Laudate Deum: um novo jeito de ensinar em tempos de crise global

Laudate Deum: a new way of teaching in times of global crisis

João Décio Passos
Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Contato: jdpassos@pucsp.br


Resumo: A reflexão visa recepcionar a Exortação Apostólica Laudate Deum e interrogar sobre seus significados histórico e metodológico. O inesperado documento social justifica-se como especificação e atualização da Encíclica Laudato si”, ainda recente, em termos de magistério social. A reflexão quer afirmar a originalidade metodológica da Exortação, como aplicação pronta e ágil da metodologia dos sinais dos tempos lançada pelo Vaticano II, em sintonia com as mudanças rápidas dos tempos atuais com suas urgências e apelos ecológicos, sociais e políticos. O documento aplica de modo exemplar o que define a Doutrinas Social da Igreja como critérios de discernimento e diretrizes de ação. A chegada inusitada da Exortação está vinculada à urgência ecológica da realidade planetária e à falência política das soluções, bem como ao modo franciscano de se posicionar perante a realidade: sempre superior à ideia.  

Palavras-chave: Aquecimento global; Doutrina Social da Igreja; Ecologia; Encíclica Laudato si’; Francisco; Multilateralismo

Abstract: The reflection aims to welcome the Apostolic Exhortation Laudate Deum and interrogate its historical and methodological meanings. The unexpected social document is justified as a specification and update of the Encyclical Laudato si”, still recent, in terms of social magisterium. The reflection wants to affirm the methodological originality of the Exhortation, as a ready and agile application of the sign of the times methodology launched by the Vatican II, in tune with the rapid changes of current times with their ecological, social and political urgencies and appeals. The document applies in an exemplary way what defines the Social Doctrines of the Church as criteria for discernment and guidelines for action. The unusual arrival of the Exhortation is linked to the ecological urgency of the planetary reality and the political failure of solutions, as well as the Franciscan way of positioning ourselves in the face of reality: always superior to the idea.

Keywords: Global warming, Social Doctrine of the Church, Ecology, Encyclical Laudato si’, Francisco, Multilateralism

Introdução

A Exortação Laudate Deum foi anunciada como a gravidez inesperada de uma nova filha. Ainda tomados pelo frescor das duas Encíclicas sociais (Laudato si’ e Fratelli tutti), os católicos e os seguidores do Papa Francisco não poderiam supor a chegada de um novo Documento social sobre a questão climática interpretada com chaves sociopolítica e ecoteológica. O fato é que o anúncio prévio despertou a curiosidade e o interesse sobre o teor do novo Documento. Aos poucos, os objetivos da nova reflexão foram sendo esclarecidos até seu nascimento no dia 04 de outubro de 2023. A data indicava, mais uma vez, a identificação mística e os vínculos programáticos dos dois Franciscos. 

As razões da Exortação logo expostas indicavam uma necessidade por certo obvia, tendo em vista, por um lado, o evidente agravamento da crise climática global e, por outro, a inércia das soluções globais. Mas, a novidade do novo Documento social não reside, por certo, no fato de ser um terceiro no gênero, mas na sua própria natureza como atualização de um documento anterior, cujo objetivo era “especificar e completar”, como explicou Francisco na Introdução (4). Se estas finalidades concretizam de modo emblemático a própria autodefinição da Doutrina Social da Igreja (DSI) como “canteiro aberto de ensinamentos”, inauguram, com efeito, um gênero pedagógico que retira do ensinamento de um documento especifico novos critérios de discernimento e diretrizes de ação imediata. Embora a DSI (Doutrina Social da Igreja) vá sendo composta no encadeamento histórico de documentos/ensinamentos anteriores e posteriores, o que se apresenta agora são especificações e complementações de um ensinamento recente. Trata-se, portanto, de uma abordagem que pressupõe, ao mesmo tempo, a autocrítica dos próprios ensinamentos que necessitam ser completados e, sobretudo, a sensibilidade para com a realidade presente. A Exortação não oferece um aprofundamento teórico, mas de uma pronta resposta às urgências advindas da conjuntura planetária atual. A leitura dos sinais dos tempos adotada como tarefa permanente de todos os cristãos desde o Vaticano II (GS 4,11 e 44) encontra neste novo Documento social uma expressão própria como pontualidade e prontidão da fé perante a realidade em mutação permanente e com seus apelos urgentes. A postura e o ensinamento que ficam explicitados: o discernimento evangélico não pode esperar e nem sofrer ponderações políticas, é uma percepção do tempo oportuno (Kairós) para tomar a decisão imediata em nome da fé.

As reflexões que seguem não pretendem resenhar a Exortação Laudate Deum. Visam apenas destacar aquilo que parece, de fato, “especificar” e “aprofundar” o texto. Por esta razão, nos pareceu importante utilizar para cada item dos destaques indicados passagens literais da Exortação. Antes de entrar no conteúdo faremos uma retrospectiva sobre o curto tempo de espera do Documento que chegou na hora e na dose certas e se mostrou surpreendente como costuma ser seu autor.

