Pacto Educativo Global: uma síntese das prioridades pastorais do Papa Francisco 
Uma reflexão ético-pedagógica sobre os 7compromissos do Pacto Educativo Global

Global Pact on Education: a synthesis of Pope Francis' pastoral priorities
An ethical-pedagogical reflection on the 7 commitments of the Global Pact on Educational 

Guadalupe Corrêa Mota
Doutora em Educação pela Universidade Católica de Santos. Professora e membro da Pro Reitoria de Pastoral na mesma instituição. Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. guadalupemota@unisantos.br

Carolina Mureb Santos
Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Contato: ircarolmureb@gmail.com

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Resumo: No marco dos 10 anos de pontificado do Papa Francisco (2013-2023), diversos teólogos e vaticanistas fizeram uma espécie de “balanço” ou síntese da contribuição de um papa latino-americano e jesuíta na condução da Igreja. Uma perspectiva deste “balanço” é identificar as prioridades pastorais desde que ele assumiu como bispo de Roma. Neste artigo pretende-se situar o Pacto Educativo Global (PEG) no pontificado do Papa Francisco, identificando as prioridades pastorais, e demostrando como o PEG é mais um elemento no processo de transformar mentalidades em vista de um novo estilo de vida. Em seguida, buscar-se-á analisar os 7 compromissos do PEG como uma síntese das prioridades pastorais do Papa Franscisco ao longo destes 10 anos. Por fim, pretende-se indicar como a educação católica comprometida com o PEG pode colaborar na formação de sujeitos éticos que, a partir de uma nova mentalidade, possam, efetivamente, cooperar na construção de uma sociedade que tenha lugar digno para todos.

Palavras-chave: Pacto Educativo Global; Papa Francisco; Pastoral; Educação Católica; Ética

Abstract: In the framework of the 10 years of Pope Francis' pontificate (2013-2023), several theologians and Vatican experts make a kind of "balance sheet" or synthesis of the contribution of a Latin American and Jesuit Pope in leading the Church. One perspective of this “balance sheet” is to identify the pastoral priorities since he took over as Bishop of Rome. This article intends to place the Global Pact on Education (GPE) in the pontificate of Pope Francis, identifying the pastoral priorities, and demonstrating how the GPE is one more element in the process of transforming mentalities in view of a new lifestyle. Then, it will try to analyze the 7 commitments of the Global Compact on Education   as a synthesis of Pope Francis' pastoral priorities over these 10 years. Finally, it is intended to indicate how Catholic Education committed to the PEG can collaborate in the formation of ethical individuals who, from a new mentality, can effectively cooperate in the construction of a society that has a decent place for everyone.

Keywords: Global Compact on Education; Pope Francis; Pastoral; Catholic Education; Ethics

Introdução

Em geral, afirma-se que o fundamento da reforma da Igreja empreendida pelo Papa Francisco, e também da grande resistência a ele, é a retomada do Concílio Vaticano II, especificamente da Constituição Dogmática Lumen Gentium que afirma uma renovada autocompreensão da Igreja. Na Exortação Evangelii Gaudium, publicada no primeiro ano do seu pontificado (2013), ele deixa claro que pretende basear-se na constituição dogmática para refletir sobre temas diversos: a reforma da Igreja e sua compreensão como Povo de Deus, o lugar dos pobres, a paz e o diálogo social entre outros (EG, 17). Ao recuperar o modelo eclesiológico do Povo de Deus, Francisco afirma que vê a Igreja como um hospital de campanha (FRANCISCO, 2013). 

Um hospital de campanha acolhe a todos, sem condições, e trata das feridas imediatas. Assim, o Papa deseja que a Igreja acolha a todos e acompanhe a situação de cada um, ao invés de se tornar uma alfândega (outra expressão sua), isto é, impondo uma condição/taxa para se fazer parte. Francisco usa outras imagens para falar da Igreja que deseja – “em saída” e “enlameada” que, ao lado de “hospital de campanha” indicam uma comunidade que vai ao encontro e se envolve com a realidade dos que mais sofrem. Dessa compreensão de Igreja, derivam suas prioridades pastorais indicadas ao longos dos últimos anos. 

As prioridades pastorais do Papa Francisco estão fundamentadas numa hermenêutica evangélica da cultura antropológica em chave profética, que tem como referência principal a prática de Jesus (LUCIANI, 2016, p. 83). Tal como Jesus colocou a pessoa em primeiro lugar, à frente de normas e ritos, Francisco resgata a centralidade da pessoa humana, considerada em sua realidade concreta e não idealizada. Assim, não é a pessoa que deve ser sacrificada em vista da manutenção de um modelo econômico, político e social, mas as estruturas que organizam a vida social devem estar a serviço do bem comum. Ainda que se faça um uso instrumental da Doutrina Social da Igreja, Francisco realiza um discernimento evangélico para tomar suas decisões e erguer sua voz em defesa das pessoas em maior fragilidade. São os gestos e palavras de Jesus que devem ser o referencial para o fazer teológico-pastoral e também a boa nova que inspire e gere processo de mudança na mentalidade global atual (LUCIANI, 2016, p. 83).

