A experiência religiosa de Santa Teresinha e a apropriação dos elementos do cotidiano para a expressão do inefável

The religious experience of Saint Therese of Lisieux and the appropriation of quotidian elements to express the ineffable

Ceci Maria Costa Baptista Mariani
Doutorado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: cecibm@puc-campinas.edu.br

Alisson Henrique Domingos
Pós-graduando em Psicologia Familiar pelo Instituto de Ciências da Mente. Contato: alisson.domingos@alumni.usp.br

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Resumo: Santa Teresinha do Menino Jesus foi uma religiosa carmelita que viveu no contexto da França do final do século XIX. Após uma infância conturbada, ingressa aos 15 anos na Ordem das Carmelitas Descalças, onde permanece até os 24 anos, quando falece vitimada por uma grave pneumonia. Em tão pouco tempo, Teresa de Lisieux alcançou o matrimônio espiritual, o prestígio de uma das santas mais populares de todo o mundo e a coroa de Doutora da Igreja, enquanto perita da Scientia Divini Amoris. Escreveu três manuscritos autobiográficos que, após compilados, ficaram conhecidos como História de uma Alma. Nestas páginas encontra-se a profunda espiritualidade de Teresa que a elevou aos altares e a grandeza doutrinária que a fez a terceira mulher dentre os doutores. Diante do inefável da mística – entendida como encontro do eu com o Outro absoluto –, a fé e o homem buscam o entendimento daquilo que experimenta, e para isso utiliza-se de uma linguagem que seja capaz de tornar factível o inexprimível, realizável apenas por meio do uso da linguagem dos símbolos, ícones, analogias e alegorias. Este estudo verificou a espiritualidade de Santa Teresinha do Menino Jesus e a utilização dos elementos do cotidiano para expressar a sua mística e a doutrina em sua principal obra, a História de uma Alma. Percebeu-se que a carmelita se utiliza grandemente dos elementos de sua vida cotidiana para a transmissão de suas inspirações, principalmente de comparações com as realidades presentes na natureza.

Palavras-chave: Santa Teresinha do Menino Jesus; Mística; Cotidiano

Abstract: Saint Therese of Lisieux was a carmelite nun who lived in the context of France at the end of the 19th century. After a troubled childhood, at the age of 15, she joined the Discalced Carmelites Order, where she remained until the age of 24, when she died of severe pneumonia. In a short time, Therese of Lisieux achieved spiritual marriage, the prestige of one of the most popular saints in the world and the title of Doctor of the Church, as an expert in Scientia Divini Amoris. She wrote three autobiographical manuscripts which, when compiled, are known as the Story of a Soul. In these pages you can find Teresa's deep spirituality that elevated her to the altars and the doctrinal greatness that made her the third woman among doctors. Faced with the ineffable of mysticism – understood as the encounter between the self and the Absolute Other – the faith and the man seek to understand what they experience, and for this they use the language that is capable of making the inexpressible feasible, achievable only through the use of the language of symbols, icons, analogies and allegories. This study verified the spirituality of Saint Therese of Lisieux and the use of quotidian elements to express her mysticism and doctrine in her main work, the Story of a Soul. It was noticed that the Carmelite makes great use of elements from her daily life to transmit her inspirations, mainly comparisons with the realities present in nature.

Keywords: Saint Therese of Lisieux. Mystic; Daily.

Introdução

O ser humano sempre buscou se relacionar com a divindade e cultivar uma vida espiritual. Para os cristãos, desde Agostinho, esse relacionamento ocorre sobretudo no íntimo da alma, no qual habita o Criador. Na tentativa do estabelecimento de um laço de amizade com o divino, surgiram ao longo da história grandes místicos e, mais recentemente, a pequena flor do carmelo de Lisieux, Santa Teresinha do Menino Jesus. 

