Wagner Lopes Sanchez
Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: wagnersanchez@uol.com.br
Welder Lancieri Marchini
Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor da graduação em Filosofia da Faculdade João Paulo II (FAJOPA) e na Universidade São Francisco (USF). Contato: wagnersanchez@uol.com.br
Resumo: As frequentes reações ao papado de Francisco se embasam, sobretudo, em uma eclesiologia tradicionalista, onde as referências identitárias estão fundamentadas na pertença institucional, mais que na adesão ao Evangelho. Este artigo busca entender as opções eclesiológicas do Papa Francisco na perspectiva da Igreja em saída, do diálogo da comunidade eclesial com a realidade na qual está inserida e na busca de uma identidade extrovertida. Assumindo a revisão bibliográfica acerca do conceito de identidade, torna-se possível a compreensão de diferentes perspectivas identitárias. Enquanto os críticos do magistério de Francisco assumem perspectivas introvertidas, o Papa propõe uma Igreja que constrói sua identidade nas relações que estabelece.
Palavras-chave: Identidade introvertida; Amoris Laetitia; clericalismo; Evangelii Gaudium; Igreja em saída
Abstract: The frequent reactions to Francis' papacy are based above all on a traditionalist ecclesiology, where identity references are based on institutional belonging rather than adherence to the Gospel. This article seeks to understand Pope Francis' ecclesiological choices from the perspective of the Church going forth, of the ecclesial community's dialog with the reality in which it is inserted and in the search for an extroverted identity. By reviewing the literature on the concept of identity, it becomes possible to understand the different perspectives on identity. While critics of Francis' teaching take introverted perspectives, the Pope proposes a Church that builds its identity in the relationships it establishes.
Keywords: Introverted identity; Amoris Laetiti;, clericalism; Evangelii Gaudium; outgoing Church
A eclesiologia da comunhão, base para o cristianismo católico, nunca pressupôs uma uniformidade no modo de ser e pensar das comunidades eclesiais. Seja pela diferença de ritos, quando tomamos por base a Igreja no Oriente, seja a diferença de carismas, quando se assume as ordens, congregações e institutos de vida religiosa consagrada, a diversidade sempre foi aceita no seio do cristianismo. As diferentes comunidades e grupos convivem no interior da Igreja católica – embora nem sempre com harmonia – desde que não rompam com a unidade eclesial. E o papado é o principal responsável, na concepção eclesiológica católica, por assegurar essa unidade sem, contudo, atentar contra a diversidade.
É possível discordar de um papa sem atentar contra a unidade da Igreja? Cabe criticá-lo e ainda assim viver a comunhão eclesial? Tais questionamentos se fazem importantes ante o cenário vivido nos tempos atuais. O papado de Francisco tem suscitado posturas fervorosas, seja na crítica à sua eclesiologia, seja na defesa de sua pauta. Francisco pode ser considerado um papa com características muito próprias que vão desde a sua adesão às teses do Concílio Vaticano II até a sua posição de denúncia do drama vivido pelos migrantes, inclusive criticando os governos de diversos países pela sua omissão diante da grave crise migratória. Também sua perspectiva sinodal é criticada por aqueles que entendem que tal eclesiologia equipararia o catolicismo ao protestantismo.
As críticas e as defesas das concepções eclesiais de Francisco manifestam diferentes perspectivas eclesiais e diferentes concepções acerca da identidade cristã. Neste artigo nos propomos a revisitar um dos primeiros movimentos de reação a Francisco, que foi o de objeção à Exortação Pós-Sinodal Amoris laetitia, publicada em março de 2016. Uma das figuras que se opuseram à concepção de matrimônio presente nessa exortação foi o cardeal Gerhard Müller, que até 2017 exerceu a função de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé[1]. Este primeiro movimento de reação às ideias de Francisco ganhou vozes consonantes, vindas de outros movimentos e organismos tidos como conservadores. O posto papal, antes intocável e revestido de uma autoridade divinamente legitimada, passou a ser questionado internamente por teólogos e membros da hierarquia católica, e externamente por diversos setores da mídia.