Convicto de que sem mudar mentalidades toda transformação de estruturas é passageira e que a crise que vivemos hoje tem sua raiz numa crise antropológica, Francisco olha para a educação. Sua experiência como professor, provavelmente, ajudou a perceber que a educação é o processo que, por excelência, desenvolve a consciência crítica e oferece os recursos intelectuais e sociais para a humanização (MOTA, 2022a, p. 324-343, online). Uma comunidade educativa é composta por diversidade de pessoas, em funções diferentes, que pode propagar de maneira mais ampla e efetiva uma proposta de sociedade onde a construção do bem comum seja a meta. 

 É preciso um processo para se mudar mentalidades, Francisco viu que é a educação que pode mediá-lo e, por isso convocou um Pacto Educativo para renovar a aliança entre a família, a sociedade e a educação em prol das novas gerações. Incluir a Educação significa contar com centenas de universidades e faculdades e milhares de escolas em todo mundo que atuam na formação das novas gerações e fazem parte da missão evangelizadora da Igreja. A partir das instituições educativas católicas, o Papa Francisco sonha em formar novas gerações comprometidas com um novo humanismo que estabeleça novas referências e condutas na sociedade.

1. O Pacto Educativo Global no contexto dos 10 anos de pontificado de Francisco

Pode-se dizer que desde o dia de sua primeira aparição como Papa, em 13 de março de 2013, Francisco ainda não deixou de surpreender com suas palavras e, mais ainda, com seus gestos, ao exercitar a pedagogia do testemunho. Em sua primeira saudação, vestido somente de branco, sem a estola dourada; sapato preto popular; saída do apartamento pontifício para a Casa Santa Marta; em sua primeira saída do Vaticano vai à Lampedusa, onde joga uma coroa de flores no mar indicando que ele havia se tornado o túmulo de centenas/milhares de pessoas. No dia da sua eleição, Francisco pede ao povo que reze pelo seu bispo e em Lampedusa denuncia a globalização da indiferença e a perda do sentido de fraternidade. 

Os gestos e palavras que surpreenderam, alegraram e deram esperança para muitos, aborreceram e indignaram tantos outros. Lamentavelmente, a resistência liderada e estimulada por cardeais e bispos e disseminada por leigos e redes sociais não é discreta, vem a público com cartas que questionam a fidelidade do Papa à doutrina, insinuam inconsistência teológica e até sugerem sua renúncia (FRAGA, 2023). O historiador italiano Faggioli, num discurso a bispos estadunidenses, afirmou que a crise na recepção do Concílio Vaticano II é anterior a Francisco, mas que a oposição a ele tem raízes na oposição ao Concílio. E ele disse que “trata-se de um problema que não é apenas teológico, mas também eclesial, ou seja, tem profundas consequências na forma como todos os católicos experimentam a sua vida de fé na Igreja” (FAGGIOLI, 2022).

O modelo eclesiológico de Francisco, em continuidade com o magistério conciliar, incomoda e desacomoda. De acordo com Faye (2021, p. 540) as pedras angulares deste pontificado são proximidade, sinodalidade e elã missionário que requerem diálogo, pois tudo está interligado. Isto significa a necessidade de movimento, dinamicidade e saída para ir ao encontro das pessoas superando uma Igreja mais preocupada com sua autopreservação e voltada para suas necessidades e assuntos internos. Uma Igreja que não sai de si mesma para evangelizar é autorreferencial, é uma Igreja que acha que tem luz própria e se fecha em si mesma (FAYE, 2021, p. 528), numa experiência narcísica. 

A conversão pastoral que Francisco deseja na Igreja é em vista da sua missão - anunciar o Evangelho e continuar a realização do Reino. Neste sentido, a novidade que Francisco representa “para a vida e missão da Igreja hoje: é uma volta ao evangelho do Reino, o que significa uma volta aos pobres, oprimidos e sofredores deste mundo” (JÚNIOR, 2015, p. 998). O retorno aos marginalizados e excluídos não aparece somente em seus discursos, mas em seus gestos: em suas viagens, faz questão de visitar presídios, campos de refugiados e instituições que acolhem pessoas com deficiência, crianças e idosos. Criou o Dia Mundial dos Pobres como momento de reflexão e estímulo à solidariedade, telefona para pessoas, como Pe. Julio Lancellotti, que perseveram na amizade e comunhão com a vida dos pobres. 

