão e na contestação de um ideário teológico que supervalorizava os sacerdotes e inferiorizava os leigos, o reformador alemão quer igualizar as relações entre os cristãos, quiçá, entre a sociedade como um todo, iluminado pelo evento Jesus Cristo, o Deus que na sua encarnação, faz-se servo de todos. Contra os privilégios dos sacerdotes, Lutero enuncia que “a condição de padre na cristandade não deveria ser nada mais do que um funcionário público” (LUTERO, 217, p.93), no sentido de ser aquele que está a serviço de todo o público, cristão ou não.
Há um elemento importante a ser considerado na reflexão de Lutero, sua crítica, num primeiro momento, é intraeclesial, quer dizer, se volta para dentro da própria Igreja. Para o reformador alemão, era preciso primeiro perceber, reconhecer, contestar e corrigir as próprias estruturas injustas instauradas na própria Igreja. Se a Igreja tem o múnus profético, se cabe a ela o anúncio do querigma, o trabalho para a realização histórica do Reino de Deus, então, primeiro nela deve se realizar a justiça. Para Lutero é contraditório que a Igreja queira corrigir as injustiças do mundo, enquanto dentro dela mesma permaneçam estruturas injustas que seguem intactas historicamente. Se o espírito cristão nos impulsiona a viver comunidade, precisamos começar nos empenhando para desmantelar os classismos e abusos de posição/poder que, sabemos todos, estão enraizados na própria estrutura hierárquica da Igreja.
Na sua obra, Da autoridade secular: até que ponto lhe devemos obediência, Lutero mantém-se contundente. Faz duras críticas a todas as formas de governo que se mostram autoritárias, tirânicas e opressoras, principalmente, se tais governos arrogam para si o epíteto de “cristãos”. É interessante observar a forma como Lutero contesta, de um lado governos que se portam de modo opressivo, de outro, os súditos/cidadãos que reagem passivamente diante destes. Segundo o reformador alemão, “eles [os governantes] pensam que têm o poder para fazer e ordenar o que quiserem a seus súditos. Também os súditos se enganam quando imaginam que são obrigados a obedecê-los nos mínimos detalhes” (LUTERO, 2017, p. 207).
Não é forçoso afirmar que nos escritos de Lutero encontramos elementos para o posterior anarquismo cristão, assim como, para a desobediência civil, como vista, por exemplo, no pastor Martin Luther King Jr. O espírito profético da tradição judaico-cristã é notadamente marcado por seu tom contestador/denunciante. Os profetas eram porta-vozes de Deus, do Deus que se insurgia/insurge contra os abusos que permeiam os regimes totalitários/ditatoriais.
Vê-se claramente esse profetismo no protestantismo de Lutero, “quando se trata de extorquir os pobres ou fazer com a Palavra de Deus como lhes agrada, isso deve ser chamado de obediência à ordem integral. Antigamente se chamavam essas pessoas de malandros, mas agora precisam ser considerados príncipes cristãos e obedientes” (LUTERO, 2017, p.207). Lutero não tinha papas na língua. E sua contundência não poupava nem mesmo os príncipes ou o próprio Papa.
No espectro político-ideológico é comum associar a revolução à guerrilha, à luta armada, ao confronto nas trincheiras, ao ódio aparentemente legitimado, como contra-ataque, reação. Para Lutero, a revolução profética do evangelho, situava-se na substituição de uma cultura do ódio pela do amor revelado em Jesus Cristo. Em sua obra Da liberdade do cristão, de 1521, o reformador alemão pondera que “o cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e em seu próximo” (LUTERO, 2017, p. 188). Isto significa que para Lutero, a espiritualidade cristã possui uma bidimensionalidade, ou seja, volta o homem/mulher para Jesus Cristo, enquanto, a conversão a Cristo converte-nos uns aos outros.
Fica claro neste escrito de 1521 que para Lutero é intrínseco ao espírito cristão a doação, generosidade e serviço (LUTERO, 2017). Não há, no horizonte hermenêutico protestante, uma espiritualidade realmente evangélica, que esteja desencarnada do mundo, desmembrada da sociabilidade humana, alheia aos anseios e dores que perpassam a humanidade. No entendimento luterano, amor não é um sentimentalismo ou uma afetividade mórbida, pelo contrário, para Lutero, demonstra-se amor no serviço ao próximo (LUTERO, 2017).