Nosso artigo não se ocupa necessariamente do episódio onde os quatro cardeais contestam as opções eclesiais do Papa Francisco. Antes, queremos apresentar as duas posturas como ilustrações de diferentes perspectivas identitárias. A defesa ou a crítica ao papado de Francisco vem embasada em diferentes eclesiologias. Há aqueles que entendem que a identidade cristã está no movimento de salvaguardar a fé católica como algo imutável, assumindo uma postura introvertida, e há aqueles que entendem que a Igreja deve se colocar em diálogo com o contexto histórico no qual está inserida, assumindo uma postura extrovertida.
As primeiras manifestações de oposição ao Papa Francisco ganharam corpo após o Sínodo sobre a Família, em 2015. Após a publicação da Exortação pós-sinodal Amoris laetitia, que aconteceu em março de 2016, um grupo de quatro cardeais criticou publicamente o pontífice com a divulgação de um documento intitulado “Os dúbia”. Esse grupo era formado pelos cardeais Raymond Burke, Walter Brandmüller, Carlo Caffarra e Joachim Meisner, sendo que os dois últimos morreram em 2017. Os cardeais escreveram, na época, o que eles chamaram de uma “correção filial”, não identificando o Papa como herege, mas sinalizam algumas posições consideradas pelos autores como heresias.
O maior entrave no processo de recepção de Amoris laetitia está na abordagem a respeito dos casais em segunda união. Na exortação, Francisco evita o tom condenatório (PASSOS, 2016, p. 53-54) e busca a construção de postura de discernimento e acolhida por parte das comunidades cristãs. Mais ainda, Francisco evita a criação de uma norma geral, instruindo os membros da Igreja a buscarem o discernimento de acordo com o Evangelho (AL 37.227.301).
A crítica feita pelos quatro cardeais a Francisco se baseia na nota de rodapé 351 que fala da possibilidade de casais de segunda união receberem os sacramentos. Os cardeais alegam que o capítulo 8 da Amoris laetitia não obedece ao princípio da não contradição, segundo o qual uma afirmação não pode ser, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa, quando se trata de um mesmo contexto. Sendo assim, se o casal vive a ilegalidade e o pecado, não poderiam receber nenhum sacramento.
De modo geral, Francisco tem uma maneira diferente de olhar para a vida familiar. O foco do rigor dá lugar à vivência do amor como substrato para a moral matrimonial (PASSOS, 2016, p. 49). Francisco, em muito influenciado pelas práticas de discernimento jesuíticas, entende um cristianismo que se constrói no encontro com a realidade histórica e humana.
Francisco traz algumas particularidades. Assumiu um papado simples, sem os sapatos de cor púrpura, sem a cruz peitoral de metal precioso e reside fora dos aposentos oficiais do Vaticano. É possível dizer que Francisco dessacralizou o papado. Há por traz das atitudes de Francisco uma crítica a um modelo de clero que se sobrepõe ao povo e utiliza dos aparatos simbólicos para reforçar o poder eclesiástico.
As críticas de Francisco ao clericalismo são constantes e explícitas (cf. EG 24. 102). Há quem acuse o Papa de ser muito duro com o clero, sobretudo os sacerdotes mais novos, formados no papado de João Paulo II e Bento XVI, que têm como características a observância da liturgia tradicional e das normas canônicas. São setores desse clero que parece se opor ao Papa criticando algumas de suas falas e posicionamentos.
As críticas mais contundentes ao clericalismo feitas por Francisco estão presentes na carta escrita por ele ao cardeal Marc Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão da América Latina, em março 2016. Nesse documento a palavra clericalismo aparece sete vezes e sempre com conotação negativa. Francisco referindo-se à situação da Igreja na América Latina denomina o clericalismo “como uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar” (FRANCISCO, 2016, online).
Segundo Francisco, o
clericalismo leva a uma funcionalização do laicado; tratando-o como ‘mandatário’, limita as diversas iniciativas e esforços e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder anunciar a Boa-Nova do Evangelho em todos os âmbitos da atividade social e, sobretudo, política. (2016, online)
Assim, para Francisco o clericalismo não é um problema apenas do ambiente interno da Igreja, mas também está relacionado com a forma como os/as leigos/as atuam na sociedade. E, por outro lado, ele afeta também a dimensão profética da missão da Igreja: “o clericalismo, longe de dar impulso às diversas contribuições e propostas, apaga, pouco a pouco, o fogo profético do qual a inteira Igreja está chamada a dar testemunho no coração dos seus povos” (FRANCISCO, 2016, online).