O cuidado com a Casa Comum, o planeta Terra, também é foco da preocupação do Papa Francisco porque ela também é explorada e destruída. O resultado da exploração violenta e desmedida do planeta atinge de modo mais intenso os mais pobres. A vida humana também é ameaçada quando se destrói o planeta. Por isso, Francisco defende a ecologia integral (LS, 137) como proposta de um desenvolvimento sustentável, mas para isso será fundamental a conversão ecológica. O ser humano precisa mudar sua mentalidade e, portanto, seu estilo de vida para interromper o ritmo acelerado da degradação. A crise ecológica tem, na raiz, uma crise antropológica (LS, 118), isto é, é preciso um novo humanismo, um novo jeito de ser pessoa que reconhecendo que tudo está interligado viva em harmonia com a criação.

É na Encíclica Laudato Si’ que Francisco já indica a importância da educação para realizar a conversão pastoral, ecológica, social, cultural. Ele menciona uma educação ambiental que reordene itinerários pedagógicos em vista do desenvolvimento de uma ética ambiental (LS, 211); da função da educação como formadora de motivações e hábitos que transformam o estilo de vida (LS, 212). Por fim, ele afirma que “a educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza” (LS, 215). A tarefa da educação é mudar o paradigma antropológico por meio de uma proposta pedagógico-ética que desenvolva não somente competências, mas também demonstre que uma vida orientada por valores humanistas torna melhor a existência de todos.

 Neste contexto, Francisco anunciou, em 2019, que aconteceria um encontro mundial no dia 14 de maio de 2020, com o tema “Reconstruir o Pacto Educativo Global”. Seu objetivo é construir uma aliança educativa para formar pessoas maduras que possam reconstruir o tecido social a partir da fraternidade. Em sua mensagem de lançamento do Pacto Educativo Global, Francisco afirmou que “cada mudança precisa de uma caminhada educativa que envolva a todos” (FRANCISCO, 2019). Assim sendo, evidencia-se a educação como o processo necessário para se realizar a mudança. No entanto, não é qualquer modelo de educação; a referência usada é um provérbio africano: “Para educar uma criança, é necessária uma aldeia inteira”. Ao usar este provérbio, Francisco acaba por questionar o modelo educacional europeu, ocidental e branco, indicando que os povos originários e não brancos têm algo a nos ensinar na educação das gerações, legitimando a validade de outras epistemologias e denunciando o epistemicídio provocado pela lógica etnocentrista europeia. Pretende-se reconstruir a aliança entre a família, a educação e a sociedade para que o processo educativo desenvolva o humanismo solidário.

Na mesma mensagem, o Papa indicou três passos necessários para avançar neste processo. O primeiro diz respeito à centralidade da pessoa, já que é preciso coragem para afirmar sua precedência numa sociedade em que a economia define a política e o progresso. Na perspectiva de uma ecologia integral, a vida de todas as criaturas deve ser cuidada e preservada. O segundo passo é a coragem para investir as melhores energias com criatividade e responsabilidade. É preciso ter clareza que a educação é um processo a longo prazo, portanto, é preciso se manter aberto ao diálogo com grupos e organismos diversos. E por fim, o terceiro passo é a coragem de formar pessoas para o serviço à comunidade. Esta é uma forma de lutar contra o individualismo crescente, no qual as pessoas só se importam com seu interesse e bem estar. Faz-se necessário resgatar o sentido de bem comum, o desejo de colaborar na construção da sociedade, de ser cidadão (ã), redescobrir o “prazer espiritual de ser povo” (EG, 24). 

As três “coragem” indicadas pelo Papa Francisco no lançamento do Pacto em 2019 estão alinhadas com os temas centrais de ação pastoral: a afirmação da centralidade e dignidade da pessoa; o investimento dos melhores recursos num projeto de longo prazo e envergadura robusta e a perspectiva social. É interessante observar que, ao falar de “coragem para”, Francisco tem clareza de que os 3 passos são desafiadores porque contradizem o padrão da sociedade atual. Resgatar a dignidade humana, tão violada, é missão profética, numa sociedade consumista que descarta tudo e todos com facilidade. Sem reconhecer o outro como meu irmão, dificilmente haverá a disposição e o compromisso com investimentos e o colocar-se a serviço de pessoas, frequentemente, desconhecidas. Em 2019, o Papa também assinou o documento sobre “A Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum”, com o Imã Ahmad Al-Tayyeb. E em 2020, ano do evento do Pacto, também se celebrariam os 5 anos da Laudato Si’: para Francisco tudo está realmente interligado. 