Teresa de Lisieux, em pouco tempo, tornou-se uma das santas mais populares do catolicismo mundial; sua profundidade espiritual e doutrinária levou o Papa João Paulo II a proclamá-la Doutora da Igreja e perita da Divini Amoris Scientia. Isto posto, e considerando que há poucos estudos que investigam o fenômeno religioso de Teresinha, este artigo tem como objetivo apresentar a experiência religiosa de Santa Teresinha do Menino Jesus e a apropriação dos elementos simbólicos do cotidiano da vida para a expressão do inefável de seu fenômeno místico, isto é, o encontro entre a pessoa e o Outro transcendente que abriga um caráter não esgotável pela linguagem humana.

Outrossim, o itinerário a ser percorrido neste estudo passa por uma breve introdução à vida de Teresa para então expor o que se entende por mística e as dificuldades de linguagem para a expressão do fenômeno inefável e, posteriormente, abordar as intuições de Teresinha para a expressão de sua experiência religiosa tendo como base os seus três manuscritos autobiográficos principais, a História de uma Alma. Adotou-se neste estudo a edição publicada pela editora Paulus com tradução das Religiosas do Carmelo do Imaculado Coração de Maria e de Santa Teresinha (Cotia, SP) que tem como base a edição crítica do centenário, Editions du Cerf et Desclée De Brouwer.

1. Santa Teresinha do Menino Jesus

Marie-Françoise-Thérèse Martin nasceu um dia após as calendas de janeiro de 1873, em Alençon, na França, e é a caçula dos nove filhos – dos quais apenas cinco sobreviveram – de Zélia e Luís Martin[1]. Após grandes dificuldades, por conta da idade, Teresa recebe autorização para, com apenas quinze anos, entrar na Ordem das Carmelitas Descalças, recebendo o nome de Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face. Santa Teresinha, como é conhecida, viveu por apenas 24 anos, tempo suficiente para se tornar uma grande santa, influenciando profundamente os séculos futuros. Junto de São Francisco, é uma das santas mais populares da igreja e, em 1997, foi proclamada por João Paulo II como Doutora da Igreja, a terceira mulher – à época[2] – e a mais jovem dentre todos. 

Desde sua infância, Teresa sentia o chamado para a vida religiosa, provavelmente muito influenciada pela exímia educação católica recebida de seus pais e pelo exemplo de suas irmãs que já haviam abraçado o hábito religioso: “Muitas vezes ouvia falar que Paulina seria certamente religiosa. Então, sem lá saber muito bem de que se tratava, pensava comigo: também serei religiosa. Esta é uma das primeiras recordações, e, desde então, nunca mudei de resolução!” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 21).

A infância de Teresa foi marcada por grandes dificuldades, tais como: problemas de saúde no início da vida; a perda da mãe, com apenas quatro anos; a entrada de Paulina na vida religiosa e a grave enfermidade, próxima aos dez anos, que alguns contemporâneos correlacionam como uma espécie de depressão. Não foi diferente o processo de entrada da pequena Martin no claustro. Após ter manifestado o desejo a seu pai, ela descobre que só poderia entrar no carmelo aos vinte e um anos de idade. O progenitor, outrossim, empregou todas as suas forças em busca da autorização para que sua filha pudesse seguir sua vocação: marcou audiências com as carmelitas, com o superior do carmelo e até com o papa. Após muitas relutâncias e contratempos, em 1888, com quinze anos, Teresinha entra no carmelo de Lisieux. 

De sua breve vida – faleceu em 1987 vitimada por grave tuberculose – Teresinha deixou uma profunda doutrina em três manuscritos autobiográficos, escritos a pedido de suas superioras, que após compilados foram chamados de História de uma Alma, bem como uma vasta coleção de poesias, obras teatrais, cartas e outros escritos.

A vida e a doutrina de Teresinha são como que uma resposta para a França do século XIX que se encontrava desestabilizada pelas consequências da Revolução Francesa, “na qual a desestabilização não era apenas política, mas também religiosa, onde predominava o jansenismo com uma espiritualidade austera, marcada por uma ascese motivada pelo medo” (SANTOS, J. A; 2018, p. 25). Neste contexto de heresia jansenista, havia uma forte desconfiança e descrédito de toda experiência mística, aliás, essa era uma palavra que deveria ser evitada. Mesmo “no Carmelo não se lia nem Cântico Espiritual nem a Chama Viva de Amor de São João da Cruz; tinha-se medo de ser ‘iluminado’” (MARIA-EUGENIO DO MENINO JESUS, 1997, p. 26).