A crítica de Francisco ao clericalismo incomoda muitos setores do clero católico que querem preservar apenas os interesses da instituição e não aceitam compartilhar a responsabilidade pela Igreja com o laicato. Por isso, a reação dos grupos conservadores no que diz respeito ao clericalismo visa preservar um modelo de igreja centrado na eclesiologia da Igreja entendida como sociedade perfeita predominante no período anterior ao Vaticano II e que está na contramão de uma eclesiologia da comunhão do povo de Deus.
É possível afirmar que o Vaticano II trouxe no mínimo duas inspirações ao Papa Francisco: a colegialidade e o aggiornamento. Estes são termos já conhecidos da eclesiologia latino-americana, mas que ganham força no papado de Francisco. Essas duas perspectivas são importantes não somente para o entendimento do papado de Francisco, mas também para a compreensão dos conflitos em torno de sua eclesiologia.
A colegialidade se constituiu como um método que envolveu todo o Concílio. Além disso, o período da recepção conciliar demarca um novo entendimento das conferências episcopais, pautado pelas concepções de colegialidade e sinodalidade[2]. As discussões do Vaticano II sobre a colegialidade visaram a recuperação do colégio episcopal em conjunto com o papa (MIRANDA, 2017, p. 268).
Nos papados de João Paulo II e Bento XVI a Igreja católica assistiu a uma maior centralização nos órgãos centrais do Vaticano[3]. Francisco tem insistido na necessidade de dar maior autonomia às conferências episcopais (EG 32) e entende que o papado e as estruturas centrais da Igreja também devem passar por uma conversão pastoral: “o papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral” (EG 32).
Recorrendo ao Concílio Vaticano II, Francisco defende que as conferências episcopais possam dar uma contribuição decisiva para a colegialidade e que essa dimensão deve adquirir “aplicações concretas” (EG 32). Ele fala na necessidade de um novo estatuto para as conferências episcopais que dê a elas “atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal” (EG 32).
Evidente que tal autonomia não pode ser confundida com a extinção de algumas funções próprias do papado, nem com a arbitrariedade por parte das comunidades locais. Trata-se, antes, de respeitar uma característica muito presente nos primeiros séculos do cristianismo em que as igrejas locais tinham autonomia para decidir sobre a sua vida. Em linhas gerais, a colegialidade está associada à valorização da vocação de cada cristão batizado e ao entendimento da Igreja como Povo de Deus.
O aggiornamento, termo italiano utilizado por João XXIII para tratar da motivação para a realização do Concílio – a atualização e a renovação de toda a Igreja –, traz implicações no modo como a Igreja Católica entende sua relação com a realidade na qual está inserida. Libanio entende o ideal conciliar na perspectiva de que o cristão moderno crê dentro de um contexto moderno (LIBANIO, 2005, p. 73). Assim o aggiornamento pode ser compreendido como o atitude de um diálogo entre os princípios cristãos e o contexto onde a comunidade local está inserida, que no caso, seria o contexto moderno. Na interpretação de O’Malley, o aggiornamento traz consigo a perspectiva do diálogo do catolicismo não apenas com a modernidade, mas com qualquer sociedade e por se tratar de um diálogo e não de uma simples adaptação, o cristianismo também se apropriaria de alguns dos valores e pressuposições da modernidade (2014, p. 51).
Na busca do diálogo com a sociedade atual, Francisco toca em questões sensíveis para a tradição cristã. por isso mesmo são comuns acusações de que ele seja modernista. Tais acusações eram comuns também no período da realização do Concílio Vaticano II, quando bispos que não concordavam com as iniciativas conciliares acusavam o processo de laxista ou modernista. O Concílio e sua recepção, sobretudo na América Latina, se baseiam no que podemos chamar de uma identidade extrovertida, ou seja, entende a Igreja católica não centrada nela mesma, mas na relação com a realidade que a cerca.
No intuito de traçarmos o perfil identitário que sustenta as diferentes eclesiologias expostas neste artigo, vamos recorrer a alguns autores e conceitos acerca da identidade que são engendrados em perspectiva cultural. É a partir delas que nos ocuparemos da leitura teológica. Para a reflexão que estamos fazendo aqui, é importante lançarmos um olhar sobre a noção de identidade para depois examinarmos a questão da identidade na Igreja católica.
