René Dentz
Doutor em Teologia pela FAJE. Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Contato: renedentz@gmail.com
Resumo: O texto "La Symbolique du mal" é o terceiro volume do projeto filosófico de Paul Ricoeur sobre uma filosofia da vontade. Ricoeur explora a transição da falha para a falta e as expressões simbólicas do mal em várias tradições culturais. Ele destaca que os símbolos do mal "dão a pensar", desafiando o pensamento a ir além. Ricoeur aborda a culpabilidade como exigindo reconciliação com o passado, utilizando uma analogia com o esquema teológico-antropológico "Criação-Queda-Redenção". O autor enfatiza a importância da linguagem mítica na compreensão do mal e da falta, introduzindo a hermenêutica como a porta de entrada para a interpretação dos símbolos. O texto também aborda os símbolos primários do mal, destacando a necessidade da linguagem simbólica para compreender a experiência do mal. Ricoeur explora os símbolos da mancha e do pecado, relacionando-os à culpa, à purificação e à noção de aliança. A reflexão sobre o mal é apresentada como um desafio ao pensamento, convidando a uma ponderação mais profunda e uma abordagem diferenciada.
Palavras-Chave: Criação; Mito; Queda; Livre-arbítrio; Redenção
Abstract: The text "La Symbolique du mal" is the third volume of Paul Ricoeur's philosophical project on a philosophy of will. Ricoeur explores the transition from failure to lack and the symbolic expressions of evil in various cultural traditions. He emphasizes that symbols of evil "prompt thinking," challenging thought to go beyond. Ricoeur addresses guilt as requiring reconciliation with the past, using an analogy with the theological-anthropological scheme "Creation-Fall-Redemption." The author underscores the importance of mythical language in understanding evil and lack, introducing hermeneutics as the gateway to interpreting symbols. The text also discusses primary symbols of evil, emphasizing the need for symbolic language to comprehend the experience of evil. Ricoeur explores symbols of stain and sin, relating them to guilt, purification, and the notion of covenant. Reflection on evil is presented as a challenge to thought, inviting deeper consideration and a differentiated approach.
Keywords: Creation; Myth; Fall; Free will; Redemption
La Symbolique du mal é o terceiro volume do projeto ricoeuriano de uma filosofia da vontade. Nele, passa-se da falha para a falta e para as expressões indiretas desta última. Na realidade estas expressões são sempre simbólicas. Dessa forma, para conseguir decifrar esta simbólica do mal em seus diversos aspectos. Esta interpretação dos vários símbolos do mal em diversas tradições culturais desemboca numa teorização do símbolo como fator de estímulo do próprio pensamento: a conclusão de Ricoeur é a de que os símbolos “dão a pensar”, ou seja, que não só podemos interrogá-los tendo em vista o sentido que está por detrás deles, como nos podemos servir deles para levar mais longe a reflexão.
O resultado é uma reflexão concreta, empírica, bem documentada do ponto de vista histórico e cultural, e cujo interesse é ao mesmo tempo antropológico, filosófico, histórico e religioso. Este resultado viria a ser o último volume da filosofia da vontade, pois Ricoeur acabou não sistematizando uma “poética da vontade”.
Quando o pensamento mítico se torna objeto de ciência, Ricoeur demonstra que não somente ele é fonte de racionalidade, mas de sentido e compreensão. E isso mesmo para uma sociedade moderna que crê ter completamente superado o pensamento mítico em detrimento de uma explicação puramente racional da realidade. O símbolo “dá a pensar” o enigma da condição humana, o enigma do mal, o enigma do início do mundo.
A passagem da inocência à falta não pode ser apreendido diretamente pela filosofia de forma imediata. Na carência de uma descrição empírica direta, onde o mal seria objeto de observação, temos a necessidade de uma “mítica concreta”. Pois é somente na linguagem mítica que se exprimem as representações que fazemos do mal, da alegria, da salvação. No entanto, essa linguagem não poderia ser a linguagem filosófica. Essa é a porta de entrada da hermenêutica, em um primeiro momento dos símbolos, no pensamento ricoeuriano.
Para Ricoeur, a problemática da culpabilidade implica na reconciliação com o passado. Podemos fazer uma analogia com um esquema teológico-antropológico “Criação-Queda-Redenção”. Dessa forma, ele resume em grandes linhas o percurso a ser seguido na abordagem do perdão. A dívida imputada no plano da culpabilidade, de cujo pagamento se cogita, procede de uma falha cometida, seja um crime, uma infração ética, um pecado ou tudo aquilo que é considerado mal. O peso do mal, a densidade da culpa atua diretamente sobre a equação do perdão.
No enigma do mal importa muito mais como é tomado o desafio do pensamento, no sentido de uma provocação:
Que a filosofia e a teologia consideram o mal como um desafio sem igual, os maiores pensadores, em uma ou outra disciplina, concordam em confessá-lo, por vezes com grande alarde. O importante não é esta confissão, mas o modo pelo qual o desafio, e até mesmo o fracasso, é recebido: seria um convite a pensar menos ou uma provocação a pensar mais, ou até mesmo a pensar diferentemente (RICOEUR, 1986, p. 21-53).
