Teologia e narrativa em Paul Ricoeur[1]

Theology and narrative in Paul Ricoeur

José Vanderlei Carneiro
Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor de Filosofia na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Contato: vanderleicarneiro66@gmail.com

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Resumo: Teologia e narrativa é um estudo a partir da hermenêutica bíblica de Paul Ricoeur e núcleo fundamental de toda Teologia. A reflexão é exatamente sobre os processos de elaborações teológicas presente na experiência da leitura e da escuta da Palavra de Deus como expressões dialógicas e orantes da comunidade de fé, a partir das noções fundamentais de teoria narrativa e de uma teologia narrativa, constitutivas na leitura do livro de Rute. Estas noções nos levam a compreender que os estudos do teólogo francês nos conduzem a uma capacidade de nos reportar ao significado dos eventos narrativos que estão presentes no texto bíblico. A materialidade textual da pesquisa será por meio das seguintes fontes: a) Tempo e Narrativa e Hermenêutica bíblica de Ricoeur e b) livro de Rute inTexto Sagrado”. O percurso interpretativo se dará em três momentos. O primeiro através da investigação sobre a teoria da narrativa, o segundo em torno dos constituintes de uma teologia da narrativa e por último, um exercício hermenêutico da narrativa do texto bíblico.

Palavras-chave: Teologia. Narrativa. Hermenêutica. Texto Bíblico

Abstract: Theology and narrative is a study based on Paul Ricoeur's biblical hermeneutics and a fundamental core of all Theology. The reflection focuses exactly on the processes of theological elaborations present in the experience of reading and listening to the Word of God as dialogical and prayerful expressions of the faith community, based on the fundamental notions of narrative theory and narrative theology, which are constitutive in the reading book of Ruth. These notions lead us to understand the studies of the French theologian guide us to an ability to relate to the meaning of the narrative events that are present in the biblical text. The following sources will be the textual materiality of the research: a) Time and Narrative and Biblical Hermeneutics by Ricoeur and b) the book of Ruth in the "Sacred Text." The interpretative path will occur in three stages. The first through the investigation of narrative theory, the second around in constituents of a theology of narrative, and finally, a hermeneutical exercise of the narrative of the biblical text.

Keywords: Theology. Narrative. Hermeneutics. Biblical Text

Introdução

Paul Ricoeur elabora uma reflexão teológica a respeito da revelação presente no texto bíblico. Tomando o Antigo Testamento, ele explicita algumas expressões “discursivas da narração (lei, profecia, sabedoria e hino)” (RICOEUR, 2006, p.75), mas é exatamente a forma narrativa que melhor expressa o “texto sagrado”. Desta forma, investigaremos os processos de elaboração teológica na da leitura da narrativa de Rute como expressão da vida na “comunidade de fé”[2]

Esta pesquisa se desdobrará em três questões fundamentais, quais sejam: a) Qual compreensão de teoria narrativa? b) Quais os constituintes de uma teologia da narrativa? e c) Quais os elementos estruturais da narrativa do texto bíblico? Pois, Ricoeur indica que a expertise do bom leitor se dá na medida em que, enquanto o leitor lê um texto, ele transforma o texto e se transforma. Esse processo de leitura do texto sagrado assumiremos como leitura teológica. O gênero narrativo demonstra a revelação que brota do coração humano e do texto sagrado. Neste sentido, faremos não uma exegese do texto, mas uma hermenêutica bíblica. O que nos leva a compreender que os estudos de Paul Ricoeur nos conduzem para uma reflexão capaz de nos reportar ao significado dos eventos narrativos que estão presentes no livro de Rute.

O artigo está organizado em três tópicos de estudos. O primeiro através da investigação sobre a teoria da narrativa, o segundo em torno dos constituintes de uma teologia da narrativa e por último, um exercício hermenêutico da narrativa do texto bíblico. Rute – “a luta dos pobres pelos seus direitos”[3].

1. Teoria da narrativa de Paul Ricoeur

A teoria da narrativa de Paul Ricoeur se desenvolve em torno da seguinte proposição: a narrativa torna acessível a experiência humana do tempo ou o tempo só se torna humano através da narrativa. Encontramos esta afirmação nas obras do final dos anos 80, Temps et récit (1983, 1984, 1991) e La Métaphore vive (1975). Esta retoma os estudos clássicos sobre a teoria dos “tropos’, aquela remete o estudo sobre a teoria da narrativa. Ambas se mobilizam em torno da inovação semântica.

Todo estudo é um esforço de encontrar uma mediação entre as aporias do fenômeno do tempo e as interpretações das experiências do narrar: narrativa histórica e narrativa de ficção. Tem presente filósofos da tradição do pensamento ocidental, tais como Aristóteles, Agostinho, Kant, Hegel, Husserl e Heidegger, tanto para investigar a percepção sobre o tempo, quanto para mediar a compreensão da ação humana através da simbólica da linguagem.

Das duas obras supracitadas estudaremos Tempo e narrativa e particularmente os aspectos da composição da intriga e da tradição.

Desta forma, atentaremos para nossa reflexão sobre esses aspectos. Primeiramente a composição da intriga. Este elemento narratológico, Ricoeur analisa a partir da Poética de Aristóteles. Deste estudo destacaremos dois problemas interconectados, a intriga e a mímesis. Pois “o conceito de atividade mimética (mímesis) pôs-me na trilha da segunda problemática, a da imitação criativa da experiência temporal viva pelo viés da intriga” (RICOEUR, 2010a, p. 56). A composição de intriga é, exatamente, o que melhor identifica a Poética, assim como o entendimento sobre mímesis figura imitação ou representação, esse é o processo da atividade mimética. Um processo dinâmico de compor intrigas, de organizar os simbolismos da ação humana, de transpor fato em obra representativa. Segundo Ricoeur,

A poética é assim identificada, sem maiores formalidades, à arte de “compor intrigas” (1447 a 2). A mesma marca deve ser conservada na tradução de mímesis: quer se diga imitação ou representação (como os últimos tradutores franceses), o que se deve entender é a atividade mimética, o processo ativo de imitar ou de representar. Portanto, deve-se entender imitação ou representação em seu sentido dinâmico de composição da representação, de transposição em obras representativas (RICOEUR, 2010a, p.59).