Autores que trabalham com o conceito de identidade comumente o entendem como característica atrelada à construção do sujeito, sobretudo na relação que este sujeito estabelece com o seu local. Para Bhabha a identidade “nunca é a afirmação de uma identidade pré-estabelecida, nunca uma profecia auto cumpridora – é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem” (2013, p. 84). Assim Bhabha rompe com a ideia essencialista de identidade que busca salvaguardar algo que foi construído no passado e se perpetua como uma essência a ser alcançada, o que pode ser compreendida como a salvaguarda das tradições e costumes. O cristão o é à medida que tensiona a tradição que recebe com suas próprias demandas. Trata-se de um diálogo estabelecido entre a imagem de identidade, ou seja, a própria tradição, com o sujeito que a recebe.
Hall, por sua vez, traz uma concepção de identidade relacionada com a construção do sujeito social. A identidade se constrói na relação do sujeito com o mundo exterior a ele (2014, p. 11). No campo cristão podemos entender, então, que a identidade não se dá por uma essência definida em algum momento da história, mas pelo modo como o cristão se constrói como tal na relação com o local onde está situado. Sintetizando a concepção sociológica da identidade a partir do entendimento do sujeito moderno, Hall a apresenta como diálogo entre o interior do sujeito e o exterior a ele, entendido como a cultura e a sociedade:
[A identidade] preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós mesmos” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. (2014, p. 11)
Ao tratar da historicidade da identidade, Hall utiliza a metáfora da costura:
A identidade, então, costura (ou para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (2014, p. 11)
A identidade se constrói não pela essência que se assume, alheia ao sujeito, mas pela relação entre este sujeito e a realidade na qual ele está inserido, denominado por Bhabha como entrelugares:
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entrelugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (2013, p. 20)
Assim entende-se que a identidade é constituída dentro de um contexto cultural e a partir da construção de significados e de acordo com as situações vividas. Assim ela está para além de um entendimento teórico ou conceitual, mas se constrói à medida em que o sujeito manifesta ou assume socialmente – ou eclesialmente – tais entendimentos:
No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. (CASTELLS, 2018, p. 54)
É importante, tratando-se da identidade cristã, de não reduzi-la ao papel social do cristão, mas de entender que ela se formula a partir da relação com o contexto histórico. O cristão o é sempre em um contexto, e não se limita ao que faz, mas sim à sua dimensão atitudinal, ao próprio fato de ser cristão. Para Castells há distinção entre os papéis sociais e a identidade, visto que os papéis são definidos pelas instituições e organizações da sociedade enquanto a identidade acontece como consequência do processo de internalização, construindo significado em um processo de construção simbólica (2018, p. 54-55). Na relação com o cristianismo, podemos afirmar que o papel se dá pelas normas e costumes determinados pela própria instituição religiosa, enquanto a identidade se dá no processo de internalização dessas normas pelo cristão, o que não acontece fora de seu contexto histórico.
O processo de construção da identidade pode também ser entendido como processo de identificação, construído a partir da relação do indivíduo com o outro, visto que o sujeito vive a necessidade de corresponder a conceitos previamente estabelecidos (cf. MAFFESOLI, 2010, p. 267). No âmbito social o sujeito se depara com condições preestabelecidas como classe social, gênero, categorias socio profissionais dentre outros vários parâmetros que lhe são colocados (MAFFESOLI, 2010, p. 268) e é na relação com aquilo que é anterior a ele que o sujeito constitui sua identidade:
O denominador comum de tudo isso é que não há um conceito preestabelecido: a pessoa constrói-se na e pela comunicação. Além disso, sem dar a esse termo um sentido mais restrito, ela tem um forte componente hedonista, isto é, todas as potencialidades humanas: a imaginação, os sentidos, o afeto, e não apenas a razão, participam desta construção. É isso o que permite falar de “abertura” da pessoa, abertura aos outros, abertura às diversas características do eu. (MAFFESOLI, 2010, p. 271-272)
Assim a identidade é construída no movimento de interação entre o indivíduo e a sociedade que o cerca, tanto quando ele internaliza aquilo que é oferecido a ele, mas também quando oferece à sociedade suas contribuições:
Não é difícil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico, toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de que, por quem, e para que isso acontece. A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, por instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que organizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. (CASTELLS, 2018, p. 55)
A identidade está relacionada à construção do próprio sujeito. Por sua vez, como pensar a construção do sujeito fora das relações que ele estabelece? As relações, sejam elas sociais, aqui no sentido civil, sejam elas relações eclesiais, aqui entendidas como aquelas que acontecem no âmbito da comunidade cristã, são importantes para a construção de um processo de identificação, ou seja, de construção da identidade. Nessa perspectiva não existiria uma identidade cristã, mas diferentes perspectivas eclesiais que resultam em diferentes processos de identificação.