O mito bíblico, dessa forma, se torna “adâmico”, ou seja, antropológico. O mito é uma forma de dizer ao mesmo tempo uma proibição e uma transição, o ato e a sua motivação, a escolha errada e a tentação. Ao mesmo tempo, como seria possível conciliar o mal radical se ele não for o original? Ricoeur afirma a ideia de esperança como modo da capacidade reencontrada, que faz parte da equação do perdão, como resposta à profundidade da culpa. Ou seja, o mal não seria apenas um problema teórico, pois exige a síntese entre pensamento, ação e sentimento. Há uma referência às transformações pelas quais os sentimentos que alimentam a lamentação podem passar, como consequência da
Podemos afirmar que o mal não pode ser abordado de forma mais substancial sem a linguagem simbólica. Por isso, é justamente a reflexão pela linguagem dos símbolos primários que mais nos coloca diante da experiência do mal. Em seu livro Finitude et Culpabilité – La symbolique du mal, nosso autor demonstra que a única maneira de compreender os mitos é considerá-los como elaborações secundárias, remetendo-nos a uma “linguagem da confissão”, pois trata-se de uma linguagem que propõe pensar a culpa e o mal.
Dessa forma, essa linguagem da confissão apresenta uma singularidade, que implica em pensar de forma completamente simbólica os temas da mancha, do pecado e da culpabilidade. Ou seja, a compreensão dessa linguagem da confissão significa desenvolver uma espécie de exegese do símbolo a partir de algumas regras específicas para decifrar, ou uma hermenêutica do símbolo (RICOEUR, 1982, p. 15).
Na tradição ocidental a concepção de mancha está vinculada ao tema do mal. A sua representação ensinou a simbólica do puro e do impuro e está relacionada ao sentimento de culpa e medo. A noção de impureza perpassa nossa cultura, fazendo com que o símbolo da mancha remeta ao estado do ser humano em relação ao sagrado. Dessa maneira, os rituais de purificação têm como função a tentativa de eliminar a mancha e, ao mesmo tempo, se portam como uma forma de prevenção.
Dessa forma, a dimensão física se situa dentro da questão ética, a mancha, o sofrimento, inicia a partir de uma queda, é o mal sofrido relacionado à responsabilidade moral, à culpa. A mancha atua como algo que infecta, como um temor do impuro, que causa receio de alguma retribuição de uma fúria que deseja vingança e que é prevenida pela proibição. Esses momentos primitivos da representação do mal são momentos superados pela consciência. No entanto, essa mesma consciência não supera por completo o imaginário presente na cultura, relativo ao mal e à culpa. Por que isso acontece? Justamente devido à sua dimensão simbólica. Poderíamos afirmar mesmo que a purificação da mancha não é só limpeza, mas um ritual. Dessa forma, “limpeza” da mancha significa que ela só pode ser realizada perante gestos da mesma maneira simbólicos. A mancha torna-se um símbolo do mal porque com esses ritos a mancha não é mais uma mancha senão simbólica e os ritos manifestam todo simbolismo implícito na representação da mancha como uma “sujeira” presente na dimensão humana.
Assim a confissão dos pecados se torna uma palavra humilde que o homem diz de si. O núcleo central presente em todas as simbolizações da mancha só pode ser compreendido no fim deste estudo dos símbolos primários do mal, porém o que está certo é que todo mal é simbolicamente mancha (RICOEUR, 2011, p. 208).
O simbolismo da mancha só pode entrar no horizonte humano por meio da palavra, mas somente através da proibição. Pela palavra que a define, entra de igual modo pela confissão, porque o ser afligido por uma proibição se questiona sobre o mal que exerceu e desvenda mediante uma investigação sobre si o sentido escondido de suas ações.
A mudança do conceito da mancha para o conceito de pecado é possível mediante a alteração de um fundamento. O temor de uma fúria sem rosto se transforma no temor de um Deus vingador, que se coloca como uma referência a um “perante ti” de que a aliança da religião hebraica é testemunha. Segundo nosso filósofo, o exemplo mais claro que afirma esta transição da mancha para o pecado é a confissão babilônica dos pecados em que o penitente faz a experiência de estar impuro e contaminado pelo mal devido ao afastamento de Deus. A consciência de pecado se fundamenta na noção de aliança. Distante de qualquer elaboração teológica, Ricoeur afirma que este Deus se apresenta como alguém preocupado com o humano, trata-se de uma situação inicial e o pecado rompe esta iniciativa, mas não a destrói em definitivo. Da mesma forma que o símbolo da mancha importa à reflexão filosófica pela sua característica de palavra (rito, proibição, confissão), a aliança e a noção de pecado também se inserem nesse espaço de reflexão como palavra.
Dessa forma, a lei ou o mandamento somente aparece quando é finalizada a relação de diálogo e justamente por isso o pecado se configura antes de uma quebra de aliança ou de um vínculo pessoal. Ou seja, o lugar privilegiado para abordar o pecado não está na lei, mas na confissão e no dinamismo da existência que direciona a própria lei. A aliança se mostra como vínculo e, dessa forma, como palavra.
Esta tensão entre a exigência absoluta, porém sem forma, e a lei finita, que esmiúça a exigência, é essencial para a consciência de pecado; não nos podemos sentir culpados em geral, globalmente; e a lei é um ‘pedagogo’ que ajuda o penitente a determinar seu ser pecador; e pecador segundo a idolatria, segundo a falta de respeito filial etc. (RICOEUR, 2011, p. 220-221).