Outros temas se destacaram aos longos destes 10 anos: o combate ao clericalismo e ao abuso sexual de menores; o atendimento jurídico e pastoral aos migrantes, refugiados, expatriados; a terceira guerra mundial “aos pedaços”; a questão das mulheres, entre outros. Em todos eles, o que se vê é uma Igreja que vai ao encontro do ser humano no concreto de sua existência, para escutar suas angústias e anseios e se dispor a servir. Infelizmente, em virtude da pandemia do Covid-19, o encontro do Pacto Educativo Global não aconteceu, mas eventos remotos, sim. E a reflexão, a discussão e a elaboração de projetos avançaram. Em 2020, Francisco apresentou 7 compromissos que desejava fossem assumidos pelas instituições de educação católicas e outras que se identificassem com o humanismo solidário. Também os 7 compromissos, longe de serem aleatórios, estão alinhados com temas centrais no pontificado, reforçando assim, aquilo que para o Papa é essencial na missão evangelizadora da Igreja.

2. Os 7 compromissos do PEG como uma síntese das prioridades pastorais do Papa Franscisco ao longo destes 10 anos

Com o avanço da pandemia do Covid-19, o encontro do Pacto Educativo Global, que aconteceria em maio de 2020, foi cancelado. O Papa Francisco enviou uma mensagem de vídeo. Nesta mensagem, ele destacou a rapidez com que a educação tentou se adaptar às exigências da pandemia por meio da utilização de plataformas digitais que acabaram por evidenciar as disparidades de oportunidade educacionais e tecnológicas (FRANCISCO, 2020, p. 23). Quantas crianças e adolescentes no Brasil ficaram até 1 ano sem estudar? Ou porque ou não tinham acesso à internet, ou não tinham computador ou as redes públicas não tinham estrutura para se organizar. O Papa estimou que, por todo o planeta, cerca de 250 milhões de crianças foram excluídas de toda atividade educativa.

A realidade interpelou mais uma vez o Papa Francisco que insistiu na necessidade de um novo modelo cultural, uma vez que que pandemia permitiu reconhecer que “aquilo que está em crise é a nossa forma de compreender a realidade e de nos relacionarmos entre nós” (FRANCISCO, 2020, p. 23). A educação é vista como “um dos caminhos mais eficazes para humanizar o mundo e a história” (FRANCISCO, 2020, p. 24). Num momento de crise como a pandemia, ficou ainda mais clara a necessidade de se assumir compromissos fundamentais que contribuam na recuperação social em vista de novas condições de vida.

O Pacto Educativo Global é um chamado às famílias, comunidades, escolas, universidades, instituições, religiões, governantes e toda a humanidade para o compromisso com e em favor das novas gerações. O processo deverá ser plural e poliédrico, incluindo diferentes abordagens, múltiplas epistemologias, e uma referência fundamental é a Doutrina Social da Igreja. Os 7 compromissos não são conteúdos para o currículo, mas eixos-temáticos que devem atravessar os currículos de modo transversal. É possível observar que Francisco retoma pontos centrais do seu pontificado e os sintetiza em compromissos que, assumidos por instituições educativas, podem colaborar na formação de mentalidades na perspectiva do novo humanismo que ele defende.

O primeiro compromisso é colocar a pessoa no centro[1].  A finalidade deste compromisso é combater a cultura do descartável, valorizando a singularidade de cada pessoa e sua vocação à relação interpessoal.  O princípio basilar da Doutrina Social da Igreja é a dignidade da pessoa porque ela é criada à imagem de Deus. A abertura à transcendência e a unicidade caracterizam a pessoa humana, cuja dignidade deve ser respeitada porque “em sua interioridade, transcende o universo e é a única criatura que Deus quis por si mesma” (COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL, 2011, p. 83). Deste modo, não pode ser instrumentalizada por nenhum tipo de projeto de caráter econômico, social ou político (COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL, 2011, p. 83). 

Muitos são os gestos de Francisco em favor da dignidade humana e de denúncia das situações nas quais ela é violada ou ignorada. No debate sobre os avanços da Inteligência Artificial e dos algoritmos, o Papa reafirmou que a dignidade humana é o “critério-chave na avaliação das tecnologias emergentes” e que estas para serem consideradas éticas devem ajudar a “manifestar essa dignidade e a incrementar a sua expressão, a todos os níveis da vida humana” (FRANCISCO, 2023). O reconhecimento da dignidade humana traz implicações concretas para a economia e a política e, também, para quem professa a fé cristã. Diante da maior visibilidade e/ou agressividade do racismo, da xenofobia, da aporofobia, dentre outras fobias, é urgente resgatar a igual dignidade de toda pessoa humana.