A representação literária é representação de ação, enquanto núcleo da inteligência da narrativa, do objeto e do “objetivo visado” e do cerne da tragédia. São os aspectos criativo da imaginação por meio do simbólico da ação, o que concebemos como mímesis a partir leitura ricoeuriana de Aristóteles, com uma ressalva: “Conservemos de Platão o sentido metafísico dado à mímesis, ligado ao conceito de participação, em virtude do qual as coisas imitam as ideias e as obras de arte imitam as coisas” (RICOEUR, 2010a, p. 61). Em uma palavra, temos a distinção da noção de mímesis. Em Aristóteles se traduz por imitação ou representação; em Platão, a mímesis é denominada de participação. 

Ricoeur segue, portanto, a concepção de mímesis presente da Poética de Aristóteles quanto ao gênero literário, ou seja, a tragédia. “A tragédia é representação, não de homens, mas de ação, de vida e de felicidade (também a infelicidade reside na ação), e o objetivo visado é uma ação, não uma qualidade...” (RICOEUR, 2010a, p. 67). A intriga, desta forma, apresenta característica complexa mais adequado a produção de efeitos de sentido especificamente trágico. Assim, as relações internas da intriga se configuram como inteligência da ordem da ação, do discernimento, da phrónesis e de uma forma de pensar concordante-discordante.

Segundo Ricoeur (2010a, p.75),

O modelo trágico não é puramente um modelo de concordância, e sim de concordância discordante. A discordância está presente em cada estágio da análise aristotélica, embora só seja tratada tematicamente sob o título da intriga “complexa”.

É esta a forma de pensar a intriga como concordância-discordante que nos provoca a buscar o discernimento na experiência do trágico. Assim, diz Ricoeur, “mesmo o discernimento da falta trágica é excetuado pela qualidade emocional da piedade, do temor e do senso do humano. Portanto é uma relação circular” (RICOEUR, 2010a, p. 80). Exatamente esta circularidade da composição da intriga que equaciona melhor as emoções e opera o discernimento do trágico.

A composição da intriga se organiza dialeticamente em torno do trágico humano, indicando possibilidades de interpretação, sustentada por uma abordagem narratológica, que explicita de maneira evidente uma teoria da mímesis. Neste sentido, Paul Ricoeur elabora três momentos da mímesis, configurado na teoria da narrativa.

Segundo Ricoeur (2010a, p. 94),

Tomo como fio condutor desta exploração da mediação entre tempo e narrativa a articulação, evocada anteriormente e já parcialmente ilustrada pela interpretação da Poética de Aristóteles, entre os três momentos da nossa mímesis que, numa brincadeira séria, denominei mímesis I, mímesis II, mímesis III. Considero estabelecido que mímesis II constitui o eixo da análise; por sua função de corte, ela abre o mundo da composição poética e institui, como já sugeri, a literariedade da obra literária. [...] Assim, proponho-me mostrar que mímesis II extrai sua inteligibilidade de sua faculdade de mediação, que é a de conduzir do antes ao depois do texto, de transfigurar o antes e o depois por seu poder de configuração.  

Por conseguinte, a mímesis II conjuga o processo de produção e recepção textual. Já o trabalho do analista de texto, como do hermeneuta, é identificar as instruções internas da obra literária, a partir do o indicativo, possibilitado pela intriga e suas relações com o sujeito e o tempo. O montante e a jusante do texto são, na verdade, a configuração linguística, a exposição dos enunciados da narrativa. Em última instância, o que o hermeneuta de texto faz é ressignificar as operações circulares do processo mimético de textualização da narrativa.

Na teoria da mímesis, fica marcada como instância de mediação a mímesis II, ou seja, a configuração, por estabelecer o fio interpretativo entre o mundo vivido ou o mundo prefigurado - mímesis I - e a sua refiguração - mímesis III - a partir da recepção da obra. É esse processo de produção e recepção textual ou a relação entre os modos de mímesis que nos leva a inserir o conceito de intriga nos estatutos da narrativa.

Seguindo a elaboração da teoria da narrativa, Ricoeur remete à noção de tradição numa relação de distinção entre os termos tradicionalidade, tradições e tradição. 

Em Tempo e Narrativa, mais precisamente no volume 3, “por uma hermenêutica da consciência histórica”, Ricoeur desenvolve essas três noções de tradição. A primeira é a concepção de tradição como tradicionaciodade. Ou seja, “a tradicionalidade pertence a uma dialética subordinada, interna ao próprio espaço de experiência. Essa dialética segunda procede da tensão, no passado, que sofremos, e a recepção do passado, que operamos” (RICOEUR, 2010b, p. 374). A tradicionalidade estabelece o vínculo da história com as experiências do passado de um povo, suas ideias, suas lutas, suas relações, seus infortúnios e suas conquistas. A segunda concepção de tradição se encontra entre o conceito de tradicionalidade e a noção de tradicional ou as tradições como expressão de conteúdo material da história. “A noção de tradição, tomada no sentido da tradição, significa que nunca estamos numa posição absoluta de inovadores, mas sempre primeiro, em situação relativa de herdeiros” (RICOEUR, 2010b, p. 377). A terceira concepção se situa entre uma hermenêutica das tradições a crítica das ideologias, um deslocamento da ideia de tradições como apologia à tradição. “A tradição, por fim, recebe um status vizinho àquele que Hegel atribuía aos costumes – à Sittlichkeit: somos levados por ela, antes que estejamos condição de julgá-la ou até de condená-la; ela preserva (bewahrt) a possibilidade de ouvir as vozes extintas do passado” (RICOEUR, 2010b, p. 380).

É a tradição que serve como meio no processo de prefiguração das narrativas históricas e ficcionais, possibilitando estabelecer interpretações das ações simbólicas humanas, fazendo uma espécie de hermenêutica da tradição, dando autoridade as leituras das narrativas, revelando as tramas ideológicas constitutivas nos sistemas simbólicos no ato de narrar uma história, próprio dos sistemas da língua, mas não somente, pois temos coisas já ditas, outras coisas ouvidas e ainda mais coisas recebidas. Estas realidades de linguagens formam o que podemos conceber também como tradição. Segundo o teólogo, “por tradição entendemos consequentemente as coisas já ditas, que nos são transmitidas ao longo das cadeias de interpretação e de reinterpretação” (RICOEUR, 2010b, p. 377).

Desta forma, uma teologia da narrativa tem como pressuposto importante uma teoria da narrativa. Esta fundamentação teórica nos auxiliará no exercício de interpretação do livro de Rute, configurado como texto narrativo, uma construção intersubjetiva entre autor e leitor. Ou seja,

O texto é exatamente o lugar onde o autor sobrevive. Mas ele sobrevive aí de uma forma diferente do primeiro leitor? A colocação à distância do autor pelo seu próprio texto é já um fenômeno de primeira leitura que, de uma só vez, coloca o conjunto dos problemas com os quais vamos, agora, ser confrontados e que dizem respeito as relações de explicação com a interpretação; estas relações nascem no momento da leitura (RICOEUR, 1989, p. 145-146).