A aliança se concretiza a partir dessa articulação entre a profecia e a lei, mesmo que o pecado não elimine o medo e a angústia do homem, mas somente muda sua qualidade, porque se no conceito de mancha o medo tinha uma natureza de ira sem rosto, na dimensão do pecado este medo se constitui como o estado do ser humano perante a ira de Deus. Dessa maneira, o pecado contra Deus fere a aliança, mas não a elimina e, por isso mesmo, também não elimina a promessa. É na dimensão da ira do Amor de Deus, quando o pecador que se converte e chama a Deus, encontra não um Deus vingador, mas um “Tu supremo”, pois esse gesto deixa claro que a relação não foi anulada, mas apenas ferida.
Da mesma forma como ocorre no símbolo da mancha, em que puro e impuro surgem no mundo da palavra por meio da proibição e da confissão, existe também um vocabulário próprio do pecado. Este rompe com o símbolo da mancha, em uma espécie de ruptura de uma relação pessoal. A culpa imposta sobre a tensão da aliança não é uma experiência vazia, pois a interpretação do profeta e a confissão do pecador fornecem o elemento da linguagem à experiência da culpa. Por esse motivo, aparecem figuras de linguagem que fazem a correspondência com esta nova experiência sob o símbolo do pecado. Enquanto a noção de mancha está relacionada ao contágio que permite uma afetação direta ou indireta do corpo, o pecado está associado a um ato contra Deus. Ou seja, a passagem do conceito de pureza ao de pecado surge na confissão dos pecados babilônicos, por exemplo, na medida em que essa ideia de puro se relaciona ao piedoso, ao santo e ao justo. Por outro lado, a ideia de impuro se relaciona à crença em demônios, ao temor da presença de forças transcendentes.
Desde uma perspectiva teísta, seja ela politeísta ou monoteísta anterior a uma teologia elaborada, essa compreensão marcou profundamente a história das religiões pelo caráter salvífico de que se reveste. O conceito de pecado pressupõe “um ante Deus”, um diálogo e uma aliança que, por iniciativa humana, é quebrada ou lesada (RICOEUR, 1982, p. 213).
Sendo assim, o lugar privilegiado para abordar o pecado é a confissão e não a lei, pois só é possível falar em pecado quando existe um agente pecador, responsável pelo seu ato. Não se trata de uma transgressão a uma lei, mas o rompimento de um laço pessoal. Os profetas, na condição de representantes do divino, enfatizaram essa consciência do pecado. Eles não refletiam sobre o pecado, mas profetizavam contra ele. Como não podia existir a impureza, mancha ou ruptura sem conversão e redenção, da mesma forma no pecado, o rito se fundamenta como possibilidade de purificação.
O surgimento da culpabilidade, a partir da mancha e do pecado, possibilita uma circularidade acerca dos símbolos do mal. A mancha da mácula e o exílio do pecado se completamentam com a subjetividade e o peso da consciência culpada se mostra como servidão que sofre e que significa o contágio que ela contraiu inicialmente. Dessa forma, o simbolismo da falta porta o conceito de homem responsável e cativo. Ou seja, encontramos um homem servo de sua própria liberdade, onde Ricoeur afirma o conceito de servo-arbítrio. Essa dimensão implica a afirmação progressiva de uma forma de pensar em potência e capacidade, constituindo em um dos pontos centrais da abordagem sobre o perdão. Ou seja, podemos traduzir essa relação em “profundidade do mal” e “potência da vida” em uma fenomenologia do homem capaz. Sua concepção evoluiu das análises da linguagem da culpabilidade em La Symbolique du mal à reflexão final sobre o “homem que age e que sofre”, na qual o pensador sustenta a predominância do mal sofrido sobre a falta cometida. Para Ricoeur, o pecado
Designa o que torna a ação humana objeto de imputação, de acusação e de repreensão. A imputação consiste em consignar a um sujeito responsável uma ação suscetível de apreciação moral. A acusação caracteriza a própria ação como violação do código ético dominante na comunidade considerada. A repreensão designa o juízo de condenação, em virtude do qual o autor da ação é declarado culpado e merece ser punido. É aqui que o mal moral interfere no sofrimento, na medida em que a punição é um sofrimento impingido (RICOEUR, 1998, p. 23).
O mal é um fator primário na linguagem que o articula, na ocorrência da confissão, e é sobre este fundamento que o filósofo francês encontra o discurso bíblico e o trágico (exemplos de fontes não-filosóficas da filosofia), como expressão simbólica e indireta de experiências de culpabilidade. Ou seja, o mal não se configura apenas como um problema especulativo, mas exige convergência de pensamento, ação e uma transformação espiritual de sentimentos. Ou seja, encontramos aqui o mal em três planos: do pensar, do agir e do sentir:
[...] Duas ideias parecem particularmente interessantes de ressalvar nesta obsessão de Paul Ricoeur em querer evidenciar o mal como escândalo: uma de dimensão religiosa, dizendo respeito à sua preocupação em salvar a possibilidade de sentido da fé em Deus, apesar do mal, e outra, de natureza histórica e cultural, correspondendo à sua reafirmação do valor da palavra para fazer memória do mal acontecido (HENRIQUES, 2005, p. 8).
Ricoeur considera a amplitude do problema do enigma do mal com os recursos de uma fenomenologia da experiência do mal. De forma inicial, propõe uma distinção entre o mal moral, o sofrimento e o pecado. O primeiro é, em uma linguagem religiosa, o pecado, designa o que torna a ação humana objeto de responsabilidade, acusação. Ou seja, atribui-se a um sujeito responsável uma ação suscetível de julgamento moral. Com isso, podemos partir do princípio que é apenas no caso do mal moral que podemos falar fundamentalmente do perdão.