O primeiro compromisso é o fundamento e condição para todos os demais. Assim sendo, o segundo compromisso é ouvir as gerações mais novas. Trata-se de adotar um paradigma dialógico na educação, isto é, ser capaz de escutar crianças e adolescentes e conferir-lhes protagonismo em seu processo educativo. A jovem sueca Greta Thunberg destacou-se por protestar diante do parlamento de seu país e fazer greve em defesa do meio ambiente e acabou por incentivar jovens em todo o mundo a se articularem. A jovem paquistanesa Malala, vítima de um atentado do Talibã, unicamente por querer estudar, recebeu o Nobel da Paz e se tornou uma voz em defesa da educação das meninas. Diante de tantos jovens ativistas, é necessário reconsiderar discursos generalistas que desqualificam a juventude e sua capacidade de erguer a sua voz e assumir causas significativas. Talvez as gerações mais antigas devam se perguntar se não se desresponsabilizaram pelo futuro das novas gerações ao descuidar tanto do planeta, vivendo em função somente de seus projetos e/ou desejos.

O terceiro compromisso é promover a mulher e, ainda que no Vademecum do Pacto conste somente a finalidade de favorecer a participação plena das meninas e jovens na educação, o que restringiria este compromisso, há que se reconhecer que promover a mulher é muito mais do que isso. É preciso admitir que o Papa Francisco tem tratado do tema da mulher na Igreja seja reafirmando a igual dignidade, seja escolhendo mulheres para funções de destaque no Vaticano. Os temas das diaconisas e do acesso ao sacramento da ordem sempre retornam à pauta. 

A questão de fundo parece ser o fato de que a função de decisão e governo estão atrelados ao sacramento da ordem; enquanto assim for, as chances da insatisfação, de boa parte das mulheres com o lugar que lhes é reservado, continuar são grandes. Francisco se empenha em escutar e dialogar com os apelos do mundo moderno, mas na questão da mulher, suas decisões ainda são tímidas e reforçam a distância entre o que a mulher já conquistou na sociedade e o lugar que ainda ocupa na Igreja. Pode-se dizer que a essa postura subjaz – como cultura eclesial – a vigência de uma perspectiva ontológica dualista não evangélica, que categoriza hierarquicamente e inferioriza as filhas do mesmo Deus criador. Algo a ser colocado na perspectiva da “mudança de mentalidade”, no interior da Igreja, proposta pelo Pacto.

O quarto compromisso é responsabilizar a família, reconhecida pela Igreja, como o primeiro e indispensável sujeito educador. O sínodo das famílias foi ocasião para escutas importantes sobre a realidade da vida das famílias, uma que vez que hoje, um dos grandes debates são os novos arranjos familiares baseados em laços afetivos e não no exercício da parentalidade no modelo tradicional (LEMOS, 2021, p. 586). A escuta é essencial porque “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG, 231), logo, é preciso acolher o concreto da existência sem que para isso seja necessário negar o ideal. Mesmo que o tema da família em si mesmo não seja uma das grandes prioridades do Papa Francisco, a perspectiva com que ele olha para família - acolher, acompanhar e integrar a todos, sem condições -, é a chave hermenêutica com que analisa as situações humanas. 

O quinto compromisso é se abrir à acolhida dos mais vulneráveis e marginalizados, que é o núcleo da prática pastoral do Papa Francisco. Este grupo de pessoas vulneráveis e marginalizadas é amplo: refugiados, migrantes, idosos, pessoas com deficiência, presidiários, os pobres em geral. O desafio evangélico lançado por Francisco é se reconhecer “todos irmãos” (Fratelli Tutti). Educar as novas gerações para que superem preconceitos e, consequentemente, não sejam intolerantes é fundamental para se resgatar a fraternidade humana, em que o outro diferente não é um adversário a ser vencido, nem um inimigo a ser eliminado, mas irmão e irmã.

