Magno Paganelli de Souza
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). professor visitante da Faculdade de Teologia Integrada (Fatin), professor da Faculdade Evangélica de São Paulo (FAESP), professor convidado na Associação Evangélica de Educação Teológica na América Latina (AETAL). Contato: paganelli.magno@gmail.com
Resumo: Este artigo apresenta o pensamento escatológico de Charles Fox Parham, a partir de sua obra Uma Voz Clamando no Deserto, publicada no Brasil. A leitura da referida obra nos levou a elencar os diferentes pontos doutrinários que estampam o seu pensamento e demonstram indelevelmente quão distante ele está do modo como a escatologia de caráter pentecostal, conforme é notória nas diferentes denominações que professam o pentecostalismo se definem, posicionam e defendem. Diante disso, o presente artigo elencou os pontos conforme surgem na obra apontada e procura deixar claros quais são os pontos de divergência e oposição ao consenso escatológico pentecostal, digamos, majoritário. Concluiu-se que o pensamento de Charles Parham apresentado no referido texto é de caráter heterodoxo, ou mesmo herético, nos pontos que trata.
Palavras-chave: Charles Parham; escatologia; pentecostalismo; doutrinas; mormonismo
Abstract: This article presents the eschatological thought of Charles Fox Parham, based on his work Uma Voz Crying in the Desert, published in Brazil. Reading this work led us to list the different doctrinal points that shape his thinking and indelibly demonstrate how far he is from the way Pentecostal eschatology, as is well known in the different denominations that profess Pentecostalism, define themselves, position themselves and defend themselves. In view of this, this article has listed the points as they appear in the work mentioned and seeks to make clear what are the points of divergence and opposition to the Pentecostal eschatological consensus, let's say, majority. It was concluded that Charles Parham's thoughts presented in the aforementioned text are heterodox, or even heretical, in the points he addresses.
KEywords: Charles Parham; eschatology; pentecostalism; doctrines; mormonism
Os nomes de Charles Fox Parham (1873-1929) e William Joseph Seymour (1870-1922) são os mais lembrados no Brasil quando falamos sobre a origem do Movimento. Charles Parham tem sido apontado como o “pai do movimento pentecostal”[1]. Por alguns anos, ele foi pastor metodista e ainda leva crédito como um dos iniciadores e pioneiros do Movimento Pentecostal, ao agrupar as experiências extáticas, manifestações de transes e glossolalias ao batismo com o Espírito Santo. Para Parham, a ideia de uma confirmação do Espírito Santo, como no Pentecostes, parecia transmitir um poder que a Igreja de seu tempo não mais possuía.
Neste artigo, nos apoiaremos na exposição da escatologia de Parham, conforme exposta na obra Uma Voz Clamando no Deserto (2020), de sua autoria, publicada em 1902 e reeditada em 1910 (PARHAM, 2020, p. 9).
Charles Parham nasceu no dia 4 de junho de 1873, em Muscatine, no estado do Iowa. Ele se converteu “antes de completar os 13 anos de idade” numa Igreja Congregacional (PARHAM, 2020, p. 27). Ele diz ter sido “chamado para o ministério” com cerca de nove anos de idade e que, ao estudar a Guerra Civil norte-americana, notou haver dois tipos de soldados: os que se alistavam porque foram convocados e os que se voluntariavam. Ele, então, alistou-se “como voluntário no exército do Senhor” (PARHAM, 2020, p. 25-26), ingressando “numa escola identificada com o metodismo, a Faculdade Sudoeste, em Winfield, no Kansas, em 1889.” (SYNAN, 2009, p. 64) Em 1895, Parham deixou a denominação Metodista.
Depois de ser curado “das consequências da febre reumática em 1898 [...] iniciou um ministério de cura.” (ANDERSON, 2019, p. 46) Desde então, parece que abandonou as igrejas denominacionais, às quais chamava “churchism sectário” (algo como “igrejismo”, em trad. livre; PARHAM, 2020, p. 34). A considerar isso e utilizando as atuais categorias, diríamos que Parham era um desigrejado (neologismo usado em nosso tempo), por rejeitar o denominacionalismo e tornar-se um pregador itinerante, e por posteriormente não ter vinculado a sua escola bíblica a uma denominação formal.
Na escola bíblica que fundou em Topeka, a Bethel Healing Home, ou Casa da Cura Betel, em 15 de outubro de 1900, Parham solicitou aos alunos “estudar cuidadosamente o assunto do Batismo do Espírito Santo” às vésperas do ano novo, quando se deu o falar em línguas da aluna e missionária Agnes N. Ozman, de Nebrasca (PARHAM, 2020, p. 51). Ozman falou em chinês e por três dias não conseguiu falar seu idioma nativo. Dias depois, em 3 de janeiro de 1901, mais “doze estudantes foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas conforme o Espírito lhes deu expressão” (PARHAM, 2020, p. 52).