Existe, dessa forma, uma polaridade entre pecado e sofrimento e sofrimento e violência. Apesar de haver distinção entre pecado e sofrimento, mal moral e sofrimento, o mal é frequentemente abordado como raiz comum do pecado e do sofrimento. Podemos atingir esse nível quando abordamos a condição humana em sua unidade profunda. A violência é afirmada por Ricoeur como causa principal do sofrimento.
Se o mito dá a pensar é porque ele por si interpreta outros símbolos. Assim é que intentamos compreendê-lo neste capítulo, reservando para uma investigação ulterior estudar sua reaparição, já num segundo nível, nos símbolos mais intelectualizados de ‘pecado original’ (RICOEUR, 1982, p. 387).
Sendo assim, todo mal é uma visão puramente moral do mal e conduz a uma visão penal da história: não existe alma injustamente precipitada na infelicidade. No entanto, para levar a sério a afirmação de que todo sofrimento seja uma retribuição do pecado, faz-se necessário fornecer a este uma dimensão acima do indivíduo, pois é a resposta da doutrina do pecado original. A experiência do pecado é ao mesmo tempo individual e comunitária, é uma experiência da falibilidade do homem perante a potência demoníaca de um mal já existente, antes de toda ação má.
O mal não é de modo algum uma origem, no sentido temporal do termo: é somente a máxima suprema que serve de fundamento subjetivo último a todas as máximas más de nosso livre-arbítrio; esta máxima suprema fundamenta a propensão ao mal em todo o gênero humano (nesse sentido Kant é conduzido para o lado de Agostinho) ao encontro da predisposição ao bem, constitutiva da vontade boa. Mas a razão de ser desse mal radical é ‘insondável’: ‘não existe para nós razão compreensível para saber de onde o mal moral pode primeiramente nos vir’ (RICOEUR, 1998, p. 38).
Finitude et culpabilité II se coloca como transformação do pensamento de Ricoeur da fenomenologia para a hermenêutica (mesmo que o campo fenomenológico nunca desaparecerá completamente de suas análises). Nesse momento, a realidade do homem concreto que se confessa culpado apenas poderá ser abordada por meio de uma interpretação simbólica, como exemplificado nas abordagens sobre os símbolos primários do mal.
Contra a ideia contemporânea de ver na finitude a característica estrutural do ser humano, Ricoeur acentua a ideia de uma natureza humana intermediária, a ideia paradoxal de que o homem não é menos finitude do que infinitude. E isso quer o olhemos como finitude que se transcende ou como infinitude que o restringe, o homem tanto está destinado à racionalidade ilimitada, à totalidade e à beatitude, como ao limite das perspectivas, à negatividade do desejo e à morte.
Presenciamos, dessa forma, uma correspondência de simbolismos: a culpa e a salvação estão constantemente relacionadas. Ricoeur afirma que essa correspondência torna a ideia de perdão (e sua consequente liberdade) possível.
[...] O simbolismo da salvação confere seu sentido verdadeiro ao simbolismo do mal. Esta é apenas uma província particular no interior do simbolismo religioso. Por isso o credo cristão não diz Creio no pecado, mas “Creio na remissão dos pecados”. Mais fundamentalmente, porém, essa correspondência entre um simbolismo do mal e um simbolismo da salvação significa que se deve escapar ao fascínio por uma simbólica do mal, recortada do resto do universo simbólico e mítico, e refletir sobre a totalidade formada por esses símbolos do começo e do fim (RICOEUR, 1977, p. 43).
Concluindo a abordagem sobre os símbolos do mal, podemos afirmar que Ricoeur intenta, em última instância, desvendar o horizonte simbólico. E, nesse sentido, afirmamos que o que está por trás é a tentativa de demonstrar que o mal, em sua forma simbólica, implica em um servo-arbítrio. O símbolo da culpabilidade, por exemplo, remete ao cativeiro presente também no símbolo do pecado bem como o sentido de contaminação presente no símbolo da mancha. O símbolo do cativeiro porta o sentido, por exemplo, de uma situação comunitária, o povo prisioneiro de seus pecados. No entanto, ao estabelecer uma abordagem acerca de uma possível imputação pessoal (a culpabilidade), o cativeiro se apresenta como uma espécie de autocativeiro, ou seja, uma liberdade “presa” a si mesma devido a uma escolha errada. Por outro lado, essa contaminação do mal não significa a decadência do ser humano. O mal radical não implica na perda total da liberdade humana.
A noção de conflito será tema central da primeira coletânea de ensaios de hermenêutica intitulada Le conflit des interprétations, publicada por Ricoeur ainda na década de 60. Nesta primeira fase de sua hermenêutica, da qual também faz parte o De l´interprétation – Essai sur Freud (1965) e os ensaios recolhidos no fim da década em Le conflit des interprétations (1969), à noção de símbolo como “expressão do sentido dúplice” é dado papel central, inclusive o filósofo irá definir o conceito de interpretação em função da noção de símbolo. De acordo com Ricoeur, é tarefa da hermenêutica, compreender o conflito das interpretações e lhe oferecer uma mediação (MÖBBS, 2015, p. 23).
Ricoeur aponta, assim, contradições presentes na própria modernidade, procurando enriquecer o seu conceito de racionalidade, apontando seus limites. Para tanto, propõe um “enxerto hermenêutico” como compreensão das expressões de sentido diversificado do símbolo como momento da compreensão de si.