Se o primeiro compromisso é o fundamento e condição para todos os demais, do compromisso de acolhida aos vulneráveis e marginalizados derivam os dois últimos. O sexto compromisso é renovar a economia e a política buscando novas formas para ambos e para o desenvolvimento e o progresso para que estejam a serviço da família humana na perspectiva de uma ecologia integral. Esta perspectiva leva ao sétimo compromisso que é cuidar da Casa Comum através da proteção de seus recursos, da adoção de estilos de vida mais sóbrios e de energias renováveis e respeitosas do meio ambiente. Os três últimos formam uma tríade explicitada nas duas encíclicas sociais – Laudato Si’ (2013) e Fratelli Tutti (2020)

A regra da fraternidade cósmica (LS) e universal (FT) requer novos modos de viver, pois todos os seres estão interligados e devem buscar os meios para viver esta igualdade (PASSOS, 2021, p. 787-788). Francisco não hesita em criticar os modelos econômico e político atuais submetidos ao capital financeiro que instrumentalizam o ser humano e a Casa Comum. Somente quando a fraternidade for resgatada como valor central, a Política assumirá sua função de amizade social, isto é, de cuidar bem de todos e a Economia será regulada para que todos tenham acesso aos bens necessários para viver. Assim, a Casa Comum sobreviverá e poderá se refazer, na medida em que os seres humanos adotarem um novo estilo de vida. Francisco apresenta o ideal da fraternidade cristã concretizada na história para se refazer as relações planetárias (PASSOS, 2021, p. 792). 

Como diz Passos “Francisco encarna em sua pessoa o magistério social” (2021, p. 783), e no âmbito da Pedagogia, encarna a pedagogia dialética da existência (STRECK, 2005; SCHMIED-KOWARSIK, 1974), pois antes dos seus discursos, seus gestos é que indicam sua pauta, sua prioridade pastoral. E como são gestos em direção ao outro, ele pratica a empatia e o acolhimento e a partir do epicentro que é o diálogo com o outro pensa os conceitos e a doutrina (PASSOS, 2021, p. 783). Como a escola é o primeiro ambiente de socialização, de convivência, fora da família, é lugar privilegiado para que se aprenda a respeitar e a conviver com o diferente. Francisco acredita que habita na educação a semente da esperança de harmonia social (FRANCISCO, 2020, p. 25).

3. O desafio das Escolas Católicas na implementação do Pacto Educativo Global

A Igreja entende que sua presença na educação faz parte de sua missão evangelizadora, uma vez que para cumprir o mandato de Jesus ela “deve cuidar de toda a vida do homem, também da terrena enquanto conexa com a vocação celeste” (GE, proêmio, 2015). Esta visão integral da educação permanece até o hoje e, em recente instrução do Dicastério para a Cultura e a Educação, foi reafirmada: “A evangelização e a promoção humana integral estão entrelaçadas na tarefa educativa da Igreja” (2022, nº 13, online).

O Papa Francisco não está sozinho na convicção de que precisamos de um Pacto Educativo para realizar uma educação que desenvolva nas novas gerações (e nas atuais) a consciência e o compromisso com uma cidadania planetária. A UNESCO em recente relatório sobre a educação afirmou que é preciso um novo contrato social para a educação. O relatório reconheceu a necessidade e o valor da educação na construção da sociedade e também que ela continua aquém das aspirações que se tem em relação a sua função. Conhecimento, ciência e inovação devem estar fundamentados na justiça social, econômica e ambiental e o sistema educacional precisa enfatizar valores como a solidariedade, a compreensão da interdependência e do cuidado uns com os outros e com o planeta (UNESCO, 2022, p. 9, online).

Em tese, espera-se que as milhares de escolas católicas ao redor mundo adiram ao Pacto Educativo Global considerando sua vinculação à Igreja, e que tenham como referência do ponto de vista estritamente pedagógico a contribuição de uma instituição do porte da UNESCO. No que diz respeito à realidade brasileira das escolas católicas de Educação Básica, há alguns desafios e dificuldades consideráveis para assumir o Pacto Educativo. Como refletir sobre um novo humanismo de caráter solidário, como quer o Papa Francisco, quando um grande número de famílias “anti-humanistas” quer uma escola sem partido, recusam o diálogo interreligioso e são contra as discussões sobre racismo, desigualdade social, homofobia e sexualidade (FERREIRA e outros, 2022, p. 287; MOTA, 2022a, online)? Além disso, como implementar um Pacto Educativo que reúne as prioridades pastorais do Papa quando muitos católicos o criticam ou ignoram, recusando seu magistério? 