Parham atribuiu corretamente o selamento da Noiva como “tarefa da divindade”, que sela pelo “batismo do Espírito Santo, conforme registrado em Atos 2.” (PARHAM, 2020, p. 42-43) Ele ainda deu outros textos como apoio: 2Co 1.21-22; Ef 4.30; Ef 1.13-14; Lc 24.49.
Mas, no mesmo contexto (PARHAM, 2020, p. 42), afirmou que “esse fato muito precioso” visa levar os selados a escaparem “das pragas e ira dos últimos dias”. Ele usou como base para a sua afirmação os 144 mil selados do Apocalipse 7: “estes são considerados por quase todos os estudiosos da Escritura como se referindo à Noiva.” (PARHAM, 2020, p. 43)
Divergindo do atual consenso nas igrejas evangélicas, “Parham ensinava ainda que o batismo no Espírito Santo era o único meio de escapar à grande tribulação do final dos tempos e que o falar em línguas era a única garantia desse livramento.” (SYNAN, 2009, p. 65) Até onde conhecemos, não há qualquer segmento ou denominação no Brasil que defenda essa ideia do batismo no Espírito Santo como meio de escapar a Grande Tribulação.
Para ele, ainda, “as dez tribos perdidas de Israel constituem as atuais [em seu tempo] nações protestantes que governam o mundo” (PARHAM, 2020, p. 20).
Falando sobre a redenção completa na plenitude dos tempos, Parham cita Lucas 21.8, que diz: “Quando essas coisas começarem a acontecer, olhai para cima e levantai a vossa cabeça, porque a vossa redenção está próxima”. (PARHAM, 2020, p. 93) Então, a partir de Mateus 24.40-41, que fala dos trabalhadores que serão levados, enquanto outros serão deixados, Parham introduz o tema do arrebatamento dos salvos entre nuvens para se encontrarem com o Senhor. Mas concluiu comparando o fato de Jesus ter ressuscitado e permanecido por quarenta dias na terra antes da ascenção, à situação vindoura da Igreja.
Parham entendeu que depois de ter experimentado o grande poder de Deus na ressurreição dos salvos, o grupo daqueles que haverão de ser deixados para trás (cf. Mt 24.40-41), que alguns entendem ser cristãos que não vigiaram e perderam o arrebatamento,[2] passarão a ter o corpo glorificado (como o corpo do Senhor pós ressurreição) e dedicarão “certo tempo fortalecendo os crentes, pregando e curando as multidões e como Jesus, com poder para aparecer e desaparecer à vontade.” (PARHAM, 2020, p. 94)
Parham acreditava que Paulo fundamentou essa ideia, ao dizer que “assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial” e como “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus” (1Co 15.49-50), aqueles cristãos que ficarem para trás, herdarão um corpo com outra natureza. Do mesmo modo, Parham usou Apocalipse 12.7-11 para reforçar a ideia de que “as pessoas a quem Miguel liberta [...] entram no reino do nosso Deus, são as mesmas sobre as quais Paulo está falando aqui [em 1Co 15.49-50].” (PARHAM, 2020, p. 94)
Acontece que, em nosso entendimento, Apocalipse 12 é claramente uma passagem que remete à história, portanto, ao passado; não é uma profecia. Os elementos ali dispostos remetem à nação de Israel e aos judeus, à expulsão de Lúcifer do céu, ao nascimento de Jesus e à perseguição pelo diabo, não aos salvos na ocasião futura do arrebatamento. Mas, para Parham, a mulher grávida para dar à luz e vestida de sol é figura da “Virgem Maria”, a mãe do Senhor (PARHAM, 2020, p. 112). Além disso, ele interpretou o Filho varão no mesmo Apocalipse 12 não como Jesus, mas como sendo “os santos Arrebatados e são chamados as primícias de Deus, sendo 144.000 em número” (PARHAM, 2020, p. 117).
Se Charles Parham estiver afirmando que a Igreja na Grande Tribulação será restrita ao número de 144 mil pessoas, que o próprio Apocalipse 7.4-8 atribui ipsis literis às tribos de Israel, nomeando-as e numerando a quantidade por tribo, então a sua escatologia está intimamente vinculada a uma interpretação considerada heterodoxa pelas principais confissões na atualidade, assemelhando-se ao modo como as Testemunhas de Jeová entendem aquele número restrito em Apocalipse 7 e 14.