Uma pergunta importante dentro deste estudo dos símbolos do mal seria acerca do fundamento de toda esta simbólica. Para Ricoeur, o triunfo se encontra numa visão ética do mal e do mundo. Aprofundando isto, ver-se-á com mais clareza este conceito de servo-arbítrio. Essa visão é enriquecida pelos símbolos primários e pelo mito adâmico. Ricoeur entende por visão ética do mal uma interpretação onde o mal está inteiramente relacionado à liberdade, o mal é retomado na liberdade. A liberdade relacionada à vontade é então o poder originário do afastamento, da falta, o mal se torna uma subversão de uma relação (SILVA, 2013, p. 23).
Dessa forma, a simbólica do mal afirma uma visão ética do mal e do mundo. No entanto, para nosso filósofo, a consciência moral esteve por muito tempo presa a uma visão cultural do mal, onde a liberdade não se origina, estando presa nela. A proposta ricoeuriana de uma simbólica do mal, levando em consideração elementos trágicos e éticos do mal, se mostra como uma afirmação última da liberdade humana. Isso acontece porque o horizonte simbólico é propriamente um horizonte hermenêutico.
Quereria experimentar outra via que seria a de uma interpretação criadora, de uma interpretação que respeite o enigma dos símbolos, que se deixe ensinar por ele, mas que a partir daí, promova sentido, forme o sentido, na plena responsabilidade de um pensamento autônomo. Será então que o mal, como contingência, não se transformaria em “necessidade” diante desta busca do ser humano por sua plenitude? (RICOEUR, 2011, p. 295).
O projeto simbólico de Ricoeur o levou a afirmar três categorias que relacionariam a experiência do mal ao movimento de reconciliação. A primeira, a categoria “apesar de” expressão da esperança, da reconciliação “apesar do” mal. Este “apesar de” significa para nosso filósofo uma espécie de afirmação “graças a” (segunda categoria), com o mal, mal como intrínseco à história do ser. Dessa forma, podemos também afirmar uma terceira categoria que seria a de um “quanto mais”, pois o mal não se mostra como deserção da realidade humana. Se ele é radical, pois está enraizado no ser humano, “quanto mais” é a bondade originária do ser humano, sua potencialidade de reconciliação. Dessa maneira, mesmo a liberdade humana encontrando uma dimensão de servidão como unidade dos símbolos do mal, encontra de igual modo em seu horizonte um “quanto mais”.
Ricoeur estudou a noção de servo-arbítrio a partir da exegese dos símbolos fundantes que se referem ao mal, onde encontramos o homem que confessa a escravidão de seu livre-arbítrio. Dessa forma, são os símbolos da confissão do mal que deixarão claro que as ações humanas desde o início são cativas do mal. Por isso, buscando solucionar o impasse entre livre-arbítrio e servo-arbítrio, nosso filósofo segue sua Simbólica do mal, através do mito da queda. Ele revela que o mal entra no mundo por meio do homem que o põe, mas também este só o põe enquanto cede ao assédio de um adversário (RICOEUR, 1982, p. 21).
Assim, podemos concluir que a própria compreensão kantiana que afirma o mal pela liberdade e a liberdade pelo mal, nos conduz ao conceito de servo-arbítrio, porque o homem necessita buscar novamente sua liberdade que percebeu estar cativa somente após perdê-la. Enfim, a liberdade como tema da salvação pressupõe uma servidão anterior. Nesse sentido, mesmo que o ser humano não seja a origem do mal, é ele quem o pratica, afinal, o mal aparece em seus atos existenciais. Por isso, ele é resultado de sua liberdade. “Considerar o mal do ponto de vista do mal cometido e da sua confissão significa, pois, declarar a liberdade e a responsabilidade humanas e, ao mesmo tempo, reconhecer que está nas mãos do homem a possibilidade de evitá-lo” (COSTA, 2008, p. 86).
A separação conceitual que faz Ricoeur entre mal sofrido e mal cometido tem como objetivo observar que a confissão, o reconhecimento da falta e da culpa não provém de forma inicial de uma convicção interna, mas de uma acusação exterior pronunciada pelo profeta. O mal pode afetar a existência do homem, seja este considerado como sujeito ou objeto. Por isso, existe um meio pelo qual ele pode se expressar, que é justamente a confissão. Esta, através de uma linguagem simbólica, passa a ser o meio pelo qual a vontade exprime o pecado, a culpabilidade e o sofrimento. Se não ocorresse a confissão, não haveria a tomada de consciência de si, pois as emoções humanas ficariam encerradas nelas mesmas. Por isso, afirma Ricoeur: “A linguagem é a luz da emoção; pela confissão a consciência da falta é conduzida à luz da palavra; pela confissão o homem é palavra até na experiência do seu absurdo, do seu sofrimento, da sua angústia” (RICOEUR, 1982, p. 171).
Essencialmente, esta proposição condensa um aspecto fundamental da experiência do mal, isto é, a experiência ao mesmo tempo individual e comunitária da impotência do homem perante a potência demoníaca de um mal ‘já lá’, antes de toda e qualquer iniciativa má assinalável a qualquer intenção deliberada. Mas esse enigma da potência do mal ‘já lá’ é colocado na falsa qualidade de uma explicação de aparência racional: confluindo no conceito de pecado de natureza, duas noções heterogêneas, a de uma transmissão biológica por via de geração e a de uma imputação individual de culpabilidade, a noção de pecado original surge como um falso conceito que se pode relacionar com uma gnose antignóstica. O conteúdo da gnose é negado, mas a forma do discurso da gnose é reconstituída, isto é, a de um mito racionalizado (RICOEUR, 1988, p. 33-34).