A reflexão que fizemos no item anterior nos ajuda a compreender que a identidade não é algo dado, estabelecido a priori, e que por isso não está submetida aos diversos condicionamentos históricos. Ao contrário, a constituição da identidade é dinâmica e é construída na relação que o sujeito estabelece com os diversos contextos históricos com os quais estabelece relação.
Isso nos leva a afirmar que o cristão o é em um determinado contexto histórico. É difícil pensar que ser cristão na igreja primitiva ou ainda no contexto do Império Romano fosse como ser cristão no mundo hodierno. E mesmo no século XXI, ser cristão em países hegemonicamente dominados pelo cristianismo pode ser diferente da maneira como se é cristão em países majoritariamente islâmicos, por exemplo. O ser cristão está diretamente relacionado ao contexto em que se é cristão.
Mas qual a relação que tais questões têm com o papado de Francisco? De certa forma é possível identificar em sua eclesiologia aspectos que denominamos como uma identidade extrovertida, ou seja, que entende o cristão católico na relação com o seu contexto eclesial e cultural. Em contrapartida, aqueles que o criticam e assumem uma identidade introvertida buscam reafirmar uma identidade mais de reação que de proposição. Trata-se de um catolicismo clerical, com maior força institucional que pouco tem a oferecer à sociedade a não ser a pertença institucional (PASSOS, 2020, p. 14). Assim, quem define ou imprime a identidade é a instituição religiosa e aqueles que, dentro dela, tem o poder de definir um modo determinado de compreender o que é ser cristão. Em tal perspectiva identitária as vestes e adornos clericais legitimam o poder daqueles que chancelam a validade da vivência e da identidade cristã.
Por duas vezes alguns cardeais apresentaram as Dubia ao Papa Francisco, que são questões relacionadas ao magistério postas ao pontífice. A primeira vez foi por decorrência da publicação da Amoris Laetitia. No dia 19 de setembro de 2016 os cardeais Walter Brandmüller, Joachim Meisner, Carlo Cafarra e Raymond Burke escreveram ao Papa e ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que, então, era o Cardeal Gerhard Müller. Os pontos colocados diziam respeito à nota de rodapé 351 da Amoris Laetitia, que trata da possível administração de sacramentos a pessoas em segunda união, mas também questionam os parágrafos 301, 303 e 304 que, segundo os cardeais, relativizariam a situação de pecado vivida pelos casais em segunda união. Em 10 de julho de 2023 cardeais enviaram cinco Dubia ao Dicastério para a Doutrina da Fé e desta vez receberam a resposta de Francisco. Os cardeais Walter Brandmüller, Raymond Leo Burke, Juan Sandoval Íñiguez, Robert Sarah e Joseph Zen Ze-kiun apresentaram questões acerca da revelação, da bênção das uniões homoafetivas, da sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja, da ordenação de mulheres e do perdão como um direito humano.
Em geral, para deslegitimar o pensamento de Francisco, são comuns as acusações de que ele não seria um teólogo. Esse foi o argumento tanto do cardeal Müller quanto do cardeal Meisner. Este último, inclusive, retomou a frase de Roberto Belarmino, que ainda no século XVI havia dito ser o Papa Clemente VIII incompetente no que se refere às questões teológicas. Desde o Concílio Vaticano II o catolicismo assumiu a postura de não se limitar ao diálogo com a modernidade, mas de entender-se também como fruto deste contexto. Os padres conciliares, assim como os cristãos em geral, eram sujeitos modernos – embora muitas vezes com traços pré-modernos – e o catolicismo, envolto de traços culturais deste período. O processo conciliar levou a Igreja católica a perceber-se na relação com a modernidade e, seus membros, como sujeitos modernos.