Esses salvos que ficarem na terra com poder para as atividades apontadas há pouco (a qual ele chamou de “obra do militante”, PARHAM, 2020, p. 102) perdem tal poder “nos primeiros três anos e meio dos últimos sete anos [...] isso combinado com pouco mais de três anos e meio da abominação do anticristo (Dn 12.11 é o tempo dos Judeus retornarem até a vinda de Cristo”; PARHAM, 2020, p. 101). Ou seja, Parham, a essa altura, se mostra pré-milenista clássico, mas com o acréscimo da confusão que criou ao separar os salvos no arrebatamento, fazendo com que aqueles que forem deixados para trás se tornem evangelistas da última hora e herdeiros da salvação, mesmo não tendo sido arrebatados, o que é difícil de conciliar com as interpretações correntes em nossos dias.
A confusão escatológica de Charles Parham fica flagrantemente ainda mais confusa a partir do “Capítulo IX A Noiva”, já na primeira linha, que diz: “A noiva de Adão foi tirada de uma costela dele; a segunda Noiva do Adão Cristo será uma pequena companheira, cento e quarenta e quatro mil, tirada do Seu Corpo – a Igreja”. E em seguida ele diz: “A Noiva é uma companheira distinta da Igreja, Cristo não se casa com seu próprio Corpo, como muitos mestres desejam que se acredite.” (PARHAM, 2020, p. 111)
Depois de fazer analogias com as famílias dos patriarcas hebreus, ele retoma um elemento do Apocalipse 12, que é o deserto. Para Parham, é a Noiva (não o remanescente de Israel), que será preservado no deserto. A Noiva só sairá de lá na “vinda pessoal de Cristo” para se juntar aos salvos das eras passadas, pois “permanecerão dormindo até a vinda pessoal de Cristo” (talvez esta seja uma aproximação à doutrina do “sono da alma”, propagada por alguns adventistas). Ao juntarem ambos os grupos, então juntos “eles encontrarão o Senhor nos ares (1Ts 4.16).” (PARHAM, 2020, p. 112)
A Noiva protegida por Deus no deserto (cf. a interpretação de Parham) é o “remanescente mencionado dos que voltam com os Judeus” ao deserto no início tempo da angústia (PARHAM, 2020, p. 112), que é a primeira parte da Grande Tribulação (três anos e meio, cf. interpretação de Dn 9). Fazendo uma costura entre alegadas descobertas arqueológicas e textos do Antigo Testamento, Parham declara ter identificado o local exato do deserto citado no Apocalipse 12, descrito como o local da proteção para o remanescente. São as “sessenta cidades muradas que tinham portões, ferrolhos e cidades não muradas” sobre as quais reinou Ogue, rei de Basã (cf. Dt 3). Deus teria preservado aquelas cidades “construídas por gigantes” durante quatro mil anos, pois nelas, nos três anos e meio, “a Noiva viva permanecerá [...] protegida pelo mesmo Deus poderoso” (PARHAM, 2020, p. 114).
Por estarem protegidos por Deus nesses três anos e meio “eles desfrutam [...] quietude e paz, enquanto o Corpo Redimido, a Igreja, está em busca da evangelização do mundo e o rei socialista [...] Após sua morte e a reencarnação de Judas Iscariores, como Anticristo, a ‘abominação assoladora’ [...] a ordem de Jesus chega a ela.” (PARHAM, 2020, p. 113; ênfase acrescentada) Assim, Parham esperava ter decifrado mais um ponto da escatologia bíblica, que é a identidade do anticristo que, segundo Paulo (2Ts 2.7-8), será revelado somente no final dos tempos.
Charles Parham se declarou sionista e disse que Jeová sorria com “os planos de restauração do grande movimento Sionista observando a aquisição, colonização e renacionalização dos Judeus.” (PARHAM, 2020, p. 119) Parham deu uma informação de que a aquisição de toda a Palestina poderia ser feita ao preço de US$ 10,000.000 (PARHAM, 2020, p. 132) Com isso, ou Parham ignorava a composição da população na região, majoritariamente palestina, inclusive com comunidades cristãs entre eles, ou aqui ele se mostra intolerante ou xenófobo em relação aos árabes, o que é uma atitude perceptível entre cristãos pró-Israel hoje, e desejava que os mesmos saíssem da terra para Israel ocupá-la.