A liberdade do sujeito está sempre em tensão com sua determinação, que Ricoeur chama de involuntário. Por isso, ao despertar, o cogito se vê ferido pela presença de um mal já presente na natureza humana. No entanto, o ser humano poderá dar continuidade ao mal ou escolher o caminho de sua confissão.
Na referida obra, Ricoeur propõe “juntar o trabalho do pensar suscitado pelo enigma do mal às respostas da ação e do sentimento” (RICOEUR, 1998, p. 22). Dessa forma, aposta que o humano, na condição de ser inserido em uma determinada cultura, precisa alterar de forma profunda seu modo de agir, pensar e sentir, se quiser superar o mal naquilo que é a sua causa principal. Nesse caminho, verifica-se, de forma inicial, que, na ordem do pensamento, Ricoeur se refere ao mal como um desafio que não poderia ser resolvido com o nosso aparato conceitual-racional. Ele próprio resgata-o na perspectiva de um desafio e mesmo do fracasso diante das respostas filosóficas e teológicas que nos atraem. Seria necessário pensar de forma distinta, renunciando a nossa tendência à totalização sistemática.
Aqui Ricoeur sugere que seja feita uma “alteração qualitativa da queixa contra o sofrimento, mediante a superação da tese do mal como punição, pois o mal resulta do acaso, e da superação da revolta contra Deus (crer em Deus apesar do mal)” (RICOEUR, 1998, p. 11). A fé em Deus não teria a ver com a explicação do mal, pois, para aquele que crê, Deus é a fonte do bem, sendo de igual modo a fonte da força para suportar o mal e também da coragem para lutar contra ele. Deus não quer o mal, mesmo que o sofra (na cruz, por exemplo).
Esta transformação espiritual dos sentimentos, que Ricoeur aproxima daquilo que Freud designava como trabalho de luto é, no fundo, uma exigência do caráter escandaloso e injustificável do mal, e quer evidenciar que a relação humana com o mal obriga a uma experiência pessoal que, incorporando o não-saber como constitutivo da relação humana com ele, saiba integrar a sua dimensão misteriosa e, embora não abandonando a explicação daquilo que for explicável no mal existente no mundo, se ocupe menos com o porquê do mal e mais com a sua erradicação. É isso que, enfim, justificará a necessidade de uma alteração ao nível da ação contra o mal (COSTA, 2008, p. 93).
Nesse momento, uma forma nova de reflexão se faz necessária. Seria uma hermenêutica que interpreta os signos e afirma a confissão humana do mal e a esperança de superá-lo através do ato. “O mal é o que não deveria ser, e o problema é: o que fazer contra ele?” (RICOEUR, 1998, p. 11). Inegavelmente, o mal é fruto de nossa ação, por isso, é por meio dele agir que podemos superá-lo, como perdão. “[...] O desafio se estende às instituições política e religiosa que, por sua vez, devem centrar as forças na não-violência e numa reforma da consistência do poder, para que se possa – a partir de agora – escrever uma nova história e se construir um mundo habitável” (ABEL, 1996, p. 28).
O mistério da culpabilidade é demonstrado na distância que relaciona a possibilidade do mal e sua realidade concreta, para além da fragilidade da nossa condição. Entre a possibilidade do mal, inscrita na realidade antropológica da fragilidade, e a sua materialização, aparece a vontade do homem de agir corretamente e a vontade ética de separar o bem do mal. Aí se encontra nossa liberdade. Aceitar a nossa condição vulnerável não significa, dessa forma, aceitar o mal, pois, diante da fragilidade, o homem busca a vida boa, objeto da ética. Diante do caráter miserável da condição humana, há o sujeito capaz, diante do pecado, há a superabundância da Graça. O homem não é mau por natureza, não arrasta um pecado de origem que o torne culpado pelo simples fato de sua existência. O homem, por outro lado, sempre se depara com a possibilidade de cometer o mal, o pecado. Essa tarefa será empreendida em um ensaio breve intitulado Le Mal e em outros artigos breves.
O mal saiu de uma problemática da liberdade. Ou da moral. Nada de fechamento no ser ou fatalidade cósmica, portanto. Solução desde então “pelagiana”, deixando todo o peso à livre decisão do homem, capaz de inventar o bem ou o mal? Não. Apesar dos seus equívocos ou o peso de suas formulações, Santo Agostinho e o conceito de “pecado original” são verdadeiros, teologicamente e humanamente. É que a vontade humana não está jamais de saída, neutra sem história, sem hábitos, sem natureza adquirida e construída. De fato e originariamente. Por que? Este é o lugar onde tudo se mantém ou se dissolve: porque o homem é apenas sujeito quando é chamado; apenas quando é responsável (RICOEUR, 1986, p. 14).
O sofrimento e a morte na tradição da onto-teologia demonstram o humano em relação ao mal. É a própria condição humana que se apresenta no bojo do problema. O sofrimento e a morte marcam o defeito de todo ser criado. Na linguagem de Ricoeur, a falibilidade humana, e nos mostra com isso que seu conceito de falibilidade se apresenta na tradição filosófica de maneira rudimentar, mas que assegura sua inserção como herdeiro da tradição. A nosso ver há já em Leibniz uma humanização do problema do mal. Humanização esta que o filósofo herda ao pensar o mal à maneira da pessoa que pensa, age e sofre com o mal. Por outro lado, produz na lógica clássica um enriquecimento, ao acrescentar ao princípio da “não contradição” o princípio da razão suficiente, que se enuncia como princípio do melhor, desde que se conceba a criação como proveniente de uma competição no entendimento divino, entre uma multiplicidade de modelos de mundo, dos quais um único compõe o máximo de perfeições com o mínimo de defeitos.