Rompendo os limites dos séculos, Santa Teresinha continua ainda hoje a oferecer respostas. A Unesco a reconheceu como uma das figuras mais significativas para o mundo contemporâneo e o Papa Francisco escreveu uma Exortação Apostólica inteiramente dedicada a ela, propondo-a como “fruto maduro da reforma do Carmelo e da espiritualidade da grande Santa espanhola [Teresa d’Ávila]” (C’est la confiance, 4)

2. Experiência mística e inefabilidade

Inicialmente, é importante analisar o horizonte semântico da palavra mística. Segundo Del Genio (2003, p. 706), o termo é derivado do grego mystikos, que se radica no verbo myo, fazendo referência a ação de fechar olhos e boca para a contemplação de um mistério. Por conseguinte, a mística pode ser entendida como uma espécie de misteriosa comunicação desenvolvida no plano sobrenatural, permitindo o encontro do humano com o transcendente, como expressa Lima Vaz (2000, p. 15): “a experiência mística tem lugar no terreno desse encontro com o Outro absoluto, cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações-limite da existência, e diante do qual acontece a experiência do Sagrado”.

Deve-se atentar que a mística é entendida sobretudo nos particulares. Fala-se em “experiência mística”, isto é, ainda que seja possível uma universalização e entendimento generalista da mística, ela é, sobretudo, um ato, uma experiência de alguém diante de um Outro absoluto. Lima Vaz (2000, p. 16), citando J. Maritain, expressa que a experiência mística consiste essencialmente numa fruição, numa adesão afeto-volitiva, sobrepujando os limites do modo de operar da racionalidade e da inteligência habitual e, justamente por isso, resiste aos reducionismos, sobretudo o psicologista. 

Em sua Teologia da Perfeição Cristã, o teólogo dominicano Antonio Royo Marín apresenta sumariamente a questão em horizonte próprio da teologia espiritual clássica. Após realizar uma longa observação das tradições existentes ao longo da produção teológica, ele glosa em uma síntese teológica afirmando que “o constitutivo essencial da mística[3] consiste na atuação dos dons do Espírito Santo ao modo divino ou sobre-humano, que produz ordinariamente uma experiência passiva de Deus ou de sua ação divina na alma” (MARÍN, 2020, p. 226).

Tendo como referência a tradição cristã, ainda segundo Royo Marín (2020, p. 227), o caráter elementar da experiência mística é a atuação dos dons do Espírito Santo, de modo que um ato místico é produzido a cada vez que um dom atua. Essa atuação dos dons pode-se tornar frequente e repetitiva, predominando sobre o modo humano de operar conforme as virtudes infusas; neste momento, pode-se dizer que a pessoa entra em um estado místico. 

Como consequência deste estado, tem-se a experiência do divino, fruto mais comum da ação dos dons do Espírito, ainda que possa estar obscurecido por um estado de purificação, como a noite escura proposta por São João da Cruz. É essa experiência que diferenciará uma vida ascética de uma vida mística[4]: “o asceta vive a vida cristã de uma maneira puramente humana (...). O místico, por outro lado, experimenta em si mesmo (...) a realidade inefável dessa vida da graça” (MARÍN, 2020, p. 229). Ainda segundo o mesmo autor, pode-se dizer que em sentido qualitativo a comunicação divina com a alma altera-se, enquanto ao asceta é dado ouvir e crer, ao místico é concedido a graça de entender de uma maneira inefável, experimental.