A historiadora Karen Armstrong documentou a presença de judeus em Gaza, no século 17: “Ouvira falar de um jovem e talentoso [rabino] cabalista de Gaza”. (ARMSTRONG, 2009, p. 49) Também menciona a Edah Haredis, comunidade dos ultraortodoxos de Jerusalém, que se opunha veementemente ao sionismo, muito antes da Declaração Balfour,[3] anunciada em novembro de 1917. Edah Haredis era um grupo pequeno de judeus, que atraíra apenas 9 mil dos 175 mil judeus residentes na Palestina nos anos de 1920. (ARMSTRONG, 2009, p. 276-277) Edward Said, ativista palestino-estadunidense, ex-docente da Columbia University, apontou números precisos em período anterior: “Segundo fontes israelenses, não havia mais do que 24 mil judeus na Palestina, em 1822, menos de 10% da população total, majoritariamente árabe”. (SAID, 2012, p. 10; ênfase acrescentada) Para os anos mais recentes, Said apontou o seguinte: “[...] em 1931 a população judaica era de 174.606 pessoas entre um total de 1.033.314; em 1936 o número de judeus subiu para 384.078 entre 1.366.692; e em 1946 eles eram 608.225 numa população de 1.912.112”.[4] O aumento de judeus na Palestina indica o período de colonização, expulsão de palestinos e ocupação de suas terras.
Após Parham escrever “não apontamos data, como muitos mestres proféticos fazem” (PARHAM, 2020, p. 120), ele disse crer que “quando o Congresso Judaico se reunir em Jerusalém e, por proclamação se declararem uma nação restaurada, sete anos depois daquele dia os pés de Jesus Cristo tocarão o Monte das Oliveiras. Quando essa proclamação for emitida, o mundo perceberá que verdadeiramente uma nação nasceu num só dia (Is 66.8).” (PARHAM, 2020, p. 120 e 133)
Em 1951 aconteceu em Jerusalém o 23º Congresso. Três erros são vistos na “profecia” de Parham. Primeiro, a declaração da independência de Israel aconteceu quatro anos antes, em 14 de maio de 1948, proferida por David ben Gurion, não no Congresso, como equivocadamente ele previu. Para Parham, esse Congresso Judaico reunido em Jerusalém emitiria um édito, o qual seria o gatilho para a abertura da “septuagésima semana de Daniel e os últimos sete anos dessa era.” (PARHAM, 2020, p. 132) Como sabemos, isso não aconteceu.
A segunda previsão equivocada de Parham diz respeito aos pés de Jesus pisando o Monte das Oliveiras sete anos depois, portanto, em 1958, o que também não aconteceu, pois como lemos, “ninguém sabe o dia nem a hora em que essas coisas acontecerão, nem mesmo os anjos no céu, nem o Filho. Somente o Pai sabe”. (Mt 24.36)
Por fim, a interpretação que ele fez de Isaias 66.8. Muitos, ainda hoje, leem Isaias 66.8, para defenderem que o dia 14 de maio de 1948, data da declaração de fundação do moderno Estado de Israel, já se cumpriu. Esquecem-se de que o versículo precisa de contexto. Vejamos:
Antes de entrar em trabalho de parto, ela dá à luz; antes de lhe sobrevirem as dores, ela ganha um menino. Quem já ouviu uma coisa dessas? Quem já viu tais coisas? Pode uma nação nascer num só dia, ou, pode-se dar à luz um povo num instante? Pois Sião ainda estava em trabalho de parto, e deu à luz seus filhos. (Is 66.7-8; ênfases nossas)
Segundo a interpretação dos defensores do atual Estado de Israel, especialmente em algumas igrejas pentecostais e neopentecostais, a fundação da nação israelense em 1948 tem sido sobreposta à intepretação mais coerente, que deve levar em consideração o personagem principal da história bíblica: Jesus. O v. 7 diz que um menino nasceria; por que forçar uma interpretação que substitui o nascimento de Jesus pela fundação de um país? Ao nascer o menino Jesus, nasce com ele a expectativa da Igreja, esta que seria fundada sobre a pedra, que é o próprio Jesus. Ele é sua pedra de fundação. Em outras palavras, ao nascer Jesus, nasce, também, uma nova nação, o povo de Deus, que é a Igreja. A Igreja pode ser interpretada como uma nação? Sim. Confirma essa interpretação o fato de Pedro chamar a Igreja de “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus” (1Pe 2.9).
A interpretação que se faz de qualquer ocorrência histórica envolvendo o povo judeu deve passar pelo crivo das lentes do Novo Testamento. Os apóstolos e autores do Novo Testamento fizeram, antes de nós, interpretação de profecias do passado; como igreja, precisamos segui-los no mesmo raciocínio, evitando acrescentar sentidos e significados em desacordo com o fundamento que os apóstolos lançaram: “[...] edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus Cristo como pedra angular” (Ef 2.20). Ainda sobre contextos, o próprio livro de Isaias, cap. 9, dá o sentido e que o profeta entendeu “o menino” de Isaias 66.7, que antecede a citação de Parham. Assim, encontramos três erros flagrantes somente nestas quatro linhas do texto de Parham.