[...] Uma causa principal do sofrimento é a violência exercida sobre o homem pelo homem: em verdade, fazer mal é sempre, de modo direto ou indireto, prejudicar outrem; logo, é fazê-lo sofrer; na sua estrutura racional – dialógica – o mal cometido por um encontra sua réplica no mal sofrido por outro; é neste ponto de intersecção maior que o grito da lamentação é mais agudo, quando o homem se sente vítima da maldade do homem; disto testemunham tanto os Salmos de David como a análise de Marx da alienação resultante da redução do homem ao estado de mercadoria (RICOEUR, 1986, p. 24).
Saber-se pecador significa, então, admitir-se responsável pelo mal e isso gera uma angústia no ser humano, que sente o inferno da justiça por perceber-se medido pelo seu próprio agir, sentir e pensar e não por Deus. Eis a nova experiência ética apresentada pelo simbolismo da culpabilidade: o sujeito, consciente de si, faz justiça ao oprimido, pois, ele mesmo dá a si próprio, a sentença pela falta cometida sob o olhar de Deus, que busca manter a aliança com amor incondicional, sempre perdoa e restaura o ser que procura superar suas limitações. Podemos afirmar o reconhecimento de que o pecado original é demonstrado como parte da experiência da graça.
O que porta sentido à posição de Ricoeur sobre o mal é a sua afirmação do mal como escândalo e de sua dimensão trágica, como simbólica do mal. Trata-se do princípio de que não é possível pensar o mal inserido em uma lógica da retribuição. Dessa forma, o Livro de Jó destrói a legitimidade de aceitação da ideia de que o mal sofrido é retribuição de um mal cometido.
Por isso, levar em consideração o Livro de Jó implica em reconhecer o mal como um dado vazio em si mesmo e afirmar um não-saber acerca da origem do mal. Afirma Ricoeur: “As pessoas que sofrem e que são tão prontas a acusar-se de qualquer falta desconhecida, o verdadeiro pastor das almas dirá: Deus, certamente, não quis isto; eu não sei porquê; eu não sei porquê [...]” (RICOEUR, 1988b, p. 60).
Se o livro de Jó tem na literatura mundial o lugar que conhecemos é, antes de tudo, porque ele leva em consideração a lamentação que se torna queixa, e a queixa levada ao papel de contestação. Tomando por hipótese da fábula da condição de um justo sofredor, de um justo sem falhas, submetida às piores provas, ele leva ao nível de um diálogo possantemente argumentado entre Jó e seus amigos o debate interno da sabedoria, marcado pela discordância entre o mal moral e o mal-sofrimento. Mas o Livro de Jó nos comove talvez mais ainda pela característica enigmática, e talvez deliberadamente ambígua, de sua conclusão, a teofania final não traz nenhuma resposta direta ao sofrimento pessoal de Jó (RICOEUR, 1992, p. 217).
O personagem Jó não cessa de falar de si mesmo ao longo de todo livro. O autor, preocupado em evocar o abismo do sofrimento no qual se encontra mergulhado Jó, coloca o leitor diante da impossibilidade, porque diante da extrema dificuldade de falar de si nessa situação. Jó começa então a falar de si em forma de monólogo, porque então seus amigos começam sempre a falar de Deus. Eles não entram jamais em diálogo com Jó. Pois seria possível falar de Deus na situação do abismo? O autor, em certo sentido, não quer dar relevância à realidade do mal em si, mas a uma dinâmica própria de abordagem do mal que Ricoeur intitula “estágio da sabedoria”:
Em uma primeira leitura, Jó não faz nada mais do que amaldiçoar sua existência. No entanto, em um segundo momento, podemos perceber por trás de suas palavras autodestrutivas, elementos de sua experiência pessoal que não podem ser subjugados pela razão e nem comparados a nenhuma experiência qualquer. A única possibilidade de comparação é concretizada no universal. O abismo parece ser um lugar inatingível, mas que Jó teme, que explicita como o maior mal possível apresentado à existência humana. Jó denomina o abismo de “a profunda obscuridade do dia”. Se é o abismo o mal que evoca para Jó a “profunda obscuridade do dia”, podemos considerar as palavras que precedem a noção de abismo. Em contrapartida ao abismo, aparece a afirmação da criação: “Esse dia que sejam trevas!” Ao inverso de Deus, que permanece nos Céus. No entanto, Deus não é mais possível ao homem. Como na dor em excesso que leva à depressão, a realidade externa não é mais aparente. Outro mecanismo prova da violência da autodestruição é a ideia de que a única coisa que resta ao enfermo é multiplicar sua enfermidade, seu sofrimento.
Para Jó, a revelação do todo não é em primeiro lugar uma visão mas uma voz. O Senhor fala, aí está o essencial. Ele não fala de Jó. Ele fala a Jó, e isso basta. O acontecimento de fala como tal cria um laço; a situação de diálogo é em si mesma um modo de consolação. O acontecimento de fala é um tornar-se verbo do ser; a escuta da fala torna possível a visão do mundo como ordem: “Não te conhecia senão por ouvir dizer e agora os meus olhos viram-te”. Mas, mesmo então, a questão de Jó a propósito dele próprio não recebe solução, ela sofre dissolução graças ao deslocamento de centro que a fala opera (RICOEUR, 1969, p. 450).