No Tratado de Teologia Mística de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a mística é entendida como uma revelação dos mistérios da teologia ao homem, que por sua vez, encontra uma insuficiência na linguagem teológica para a expressão desta comunicação divina ocorrida na ausência de operações intelectuais e sensíveis, possibilitando a união com o Divino que está acima de todo ser e de todo conhecimento (PSEUDO-DIONÍSIO, 2005, p. 15-16).

Outrossim, pode-se dizer, conforme os autores, que a experiência mística abriga em si a inefabilidade daquilo que se experiencia, isto é, não é possível encontrar uma linguagem adequada que seja capaz de exprimir aquilo que lhe foi revelado, seja em termos de conhecimento, seja em termos de experiência religiosa. Entretanto, se por um lado existe o inefável mistério da experiência mística, por outro aparece a necessidade humana da comunicação de suas experiências. A fé busca pelo seu entendimento, pela racionalidade de seus atos, ainda que seja somente para si, o homem busca entender aquilo que vive, que experimenta. 

Diante da necessidade da comunicação do inefável – motivado pelas mais diversas causas, como a ordem de escrever, dada por um superior, como é o caso de Teresinha – deve-se recorrer a um modo de linguagem de seja capaz de exprimir de maneira mais fiel aquilo que é inexprimível. “Vivemos entre dois mundos de linguagem. A linguagem comum, corrente, diária, e a linguagem científica, pautadas por regras definidas pela comunidade científica” (LIBÂNIO & MURAD, 1995, p. 87). Entretanto, nenhuma dessas linguagens as quais se está acostumado é suficientemente capaz de expressar a experiência religiosa. A teologia, bem como as experiências místicas, lança mão, outrossim, de um modo de linguagem que é capaz de transcender o próprio limite do texto. Utiliza, conseguintemente, da linguagem simbólica, conforme expressa o autor:

Prefere a linguagem simbólica, ama o ícone. Sente-se bem no universo da liturgia. Fala à inteligência, mas pretende aquecer as fibras do coração, provocar a conversão, levar à ação sob a luz da fé e o imperativo do amor (...). Sua linguagem põe-se a serviço dessa vida, dessa prática e não de interesses de alguma instituição ou comunidade científica (...). Assim, teólogos, sobretudo místicos, aproximam-se do mistério, conjugando palavras antitéticas, transgredindo os códigos vigentes semânticos. Sua linguagem enche-se de paradoxos, ao querer exprimir o inexprimível. (LIBÂNIO; MURAD, 1995, p. 88)

 Santa Teresinha, ao seu modo, reúne em si, na prática, o que anteriormente foi elucidado. Ela mesma atesta o início de sua vida mística a partir da graça recebida no Natal de 1886 dizendo que a partir daquele momento “começou o terceiro período de minha vida, o mais belo de todos, o mais repleto de graças do Céu… A tarefa que em dez anos não me foi possível desempenhar, Jesus a executou num ápice, contentando-se com minha boa vontade, que nunca me faltou” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 67). 

Compreendo, e sei por experiência, que o “Reino de Deus está dentro de nós” Jesus não precisa de livros nem de doutores para instruir as almas. Ele, o Doutor dos doutores, ensina sem ruído de palavras... Nunca o ouvi falar, mas sinto que está dentro de mim a cada instante. É quem me orienta, inspirando-me o que devo dizer ou fazer. Exatamente quando se faz mister, descubro luzes que ainda não tinha enxergado (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 115).

Que as comunicações divinas com as almas místicas são experiências dotadas de inefabilidade já foi anteriormente exposto, grande quantidade de místicos a explicitam e, com Teresinha não foi diferente. Em seus três manuscritos autobiográficos que juntos constituíram a “História de uma Alma”, a carmelita descreve sua experiência religiosa e comunica sua doutrina espiritual. Entretanto, essa tarefa é permeada pelos limites da linguagem que não encontra as palavras para exprimir aquilo que é, em sua essência, inexprimível. 