Para Libanio, este sujeito se caracteriza nos seguintes termos:
Não são indivíduos em sua singularidade. O termo sujeito denota a dimensão de consciência, de auto-identidade, de ação. Ele sabe quem é, o que quer, de onde vem e para onde vai. É portador de interesses econômicos, políticos, culturais e religiosos. E age não na singularidade e na fragmentação dos indivíduos, mas como um corpo, um grupo, uma classe. Desempenha papel decisivo e primordial na criação da temática a ser debatida. Faz-se reconhecer pelos problemas, perguntas, preocupações, interesses que manifesta. (2005, p. 12)
Libanio entende que o catolicismo enfrenta um problema ao tentar “reconstruir” a sua identidade (1983, p. 23). Voltar ao catolicismo medieval, muitas vezes – e equivocadamente – entendido como o cristianismo original, revela um entendimento essencialista da identidade cristã, embasado em um indivíduo descontextualizado e introvertido, que em nada consegue dialogar com a sociedade na qual está inserido. É comum que o cristão introvertido passe a assumir uma postura combatente, enxergando na sociedade um mal a ser exterminado.
A identidade introvertida poderia ser entendida na perspectiva de uma saudade daquilo que se viveu em determinado momento histórico. Por isso, a identidade introvertida é incapaz de dialogar com os grandes desafios presentes na realidade atual. A saudade projeta para o passado o desejo de reproduzir aquilo que um dia aconteceu (LIBANIO, 1983, p. 23), geralmente assumindo como paradigmático um momento áureo da religião.
A identidade extrovertida, por sua vez, é dialógica e pode ser entendida na perspectiva do desejo, por um olhar para o futuro que faz com que a Igreja assuma a tarefa criativa de responder a novos desafios para além das respostas dadas no passado, mas com um diálogo sincero com as realidades de seu tempo (LIBANIO, 1983, p. 23).
A Igreja extrovertida é a Igreja “em saída” (EG 24) que não se centra em si mesma, mas que se entende como meio e instrumento para o encontro das pessoas com a mensagem do Evangelho. Trata-se de uma Igreja que, além de estar de portas abertas, é capaz de ir às periferias humanas, colocando-se ao encontro das circunstâncias de sofrimento (EG 46).
Uma identidade essencialista cerceia a vivência cristã e a possibilidade da construção de uma identidade dialógica. Isso porque diante da necessidade, senão da obrigatoriedade, da chancela institucional, tira-se qualquer forma de autonomia do cristão que busca amadurecer-se como tal. Assim não há um cristão maduro na fé e que busca o discernimento diante das circunstâncias históricas que lhes são impostas. Cria-se um cristão obediente, que necessita das regras e não consegue agir ou se comportar, senão por meio das normativas que lhes são oferecidas por alguém que muitas vezes sequer conhece as circunstâncias locais.
Uma das características do papado de Francisco é o diálogo da Igreja com o mundo, o que acontece na esteira do Vaticano II, que aqui identificamos como identidade extrovertida, e a valorização da sinodalidade eclesial, que na prática possibilita uma maior autonomia das igrejas locais. Na eclesiologia de Francisco, a caridade e a misericórdia se sobrepõem à pretensão de uma verdade metafísica, essencialista. O cristianismo é visto, sobretudo, como uma verdade vivencial e existencial.
A grande dificuldade de Francisco está em concretizar seus projetos e instrumentalizar suas perspectivas eclesiais, em muito porque as estruturas curiais do catolicismo são burocratizadas (PASSOS, 2018, p. 218-219). Conseguiria seu despojamento pessoal dar origem a um projeto de uma Igreja simples e servidora? O ideal de igrejas maduras e autônomas conseguiria se concretizar em conferências episcopais e dioceses comprometidas com o diálogo ante as realidades locais? Isso porque a Igreja Católica assimila com facilidade os mais variados discursos, mas não as práticas eclesiais.