Sendo assim, é na dimensão das emoções que o homem pode sentir uma diminuição da desproporção entre a finitude e a infinitude. Segundo Ricoeur, só o sentir é a garantia, devido ao seu caráter de infinitude, da continuidade da existência em relação ao pensar e ao agir. A desproporção acima mencionada, a que Ricoeur chama a atenção para fundamentar a fragilidade humana, é a mesma desproporção sublinhada pelos dois infinitos de Pascal. Há, dessa forma, um caráter enigmático na conclusão do Livro de Jó. A teofania última não fornece resposta a Jó, ao seu sofrimento pessoal e mantém a especulação aberta em vários sentidos: a visão de um criador com desejos insondáveis, de um arquiteto cujas medidas são incomensuráveis em relação às características humanas, pode supor que a consolação é distinta escatologicamente ou que a lamentação está situada fora de propósito ao olhar de Deus. Ou seja, o arrependimento de Jó pode ser entendido como arrependimento da própria lamentação. Enfim, o sentido do perdão implica necessariamente em uma dádiva, que se constitui em não esperar nada de volta (como o “dom”, que não espera nada em troca...).
Por isso, Ricoeur propõe o abandono da lógica da retribuição. Essa atitude tem como consequência a decisão de renunciar à pergunta sobre a origem do mal. Por um lado, a recusa de qualquer forma de moral legitimadora ou recriminadora do mal é a consequência desse abandono. Afinal, “nós não podemos dizer nada aos outros sobre o seu sofrimento” (RICOEUR, 1988b, p. 63). Da mesma maneira, a separação entre a existência do mal e a responsabilidade vem à tona, o que nos permite encontrar “em Deus a fonte de indignação contra o mal”.
A obra "La Symbolique du mal" de Paul Ricoeur representa um marco significativo em seu projeto filosófico da vontade, abordando a transição da falha para a falta e explorando as expressões simbólicas do mal. Ricoeur destaca a importância dos símbolos como estímulos para o pensamento, enfatizando que eles não apenas oferecem um sentido subjacente, mas também impulsionam a reflexão.
A reflexão concreta e empírica sobre os símbolos do mal, inserida em contextos históricos e culturais diversos, revela uma abordagem multidisciplinar, conectando aspectos antropológicos, filosóficos, históricos e religiosos. O autor argumenta que, mesmo em sociedades modernas que afirmam ter superado o pensamento mítico, os símbolos continuam a desafiar e provocar o pensamento, sugerindo que a reflexão sobre o mal não pode ser totalmente dissociada da linguagem mítica. A análise dos símbolos primários do mal, como a mancha e o pecado, destaca a importância da linguagem simbólica na compreensão da experiência do mal. A confissão dos pecados emerge como uma palavra humilde que reflete a busca pela purificação e a reconciliação com o passado, seguindo uma estrutura teológico-antropológica de Criação, Queda e Redenção.
Ricoeur argumenta que a compreensão do mal não pode prescindir da linguagem simbólica, e a hermenêutica se torna essencial na interpretação desses símbolos. A análise dos símbolos da mancha, do pecado e da culpabilidade destaca a interconexão entre pensar, agir e sentir, oferecendo uma visão profunda da complexidade do mal na condição humana. Ao abordar a dimensão teológica e existencial do mal, Ricoeur reconhece a necessidade de uma transformação espiritual dos sentimentos para lidar com o enigma da condição humana. Ele destaca a importância do perdão como resposta à profundidade da culpa, ressaltando que o mal moral, o sofrimento e o pecado demandam uma abordagem integrada que considera a relação entre pensamento, ação e transformação espiritual.
Assim, "La Symbolique du mal" oferece uma contribuição significativa para a compreensão filosófica do mal, destacando sua presença intrínseca na experiência humana e enfatizando a necessidade de uma abordagem simbólica e hermenêutica para decifrar seus significados mais profundos. Em suma, o pensamento de Paul Ricoeur oferece uma abordagem profunda e reflexiva sobre a complexidade do mal, ancorada na liberdade humana e na responsabilidade individual. Ao explorar conceitos como servo-arbítrio e a distinção entre mal sofrido e mal cometido, Ricoeur destaca a importância da confissão como um meio de enfrentar o desafio ético do mal. A proposta de uma transformação espiritual dos sentimentos, afastando-se de explicações simplistas baseadas em punição e revolta contra Deus, reflete a busca por uma compreensão mais rica e significativa do mal. A abordagem hermenêutica sugerida por Ricoeur destaca a importância de interpretar os signos e afirmar a confissão humana do mal, destacando a linguagem simbólica como um meio de expressar a complexidade das experiências humanas em relação ao mal.
Ao utilizar o Livro de Jó como uma referência, Ricoeur desafia a lógica da retribuição e sublinha a dimensão trágica e simbólica do mal, propondo um abandono da busca pela origem do mal em favor de uma ênfase na responsabilidade humana. A conclusão de Ricoeur destaca a necessidade de uma transformação na ação contra o mal, buscando sua erradicação e reconhecendo a própria culpabilidade como parte integrante da experiência da graça. Em última análise, o pensamento de Ricoeur oferece uma visão ética e teológica que transcende explicações simplistas, convidando à reflexão e à busca de uma compreensão mais profunda do mal na experiência humana.
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