Corroborando a prerrogativa, a própria religiosa confessa: “Eis aí um exemplo bem frisante daquilo que eu quisera dizer, mas tais coisas não podem ser externadas” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 165), em outro lugar, “não consigo dizer em palavras o que se passou em minha alma” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 158), ou ainda de modo magistral:

Minha Madre, Jesus concedeu à vossa filha a graça de penetrar as misteriosas profundezas da caridade. Se conseguisse expressar o que compreende, ouviríeis uma melodia do Céu. Infelizmente, só posso fazer-vos ouvir algum balbuciar de criança... Não me servissem de apoio as próprias palavras de Jesus, sentir-me-ia tentada a pedir-vos para largar a pena... Mas, isso não! por obediência tenho de levar avante o que por obediência comecei. (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 149)

Neste sentido, diante da necessidade de comunicação – no caso em particular a ordem de sua superiora religiosa para escrever –, Teresinha emprega, todavia, todas as suas forças e para tentar “balbuciar algumas palavras, embora sinta ser impossível, para a linguagem humana, reproduzir coisas que o coração mal pode pressentir…” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 121). Dessa forma, diante do paradoxo causado entre o inefável da experiência mística, a necessidade de se expressar e os limites da linguagem convencional, a santa frequentemente recorre à linguagem simbólica.[5] 

É evidente que o imaginário simbólico de Teresa de Lisieux é consequência de seu contexto, idade, de suas circunstâncias, afinal, “eu sou eu e minhas circunstâncias” (ORTEGA Y GASSET, 1966, p. 322). Isto posto, deve-se eliminar o leitor um certo pré-conceito de que Teresinha desenvolveu uma espiritualidade sentimentalista ou desinstalada da realidade, fruto de uma personalidade mimada e infantil. Ora, os escritos da santa carmelita são redigidos em sua juventude – afinal, ela falece aos vinte e quatro anos – e, por isso carregam em si as circunstâncias de uma jovem religiosa de clausura. Deve-se, no entanto, recordar que Teresa de Lisieux é Doutora e sua doutrina espiritual, mutatis mutandis, é proposta como realidade universal para todas as particulares manifestações espirituais, mais ainda com o recente documento publicado pelo Papa Francisco, a Exortação Apostólica C’est la confiance.

3. Apropriação simbólica dos elementos do cotidiano

Uma vez enunciado o que anteriormente ficou exposto, deve-se agora desenvolver uma breve e sistemática análise do modo como se dá a expressão do inefável por meio de linguagem simbólica na obra História de uma Alma de Santa Teresinha. Inicialmente, deve-se dizer de imediato que a jovem religiosa promove uma apropriação dos elementos do cotidiano de sua vida para transmitir as suas experiências e doutrinas religiosas. As verdades de fé e as experiências místicas são profundas e certeiras em responder aos problemas eclesiológicos de seu século; o modo de expressá-las, no entanto, são por meio de alegorias simbólicas encarnadas nas circunstâncias da religiosa de clausura.       

Percorrendo-se sistematicamente a obra, percebe-se que são diversos os relatos comparativos, destacando-se em maior número e grau de detalhamento aqueles inerentes aos aspectos da natureza. A fim de averiguar com maior distinção os eventos de apropriação dos elementos do cotidiano, agrupou-se em temáticas semelhantes as diversas menções dispersas ao longo da obra.

Sobrepujam as comparações que relacionam os aspectos da vida espiritual com jardins e seus correlatos. São inúmeros eventos nos quais há apropriação dos símbolos e exemplos da natureza para a explicitação de inspirações espirituais. Destaca-se, para uma breve exemplificação, a alegoria do jardim, em que Teresinha questiona o porquê de alguns santos parecerem receber mais graças que outros. O mistério lhe é revelado por meio de uma comparação com um jardim: 