O profetismo que atravessa o protestantismo é uma contestação às estruturas de ódio, entendidas como substruturas do AntiReino. Daí as duras críticas de Lutero ao papa como um anticristo. No contexto de sua época, ao constatar que opções políticas, práticas opressoras ou desumanizadoras tinham alguma chancela da Igreja, notadamente, via-se ali o espírito do anticristo[1].
Tendo considerado aspectos importantes da espiritualidade de Lutero e Francisco é coerente afirmarmos que há entre eles pontos de convergência. Recordamos o enunciado da Lumen Gentium, de que “o Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a ação, para que todos, do modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente, num só rebanho, sob um único Pastor” (VATICANO II, 2021, p. 123). O Concílio manifestava seu desejo e intenção da unidade entre todos os cristãos, para irmanados e impelidos pelo Espírito de Jesus Cristo, trabalharem juntos para a ação.
Francisco evidencia seu profetismo ao não se conformar com uma espiritualidade da passividade, com uma fé que aliena e castra o ímpeto de transformação, tão natural na pessoa humana em condição de exploração. Segundo Francisco
Os pobres não só suportam a injustiça, mas também lutam contra ela [...] não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou álibis. Sequer estão à espera, de braços cruzados, pela ajuda de ONG, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam, ou que, se chegam, fazem-no de maneira a ir na direção de anestesiar ou domesticar, o que é bastante perigoso (FRANCISCO, 2015, p. 6).
O pontífice romano em sua análise de conjuntura reconhece a insatisfação das classes oprimidas, desta categoria aqui identificada como pobres. Mas nota também que se exige uma luta, não se pode permitir o vitimismo passivo diante dos quadros de injustiça. A passividade diante da injustiça é uma forma de corroboração com a injustiça.
Para Francisco a solidariedade é um elemento que demarca a espiritualidade cristã. Mas esta solidariedade, não pode se reduzir a um emocionalismo que produz um assistencialismo momentâneo, que rapidamente se esvai. A solidariedade tipicamente cristã para Francisco tem outro teor, outro tom, toma novas configurações e significados. Segundo Francisco
Solidariedade [...] é muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridades da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destruidores do dinheiro: as deslocações forçadas, as emigrações dolorosas, o tráfico de pessoas, as drogas, as guerras, a violência e todas aquelas realidades que muito de vós suportam e que estamos chamados a transformar” (FRANCISCO, 2015, p.6).
É de se notar que para Francisco, a solidariedade do cristão não reside na emoção, mas na ação. É preciso lembrar, uma ação “sem violência” (FRANCISCO, 2015, p. 16) Não há legitimidade numa fé que se arvora cristã, mas reside na omissão. Francisco, no embalo do espírito profético/evangélico denuncia as estruturas injustas, toca na espinha dorsal de uma sociedade dominada pelo capitalismo selvagem, pela globalização excludente, pelo industrialismo que objetifica a pessoa humana, que destrói impiedosamente a natureza, que coisifica a vida indígena.
Francisco de modo pericial identifica os tumores que se alastram no corpo da sociedade contemporânea. Na contramão do politicamente correto, ou de um pontificado de omissão, Francisco não teme a oposição, não negocia suas convicções, usa o trono de S. Pedro como palanque para ecoar a voz profética que interpela, confronta, denuncia. Parece-nos mais profeta que Papa ou é um tipo de Papa-profeta.
Lutero jamais acusaria o atual pontífice de ser um anticristo. Pelo contrário, estaria em plena comunhão com o sucessor de S. Pedro, na pessoa de Francisco. Notemos suas convergências teológico/proféticas. Walter Altmann observa que na teologia de Lutero, o cristão é alguém que “não apenas se comprazerá com as belezas da vida, mas também será instrumento crítico e militante da fé contra o pecado, da justiça contra a injustiça, do amor contra a exploração, um combate que ele experimentará dentro de si, ao mesmo tempo, desenvolve em seu meio” (ALTMANN, 2016, p.33). Isto porque, para Lutero “a responsabilidade política e social está implicada na fé cristã” (ALTMANN, 2016, p.37).