Todo processo de produção de sentido construído da interação entre autor e leitor se desenlaça na relação conceitual entre o caráter mimético da intriga e a interpretação do trágico da história. A significância narratológica dessa teoria está relacionada com a percepção relacional por meio de dois mundos, dois lugares, isto é, o mundo do texto[4] e o mundo do leitor[5]. Essa dialética nos conduzirá a aplicação hermenêutica dos constituintes de uma teologia da narrativa. 

2. Constituintes de uma teologia da narrativa

Conforme Ricoeur (1996, p. 191), 

Nossa atenção foi chamada por toda a exegese contemporânea sobre o primado da estrutura narrativa nos escritos bíblicos. A teologia do Antigo testamento se estabelece primeiramente como “teologia das tradições”, em torno de alguns acontecimentos-núcleos: a vocação de Adão, o êxodo, a unção de Davi etc. A nominação de Deus é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Ele é assim o Atuante da grande gesta de libertação. E seu sentido de Atuante é solidário dos acontecimentos que se reconhece enraizada, instaurada. São os próprios acontecimentos que nomeiam Deus. 

Seguindo este pensamento, os acontecimentos do texto sagrado falam por si só, é preciso somente interpretá-los, avaliá-los, pô-los no devido lugar. Desta forma, compreendemos que os eventos continuarão ao longo da história humana, uma história construída a custa de muita luta, “obediência amante” e fé. A pronuncia e a escuta da Palavra não são simplesmente atos transitórios e evanescentes, eles poderão ser compreendidos por outras palavras, até mesmo dizê-los noutras línguas ou traduzi-los de outras línguas. Ao longo de todas as transformações da história do povo de Deus preserva uma identidade narrativa própria. 

Os acontecimentos como textos, desde que legíveis, são abertas a novas interpretações: a história passada nunca está concluída, e o que está faltando ainda tem um futuro (CORÁ, SILVA, 2014, p.16). Por conseguinte, não é possível afrontar interpretação e revelação, nem mesmo compô-las, sem uma destinação.  Pois é no plano da destinação que a busca do sentido oferece um contrário ao obscurantismo teológico. Ou seja, só um trabalho de interpretação, no qual o leitor se compreende a si mesmo, numa história portadora de sentido, pode compreender ao mesmo tempo a revelação e o seu contrário. O processo de interpretação, o conhecimento das estruturas da narrativa bíblica torna-se fundamental, pois distinguirá dos diversos textos narrativos. No gênero textual há sempre uma base comum de texto, mas na tarefa da investigação acadêmica precisamos delimitar as fronteiras do texto.

Segundo Robert Alter (2008)[6]

A prosa é, para começar, o sinal do literário em contraposição à composição oral – uma significativa mudança no mundo antigo. A poesia é literalmente memorável, prestando-se à memorização, considerando que a prosa tem uma flexibilidade e nuance que é um pouco diferente. Eu também assino embaixo da explicação proposta por estudiosos de que os escritores hebreus quiseram diferenciar seu trabalho dos épicos poéticos amarrados em mitologia pagã das culturas vizinhas. O diálogo é extremamente proeminente nessas narrativas em prosa. Por isso, em parte, foi uma cultura que sublinhou a importância da linguagem e como o uso e a manipulação da linguagem têm conseqüências práticas. É também uma tradição narrativa que destaca a interação de figuras individualizadas falando entre si e respondendo umas às outras. 

Desta forma, o texto bíblico se constitui plural quanto sua formação literária. Prosa, poesia, diálogo, exortação etc. As narrativas são “como-história”, tendo uma coerência antológica do povo hebreu.

Na teologia de Paul Ricoeur identificamos quatro questões relevantes para compreendermos os constituintes de sua elaboração teológica. Primeiramente a hermenêutica manifesta o mundo, a coisa do texto bíblico, o objeto de sentido, que está para além da crença. O texto bíblico manifesta o mundo novo, o mundo da nova aliança. Segundo, a realidade da inspiração presente na realeza da coisa do texto bíblico. Terceiro, a validade da linguagem teológica, pois quando se diz que o reino de Deus está próximo, esta proposição é um mundo possível, ou seja, no conceito de fé, ao sentido do compreender-se diante do mundo projetado, passa a ser mundo encarnado.

À partida, o que, na linguagem teológica, se chama fé é constituído, no sentido mais rigoroso do termo, pelo novo que é a “coisa” do texto. Ao reconhecer, assim, a constituição hermenêutica da fé bíblica, resistimos tanto quanto possível a toda redução psicologizante da fé. Isso não significa que a fé não seja autenticamente um ato irredutível a todo tratamento linguístico; neste sentido ela é, de fato, o limite de toda hermenêutica, ao mesmo tempo que a origem não hermenêutica de toda interpretação; o movimento sem fim da interpretação começa e acaba no risco de uma resposta que nenhum comentário gera ou esgota (RICOEUR, 1989, p.135).

Portanto é matéria teológica como também exercício orante para o crente esta realidade que deparamos no texto bíblico como um fenômeno imanente na narrativa da história da salvação do povo de Deus. Ricoeur, portanto, recusa as teologias especulativa, moral e existencial.

2.1 Ricoeur: teologias e teologia narrativa

Para se apropriar e delimitar uma teologia narrativa requer a abdicação de outras teologias. Em Ricoeur, verifica-se que para alcançar uma teologia narrativa faz-se preciso a recusa de outras teologias, cito-as: especulativa, moral, existencial e histórica.

  1. Teologia especulativa

Uma teologia especulativa é uma teologia esvaziada de referência. O lugar Israel, a figura Jesus e o modelo Igreja primitiva são referenciais significativos do qual nenhuma teologia poderia e pode eliminar, no entanto, quando Ricoeur menciona uma teologia especulativa, está falando exatamente do conhecimento das coisas de Deus que ignora essas três referências narrativas, “a recusa de uma teologia puramente especulativa, que esvaziaria de seu discurso toda referência às narrativas sobre Israel, Jesus e a Igreja primitiva” (RICOEUR, 2006, p. 285).

  1. Teologia moral

Uma teologia que se prende ao âmbito moral e que toma o código moral como atemporal configura-se em um problema apontado por Ricoeur. Por conseguinte, negar a história, a cultura ou o social e afirmar que um juízo moral pode atravessar todas essas situações sem sofrer alteração alguma é no mínimo ingenuidade cognitiva, quando não, desonestidade intelectual. É, assim, para Ricoeur “a recusa de uma teologia de orientação moral, que só reteria os ensinamentos atemporais de um monoteísmo ético” (RICOEUR, 2006, p. 285).