Dignou-se Jesus esclarecer-me a respeito deste mistério. Pôs-me diante dos olhos o livro da natureza, e compreendi que todas as flores por Ele criadas são formosas, que o esplendor da rosa e a brancura do lírio não eliminam a fragância da violetinha nem a encantadora simplicidade da bonina... Fiquei entendendo que se todas as florzinhas quisessem ser rosas, perderia a natureza sua gala primaveril, já não ficariam os vergéis esmaltados de florinhas... Outro tanto acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Quis Ele criar os grandes Santos que podem comparar-se aos lírios, e às rosas; mas criou-os também mais pequenos, e estes devem contentar-se em serem boninas ou violetas, cujo destino é deleitar os olhos do Bom Deus (...). Com efeito, sendo o abaixar-se coisa própria do amor, se todas as almas se assemelhassem às almas dos Santos Doutores que iluminaram a Igreja com o fulgor de sua doutrina, parece que o Bom Deus não teria que descer tão baixo, quando chega até ao coração delas (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 18).

A partir desse olhar atento para a diversidade e a beleza singular de cada flor presente em um jardim, Teresinha transcende a realidade da floricultura para a teologia. A realidade do jardim assemelha-se à criação em sua beleza e fragilidade, a diversidade das flores nas multiformes possibilidades humanas, uma vez que cada ser humano é “único e irrepetível” (FRANKL, 1989, p. 76). 

Essa simples inspiração da jovem de Lisieux responde a diversos problemas do ambiente eclesial de seu tempo. Nesta mesma comparação, Teresa afirma que “assim como o sol clareia ao mesmo tempo os cedros e cada pequena flor, como se na terra só ela existisse, assim também Nosso Senhor se ocupa em particular de cada alma” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 18). Dessa forma, Teresa defende a ortodoxia católica de duas importantes heresias presentes naquele contexto: os jansenistas e pelagianos. 

Os jansenistas propunham uma predestinação dos eleitos, dizendo que a graça de Deus é direcionada a cada alma em particular; a carmelita, entretanto diz que o sol está para as plantas tal qual a luz do Astro Divino está para as almas, e o sol do amor chega em mesma intensidade a todas elas. Já aos pelagianos, que defendiam a salvação pelos méritos e esforços humanos, Teresinha responde dizendo não ser a grandeza dos méritos que alcança o coração de Deus, pelo contrário, o movimento kenótico é intrínseco ao amor misericordioso presente em Deus.

Na natureza Teresinha percebe a presença de Deus (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 32). Em abundantes passagens a autora diz ser ela mesma uma flor,[6] que foi transplantada para o jardim do carmelo, evidenciando um aspecto vocacional; a partir da dinâmica própria da natureza em relação à flor (como o sol, a chuva, o inverno), ela transcende aplicando essas analogias à sua vida espiritual (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 59, 94, 147).

Do livro da natureza, Santa Teresinha compôs um dentre os mais belos escritos da espiritualidade cristão ao comparar o voar da águia e do passarinho (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 99, 237). O escrito é resultado de sua vida cotidiana que era permeada por pássaros, seja na infância, seja na clausura do carmelo. Em primeiro momento ela comenta sobre os pássaros em si e, posteriormente compara às questões espirituais:

Águia, não sou, mas dela tenho, simplesmente, OLHOS E CORAÇÃO, pois que, não obstante minha extrema pequenez, ouso fitar o Sol Divino, o Sol do Amor, e meu coração sente nele todas as aspirações da águia… Quisera a avezinha voar em direção do Sol fulgurante que lhe fascina os olhos. Quisera imitar as águias, suas irmãs, quando as vê elevarem-se até o divino foco da Santíssima Trindade… Tudo o que pode fazer, ainda mal, é soerguer as asinhas. Mas, sair voando é o que sua reduzida força não permite! Qual será sua sorte? Morrer de desgosto, por se ver tão impotente?… Isso, não! A avezinha nem sequer se afligirá. Num audaz abandono, continuará fixando seu Divino Sol. Nada a poderia amedrontar, nem o vento, nem a chuva. E quando nuvens carregadas vêm encobrir o Astro do Amor, a avezinha não muda de lugar. Sabe que, além das nuvens, seu sol está sempre a brilhar, e seu esplendor não poderia eclipsar-se um instante sequer. Verdade é que, por vezes, o coração da avezinha se sente acometido pela tempestade. Parece-lhe não acreditar na existência de outra coisa fora das nuvens que a envolvem. Chega, então, o momento da alegria perfeita para a pobre e frágil criaturinha. Que ventura, ainda assim, continuar ela ali mesmo, fitando a luz invisível que se subtrai à sua fé!!! (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 127).    