1. O anúncio inesperado e as expectativas

Em 21 de Agosto de 2023 o Papa Francisco anunciou que estava trabalhando numa segunda parte da Encíclica Laudato Si’. Como ele próprio explicou, tratava-se de uma “atualização”. O comunicado despertava naquele momento ao menos duas curiosidades. Uma primeira de natureza formal: seria uma espécie de edição revista e ampliada da Encíclica depois de oito anos? A segunda dizia respeito à atualização. Em princípio nada de novo nesse objetivo, sobretudo em se tratando de ensinamentos sociais. Os Papas costumam atualizar e ampliar seus ensinamentos sociais em sucessivos documentos. João XXIII escreveu duas Encíclicas no curto período de dois anos (Mater et magistra de 1961 e Pacem in terris 1963). Paulo VI promulgou dois Documentos: a Encíclica Populorum progressio em 1967 e a Carta Apostólica Octogessima adveniens em 1971. O Papa João Paulo II publicou três Encíclicas: Laborem exercens, 1981, Sollicitudo rei socialis, 1987 e Centesimus annus, 1991. Quais as razões dessa opção? Ao que tudo indica, antes de tudo, colocam-se as urgências histórico-sociais, caso emblemático das duas Encíclicas de João XXIII no contexto da guerra fria no início dos anos sessenta. O objetivo pode ser também a ampliação do foco do ensinamento em dimensões da vida social (o mundo do trabalho e a nova conjuntura mundial tematizados por João Paulo II nas Encíclicas de 1981 e de 1991) ou, ainda, um motivo de comemoração do aniversário de lançamento da pioneira Encíclica Rerum novarum que justificou a Octogessima adveniens e a Centesimus annus e, antes, na década de 30, a Quadragesimo anno de Pio XI (1931).  Pesa ainda a sensibilidade do Pontífice diante das crises e urgências sociais. Os cento e trina anos de ensinamentos sociais da Igreja podem revelar, de fato, a sensibilidade e a perspicácia dos Papas em cada contexto em que exerceram seus pontificados.  O atribulado século XX constitui o lugar vital de emergência, avanço e consolidação dos ensinamentos sociais dos Papas e do Vaticano II. O que hoje se convencionou chamar Doutrina Social da Igreja segue, de alguma forma, os desdobramentos dramáticos das relações da humanidade com a vida de um modo geral, agora na condição de sujeito autônomo e responsável pelos destinos da história no processo de modernização. Nesse sentido, a DSI tanto quanto as teorias sociais são filhas do processo de modernização que questiona e desafia o espírito humano.

 Por detrás dos ensinamentos sociais se encontram, por certo, Papas mais proféticos e mais diplomáticos, mais perspicazes e mais ingênuos, mas que foram capazes de ir além da rotina eclesial e da mera reprodução da tradição e da doutrina seguras que costumam dispensar os dramas da história de suas formulações normativas. A sensibilidade e a profecia de Francisco o colocam em um lugar bastante original na longa história e no interior da DSI. O especialista no assunto, Bartolomeo Sorge, define seus ensinamentos como Fase revolucionária da Doutrina Social (2018, p. 19-20). Antes dos ensinamentos franciscanos serem formulados e promulgados como Magistério ordinário é preciso observar a sensibilidade à flor da pele que o define em seus gestos e ações Há quem fale em “magistério do gesto” em Francisco. A sensibilidade social e política de Francisco o coloca, de fato, em lugar inédito na história dos Papas onde a profusão de pronunciamentos e de gestos integra sua rotina e expressa sua personalidade (FERNÁNDEZ, 2021). A postura de sensibilidade inseparável da ternura e da misericórdia compõe um Magistério social para além dos Documentos oficiais, da mesma forma que seus ensinamentos sociais atravessam o conjunto de seus Documentos não sociais como no caso da Exortação Evangelii gaudium (EG 52-67; 176-258). Esse magistério social difuso e transversal comporá, por certo, um acervo a ser estudado no futuro próximo. A personalidade, as posturas, os pronunciamentos e os ensinamentos de Francisco compõem um regime que integra de forma indissociável os aspectos místico, pastoral, teológico e social que superam todos os dualismos e toda fixação tradicional ou tradicionalista.  

Na sequência ao primeiro anúncio da denominada “Segunda Parte da Laudato si’” veio uma segunda explicação no dia 30 de Agosto durante a audiência geral na sala Paulo VI. Na ocasião, o Papa esclarecia que não seria uma segunda Encíclica, mas uma Exortação Apostólica. O formato Exortação era bastante coerente com a ideia de uma “segunda Laudato Si’”, na medida em que, precisamente por se tratar de Exortação (de natureza menos solene que uma Encíclica) e não de outra Encíclica, garantia um lugar fontal para aquela Encíclica emblemática que permanecia como matriz nas temáticas referentes à vida planetária, às urgências da casa comum. Mas o Papa verbalizava, ainda, os objetivos e a postura da Igreja nesta nova Exortação: a igreja permanecia do lado das vítimas da injustiça ambiental e pretendia contribuir com a implementação de políticas publicas sobre a questão.