Primeiramente, a mantenedora e a gestão da unidade precisam se questionar seriamente sobre a identidade e finalidade da instituição. Uma escola católica não pode jamais naturalizar a lógica do mercado, o anti-humanismo, a precarização do trabalho, o individualismo, o ódio ao outro e a destruição da natureza e da humanidade (ZANARDI, 2021, p. 397). Movida pelos gestos e palavras de Jesus, a escola católica, adotando uma pedagogia crítico-humanista-emancipatória não instrumental, se empenha em desvelar a realidade, indicando convicções e estruturas que não promovem a vida e a dignidade do ser humano. Ao mesmo tempo, propõe um projeto pedagógico-pastoral que integra a transmissão do patrimônio cultural e científico já adquirido, o desenvolvimento integral, respeitando a liberdade e a vocação individual (DICASTÉRIO PARA CULTURA E A EUDCAÇÃO, 2022, nº 19). E em seu currículo, destacam-se três princípios: um princípio antropológico que coloca no centro o desenvolvimento da pessoa; um princípio sociológico que busca construir a fraternidade na multiculturalidade e um princípio ético-político que se posiciona a favor da vida, contra a cultura da morte e do descarte (ROCHA; LEAL, 2021, p. 77). É tarefa da gestão garantir o registro destes princípios e concepções nos documentos e sua vivência no cotidiano.

A clareza da identidade é fundamental para elaborar um Projeto Político Pedagógico Pastoral (PPPP) com um itinerário bem definido para a formação de um sujeito ético. Para isso, é fundamental romper as bolhas nas quais pessoas de todas as idades estão vivendo, a partir de uma cultura onde os indivíduos “não apenas decidem por si próprios, mas também reelaboram suas vidas a partir de critérios dissociados da sociedade” (ALMEIDA e outros, 2021, p. 155). Os ambientes digitais e os fenômenos das fake news e da pós-verdade são o contexto para o surgimento destes sujeitos bolhas que, sem consciência crítica, dissociam-se da realidade e criam narrativas, independente da necessária verificação com o real. Em consequência do isolamento, do desconhecimento e da mentira crescem o preconceito e a intolerância que se opõem à proposta de fraternidade universal e humanismo solidário do Papa Francisco, explícita no Pacto Educativo.

Para romper essas bolhas, a pedagogia crítico-humanista de Paulo Freire, de cunho libertador, que informa a chamada educação evangélico-libertadora assumida pela educação católica desde a Conferência de Medellín (1968), pode ajudar na formação da consciência crítica humanizadora (FREIRE, 1967, online). A escola católica precisa ter clareza e coerência pedagógica, isto é, assumir um referencial pedagógico que dê condições para um processo educativo contextualizado e situado. Na formação da consciência crítica, a pedagogia freireana insiste na superação do fatalismo e determinismo que manipulam o sujeito levando-o a acreditar na impossibilidade de transformação da realidade (ALMEIDA, 2021, p. 32). Para Freire, a educação é processo de conscientização de si no mundo porque é em sociedade que a pessoa se constrói (MARQUES; RODRIGUES, 2019, p. 205). Deste modo, não é possível reforçar processos que alienam o ser humano da realidade onde está inserido. Ao contrário, é necessária uma educação que desvele a realidade e demonstre que cada pessoa é parte e tem papel intransferível na vida social (MARQUES; RODRIGUES, 2019, p. 205).

De acordo com Marques e Rodrigues, Paulo Freire entende a educação como conscientização, isto significa que “a consciência se desenvolve por meio da conscientização, que nada mais é que a construção de si mesma a partir daquilo que compõe sua existência, seu contexto e que se dá pela aprendizagem” (2019, p. 206). Educar é promover consciência de si e do mundo, impulsionando existências significativas a partir de compromisso com a construção da sociedade para todos. Evidentemente, não existe neutralidade neste processo. A questão que se coloca para as instituições católicas é a quem serve e de que lado está a educação promovida por elas. Se esta educação é, de fato, católica serve ao Evangelho e se coloca ao lado das prioridades evangélicas. Deste modo, torna-se ainda mais imperativo aderir ao Pacto Educativo Global e engajar toda a comunidade educativa.

A consciência crítica pode ser formada, assim como uma nova maneira de se relacionar e comunicar pode ser aprendida, mas não se pode ser ingênuo – o processo não é fácil e nem rápido. Como diz o Papa Francisco, “o tempo é superior ao espaço” (EG, 222), assim, quem trabalha com educação precisa compreender que educar é iniciar processos intencionais e planejados, e que requerem avaliação e intervenção para ajustes necessários durante o percurso. Os educadores começam o processo, mas não o controlam, do contrário seriam manipuladores de consciência, acompanham e orientam cientes de que o processo de formação da consciência é em vista da humanização. A formação da consciência assemelha-se ao cultivo para que desabroche e não a enquadramento e enformação. O fato de não existir neutralidade não significa que não se possa evitar manipulação. É importante escolher como fazer, assim, é possível fazer um processo dialógico onde há troca de saberes e experiências, onde todos aprendem (MOSER, 2014, p. 121). 