Teresa de Lisieux, para além das comparações com a natureza, alude também à Divina Misericórdia por meio de comparações entre o abaixar-se misericordioso de Deus até a criancinha desvalida (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 11). Uma de suas frases mais popularizadas também é resultado dessa comparação. Em sua infância, tendo que escolher (dividir) os pertences da irmã mais velha, ela escolhe tudo. Agora, vendo o caminho de perfeição e tendo que escolher os sacrifícios que melhor se ajustam ao amor que Deus lhe pede, ela “como nos dias de minha infância”, escolhe tudo. “Meu Deus, escolho tudo! Não quero ser santa pela metade nem me assusta o ter que sofrer por vosso amor” (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 22).

Profundamente instalada na realidade concreta de seu século, para representar todas essas frequentes comparações, sobrepuja a passagem do elevador[7] pela qual se elucida sua principal doutrina, a da infância espiritual que consiste em um total confiança e abandono à providência divina, semelhantemente à confiança e abandono de uma criança nos braços de seu pai.

(...) quero (...) procurar o meio de ir para o céu por um caminhozinho bem reto, bem curto, uma pequena via inteiramente nova. Estamos num século de invenções. Agora, não se tem mais o trabalho de subir os degraus de uma escada: na casa dos ricos, um elevador a substitui vantajosamente. (...) Então, fui procurar nos livros Sagrados a indicação do elevador, objeto de meu desejo, e li estas palavras pronunciadas pela boca da Sabedoria Eterna: “Se alguém for pequenino, venha a mim” (Pr 9,4). Aproximei-me, pois, adivinhando que tinha descoberto aquilo que procurava. Querendo saber, oh, meu Deus, o que faríeis com o pequenino que correspondesse ao vosso apelo, continuei minhas buscas e eis o que encontrei: “Assim como uma mãe acaricia seu filhinho assim eu vos consolarei; aconchegar-vos-ei ao meu seio e acariciar-vos-ei sobre meus joelhos” (Is 66,13). Ah! (...) O elevador que deve fazer-me subir até o céu são os vossos braços, Jesus! Por isso não preciso crescer; devo, pelo contrário, permanecer pequenina e tornar-me cada vez mais pequenina (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 134).

A Doutora da Igreja exemplifica os aspectos de sua vida espiritual com exemplos da vida cotidiana, como na figura do pai cuidadoso com o filho que tropeça na pedra e o que previne que ele tropece (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 74); o barco e o aportamento na praia dos braços de Jesus (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 79); uma mulher que ama profundamente o esposo terreno mais que ela amava a Jesus (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 148); o pedido à Nossa Senhora que assim como se limpa o terreno baldio se possa desobstruir toda espécie de entulho da alma para que ali se torne um lugar digno para o céu se fazer presente (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 155); a relação entre o ofício de pastor e o de mestra de noviças (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 201); o médico e a vida espiritual (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 202); a salada com seus temperos e os louvores que se fazem aos seus dons (TERESA DO MENINO JESUS, 2018,  p. 206); o adorno da alma com uma capa de diamantes e sua relação com as virtudes (TERESA DO MENINO JESUS, 2018,  p.141), dentre muitas outras.

Por fim, manifesta-se em sua vida relato de experiência mística a partir da contemplação de uma fotografia de Nosso Senhor crucificado (TERESA DO MENINO JESUS, 2018,  p. 84); dificuldades com o sono na hora da oração e a tranquilidade em se lidar com isso (TERESA DO MENINO JESUS, 2018,  p. 144); e outras duas comparações: uma talvez motivada pelo seu gosto por pinturas e desenhos, comparando-se a um pincelzinho nas mãos do artista (TERESA DO MENINO JESUS, 2018,  p. 195) e outra diz ser filha da igreja para poder ser atendida em seu pedido de uma dose de amor dobrada (TERESA DO MENINO JESUS, 2018,  p. 235).