A respeito da atualização dos ensinamentos sobre a Casa comum vale lembrar que não constitui nenhuma novidade; ao contrário, opera dentro da própria definição de DSI, conforme expresso no Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

A Doutrina Social da Igreja se apresenta como um “canteiro” sempre aberto, em que a verdade perene penetra e permeia a novidade contingente, traçando caminhos inédito de justiça e de paz. A fé não pretende aprisionar num esquema fechado a mutável realidade sociopolítica (...).  O ensinamento que nela sempre se inicia “se desenvolve por meio de uma reflexão que é feita em permanente contato com as situações deste mundo, sob o impulso do Evangelho como fonte de renovação” (86).

Contudo, permaneciam as interrogações sobre a necessidade de atualização daqueles ensinamentos de apenas oito anos atrás. No segundo anúncio, o Papa apresentava de forma indireta a raiz e o contexto gerador do novo Documento: a injustiça ambiental e a debilidade das políticas públicas. A persistência das urgências ecológicas, não obstante os fóruns de debate e decisões internacionais realizados nesses anos (as duas Conferências organizadas pela ONU, realizadas em Paris em 2015, na Escócia em 2021 e no Egito em 2022), assim como outras iniciativas de caráter regional, não avançaram, de fato, na proporção das urgências do planeta. De outra parte, os fenômenos climáticos extremos se elevam em número e em gravidade pelo planeta afora. A prioridade do econômico sobre o ecológico persiste quando as decisões sobre a redução da emissão de gases CO2 são colocadas perante as nações nas Conferências realizadas (Conferências das Partes = COP). Ademais, as catástrofes climáticas frequentes expõem de modo dramático a situação de vulnerabilidade dos mais pobres e mostra como os governos implementam soluções paliativas e postergam políticas públicas mais eficazes que possam prevenir as populações desses impactos que já fazem parte da rotina climática do planeta. É neste contexto ecológico, político e social que a nova Exortação deveria, certamente, ser promulgada, desvestidas de qualquer fantasia verde. 

Em reunião com reitores de Universidades latino-americanas em 26 de Setembro o Papa revelou o nome da nova Exortação, sem explicar o significado do mesmo: Laudate Deum.  Embora não o tenha feito, o nome revelava em sua tradução literal, Louvai a Deus, o vínculo direto com a Encíclica-mãe, Laudato Sí’ (LS), não somente na inegável sonoridade, como também na teologia que sustenta o conteúdo das abordagens ecológicas. E vale lembrar que em ambos os documentos, a memória de São Francisco de Assis é honrada poeticamente e assumida como programática de pontificado.  

2. Mais uma filha da Laudato si’

A LS oferece uma reflexão original (inaugura nova fase da DSI), consistente (fundamentação teórica) e completa (nos princípios de reflexão, nos critérios de discernimento e nas diretrizes de ação) sobre a problemática socioecológica, o que poderia criar a ilusão de um ensinamento “definitivo” ou, ao menos de longo fôlego no âmbito da DSI. Tanto do ponto de vista do diagnóstico quanto do discernimento e das orientações para a ação, a Encíclica oferece uma reflexão completa, do ponto de vista teórico e prático, um autêntico sistema de pensamento que se tornou, de fato, marco histórico e moral na história da DSI (BRIGHENTI, 2018). O paradigma ecológico tem sido assumido, desde então, como novo eixo do ensinamento social católico e permanecerá como relevante e urgente na esfera da reflexão e ação social dos católicos. 

A recepção desta Encíclica social tem sido de grande alcance fora e dentro da Igreja; gerou experiências sociais e pastorais diversas e, sobretudo, novas organizações e configurações eclesiais no epicentro da Amazônia. Certamente foi este o lugar de maior fecundidade no processo de recepção que vale mencionar: O Sínodo da Amazônia com seus Documentos (Documento final e A Exortação Querida Amazônia), a criação da Conferência Eclesial da Amazônia e do Rito Amazônico, em construção. As recepções da LS produziram, nesse sentido, um curioso deslocamento de fora para dentro da Igreja, ou seja, da DSI para a eclesiologia, chegando até mesmo no nível institucional, com as instituições supracitadas. A chamada à conversão ecológica feita por Francisco (LS 5, 216-221) produziu efeitos muito rápidos para a temporalidade católica no seio da complexa Igreja. As urgências sócio-ecológicas foram traduzidas em urgências eclesiais, buscando uma Igreja mais inculturada na realidade amazônica. A LS se encontrou de forma coerente e criativa com a Evangelii gaudium: a Igreja em saída recepcionou os apelos da Amazônia, de seu bioma e de seus habitantes nativos e migrantes.              