  1. Teologia existencial

Uma teologia que se dedica única e prioritariamente ao projeto existencial, abandonando e negligenciando os aspectos históricos, nos moldes do pensamento ricoeuriano não deve receber configurações do campo narratológico para os estudos teológico. Ou seja, não há e não pode haver teologia sem história. As narrativas teológicas sem história são narrativas precárias é “uma antipatia por uma teologia existencial indiferente à dimensão histórica, que estaria exclusivamente atenta à irrupção da palavra no instante da decisão” (RICOEUR, 2006, p. 285).

  1. Teologia da história

Ricoeur irá demonstrar que estar distante uma semelhança entre uma teologia da narrativa e uma teologia da história. O teólogo francês rejeitará uma certa teologia da história, se ela for compreendida ou estiver subentendida nos regimes de uma totalidade. O que nos leva pensar assim, é, exatamente, toda vez que “entendemos por teologia da história uma tentativa de construir uma história universal no sentido hegeliano, sob a condução de uma “Heilsgechte” indo do Gênesis ao Apocalipse, e pontuada por acontecimentos salvíficos tais como o Êxodo e a Ressurreição” (RICOEUR, 2006, p. 286).

Ricoeur identificou, elaborou e apresentou um diagnóstico, demonstrando que a questão central de uma teologia da história aparece com o desenlace da narração bíblica. Essa narração precisa ser compreendida, consecutivamente, pois “A narração bíblica que desmoronou foi, de fato, esse relato uniformemente linear que se aproxima uma história universal e que rivalizava com as histórias universais novamente concebidas desde a época da renascença até Hegel” (RICOEUR, 2006, p. 286). Seguindo esta perspectiva, Ricoeur propõe que, isso que chamamos narrativa bíblica, esse modo de compreender a linearidade da teologia da história, deve ser substituído por “esquema cristão”. É este esquema cristão, que é um “relato uniformemente linear” (RICOEUR, 2006, p. 286).

Para Ricoeur (2006, p. 286-287): “É importante notar que esse esquema cristão tomou forma quando a criação narrativa já se havia interrompido: é tipicamente pós-canônico [...] o ‘esquema cristão’ pretende ser o esquema cronológico universal da ‘história da salvação’ na qual nós mesmos estamos incluídos”. O esquema cristão é um termo que vai tomando forma e se alargando até constituir um sistema de totalidade, até abarcar uma convicção que forneça, em alguma medida, a amplitude de uma história universal, uma história – como afirma Ricoeur – nos passos do pensamento de Hegel. “Além disso, esse ‘esquema cristão’ tende a abolir as peripécias, perigos, fracassos, rupturas e horrores da história na busca de uma visão de conjunto tranquilizante fornecida pelo esquema providencial dessa grandiosa narração” (RICOEUR, 2006, p. 287). 

A história linear – o esquema cristão – é uma narrativa que segue uma continuidade, ou seja, nesta narrativa não ocorrerá uma disrupção, não no sentido, de interrupção do curso normal do processo histórico. Por outro lado, quando aparece uma narrativa histórica se outorgando detentora de uma “veracidade” e não considera a disrupção, significa que temos um problema. Pois, a história não segue um fluxo de continuidade ininterrupta, ao contrário, o processo histórico constrói e desconstrói rupturas, eventos, acontecimentos, contingências.             

Todas as tentativas de explicitar uma narrativa sobre o pensamento teológico, citadas acima, são experiências-teológicas recusadas por Ricoeur. No entanto, qual a teologia propositiva recomendada pelo teólogo francês? Promover abdicações destas teologias são necessárias, porquanto, a partir destas recusas serão constituídos: o desenvolvimento e o funcionamento da teologia narrativa.   

  1. Teologia narrativa

O teólogo francês explicita o distanciamento e a recusa que se deve ter de uma certa teologia da história, mas, isso não implica numa eliminação da história ou uma condição em que a teologia seria autossuficiente. Uma teologia apartada da história seria para Ricoeur irrelevante, insignificante. Uma consideração primordial, para Ricoeur, é que a teologia narrativa não pode se furtar, nem se manter a parte de uma concepção de história, de maneira oposta, “uma teologia narrativa leva em conta a longa duração de uma história de muitos milênios, tal como está concentrada nos dois Testamentos” (RICOEUR, 2006, p. 286).

Portanto, Ricoeur descreve que se seu diagnóstico da narração bíblica for verdadeiro, o objetivo será desvencilhar a teologia narrativa dos “enganos teológicos”[7]. Nesta perspectiva, Ricoeur disse que: “uma das tarefas da teologia narrativa seria libertar as narrativas bíblicas das coerções do esquema cristão, e finalmente a rede multiforme das narrativas bíblicas do esquema cronológico unívoco da história da salvação” (RICOEUR, 2006, p. 287). Assim, as teologias do engano que seguem uma história linear, uma cronologia unívoca, uma história bem esquematizada da salvação e/ou uma elaboração coesa da historicidade, tudo isso, não pode se confundir com a teologia narrativa, que seguirá um outro caminho, uma outra via, uma mais longa, que inclui uma arte da intriga, um estatuto epistemológico da inteligibilidade, um papel da tradição e uma significação da narração.   

3. O livro de Rute numa leitura da teologia narrativa

A leitura que faremos do texto sagrado – o livro de Rute - será uma aplicação hermenêutica a partir do pensamento do filósofo e teólogo francês Paul Ricoeur em torno da sua teoria da narrativa e da sua proposta de uma teologia da narrativa. O método que utilizaremos será de cunho interpretativo, ou seja, o “método histórico-crítico[8]”, produzindo uma compreensão da narrativa tecida pela intriga e pela tradição do povo de Israel, evidenciado na vida e na luta pelos direitos dos pobres.

3.1 Começando com a narrativa de Rute[9]

A história de Rute ocorreu no tempo dos Juízes. Seu autor é desconhecido, no entanto, essa narrativa, também não possui uma data exata de sua composição, segundo alguns estudiosos das Sagradas Escrituras, talvez ela seja uma obra posterior ao exílio.

O livro de Rute é transcrito numa narrativa que inicialmente menciona que naqueles tempos eram governados por Juízes e que uma fome assolou a terra. Neste contexto, surge a figura de um homem que sai de Belém de Judá, com sua mulher e seus dois filhos. Instalam-se nos campos de Moab. Tal homem, trata-se de Elimelec, esposo de Noemi. Havia com eles mais dois filhos: Maalon e Quelion. “Elimelec, marido de Noemi, morreu, deixando-a com dois filhos” (Rt. 1,3). 