Fica, deste modo, exposto e exemplificado o modo de apropriação simbólica de Teresinha para a expressão de suas inspirações espirituais que são, por sua vez, oriundas de sua mística. Muitos outros exemplos poderiam ser inseridos aqui o que não é possível pelos limites deste estudo e nem pertinente para a captação da ideia central a que se pretende apresentar. 

Considerações finais

Santa Teresinha foi uma grande mulher, santa e doutora da Igreja. Sua grande contribuição foi com o estabelecimento de uma mística que se utiliza das imagens do cotidiano, fomentando uma espiritualidade que integra toda a realidade do ser humano. Sua grandeza é justificada ainda por responder aos grandes problemas teológicos que permeavam o contexto da França do século XIX, apresentando um caminho – uma pequena via – que passa justamente pelo reconhecimento do chamado universal à santidade e da graça de Deus, fomentando não a justiça, mas sobretudo a misericórdia divina.

Toda essa doutrina é fruto de uma vivência mística de Teresinha e que foi por ela expressada, sobretudo, por meio de comparações e imagens oriundas da natureza, dos jardins e de suas realidades concretas, inspirando as atuais gerações no desenvolvimento de um “modo” de proceder espiritual que integre o cotidiano da vida.

Referências

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Notas

[1] Os pais de Santa Teresinha foram canonizados pelo Papa Francisco em 2015.

[2] Foi somente em 1970, sob o pontificado de Paulo VI, que uma mulher passou a compor o coro dos doutores. A primeira delas foi Santa Teresa de Jesus, reformadora da Ordem Carmelita (em setembro de 1970), a segunda, Santa Catarina de Sena (em outubro de 1970). Este grupo foi então alargado por João Paulo II e Bento XVI ao incluírem Teresinha do Menino Jesus (em 1997) e Hildegarda de Bingen (em 2012), respectivamente. 

[3] Não se refere a nenhuma característica externa ou manifestação psicológica para fazer a distinção entre um místico e um não-místico, mas aquilo que está intrínseco a este estado.

[4] A espiritualidade clássica da corrente carmelitana de Teresa de Jesus e João da Cruz, da qual Santa Teresinha é discípula e cooperadora, distingue a vida na graça como sendo ascética ou mística. A primeira é aquela na qual há um exercício – movido pelas virtudes – do crente em direção a Deus, enfrentando um árduo trabalho espiritual; já a segunda é aquela na qual há o predomínio dos dons do Espírito sobre as virtudes infusas, operando-as de modo heroico, neste caso o trabalho é realizado na maior parte por Deus, dispensando o árduo trabalho empregado pelo homem.

[5] Possivelmente o pai de Santa Teresinha, Luís Martin, foi quem iniciou Teresinha neste modo de se expressar por meio de alegorias e símbolos, como ela mesma atesta em sua História de uma Alma: “O que me lembro, perfeitamente, é um ato simbólico que meu querido Rei executou, sem o perceber. Acercando-se de um muro de pouca altura, mostrou-me umas florinhas brancas, parecidas com lírios em miniatura. Tomou uma das flores, e deu-ma, explicando-me com que solicitude o Bom Deus a fizera nascer e a conservara até aquela data. Ao ouvi-lo falar, julgava ouvir minha própria história, tanta era a semelhança no que Jesus fizera pela florinha e pela Teresinha...” (TERESA DO MENINO JESUS, 1986, p. 73).

[6] Isso provavelmente deve ser justificado pelo seu gosto por flores, como admite: “Minha madre, quanto gosto de flores” (TERESA DO MENINO JESUS, 2018, p. 157).

[7] O elevador foi inventado e suas primeiras instalações, uma profunda novidade na vida da sociedade, foi realizada no mesmo período em que viva a santa.