Muitas outras iniciativas nasceram das intuições e ensinamentos da LS como o Movimento Laudato Si’, o Instituto Laudato Si’ encampado pela Universidade de Oxford, Parques ecológicos, Grupos de Arte, o projeto de Economia Francisco e Clara e um número incontáveis de ações organizadas em prol da sustentabilidade e de sítios virtuais inspirados pelos ensinamentos da Encíclica, além de eventos acadêmicos, caravanas e obras publicadas como estudo sobre os conteúdos da mesma. Como indicam os números, jamais uma Encíclica gozou de tamanha recepção dentro e fora da Igreja. Mas, ao mesmo tempo jamais um Documento tocou de forma tão direta nos efeitos e nas causas da destruição acelerada do planeta. Nesse sentido, a Encíclica ainda exala frescor e inspira ações, tanto quanto o sistema econômico global mantém sua lógica destrutiva e as ações políticas organizadas na esfera mundial permanecem tímidas. É nessa encruzilhada urgente de tomada de consciência e de decisões eficazes que chega a nova filha da Laudato Si’

3. Aspectos gerais da Laudate Deum

A crise ecológica por que passa o planeta, a timidez dos pactos globais e a letargia das políticas ecológicas globais e locais, clamam por exortações ou por gritos proféticos. Os dogmas do progresso ilimitado e dos direitos ilimitados do extrativismo persistem como cegueira incurável do regime capitalista. No ano corrente os fenômenos de clima extremo pontuaram o planeta no Norte e no sul com suas consequências trágicas. Para os negacionistas do aquecimento global nem mesmo esta realidade se mostra impactante ou provoca medo de uma ruína global. A insistência franciscana é profética; exorta, de novo, a ver a realidade e à mudança dos rumos político-econômicos do regime produtivo mundial.    

A Exortação Laudate Deum (LD) apaziguou os curiosos com seu foco e ensinamentos, sem novidades no tocante à perspectiva de fundo do pensamento franciscano. O texto composto de apenas setenta e três parágrafos estruturados em 6 Itens (aqui denominados Capítulos) e a linguagem direta e sucinta poderia surpreender, se se esquecesse de sua razão de ser: uma atualização da Encíclica Laudato Si’. De fato, a extensão, o estilo e, até mesmo, a sequência metodológica são coerentes com esse propósito original. A inspiração franciscana permanece viva, como indica o nome do Documento: Louvai a Deus por todas as suas criaturas. O tom crítico e o discernimento evangélico reproduzem a postura básica dos textos da DSI e de seu autor jesuíta e latino-americano. Em termos metodológicos, o clássico ver-julgar-agir permanece mais como intuição e postura de fundo do que propriamente com a usual sequência em três passos distintos. O “agir” se faz presente como indicações que atravessam o conjunto do Documento e poderia ser identificado de modo mais direto no capítulo quinto que trata das expectativas sobre a COP28 em Dubai. O fato é que o ”ver” predomina na Exortação como um todo, tendo em vista o diagnóstico das urgências climáticas. Um documento elaborado com a finalidade de avaliar os avanços das consequências do aquecimento global e a letargia das decisões políticas não poderia ser diferente. O balanço que faz da situação atual foge de qualquer abstração ou de cuidados diplomáticos, na medida em que descreve de forma direta e precisa as conjunturas ecológica e política atuais, não poupando os “nomes aos bois”.[1] O momento do julgar se mostra de forma explícita nas motivações espirituais do sexto capítulo.   

Vale lembrar que a expectativa de uma espécie de Encíclica nos moldes clássicos e franciscano (as duas Encíclicas sociais já publicadas) não seria concretizada na Exortação que, sob todos os aspectos, cumpre tão somente o objetivo de ser uma atualização da LS e, portanto, não oferece maiores sistematizações, assim como novas categorias de análise social; ao contrário, parte destes pressupostos já expostos na LS e tira deles as consequências para observar a realidade atual. A LS é citada 19 vezes no decorrer da reflexão. Neste sentido, pode-se falar em um novo estilo de Documento papal, entendido como autorrecepção com a finalidade deliberada de atualização de ensinamentos já elaborados e publicizados. Não se trata de uma insistência teórica ou puramente moral, mas de uma prática que explicita, primeiramente a natureza epistemológica da própria DSI (canteiro sempre aberto que produz caminhos inéditos de justiça e paz) e, ao mesmo tempo, a aguçada sensibilidade de Francisco para as questões planetárias (a situação ecológica e a urgência das decisões multilaterais). O Documento faz justiça à denominação Exortação por se tratar de uma exortação crítica sobre a situação atual do planeta.