Parham ainda dedicou um breve capítulo ao movimento sionista, exaltando o trabalho feito por Theodor Herzl (1860-1904).[5] No capítulo, ele condena como “falso mestre” qualquer líder que não considera “a reunião suprema da Noiva com os Judeus em Jerusalém” (PARHAM, 2020, p. 132), porém, o faz dentro da perspectiva sionista, portanto judaica e secularizada, com a qual não podemos concordar de modo algum. Do ponto de vista cristão, historicamente, os judeus têm cometido interpretações bem distanciadas daquelas que são corretas e coerentes de acordo com a tradição dos apóstolos. Seguir pari passu os resultados da hermenêutica judaica[6] é arriscar-se a laborar sobre os seus erros.
No “Capítulo XI A Tribo de Judá”, Parham retoma a história de Jeremias e seu sogro Zedequias. Após receber permissão do rei da Babilônia, Jeremias “tomou Hamutal, sua filha, esposa de Zedequias, e Tea-Tephi, sua neta e a filha do rei, herdeira do cetro e do trono de Judá: foram para o sul, para o Egito, profetizando a destruição daquela nação.” (PARHAM, 2020, p. 120) Então, segundo “manuscritos recentemente encontrados no campo próximo ao Castelo de Tofenes, em Alexandria”, Parham afirma que Jeremias conseguiu escapar da queda de Alexandria num navio, indo parar na Grã-Bretanha, pois havia sido consagrado “antes de nascer como um profeta para as nações (Jeremias 1.5-10)” (PARHAM, 2020, p. 120-121).
De lá, Jeremias teria ido para a corte da Irlanda, país que na “época era um grande centro de aprendizado [...] que ainda produz, e provavelmente sempre produzirá, os maiores oradores do mundo.” (PARHAM, 2020, p. 121) Tea-Tephi, que estava com Jeremias, ao chegar à corte daquele país “segurando o cetro de Davi, tornou-se a rainha de Herman, a principal rainha da Irlanda”. Mais tarde o cetro de Davi foi levado pelo duque de Argyle (título criado em 1701), quando se tornou rei da Escócia e da Irlanda. Por fim, o rei Tiago levou o cetro para a Inglaterra, onde ficou até Eduardo VII (1841-1910), e “manteve o cetro de Davi [até que] e o sangue da rainha Vitória fluísse nas veias de quase todos os governantes da Europa. Assim, a lei realmente sai de entre os joelhos de Judá e a Davi nunca faltou um herdeiro que se assentasse no trono.” (PARHAM, 2020, p. 121)
Parham ainda acrescentou:
A pedra de Scone[7] sobre a qual os Reis da Irlanda, Escócia e Inglaterra foram coroados foi levada por Jeremias para a Irlanda e foi a pedra sobre a qual os reis de Judá foram coroados, e é uma pedra memorial de Israel pertencente aos filhos de José (Gênesis 49.24). O Direito Divino dos Reis pode realmente ser mantido por aqueles soberanos em cujas veias fluem o sangue de Davi, o ungido rei dos Hebreus. (PARHAM, 2020, p. 122)
Segundo a interpretação de Parham, a linhagem real dos soberanos da Europa descenderia de Davi e eles carregariam o “Direito Divino [dos reis]”. Foram os teóricos franceses Le Bret, Jean Bodin e Jacques Bossuet que formularam a teoria de que os reis tinham um poder absoluto por terem a origem divina. Daí a sua legitimidade para governar. Essa teoria fundamenta ideologicamente regimes absolutistas, ao divinizar a figura dos reis.
Para dar sustentação ao seu argumento, o texto de Parham segue nomeando 151 reis e rainhas, desde “Adão, a.C. 4000-3070, Eva” até Albert Edward VII, em genealogias de Adão até a rainha Vitória, passando por reis de Israel, da Irlanda, de Argyles, da Escócia e da Grã-Bretanha. Com isso, ele reconstrói a seu modo a linhagem ininterrupta da “semente real do Rei Davi”, da qual a “amada Rainha” [certamente Elizabeth, a “rainha mãe”], a partir de quem Parham concluiu: “Ela era e deve ser a monarca dominante sobre as dez tribos perdidas de Israel.” (PARHAM, 2020, p. 129)
A suposta mudança de Jeremias para a Europa deve ter sido bem dificultosa, uma vez que Parham afirma mais adiante que, além da Pedra de Scone, um objeto não pouco pesado, o cetro de Davi, os objetos pessoais do profeta e de sua comitiva, Jeremias ainda teria levado consigo a Arca da Aliança e o próprio tabernáculo, que pesaria algumas toneladas! Tudo teria sido escondido “numa caverna oca, na qual pôs o tabernáculo, a Arca e o altar de incenso” (PARHAM, 2020, p. 134).