Diante da sua viuvez, Noemi, vê seus dois filhos desposarem-se com mulheres moabitas uma é Orfa e a outra é Rute. Após dez anos os dois filhos de Noemi faleceram. Desse modo, Noemi, voltou para terra de Judá com suas duas noras. “Porque ouviu dizer que o Senhor tinha visitado o seu povo e lhe tinha dado pão” (Rt. 3,6). 

Com base nessa citação depreende-se traços fortes relacionados à fé em Deus, pois Noemi, apena ouviu dizer que o Senhor tinha visitado o seu povo e dando-lhe pão. Daí parte um princípio de fé fortíssimo, pelo fato que Noemi confiou a tal ponto que o nível da sua confiança a fez tomar uma atitude que foi retornar para Judá na esperança de que a fome que assolava aquela região em que elas estavam habitando seria resolvida. Ou seja, neste ponto, compreende-se que a fé proporciona mudanças de vida, de comportamento, ou até mesmo mudança de determinado lugar.

Quando “Noemi disse as suas duas noras: ‘Ide e voltai cada qual para casa de sua mãe.  Que Iahweh vos trate com a mesma bondade com que trataste os que morreram e a mim mesma!’” (Rt. 1, 8). Com estas palavras e com a atitude de beijar as noras ao sugerir tal situação Noemi, faz uso da justiça – característica essa que faz Noemi uma mulher esperançosa, confiante, fortalecida em Deus.

Porém, as noras puseram-se a chorar, com a ideia e as palavras da sogra. Apenas Orfa retornou para sua família, no entanto, Rute não aceitou separar-se de Noemi prometendo viver com ela até a morte. Rute pode ser citada como um modelo de piedade filial e de fidelidade. “Respondeu Rute: ‘não insistas comigo para que te deixes, pois para onde fores, irei também; onde for tua moradia, será também a minha; teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus’” (Rt.1,16). Por outro lado, o fato de Deus tê-la elegido demonstra que a escolha do povo eleito não é tão exclusiva que Deus se desinteressasse das outras nações. Temos aqui um sinal da universalidade dos fundamentos da pessoa humana. “Foi assim que regressou Noemi, tendo consigo sua nora Rute, a moabita, que veio dos campos de Moab.  “Partiram, pois, as duas e chegaram a Belém. À sua chegada, Belém inteira se alvoroçou e as mulheres diziam: ‘Esta é Noemi?’” (Rt. 1,19). Chegando a Belém Noemi relata aos conhecidos o sofrimento que havia passado, mas, que são permitidos por Deus. Rute mesmo sendo estrangeira, acaba sendo bem acolhida por um parente do seu falecido sogro. Rute e a sogra tiveram os alimentos (pão) para que pudessem manter-se. Noemi louvou e agradeceu a Deus pois tinham o necessário para a sobrevivência das duas. Vale ressaltar que Noemi roga à Deus por Booz, que também é parente do falecido: Elimelec. Chegaram a Belém no começo da colheita da cevada” (Rt. 1, 22).

Rute passa a considerar Noemi como sua própria mãe, permanecendo fiel, ficando junto dela, mesmo após a morte de seu esposo, o filho de Noemi. O poder de fala atribuído a Rute nos mostra de forma clara e intensa esse amor por ela proferido: “não insista comigo para que te deixe e me afaste de ti. Onde fores, irei; onde ficares, ficarei; teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus” (Rt, 1, 16). Esta é uma belíssima demonstração de solicitude. A solidariedade de Rute a Noemi nos revela a possibilidade de convivência entre povos diferentes. 

Quem serve ao Deus munido com sentimento de humildade encontra graça perante Deus e é reconhecido por Ele. O texto nos mostra essa peculiaridade visivelmente entre Noemi e Rute, por outro lado, quem é arrogante e que age de maneira superficial nas aparências, não experimenta desse reconhecimento advindo de Deus.

Nessa trajetória de Rute se evidencia claramente as recompensas de Deus para com ela, numa teologia da retribuição.[10] Deus viu que pelo fato de Rute ter sido fiel ao seu projeto, agindo na humildade e na reciprocidade com sua sogra estabeleceu uma aliança de coragem para lutar por pão, terra e direitos. Ela foi solidária permanecendo junto de Noemi e a acompanha quando ela ficou sem seus filhos e seu marido. A humildade de Rute é sólida e tamanha que a faz agir servindo como uma verdadeira serva, colocando-se no seu lugar como estrangeira. 

A humildade praticada por ela a faz encontrar graça diante de Deus e recebe Dele seus dons. Mesmo trabalhando como serva juntos às demais, e Booz enxerga nela uma bondade que a diferencia pelo seu modo de agir.

Pão, terra e direito dos pobres são os temas principais dessa narrativa. 

14 Na hora da refeição, Booz de a Rute: “Vem cá, come deste pão, e molha teu bocado no vinagre”. Ela sentou-se junto aos segadores e Booz também lhe fez uma polenta de grão torrado. Depois de ter comido à vontade, ainda sobrou. 15 E quando ela se levantou para respigar, Booz ordenou a seus servos: Deixai-a respigar também entre os feixes e não a molesteis. 16 E cuidai também que caiam algumas espigas de vossos feixes, e deixai-as para que ela as ajunte e não as censureis. 17 Rute respigou no campo até à tarde, e depois bateu as espigas que tinha colhido; deu quase um almude de cevada (Rt. 2, 14-17).

Aqui vemos Booz reconhecendo o direito dos pobres ao pão, a partir da iniciativa de Rute em busca de alimento para si e para sua sogra. Uma relação de cumplicidade entre povos distintos, israelita e moabita ligados pelo mesmo sentimento de justiça. Rute permanece fiel a esse propósito junto a sua sogra nos momentos de glória e de sofrimentos. A busca pela terra e pelo pão expressa o direito de viver como promessa de Deus e expressa também o descaso das autoridades diante da lei, por exemplo: “Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Iahweh” (Lv. 19, 18); “(Portanto, amareis o estrangeiro, porque fostes estrangeiro na terra do Egito” (Dt, 10,19) e “Quando houver um pobre em teu meio, que seja um só dos teus irmãos numa só das tuas cidades, na terra que Iahweh teu Deus te dará, não endurecerá teu coração, nem fecharás a mão para com este teu irmão pobre” (Dt, 15,7). Assim como segue no texto de Rute o regate das leis que as incluíam na comunidade de fé e de vida.