4. A Exortação que nasce da Laudato Si’ e da realidade atual

É verdade que a busca de discernimento da realidade presente gerou e gera a DSI ao longo da história, ainda que não tenha sido um método formulado desde o início. É nesta circularidade entre os dados da fé e os dados da realidade que os ensinamentos sociais da igreja podem ser visto como um sistema aberto que avança e cresce como princípios de reflexão, critérios de julgamento e diretrizes de ação (Compêndio da Doutrina social, 7). A história dos Documentos sociais promulgados pelos Papas e suas recepções locais vão compondo um corpo vivo que se atualiza em cada contexto. Pode-se observar, portanto, que os contextos históricos, na medida em que discernidos, exercem um papel determinante nestes ensinamentos; possibilitam o avanço de um regime de verdade cristã que vai sendo desafiado a pensar a realidade e, ao mesmo tempo, a pensar a si mesmo (JUNIOR, 2023). O principio definido por Francisco de que “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG 231) expressa esta dinâmica da doutrina como sistema aberto e não como corpo enrijecido (PASSOS, 2018, p. 26-33). A Exortação LD revela esta metodologia em sua máxima expressão, na medida em que assume o limite político da LS para discernir a realidade presente, do ponto de vista das especificidades, da complexidade e da urgência que se nos apresenta, ainda que esta Encíclica seja tão recente. A Exortação ensina também que a agilidade das mudanças históricas exige prontidão dos Papas em acolher os desafios mais recentes como provocações à fé cristã. “A ideia – as elaborações conceituais – está a serviço da captação, compreensão e condução da realidade” (EG 232). A inegável globalidade e profundidade da LS – qualidades que atraem adeptos encantados e opositores decepcionados - fica submetida à autocrítica do próprio Papa quando se depara com a realidade atual. O mundo de 2023 já não é o mesmo de 2015. O ensinamento social da Igreja precisa avançar no ritmo da história para oferecer critérios atualizados de discernimento e diretrizes de ações urgentes. 

 Na Introdução da Exortação (4) Francisco explicita a motivação e o objetivo dos ensinamentos: “A reflexão e as informações que pudemos recolher destes últimos oito anos permitem-nos especificar e completar o que afirmamos há algum tempo. Por este motivo e porque a situação se vai tornando ainda mais urgente, quis partilhar convosco estas páginas.”  

A Exortação visa “especificar e completar”, tendo em vista as urgências atuais. Os dois verbos operam não na esfera propriamente doutrinal (o evangelho da criação) e teórico (ecologia integral, críticas ao antropocentrismo, ao paradigma tecnocrático e ao modelo de produção/consumo), mas na esfera do diagnóstico da realidade que culmina com uma expectativa pontual e concreta: a próxima conferência sobre (COP-28) a ser realizada em novembro/dezembro de 2023 em Dubai. A realidade atual gera a nova Exortação.

5. Alguns destaques contundentes

A Exortação vai direto aos pontos que pretende especificar e completar. A curta extensão do texto é pontuada por posicionamentos claros e inequívocos que indicam a situação atual do aquecimento global, sem concessões hermenêuticas para as leituras discordantes, aponta com a mesma objetividade as causas humanas e econômicas do fenômeno, indica as saídas multilaterais como caminho político a ser construído de modo a superar as estruturas atuais (formais e falidas) e foca no objetivo imediato: as decisões a COP-28.  

1º A predominância do diagnóstico

 A quase totalidade do Documento oferece um diagnóstico da realidade atual, no tocante à questão ecológica. A Exortação pode ser entendida como um manifesto profético perante a gravidade do dado climático. Os marcos teórico e doutrinal são pressupostos já expostos na LS e permanecem válidos e vivos como ferramentas hermenêuticas e como ensinamentos. A realidade, no entanto, mostra o agravamento da problemática ecológica e a urgência de políticas internacionais mais eficazes. Nesse sentido, a predominância do diagnóstico expressa o próprio objetivo da reflexão que visa “especificar e completar” o que foi proposto na LS. O diagnóstico abrange aspectos globais da crise (a situação planetária que se agrava, o avanço do paradigma tecnocrático e os impactos na vida dos povos e dos pobres em particular), aspectos culturais (as interpretações sobre a crise, de modo direto aquelas equivocadas que negam, escondem, relativizam e dissimulam a realidade) e aspectos políticos (a fragilidade das políticas internacionais, a urgência de superação da multipolaridade pela criação de mecanismos multilaterais eficazes). 

O diagnóstico toca de modo particular nos progressos e falências das Conferências sobre o clima O capítulo IV oferece um balanço crítico de cada COP, reconhecendo a relevância desses foros e expondo, ao mesmo tempo, os interesses econômicos locais/nacionais que impedem o avanço dos acordos e a concretização dos que foram pactuados. Conclui o balanço reafirmando o que já havia sido afirmado pela LS: o baixo nível de implementação dos acordos por falta de mecanismos de controle e o avanço lento das negociações por causa da sobreposição dos interesses nacionais ao bem comum. Conclui o parágrafo repetindo o alerta: “Aqueles que hão de sofrer as consequências que tentamos dissimular, recordarão esta falta de consciência e de responsabilidade” (LD 52; LS, 169). 