Pouco depois, ele informa ter conversado com um “rabino Judeu” e que este “reconhece que os Anglo-Saxões e outros povos são as dez tribos perdidas de Israel e que todas as profecias concordam que elas devem ser reunidas nos últimos dias.” (PARHAM, 2020, p. 133) Na mesma conversa a respeito da necessidade de os judeus se tornarem cristãos ou o contrário, os cristãos se tornassem judeus para herdarem a salvação, foi acordado que nem uma coisa nem outra deveria acontecer, já que “nunca foi planejado no plano de Deus que os Judeus, como um todo, aceitassem Jesus de Nazaré quando Ele viesse mil e novecentos anos atrás, como sacerdote e Salvador.” (PARHAM, 2020, p. 134)
Neste ponto, mais um equívoco de Parham. Hoje se entende que os judeus não precisam abrir mão de sua cultura ao reconhecer o Messias Jesus; no entanto, abrir mão do reconhecimento de Jesus, como Messias que é, contraria a soteriologia desde os tempos de Jesus (que de fato nem todos os judeus o reconheceram como o Messias aguardado), a Patrística e todo o período clássico da Teologia.
Ainda no capítulo sobre as dez tribos perdidas, lemos em Parham que elas deram origem a “um povo muito guerreiro, (“Isuki”) a primeira comunidade [que] prevaleceu contra o leste e capturou a Índia, de quem descendem os modernos Hindus.” (PARHAM, 2020, p. 137) Dito isto, Parham passou a descrever a trajetória “da raça de Israel até que abrangessem o mundo inteiro”, afirmando um tipo de narrativa utilizada pelos sionistas, o que persiste ainda, do predomínio e influência dos judeus nos mais diferentes setores público-privados como elemento diferencial daquele povo para se estabelecer uma suposta superioridade da raça. Aqui estamos pensando no contexto específico do conflito Israel-Palestina, tema em que cristãos se valem da ideia da superioridade tecnológica para defenderem o lado israelense.
Parham propôs que a “imigração Ariana na Europa Ocidental” é de origem judaica, uma vez que os arianos, que segundo a história conquistaram o norte da Índia, criaram o idioma sânscrito e a casta sacerdotal brâmane no hinduísmo. Tal imigração era formada pelas dez tribos perdidas, as quais, posteriormente, teriam migrado para o continente europeu.
Se Parham estiver certo, os arianos seriam descendentes diretos das dez tribos perdidas de Israel, o que ele entendeu ser o modo de lançar na Europa o fundamento para a crença na “imortalidade da alma e em um Deus [monoteísmo], o que os Gregos não acreditavam”. Ele disse que aconteceu assim, uma vez “que nos tempos primitivos [esse povo ariano] haviam recebido suas leis e regulamentos de um Ike Moxes (Moisés), que passou muitos dias nas montanhas e voltou com as mesmas.” (PARHAM, 2020, p. 138)
Desse modo, prossegue Parham, os arianos, tendo sido capturados, foram “vendidos no mercado de escravos de Roma” (PARHAM, 2020, p. 138) e dali foram para a Alemanha. “Hoje, os descendentes de Abraão são Hindus, Japoneses, Alemães do Ocidente, Dinamarqueses (tribo de Dã), Escandinavos, Anglo-Saxões e seus descendentes em todas as partes do mundo.” E “a Inglaterra representando Efraim e os Estados Unidos, Manassés.” (PARHAM, 2020, p. 139)
Ao falar sobre os Estados Unidos na profecia bíblica, Parham citou o livro apócrifo 2Esdras 11―12, de onde extraiu a interpretação que concebeu da figura dos animais, asas de águia e o leão. Ele as associou aos Estados Unidos e Inglaterra. Parham se valeu também da “última parte da visão de George Washington [...] sobre o futuro da República Americana.” (PARHAM, 2020, p. 150-151) Isso destoa de qualquer padrão aceitável de hermenêutica bíblica. Penso ser desnecessário comentar um argumento baseado em tais fontes.
Até o final da obra, Parham segue com seu texto, conduzindo o leitor pela Batalha do Armagedom, o Milênio e o tempo do Juízo.
O Mormonismo ou A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (IJCSUD) ensina que em determinado período da história, a Igreja em geral se apostatou da fé (o que chamam “apostasia geral”). Isso levou à necessidade de restauração, o que se deu por meio da IJCSUD. Assim, eles se posicionam como qualquer grupo exclusivista e sectário, uma denominação que vê a si como a única que segue a verdade de Deus, a qual foi criada a partir de alegadas visões de seu fundador, o “profeta” Joseph Smith Jr. (1805-1844).