1Noemi tinha um parente por parte de seu marido, pessoa importante, do ela de Elimelec, cujo nome era Booz. 2Rute, a moabita, disse a Noemi: “Permite que eu vá ao campo respigar atrás daquele que me acolher favoravelmente.” Ela lhe respondeu: “Vai minha filha.” 3Ela partiu, pois, e foi respigar no campo atrás dos segadores. Por felicidade, entrou ela na parte do campo pertencente à Booz, do clã de Elimelec. [...] 8Booz disse a Rute: “Estás ouvindo minha filha? Não vás respigar noutro campo, não te afastes daqui, mas fica na companhia das minhas criadas. 9Observa o terreno que os homens estiverem ceifando e vai atrás deles. Acaso não ordenei aos servos para anão te molestarem? Quando tiveres sede, vai procurar os cântaros e bebe da água que os servos tiverem buscado”. 10Então Rute, caindo com o rosto em terra, prostrou-se e disse-lhe: “Por que encontrei favor a teus olhos, de modo que te interesses por mim, que não passo de uma estrangeira?” 11Em resposta Booz lhe disse:” Foi-me contado tudo que fizeste por tua sogra após a morte do teu marido, e como deixaste pai e mãe e tua terra natal para vires morar no meio de um povo que antes não conhecias” (Rt. 2,1-3; 8-11).

O livro de Rute faz parte dos livros históricos das Sagradas Escrituras. Na sua narrativa, trata-se de uma mulher estrangeira, viúva de um judeu. Veio ela fixar-se em Israel para permanecer fiel ao afeto, cuidado e respeito que tinha à sua sogra, Noemi. Ela casou-se com Booz, depois de ter abraçado a fé israelita, que, de acordo com, a Lei mosaica e a tradição da época, ele estava obrigado a tomar por mulher a viúva do seu parente mais próximo sem filhos. Assim Rute, embora estrangeira, entra para a comunidade de Israel. Pelo seu casamento com Booz, torna-se uma antepassada do Rei Davi, e figura como umas das quatro mulheres mencionadas na genealogia de Jesus (Mt. 1,5).

3.2 O texto de Rute a partir da teologia narrativa de Ricoeur

As categorias de intriga e de tradição delineadas segundo Ricoeur, apresentadas e descritas acima, serão as duas formas de recursos que vamos utilizar para averiguar o texto de Rute. Desse modo, vamos retomar algumas assertivas e alguns excertos ricoeurianos, sobre a intriga e sobre a tradição para prosseguirmos com a análise do texto de Rute. 

Para iniciarmos, vamos recuperar a ideia da intriga como experiência do trágico, no que explicitamos acima como concordância-discordante. Elencamos a situação da intriga, prioritariamente, no aspecto de experiência trágica, investigado na narrativa de Rute.

Nas primeiras palavras, o texto imediatamente aparece demonstrando tendo algo de trágico. Alguma coisa identificada, em desacordo, com a necessidade básica do humano (alimentação), no termo: fome. “No tempo em que os Juízes governavam, houve fome no país e um homem de Belém de Judá foi morar nos Campos de Moab, com sua mulher e seus dois filhos” (Rt. 1,1). O termo aparecerá apenas neste verso, no entanto, a indicação não pode ser compreendida de modo simplista ou de um termo que surge ao acaso. É possível dizer que toda a narrativa estará envolvida num realocar das personagens (Noemi e Rute) no combate e na luta contra a fome, constantemente lutando pela sobrevivência no âmbito corpóreo, físico e também numa esfera moral da dignidade humana, isto é, a narrativa de Rute está sempre atribuindo uma nova localização às personagens (Booz, Noemi e Rute) pelos direitos dos pobres e pelos reestabelecimento das leis.

Outro exemplo, presente na narrativa de Rute, que pode ser reclamado pela experiência do trágico, implica na perda dos entes queridos, isto é, das pessoas que queremos bem, no caso em questão os entes amados de Noemi e Rute:

3 Morreu Elimelec, marido de Noemi, e esta só com seus dois filhos. 4Eles tomaram por esposas mulheres moabitas, uma chamada Orfa e a outra, Rute. Permaneceram lá uns dez anos. 5Depois morreram também os dois, Maalon e Quelion, e Noemi ficou sozinha, sem filhos nem marido (Rt. 1:3-5).

Neste ponto, não nos interessa a problemática da morte, pois, em alguma medida a morte não pode ser tratada como essencial da tragédia, em certa medida ela não coaduna com o trágico da existência humana[11]. De outro modo, apesar da narrativa de Rute não descrever como ocorreram as mortes do esposo e dos filhos de Noemi, quer dizer, o texto não aponta nenhuma especificidade ou peculiaridade de como se deu as mortes, simplesmente, diz que morreram, sem uma prévia explicação singular, não possível classificá-la como trágica. 

De outro modo, o que pode ser qualificado como experiência trágica é a dor e o sofrimento das personagens (Noemi e Rute), por elas terem perdido pessoas amadas, e assim, a experiência trágica da narrativa se concretiza na intriga, neste ponto, da dor e sofrimento das personagens que é verificado no decorrer do texto de Rute, quando a provocação vai se estabelecendo na medida em que suas vidas são dependentes de terceiros (as vidas, de Noemi e Rute, dependiam do esposo e depois dos filhos), de outros homens, da comunidade, das leis e etc.. Quando chega neste ponto, o trágico se intensifica, passando a tornar-se, não somente uma luta pelos direitos, pela vida ou pela existência, mas, uma dependência do outro para continuar com a vida.  

O segundo recurso identificado na teologia narrativa de Paul Ricoeur é a categoria da tradição. A tradição como tradicionalidade que são experiências do passado de um povo e tradição como a ideia de preservação dos costumes, agora, veremos estas noções na narrativa de Rute. As experiências passadas e a preservação dos costumes de um povo, são duas questões que podem ser resumidas, aqui, nesta passagem da narrativa de Rute:

2Booz convidou dez homens dentre os anciãos da idade e disse-lhes: "Sentai-vos aqui.”. E eles se sentaram. 3Então disse ao homem que tinha o direito de resgate: "Noemi, aquela que voltou dos Campos de Moab, quer vender a parte do terreno que pertencia ao nosso irmão Elimelec. 4Resolvi informar-te disso, dizendo-te: ‘Adquire-a diante dos que aqui estão sentados e diante doas anciãos do meu povo.’ Se queres exercer teu direito de resgate, exerce-o; se não o queres, declara-mo, para eu tomar conhecimento. Pois ninguém mais tem direito de resgate a não ser tu, e depois de ti, eu.” O outro respondeu: “Sim, eu quero exercer meu direito.” 5Mas Booz disse:” No dia em que adquirires esse campo na mão de Noemi, estarás adquirindo também Rute, a moabita, a mulher daquele que morreu, para perpetuar o nome do morto sobre seu patrimônio. 6Então respondeu que tinha direito de resgate: Assim não posso exercer meu direito, pois não quero prejudicar meu patrimônio. Podes exercer meu direito de resgate, pois não posso fazê-lo. 7Ora, antigamente era costume em Israel, em caso de resgate ou de permuta, para validar o negócio, um tira a sandália e entrega-la ao outro; era esse o modo de atestar em Israel. 8Booz  disse aos anciãos e a todo povo: "Sois testemunhas hoje de que comprei da mão de Noemi tudo o que pertencia a Elimelec e tudo que o que pertencia a Quelion e a Maalon; 10ao mesmo tempo adquiro por mulher Rute, a moabita, viúva de Maalon, para perpetuar o nome do falecido sobre sua herança e para que o nome do falecido não desapareça do meio de seus irmãos nem da porta de sua cidade. Disso sois testemunhas hoje." 11E todo o povo que se achava junto à porta, bem como os anciãos, responderam: "Nó somos testemunhas! Que Iahweh torne essa mulher que entra em tua casa semelhante a Raquel e a Lia, que formaram a casa de Israel. Torna-te poderoso em Éfrata, adquire renome em Belém. 12E que, graças à prosperidade que Iahweh te vai dar desta jovem, tua casa seja semelhante à de Farés, que Tamar deu à luz para Judá” (Rt. 4,2-12).

As experiências e os costumes de um povo, resguardados no decorrer da história, são essenciais para manutenção de suas ideias (aqui teologia e filosofia, religião e racionalidade, fé e razão, de Israel). Quando afirmamos que estar presente nesta passagem as experiências passadas de um povo e a preservação dos costumes de uma nação, é porque estamos nos referindo a citação da qual diz “a pessoa tirava a sandália e a dava ao outro”, é uma referência direta ao passado do povo de Israel, de como deveriam proceder as negociações entre os próprios concidadãos, de como deveriam ocorrer os processos de interações comerciais, em outras palavras, são as operações mercantis e comercias entre os próprios cidadãos e também entre os estrangeiros. 

Uma segunda questão que apresenta a manutenção da tradição, da tradicionalidade ou dos costumes se expressa no momento em que, diz: “Booz convidou dez homens dentre os anciãos da idade e disse-lhes: ‘Sentai-vos aqui.’ E eles se sentaram” (Rt. 4, 2). Ou seja, é sumariamente expressa na narrativa, a importância e a consideração dada aos líderes do povo – neste aspecto que o texto nega, portanto, qualquer posição de uma autocracia, tomada por Booz, mas, ele assim não agiu. O texto não expressa um conteúdo de ordem revolucionária, não no sentido de ruptura com as leis estabelecidas, nem consequentemente a implantação de uma nova ordem política.    

Além disso, é verificável na narrativa de Rute, que a tradicionalidade quanto às experiências vividas de um povo, que reaparecem nas personagens anteriores da história de Israel, por exemplo: Lia e Raquel, as esposas de Jacó, sendo Raquel mãe de José (as duas deram prosseguimento a constituição de um povo). O texto também cita Tamar, para relembrar o passado de um povo. É Tamar, no escrito bíblico, a personagem amplamente conhecida por sua intriga e sua “relação” com seu sogro e por ser da mesma linhagem genealógica de Davi e, por conseguinte, de Jesus de Nazaré.

Considerações finais

Abordamos neste artigo a relação entre teologia e narrativa sustentada pelo pensamento hermenêutico e narratológico de Paul Ricoeur. Para isso, partimos da teoria de narrativa, explicitando as categorias de intriga e tradição, conceitos fundamentais para a elaboração de uma teologia da narrativa e por desdobramento uma fizemos uma singela interpretação do livro de Rute como demonstração desta compreensão de narrativa.

A noção de intriga, Ricoeur recorre a leitura da Poética de Aristóteles. Em Tempo e narrativa se encontra a reelaboração deste conceito nos aspectos da composição da intriga, organização da narrativa e inteligibilidade do ato de narrar. Ricoeur analisa a intriga relacionando-a com a mímesis. Pois as duas noções estão ligadas pelo ato de narrar. A tessitura da intriga se identifica com a mímesis compreendida como imitação ou representação. Intriga, desta forma, se torna um elemento para nossa aplicação de interpretação do texto narrativo para além da oposição entre uma situação inicial e uma situação final. A intriga no texto narrativo bíblico. 

A noção de tradição em Ricoeur permitiu fazermos a leitura do livro de Rute entendido como texto narrativo. A tradição remete na narrativa as ações simbólicas humanas da experiência de um povo. Ricouer aponta para uma espécie de hermenêutica da tradição, trazendo a luz os processos ideológicos presentes nas construções das narrativas histórica e ficcionais. São elaborações daquilo que foi transmitido por processos de “interpretação e de reinterpretação” (RICOEUR, 2010b, p. 377). 

A teologia da narrativa que desenvolvemos de forma introdutória, foi explicitada nas seguintes proposições:  a) que a hermenêutica se manifesta sempre através do mundo o objeto do texto bíblico, aquilo que move de sentido o está para além da crença, ou seja, o sagrado e que o texto bíblico manifesta a história de aliança de Deus com o seu povo e b) que o texto bíblico é inspiração do seu próprio objeto, Deus que se manifesta na vida e na luta do povo pobre. 

A teologia da narrativa, a partir do pensamento de Paul Ricoeur, foi formatada numa lógica de distinção, quase lexical, no sentido de estabelecer qual teologia mais adequada a interpretação do texto bíblico. Verificamos quatro elaborações teológicas que Ricouer considera como não suficiente para uma hermenêutica narratológica do texto bíblico. Ou seja, a teologia especulativa, por não conter referência no mundo do povo de Israel; uma teologia moral que se sustenta numa compreensão atemporal do código moral; uma teologia existencial que não leva em conta os aspectos históricos do povo; uma teologia da história compreendida como uma história universal, absoluta e vinculada ao pensamento de totalidade, isto é, uma “história universal no sentido hegeliano” (RICOEUR, 2006, p. 286). 