2º O aquecimento global como dado inequívoco

 Exortação faz uma firmação inequívoca do aquecimento global, tendo como evidência os episódios climáticos recentes; não se trata de uma perspectiva teórica sujeita à discussão por parte de especialistas, mas, sim de um dado visível a olho nu no comportamento da natureza. Os eventos climáticos extremos do frio ao calor e das chuvas torrenciais às secas, manifestos em tempos e lugares inusitados, indicam mudanças planetárias que vão além de mera fúria da natureza. Além de afirmar esta evidência, o Papa toca diretamente nas interpretações negacionistas que escondem o problema:

Nos últimos anos, não têm faltado pessoas que procuraram minimizar esta observação. Citam dados supostamente científicos, como o fato de que o planeta sempre teve e continuará a ter períodos de arrefecimento e aquecimento (6)

Para pôr em ridículo quem fala de aquecimento global, recorre-se ao fato de que frequentemente se verificam também frios extremos. Esquece-se que estes e outros sintomas extraordinários são apenas expressões alternativas da mesma causa: o desequilíbrio global causado pelo aquecimento do planeta (7) 

3º As causas humanas do aquecimento global

Além dos negacionistas do aquecimento global há aqueles que afirmam uma interpretação natural do fenômeno, como resultado de ciclos naturais da terra. A estes o Papa responde:

  1. Afirmando a evidência empírica da ação humana 

A origem humana – «antrópica» – da mudança climática já não se pode pôr em dúvida. Vejamos porquê. A concentração na atmosfera dos gases com efeito estufa, que causam o aquecimento global, manteve-se estável até ao século XIX: abaixo das 300 partes por milhão em volume. Mas a meados daquele século, em coincidência com o progresso industrial, as emissões começaram a aumentar. Nos últimos cinquenta anos, o aumento sofreu uma forte aceleração, como atesta o observatório de Mauna Loa que efetua, desde 1958, medições diárias do dióxido de carbono. (11). 

  1. Afirmando o consenso teórico sobre a questão:

É impossível esconder a coincidência destes fenômenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência (13). 

No último parágrafo, o Papa expressa o significado profundo do antropocentrismo desmedido que destrói a vida: “Laudate Deum é o título desta Carta, porque o ser humano que pretende tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (73).

4º As causas econômicas do aquecimento global

Não há contemporização diplomática com o regime econômico atual, embora continue evitando o termo “capitalismo”. A Exortação indica a lógica subjacente á exploração do planeta: “Infelizmente, a crise climática não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências econômicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possíveis” (13)

E constata no capitulo 2  o   “crescente paradigma tecnocrático”. Na LS este conceito já havia sido utilizado para designar o modelo econômico atual e suas consequências na exploração indiscriminada do planeta. Constata, agora, um agravamento deste modelo e que de fato explica o agravamento da crise:

  1. Como paradigma autossuficiente

Nos últimos anos, pudemos confirmar este diagnóstico, assistindo simultaneamente a um novo avanço de tal paradigma. A inteligência artificial e os recentes progressos tecnológicos baseiam-se na ideia dum ser humano sem limites, cujas capacidades e possibilidades se poderiam alargar ao infinito graças à tecnologia. Assim, o paradigma tecnocrático alimenta-se monstruosamente de si próprio (21).

  1. Como poder de poucos

Faz arrepiar quando nos damos conta que as acrescidas capacidades da tecnologia proporcionam «àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer(...). Nas mãos de quem está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade» (23)

c) Como ideologia do progresso 

Tal situação não tem a ver apenas com a física ou a biologia, mas também com a economia e o nosso modo de a conceber. A lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade. Nos últimos anos, podemos notar como às vezes os próprios pobres, confundidos e encantados perante as promessas de tantos falsos profetas, caem no engano dum mundo que não é construído para eles (31) 

5º As saídas globais urgentes

Neste aspecto, observa-se a confluência das duas Encíclicas sociais anteriores. O Papa faz referência explícita à Fratelli tutti, ao tratar da saída multilateral eficaz perante o mundo cada vez mais multipolarizado. Trata-se da construção de regras universais capazes de gerar soluções mundiais para a crise climática. No entanto, constata que:

  1. A história dá sinais de retrocesso

Enquanto «a história dá sinais de regressão (...), cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» (34 ).

  1. A incapacidade de rever os rumos nas experiências de crise 

É lamentável que as crises globais sejam desperdiçadas, quando poderiam ser ocasião para introduzir mudanças salutares. Assim sucedeu na crise financeira de 2007-2008 e voltou a acontecer na crise da pandemia Covid-19. De fato «parece que as reais estratégias, posteriormente desenvolvidas no mundo, se têm orientado para maior individualismo, menor integração, maior liberdade para os que são verdadeiramente poderosos e sempre encontram maneira de escapar ilesos» (36).