A escola católica é ambiente de socialização que permite o encontro com o outro, portanto, o desenvolvimento da alteridade. No encontro e na relação, descobrem-se os diversos outros, inclusive, o Outro, e a convivência permite o conhecimento que pode levar a superação de preconceitos, ainda que possa haver discordância. Deste conhecimento deriva o reconhecimento da interconexão e interdependência, logo, da responsabilidade para com a vida do outro (ZOBOLI, 2011, p. 217). Na medida em que se desenvolve a consciência da interconexão e da responsabilidade, passa-se ao cuidado que alimenta e sustenta relações por meio da aprendizagem de uma comunicação inclusiva e da solução não violenta dos conflitos e na promoção da vida, especialmente dos mais vulneráveis (ZOBOLI, 2011, p. 217).

Humanizar-se é movimento dialógico, dialético, mas não é evidente que as pessoas saibam dialogar (MOTA, 2022b, online). Criar ambientes onde se exercita a cultura do diálogo é missão das escolas católicas porque o tempo que os estudantes passam nela e as inúmeras atividades pedagógicas e assuntos tratados nas aulas favorecem a experiência. Dialogar não é convencer, mas dispor-se a escutar, acolher, refletir e, se necessário, reconciliar-se. Esta cultura do diálogo deverá ser vivenciada entre estudantes e entre estes e seus professores, e também com as famílias, que imersas no mesmo contexto e, provavelmente, também “sujeitos bolha” nem sempre entenderão os processos pedagógico pastorais. Também é missão da escola acolher e dialogar com as famílias apresentando a consistência e o valor de sua proposta.

As escolas católicas enfrentam muitos desafios para implementar o Pacto Educativo Global porque as prioridades pastorais de Francisco não são entendidas nem aceitas por todos, mesmo entre os católicos. Entretanto, não assumir o Pacto ou relegá-lo a um assunto da Pastoral Escolar ou pior, do componente curricular Ensino Religioso é negar sua identidade católica e sua pertença à missão da Igreja. O maior risco de uma escola católica hoje é tornar-se um híbrido - diz ser católica, mas está submetida ao mercado educacional e aos interesses ideológicos das famílias -, negando os princípios da identidade confessional. Assumir o Pacto Educativo Global, logo, as prioridades pastorais do Papa Francisco, é assumir o caráter profético do seguimento de Jesus que é razão da educação católica. 

Considerações Finais

As prioridades pastorais do Papa Francisco ao longo dos dez anos de seu pontificado já apareceram no documento considerado como o conteúdo programático de sua missão como bispo de Roma, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Para que a Igreja reencontre a alegria de ter sido amada primeiro pelo amor incondicional do Senhor (EG, 24), ela precisa voltar-se para a missão que lhe foi confiada por Jesus – anunciar o Evangelho que é a realização do Reino. Francisco assume a continuidade com o Concílio Vaticano II e afirma que é necessária uma conversão pastoral de toda a Igreja para que seja fiel ao projeto de Jesus. As estruturas e prioridades estavam voltadas para questões internas e para a manutenção de um status quo que não dialoga com as pessoas do mundo atual.

Francisco tem consciência do desafio e das resistências, mas segue desencadeando processos e preocupando-se em encontrar meios para provocar reflexões que transformem mentalidades, processos, procedimentos, instituições, estruturas. Com sua experiência como educador, Francisco sabe que a educação é o caminho para mudar e formar pessoas, por isso convoca o Pacto Educativo Global. Os 7 compromissos sintetizam as prioridades pastorais de Francisco de maneira didática e interdisciplinar, de tal modo que outros organismos, como a UNESCO, podem criar redes de cooperação com a educação católica.

Uma vez que o Papa Francisco convoca um Pacto Educativo Global é evidente que as instituições educativas católicas devem acolher e se comprometer como uma exigência de sua identidade católica. O Pacto Educativo também exige das escolas católicas uma séria avaliação da vivência de sua identidade confessional, frequentemente, colocada em segundo plano em vista da adoção de práticas usuais no mercado educacional. Buscar um referencial pedagógico adequado ao projeto do Evangelho que alicerça as instituições educativas; comprometer-se com a formação da consciência crítica, que permite furar as bolhas que alienam da realidade e impedem a solidariedade com os pobres, e exercitar o diálogo para construir uma cultura de proximidade e fraternidade universal são contribuições possíveis. Assumir o Pacto Educativo Global é dar mais capilaridade às prioridades pastorais do Papa Francisco através de um diálogo amplo com as ciências e ampliar chances de mais sensibilidade para a construção de uma sociedade baseada no humanismo solidário e na fraternidade universal.

Referências

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Notas

[1] Todos os compromissos e suas explicações foram retirados do Pacto Educativo Global: Vademecum. Disponível em: https://www.educationglobalcompact.org/en/tools/newsletter/