A teologia da narrativa, portanto, para Ricoeur é exatamente essa reflexão interpretada da história do povo de Israel que demarca a fronteira conceitual em relação as abordagens acima. Uma teologia precisa ser uma leitura da história numa concepção de história que considera os processos hermenêuticos de leitura e produção dois Testamentos, libertando a teologia da narrativa dos “enganos teológicos”, ou seja, uma história linear, uma cronologia unívoca e uma historicidade da história. A teologia narrativa percorrerá a via longa da interpretação, apoiada uma arte da intriga, numa perspectiva epistemológico da inteligibilidade e com forte aceitação da função da tradição.   

E por último, a teologia da narrativa se mostrou adequada a um exercício singelo de leitura interpretativa do livro de Rute, com o propósito de aplicação hermenêutica dos fundamentos teóricos e práticos da teoria da narrativa: intriga e tradição, assim como uma advertência às teologias supracitadas,  para defender a teologia da narrativa como sendo a mais adequada ao texto bíblico e aqui, especificamente, o livro de Rute. Uma história em torno da terra, do pão e dos direitos do povo pobre, além da expressividade da fidelidade, da coragem, do reconhecimento e da hospitalidade das mulheres, pobres, dos estrangeiros e da aliança de Deus com seu povo são leituras que ficaram como produto dos estudos desta atividade de teologia.

Referencias

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.

ALTER, Robert. Um mergulho na narrativa bíblica. Entrevista por Graziela Wolfart a Robert Alter. São Leopoldo, IHUEDIÇÃO 251 | 17 MARÇO 2008. Acesso: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/1637-robert-alter

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição pastoral. São Paulo: Paulinas, 1990.

CARNEIRO, José Vanderlei. Hermenêutica e Narratologia: por uma redefinição da narrativa à luz do pensamento contemporâneo. Curitiba: Editora CRV, 2017.

CORÁ, Élsio José; SILVA, Luzia Batista de Oliveira. A ação como um texto na obra de Paul Ricoeur. Impulso, Piracicaba • 24(59), jan.-abr, p. 15-23, 2014.

DE MORI, Geraldo. A teoria do texto e da narração de Paul Ricoeur e sua fecundidade para a teologia. Teoliterária. V. 2, N. 3, p. 40-7, 2012.

MESTERS, Carlos. Rute. São Paulo, Loyola, 2009.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. Discurso de sua Santidade o Papa João Paulo II e documentos da Pontifícia Comissão Bíblica. São Paulo: Paulinhas, 1994.

RICOEUR, PaulA hermenêutica bíblica. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

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RICOEUR, Paul. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo Loyola, 1996.

RICOEUR, Paul. O discurso da Ação. Trad. Alcino Cartaxo.  Porto, Portugal: RÉS-Editora, 1989.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 1. A intriga e a narrativa histórica. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010a.

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RICOEUR, Paul. Temps et Récit 1:  L’intrigue et le récit historique. Paris, Du Seuil, 1983.

RICOEUR, Paul. Temps et Récit 3:  Le temps recontéParis, Du Seuil, 1983.

RICOEUR, Paul; LACOCQUE, AndréPensar la Biblia:  Estudios exegéticos y hermenéuticos. Traducción de Antonio Martínez Rlu. Barcelola, Herder, 2001.

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Notas

[1] Artigo acadêmico apresentado ao Curso de Teologia do Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí – ICESPI, sob orientação do Prof. Dr. Pe. Clodomiro de Sousa e Silva.

[2] Grupo de pessoas que organizam a vida cotidiana a luz da reflexão esperançosa de fé e das práticas compartilhadas do bem. “42 Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações. 43 Apossava-se de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos. 44 Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: 45 vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um” (At. 2, 42-45).

[3] Título e subtítulo de Rute na tradução da Bíblia sagrada. Edição pastoral. São Paulo: Paulinas, 1990.

[4] “Para Ricoeur, todo texto projeta um “mundo”, o mundo do texto. O filósofo francês constrói esta noção num diálogo com o estruturalismo e a filosofia da linguagem. O mundo do texto, diz ele, não corresponde ao mundo da linguagem ordinária, que visa ao mundo como ser-dado, mas ao da linguagem poética, que capta o mundo como poder-ser, re-criação” (DE MORI, 2012, p.44).

[5] “... o caráter de significância que a narratologia contemporânea captura dessa fronteira interpretativa está relacionado com o mundo do texto e o mundo do leitor” (CARNEIRO, 201, p. 81).

[6] http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/1637-robert-alter

[7] Por enganos teológicos ou teologias do engano estamos nos referindo às teologias que Ricoeur definiu como: especulativa, moral, existencial e histórica. 

[8] “O método histórico-crítico indispensável para o estudo científico do sentido dos textos antigos. Como a Santa Escritura, enquanto “Palavra de Deus em linguagem humana”, foi composta por autores humanos em todas as suas partes e suas fontes, sua justa compreensão não só admite como legítimo, mas pede a utilização deste método” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 1994, p.37).

[9] “1No tempo em que os Juízes governavam houve uma fome no país e um homem de Belém de Judá foi morar nos Campos de Moab, com sua mulher e seus dois filhos. 2Esse homem chamava-se Elimelec, sua mulher, Noemi, e seus dois filhos, Maalon e Quelion; eram efrateus, de Belém de Judá. Chegaram aos campos de Moab, ali se estabeleceram. 3Morreu Elimelec, marido de Noemi, e esta ficou com seus filhos. 4Eles tomaram por esposas mulheres moabitas, uma chamada Orfa, e a outra, Rute. Permaneceram lá uns dez anos. 5Depois morreram também os dois, Maalon e Quelion, e Noemi ficou sozinha, sem filhos nem marido. 6Então, com suas noras, preparou-se para voltar dos Campos de Moab, pois ficara sabendo nos Campos de Moab que Deus tinha visitado seu povo dando-lhe pão” (Rt, 1,1-6).

[10] “Outros veem afinidades entre Rute e Jó, por causa do tema do sofrimento e da retribuição (MESTERS, 2009, p. 7).

[11] Reivindicar a morte como sendo ela própria uma tragédia não é de todo verdadeiro, por qual motivo? Porque a morte é um evento/acontecimento necessário, imperativo, universal do qual todos os indivíduos, em algum momento da existência terá que participar. Logo, a morte pela morte ou a morte-em-si nada teria de trágico, considerando que todos nalgum instante da existência a vivenciará, o caráter universalista descaracteriza o trágico; por outro lado, abandonando os aspectos de universalidade e nos concentrando nas singularidades da vida, é possível sim, entender a morte como evento/acontecimento trágico, no sentido, de verificar a morte em suas formas, suas causas, seus motivos, seus ensejos ou seus por quês, e assim, com algumas características, talvez, encontremos elementos para identificar e qualificar posicionamentos e exterioridades de uma tragédia.