A inércia de soluções globais não decorre de uma mera falta de criatividade ou de um problema de conduta dos sujeitos envolvidos neste processo, mas de opções políticas que afirmam interesses sistêmicos (ao mesmo tempo global, local e individual) que isolam ao invés de integrar e de aparelhos burocráticos envelhecidos (37). Nas pegadas da Fratelli tutti, a saída multilateral é afirmada como um “caminho inevitável” (40): 

  1. Definição de multilateralismo

Falamos sobretudo de «organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais». O importante é estarem dotadas duma real autoridade que possa «assegurar» a realização de alguns objetivos irrenunciáveis. Deste modo dar-se-ia vida a um multilateralismo que não depende das circunstâncias políticas instáveis ou dos interesses de poucos e que tem uma eficácia estável (35).

  1. O multilateralismo deve ser redesenhado

Mais do que salvar o velho multilateralismo, parece que o desafio hoje seja redesenhá-lo e recriá-lo à luz da nova situação global. Convido-vos a reconhecer que «muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais» (37)

  1. Redesenho feito a partir de baixo

A médio prazo, a globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos que levarão a um multilateralismo «a partir de baixo» e não meramente decidido pelas elites do poder. Os pedidos que emergem a partir de baixo em todo o mundo, onde pessoas comprometidas dos mais diversos países se ajudam e sustentam mutuamente, podem acabar por fazer pressão sobre os fatores de poder. Espera-se que isto possa acontecer no que diz respeito à crise climática (38)

  1. Um multilateralismo mais democrático

Tudo isto pressupõe que se adote um novo procedimento para a tomada de decisões e a legitimação das mesmas, porque o procedimento estabelecido há vários decênios não é suficiente nem parece ser eficaz. Neste contexto, são necessários espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior «democratização» na esfera global, para expressar e incluir as diversas situações. Deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes, sem cuidar dos direitos de todos (43).

6º A importância da COP 2023

O Capitulo V pode ser visto como momento específico do “agir” ou das “diretrizes de ação” ao focar na COP28 realizada em Dubai em 2023. A intencionalidade prática do Documento chega ao ponto máximo: o que deverá esperar deste foro realizado em um país rico e produtor de energia fóssil? A exposição reconhece elegantemente esta contradição, mas anuncia, ao mesmo tempo, a esperança na construção de saídas:

Se temos confiança na capacidade do ser humano transcender os seus pequenos interesses e pensar em grande, não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorizados de forma permanente. Esta Conferência pode ser um ponto de viragem, comprovando que era sério e útil tudo o que se realizou desde 1992; caso contrário, será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui (54).

A reflexão insiste no risco de ultrapassagem da linha irreversível do aquecimento, na urgência da transição energética das energias fósseis e na necessidade de saída políticas, contra aquelas posturas que defendem saídas unicamente tecnológicas. Conclui com um apelo concreto:  

Se há sincero interesse em obter que a COP28 se torne histórica, que nos honre e enobreça enquanto seres humanos, então só podemos esperar em fórmulas vinculantes de transição energética que tenham três caraterísticas: eficientes, vinculantes e facilmente monitoráveis, a fim de se iniciar um novo processo que seja drástico, intenso e possa contar com o empenhamento de todos (59).

Os seis destaques apresentados revelam a linguagem direta e concreta que toca de modo crítico e prático nas urgências atuais. Não há tempo e necessidade de repetir reflexões prolongadas já feitas na LS. A reflexão enfrenta os problemas concretos, detecta as causas, expõem os equívocos e anuncia de modo realista e esperançoso as chances de saídas na COP-28. Toda exortação é, por definição, advertência/conselho, assim como estímulo/encorajamento. Francisco exorta mais uma vez sobre os riscos da destruição global que mostra seus sinais cada vez mais claros. Se caminhamos para a falência do sistema-terra a missão dos que creem deverá continuar exortando: “O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia” (34).  

Considerações finais

A Laudate Deum não nos surpreende com seu conteúdo que é de fato uma autorrecepção franciscana da LS. Não parece ser também novidade a prontidão do Papa, sempre antenado com as problemáticas mundiais, bem como sua lucidez profética que rompe fronteiras institucionais e toca nas feridas humanas. Os ensinamentos se alinham aos propósitos do Papa reformador que coloca a Igreja em saída para as periferias e cobra a justiça para com os pobres. A Exortação prima-se pela sintonia direta com a realidade presente e pela perspectiva prática que visa interferir positivamente na sociedade global com vistas à preservação do planeta. Por esta razão, não obstante os pressupostos teológicos subjacentes, a abordagem central é ético-política, na medida em que expõe os mecanismos e os interesses dos donos do poder global e o marasmo das decisões multilaterais. Não por acaso a Exortação é endereçada “A todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática”.