A segunda visão que Smith experimentou teria acontecido em 21 de setembro de 1823. Antes de deitar-se, Smith fez sua oração e, enquanto orava, o anjo Moroni apareceu a ele. Esse suposto anjo teria lhe falado sobre o livro que estava escondido, escrito em placas de ouro que continha a plenitude do evangelho eterno. Falou sobre duas pedras e os óculos em aros de prata usados para se ler e poder interpretar os escritos do livro. As placas estariam enterradas no lado oeste do Monte Cumora, em Palmyra (NY), a cinco quilômetros da fazenda onde Smith morava (note a semelhança da narrativa de Parham sobre a suposta mudança de Jeremias e a caverna onde escondeu o tabernáculo)
O Livro de Mórmon, que teria sido traduzido das placas de ouro dadas a Smith pelo anjo Moroni, filho de Mórmon, conta um relato sobre os primeiros habitantes do continente americano, o que novamente se assemelha ao texto de Parham. O Livro de Mórmon diz:
E, portanto, um resumo do registro do povo de Néfi e também dos lamanitas – Escrito aos lamanitas, que são um remanescente da casa de Israel; e também aos gentios – Escrito por mandamento e também pelo espírito de profecia e de revelação [...] Contém ainda um resumo do Livro de Éter, que e um registro do povo de Jaredem disperso na ocasião em que o Senhor confundiu a língua do povo, quando este construía uma torre para chegar ao céu – Destina-se a mostrar aos remanescentes da casa de Israel as grandes coisas que o Senhor fez por seus antepassados; e para que possam conhecer os convênios do Senhor...”. (MÓRMON, 1997, s/n.; ênfases acrescentadas)
Na Introdução do Livro lemos: “O livro de Mórmon é um volume de escrituras sagradas compatíveis a Bíblia. É um registro da comunicação de Deus com os antigos habitantes das Américas e contém a plenitude do evangelho eterno” (MÓRMON, 1997, s/n.; ênfase nossa). Suas palavras foram escritas em placas de ouro citadas e resumidas por um profeta-historiador chamado Mórmon. O registro contém um relato de duas civilizações. Uma das civilizações veio de Jerusalém no ano 600 a.C. e posteriormente, se dividiu em duas nações, nefitas e lamanitas. A outra veio muito antes, quando o Senhor confundiu as línguas na Torre de Babel, e são os jareditas. Milhares de anos depois foram todos destruídos, exceto ao lamanitas, que estão entre os antepassados dos índios americanos, segundo a crença mórmon. Ao que parece Parham teria bebido da fonte mórmon na formulação de suas ideias; essa hipótese não nos parece distante da realidade.
Há outras doutrinas mórmon estranhas e radicalmente destoantes do entendimento adotado no próprio movimento pentecostal, bem como por denominações tradicionais. Entre essas doutrinas, destacamos a vasta pesquisa genealógica (Parham utilizou variadas genealogias ao remontar a história da migração de Jeremias).
Sobre os negros, os mórmons afirmam que são os israelitas que se rebelaram, foram tornados negros e são chamados lamanitas (cf. 2Nefi 5.21; veja nossa última citação em destaque). Como Parham viveu num tempo quando a doutrina mórmon estava difundida pelo país, não seria fantasiosa a associação de suas ideias com aquele grupo, especialmente diante do que pudemos constatar em seu texto na comparação com o que ensinou Joseph Smith Jr.
Diante do que pudemos observar no texto de Charles Parham, temos segurança para afirmar que aquilo que o autor expôs em sua obra Uma Voz Clamando no Deserto, publicada no Brasil, tem caráter contrário ou alheio ao posicionamento teológico majoritário ao do movimento do qual leva o rótulo de “pai do pentecostalismo”.
As afirmações teológicas firmadas ao longo do último século no referido movimento não são o entendimento daquele que foi responsável por tão importante fato histórico, qual seja, ter na escola que fundou o marco inicial na modernidade do batismo com o Espírito Santo, demonstrando a evidência do falar em línguas. Seu mérito, ao insistir que seus alunos estudassem e se dedicassem a experimentar tal situação pentecostal não lhe é removido. No entanto, não podemos subscrever sua profissão de fé no que toca os pontos aqui tratados. Eles são divergentes e em alguns casos diametralmente opostos ao movimento que ele mesmo contribuiu para que se firmasse.
Lamentavelmente, se a teologia de Charles Parham fosse avaliada hoje (especialmente por grupos de defesa apologética), tememos que ele fosse firmemente rotulado como herege, tamanho o distanciamento que se pode notar em suas posições doutrinárias, conforme constatadas na referida obra de sua autoria.