Basta-nos recordar de que a cruz é o elemento fulcral da teologia de Lutero. No Cristo Crucificado está a revelação seminal do Deus que se encarna e revela na história humana. Evoca-se a todo momento S. Paulo que anunciou nossa fé no “Cristo Crucificado” (1Cor 1,23). A fé no Crucificado tem implicações que abarcam a totalidade da vida cristã. É incongruente crer no Cristo Crucificado e se colocar ao lado daqueles que crucificam. Dito de outro modo, crer no Cristo Crucificado coloca-nos ao lado dos crucificados do mundo. Daí a oposição de Lutero, conforme os documentos supracitados, de um cristianismo legitimador de estruturas injustas/opressoras como, inclusive, fora visto no transcorrer de boa parte da Idade Média. A salvação oferecida em Jesus Cristo para o reformador alemão abarcava a integralidade da existência humana, assim como, a totalidade do cosmos.
Lutero e Francisco numa olhadela superficial parecem estar situados em pontos distintos, quiçá, opostos da tradição cristã. Enquanto este é o sumo pontífice católico-romano, aquele é o catalisador de todo o movimento que se opôs ao catolicismo romano de então. Todavia, uma análise mais detida e atenta nos mostra radicalmente o oposto. Ambos estão enraizados na tradição do evangelho, têm na pessoa de Jesus Cristo fundamento e fonte de todo o substrato de sua teologia, ética e práxis.
Identifica-se nos dois personagens uma amorosidade à Igreja, uma eclesialidade que eu denomino de “eclesialidade de incidência”, quer dizer, para eles a Igreja não pode permitir-se ser alienada ou pior, alienante. O seguimento de Jesus Cristo nos coloca numa caminhada protestante, no sentido de que contesta contra todas as estruturas e conjunturas que encarnam as forças do AntiReino. Na eclesiologia de ambos, a espiritualidade cristã se traduz por uma fé em/de ação. Não há sentido num cristianismo que não esteja eivado no chão bruto da vida.
Nota-se, e este é o ponto central dedicado a este trabalho, a mesma raiz profética na qual estão vinculados Lutero e Francisco. Na contramão de um teologismo que se ocupou, em quase toda a bimilenaridade de sua história, com discussões dogmáticas de natureza abstrata e especulativa, ambos evidenciaram o desejo de propor uma teologia de incidência cujo olhar se volta dialeticamente para o Cristo e para a realidade, que note as contradições da vida, a miserabilidade que atravessa a condição humana, que escute o grito dos oprimidos, e que se insurja num programa de libertação integral. Nesse sentido, Lutero e Francisco têm muitos pontos de encontro, são filhos da revolução, são profetas.
ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de Historiador. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
DOUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 2021.
FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco aos Participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares. São Paulo, CNBB, 2015.
LUTERO, Martinho. Uma coletânea de escritos. São Paulo: Vida Nova, 2017.
MCGRATH, Alister. Teologia: sistemática, histórica e filosófica. São Paulo: Shedd publicações, 2005.
SOUZA, Cícero; NEVES, Sylas. Memórias póstumas dos protestantes. Belo Horizonte: Auto publicação, 2010.
UNHCR. Agência da ONU para refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-sobre-refugio-no-brasil/ Acesso:11/07/2023.
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[1] Evidentemente, não objetivamos uma idealização de Lutero e sua teologia. Sabemos, por exemplo, de seu notado antissemitismo, de sua posição ao lado da burguesia na guerra dos camponeses, além de outras posições de Lutero que nos mostram incongruências no transcorrer sua vida. Como bem pontuou Walter Altmann “não podemos nos orgulhar de todos os seus posicionamentos. Ao contrário: de uma série deles devemos nos envergonhar” (ALTMANN, 2016, p. 24). Todavia, o que a maioria de seus escritos nos permitem afirmar é que tais posicionamentos são a exceção, se situam em circunstâncias e polêmicas bem específicas. O produto massivo e expressivo de seus escritos tem como regra, os elementos aqui apresentados e devidamente referenciados bibliograficamente.