Três aspectos interligados podem ser destacados a título de consideração final. O primeiro sobre a concreticidade da DSI que demonstra atenção, perspicácia e prontidão em relação às urgências sociais que se elevam na história humana. As mudanças velozes pelas quais passam o planeta e a convivência humana exigem posicionamentos éticos e políticos de todos, mas de modo particular dos líderes políticos e culturais. Neste ponto, as posturas de Francisco perecem indicar uma mudança de paradigma: a passagem de uma perspectiva de história lenta (que preserva a tradição intacta) para a percepção de história acelerada que cobra posturas imediatas. Já que a realidade é superior à ideia, a urgência é mais importante que a permanência. O caráter inusitado da Exortação deve-se diretamente ao inusitado advindo da realidade atual. “Com o passar do tempo, entretanto, dou-me conta de que não estamos reagindo de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe está desmoronando...” (2).

O segundo aspecto pode ser entendido como metodológico. A Exortação inaugura um novo modo de aplicar o método de ensino social que se mostra: a) na aplicação concreta de um Documento anterior no novo contexto; b) aplicação que revela ao mesmo tempo o reconhecimento de certa “superação” ou déficits dos ensinamentos em relação às urgências da realidade; c) portanto, a afirmação do primado da realidade em relação às ideais (EG 231-233); d) na indicação da DSI ensinada pelos Papas como uma espécie de observatório permanente da realidade. A Exortação adota e aplica de modo original o princípio e a metodologia dos sinais dos tempos lançada pelo Vaticano II, quando a sensibilidade, a acolhida, o discernimento e a ação na realidade se impõem como missão permanente para os pastores, teólogos e para todo o povo de Deus (PASSOS, 2014, p.252-258). A leitura dos sinais dos tempos adota como regra a circularidade entre a Palavra e a realidade (GS 4,11 e 44). Nesta postura, a realidade presente torna-se um lugar teológico que conclama ao discernimento critico e criativo os sujeitos eclesiais. A exortação LD ensina a prontidão deste método que deve estar atento às urgências da realidade em permanente transformação, o que nos tempos atuais adquire uma dinâmica de extrema agilidade. Não basta repetir os ensinamentos, é preciso ensinar rapidamente que o tempo não espera. A Igreja deve falar para o hoje e, profeticamente, antecipar o futuro. É quando a perspectiva kairológica cristã rompe e supera a rotina cronológica do tempo histórico, dizendo não às mazelas que o compõem e dizendo sim a futuro da justiça e da paz.

O terceiro aspecto refere-se à liderança mundial do Papa Francisco. Em tempos de avanço de lideres de extrema direita de perfil autoritário, construídos por vias digitais, vinculados a causas nacionalistas e nativistas, defensores de geopolíticas multipolares e promotores de guerras culturais e guerras físicas, Francisco emerge como única liderança mundial que pensa o planeta em termos globais: a) como Casa comum na qual todos se encontram interligados nas condições de sustentação e perpetuação da vida; b) como sociedade mundializada que exige formas eficazes de gestão da vida comum por meio de instituições multilaterais; c) como defensor da humanidade, parâmetro universal comum que deve ser colocado acima de todos os interesses individuais, regionais e nacionais; d) como promotor do diálogo inter-religioso, caminho fundamental de construção da paz mundial.

Enquanto as guerras monopolizam a atenção das potências mundiais e colocam em marcha a supremacia dos interesses econômicos de sempre, o planeta pede socorro de todos e, sobretudo, dos lideres e dos organismos mundiais. A voz de Francisco clama mais uma vez no deserto do aquecimento global. 

O convite final:

Convido cada um a acompanhar este percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo com o próprio contributo, pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores. Entretanto não posso negar que é necessário sermos sinceros e reconhecer que as soluções mais eficazes não virão só dos esforços individuais, mas sobretudo das grandes decisões da política nacional e internacional (69).   

Referências

BRIGHENTI, Agenor. A Laudato si’ no pensamento social da Igreja; da ecologia ambiental à ecologia integral. São Paulo: Paulinas, 2018.

Constituição Pastoral Gaudium et spes. In Compêndio do concilio Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1986.

FERNANDEZ, Eva. O Papa da ternura. São Paulo: Paulinas, 2021. 

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.

FRANCISCO.  Carta Encíclica Laudato si’; sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas. 2015.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Pós-sinodal Querida Amazônia. São Paulo: Paulinas, 2020.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Laudate Deum. https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/20231004-laudate-deum.html 

JUNIOR, Francisco Aquino. Encíclicas sociais; um guia de leitura. São Paulo: Paulinas, 2023.

PASSOS, J. Décio. Concílio Vaticano II; reflexões sobre um carisma em curso. São Paulo: Paulus, 2014.

PASSOS, J. Décio, Método teológico. São Paulo: Paulinas, 2018. 

PONTIFÍCIO CONSELHO DE JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011.

SORGE, Bartolomeo. Breve curso de Doutrina Social. São Paulo: Paulinas, 2018.

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Notas

[1]  Assim diz o penúltimo parágrafo: “Se considerarmos que as emissões pro capite nos Estados Unidos são cerca do dobro das dum habitante da China e cerca de sete vezes superiores à média dos países mais pobres, podemos afirmar que uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável ligado ao modelo ocidental teria um impacto significativo a longo prazo” (72)