ANDERSON, Allan Heaton. Uma introdução ao pentecostalismo: cristianismo carismático mundial. São Paulo: Loyola, 2019.
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MÓRMON, O Livro de. Outro Testamento de Jesus Cristo. Salt Lake City, Utah: publicado por A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, 1997.
PARHAM, Charles F. Uma voz clamando no deserto, trad. Marcia Elias. São Paulo: Editora Reflexão, 2020.
SAID, E. W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
SYNAN, Vinson. O século do Espírito Santo. São Paulo: Editora Vida, 2009.
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[1] Leve-se em consideração que por “movimento pentecostal”, referimo-nos aqui ao movimento que cresceu a partir da Rua Azuza, em Los Angeles, uma vez que o movimento pentecostal no século XIX teve mais de um foco de origem, como Keswick, Inglaterra, e a Índia. Foi do movimento norte-americano, que também aconteceu em localidades como Houston, que os missionários que vieram para o Brasil partiram.
[2] Estamos mais inclinados a interpretar a maior parte de Mateus 24 como um sermão dirigido aos judeus no tempo de Jesus, bem como as parábolas no final do capítulo e parte do capítulo 25.
[3] Declaração Balfour é uma carta de 2.11.1917, escrita pelo secretário britânico dos Assuntos Estrangeiros, Arthur James Balfour ao Barão Rothschild, líder da comunidade judaica do Reino Unido e à Federação Sionista da Grã-Bretanha. A carta se refere à intenção do governo britânico de facilitar o estabelecimento do Lar Nacional Judeu na Palestina.
[4] The Anglo-Palestine Yearbook 1947-8, p. 33, apud Said, 2012, p. 13.
[5] O sionismo é um termo criado pelo escritor judeu vienense Nathan Birnbaum, em 1885. Se constituiu, inicialmente, num movimento político com ênfase na diplomacia, e teve em Theodor Herzl, judeu nascido na Polônia, um de seus primeiros e maiores expoentes. O sionismo político não tinha qualquer interesse pelo judaísmo ou por questões judaicas em si, embora se valesse da consciência geral de que a Palestina fosse o antigo lar dos judeus, então espalhados por países do Oriente e Oriente Médio, África, Américas e por países da Europa, onde a ideologia nasceu. Contam que como jornalista, Theodor Herzl cobriu o Caso Dreyfus, marco do antissemitismo, em Paris, na década de 1890. A partir daí teria iniciado a tentativa de reunir o seu povo numa terra onde pudessem encontrar liberdade e desenvolver-se longe das perseguições. Os judeus da Europa sofreram uma série de perseguição em diferentes países e épocas: Espanha (1492), Viena e Linz (1421), Colônia (1424), Augsburg (1439), Baviera (1442), Morávia (1454), Perugia (1485), Vicenza (1486), Parma (1488), Milão e Lucca (1489), Toscana (1494). Em nossa pesquisa, já identificamos oito variantes do sionismo: sionismo político, prático, sintético, revisionista, trabalhista, cultural, que é a corrente de Martin Buber (mas ele é mais sionista-humanista), sionismo de redenção, sionismo evangélico (termos que cunhamos preferencialmente a sionismo cristão) e anti-sionismo.
[6] Princípios de interpretação entre os judeus: 1. Judeus palestinos: eram legalistas, valorizavam a tradição oral, manipulavam o texto (Mc 7.13; Mt 5.21,27,31,33 e 38,43). 2. Judeus alexandrinos: eram platonistas (“Não acredite em nada que seja indigno de Deus”). Por conta disso, alegorizavam. Para Filo, o sentido literal era um símbolo de coisas mais profundas. O significado escondido tinha grande importância. 3. Caraítas (800 d.C.). Foram chamados de “protestantes judeus” e foram uma reação contra o rabinismo. 4. Cabalistas (séc. XII): místicos, adotaram a numerologia, ressignificavam o sentido literal, substituíam letras e palavras e combinavam letras para formar novas palavras. 5. Judeus espanhóis (séc. XII-XV): resgataram o texto hebraico, desenvolveram um método de interpretação sadio e fizeram isso durante a “Idade das Trevas” na Igreja cristã.
[7] A Pedra de Scone, Pedra da Coroação ou a Pedra Fadada é um bloco de arenito vermelho que foi usada por séculos na coroação dos monarcas da Escócia, e depois pelos monarcas da Inglaterra e Reino da Grã-Bretanha. Parham afirma ter circulado histórias antigas na Irlanda de que a pedra levada por Jeremias estava no Templo de Jerusalém, tendo sido chamada, também, de Pedra de Jacó e que ela poderia ser vista em seus dias na Abadia de Westminster. (PARHAM, 2020, p. 129-130)