Ao evocar a metáfora do pastor com cheiro de ovelhas (EG 24), Francisco assume uma eclesiologia extrovertida. Ao trazer a imagem de que prefere uma Igreja acidentada, ferida e enlameada a uma Igreja que se agarra às próprias seguranças (EG 49), Francisco também sinaliza as limitações de uma eclesiologia e de uma identidade introvertida.
Diante de um cenário de crise de valores que estamos vivendo no mundo contemporâneo, alguns setores da Igreja católica argumentam que o único caminho para a sobrevivência da instituição e de da identidade católica é a defesa intransigente da de uma leitura integrista da fé cristã. De maneira geral, o argumento central dessas iniciativas contrárias ao papado de Francisco parte do pressuposto de que estaríamos vivendo na Igreja Católica uma situação em que o depósito sagrado da doutrina cristã está em risco.
Aqui cabe lembrar as palavras de João XXIII no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 11 de outubro de 1992,
Uma coisa é a substância do “depositum fidei”, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, consertando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral.
A distinção entre o depositum fidei e as diferentes formas de apresentá-lo ao mundo terá que ser feita com insistência e, como dizia João XXIII, com paciência. Por sua vez, também a pesquisa teológica é capaz de contribuir no entendimento dos processos eclesiais e na própria elaboração das diferentes eclesiologias que dinamizam o cenário atual. A compreensão das diferentes concepções identitárias torna-se fundamental no entendimento das diferentes narrativas e críticas ou mesmo propostas de cristianismo.
Outros contextos e documentos poderiam ser assumidos para o entendimento das perspectivas identitárias, como o próprio Sínodo para a Amazônia e o Sínodo da sinodalidade. As tensões postas manifestam os mais diversos entendimentos do cristianismo e da função da Igreja e, mais ainda, de como o cristão deve constituir-se seja no ambiente eclesial ou na relação com a sociedade e a cultura onde está inserido.
BHABHA, Homi. O local da cultura. 2a ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade: a era da informação. 9a ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2018.
FRANCISCO. Carta do Papa Francisco ao cardeal Marc Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina. Disponível em <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2016/documents/papa-francesco_20160319_pont-comm-america-latina.html>. Acesso em 28/11/2023.
FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia. São Paulo: Paulinas, 2016.
FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Evangelii gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. pp. 103-133.
JOÃO XXIII. Discurso de Sua Santidade Papa João XXIII na abertura solene do SS. Concílio. Disponível em <https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html>. Acesso em 29/11/2023.
LIBANIO, João Batista. A volta à grande disciplina Reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. São Paulo: Loyola, 1983.
LIBANIO, João Batista. Concílio Vaticano II: Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
MIRANDA, Mario de França. A sinodalidade no documento de Medellín. In: GODOY, Manoel; AQUINO JÚNIOR, Francisco de. (orgs.). 50 anos de Medellín: revisitando os textos, retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017. pp. 267-278.
O’MALLEY, John W. O que aconteceu no Vaticano II. São Paulo: Loyola, 2014.
PASSOS, João Décio. A força do passado na fraqueza do presente: o tradicionalismo e suas expressões. São Paulo: Paulinas, 2020.
PASSOS, João Décio. Alegria do amor: das sementes aos frutos. Roteiro de leitura da Exortação Apostólica Pós-sinodal Amoris laetitia. São Paulo: Paulinas, 2016.
PASSOS, João Décio. As reformas da Igreja Católica: posturas e processos de uma mudança em curso. Petrópolis: Vozes, 2018.
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[1] O cardeal Müller, nomeado em 2012 por Bento XVI como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi substituído pelo jesuíta Luis Ladaria, em julho de 2017, nomeado pelo Papa Francisco.
[2] Miranda entende que a colegialidade do Vaticano II se traduz na América latina, e sobretudo em Medellín como sinodalidade, visto que a colegialidade estaria relacionada aos bispos e às decisões eclesiais em sentido universal enquanto a sinodalidade estaria além de uma simples aplicação das decisões do Vaticano II à Igreja católica latino-americana, constituindo-se como instrumento de autonomia das igrejas locais (MIRANDA, 2017, p. 267-268).
[3] Um exemplo foi o processo de nomeação de bispos: as conferências episcopais foram excluídas da consulta e fortaleceu-se o papel dos núncios apostólicos na indicação de nomes.