DO KERYGMA CRISTOLÓGICO ENQUANTO TRADIÇÃO HISTÓRICA E KERYGMA PNEUMÁTICO ENTRE KARL BARTH E RUDOLF BULTMANN

OF CHRISTOLOGICAL KERYGMA AS A HISTORICAL TRADITION AND PNEUMATIC KERYGMA BETWEEN KARL BARTH AND RUDOLF BULTMANN

Luiz Carlos Mariano Da Rosa
Doutor em Filosofia pela Selinus University of Science and Literature (UNISELINOS – Londres / Inglaterra). Professor de Filosofia em Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - SEDUC/SP. Contato: marianodarosaletras@gmail.com

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Resumo: Constituindo-se o objeto ou conteúdo da pregação neotestamentária, a salvação é disponibilizada pelo kerygma enquanto proclamação do Evangelho que encerra o ato salvífico de Deus e implica uma exortação à conversão que tem como fundamento a pessoa e a obra de Jesus como Cristo e Senhor e Filho de Deus e os fatos soteriológicos da sua morte e ressurreição. Dessa forma, o Prof. Luiz Carlos Mariano Da Rosa, diante da questão envolvendo a primazia seja da tradição histórico-cristológica, seja da prédica pneumático-cristológica, assinala que a pregação converge para a comunicação kerygmática enquanto anúncio público em relação a promessa e as reivindicações do evento salvífico, convergindo para uma tradição que testemunha processos salvíficos a partir da fé, constituindo o Evangelho tradição pneumático-kerygmática. Assim, o artigo se detém no kerygma cristológico como acontecimento que encerra Deus como loquitur em Barth, que consiste em um anúncio envolvendo um acontecimento por se realizar (Ankündigung) em um processo que pressupõe que Deus fala através de uma relação que atribui ao humano a função de anunciar (Ankündigen) tal situação. Sobrepondo-se ao sentido que encerra o kerygma de Jesus como o Messias enquanto conteúdo que se impõe à tradição veterotestamentária sob a acepção de um valor ético-religioso e literário-teológico adicional, a proclamação, de acordo com Bultmann, constitui a mensagem primária e básica que imprime o seu caráter seja em relação à tradição antiga seja no que tange à pregação de Jesus em um processo que mantém todo o passado sob outro princípio interpretativo. Dessa forma, sobrepondo-se aos fenômenos históricos e a sua mera descrição, Bultmann elabora uma construção teológico-filosófica que através do recurso ao pensamento científico e a instauração de uma interpretação existencial encerra a pretensão de assinalar o verdadeiro sentido da mensagem, convergindo para as fronteiras que expõem a situação atual do ser humano e a necessidade de fé enquanto decisão e obediência.

Palavras-chave: Kerygma. Evangelho. Fé. Karl Barth. Rudolf Bultmann. 

Abstract: Constituting the object or content of New Testament preaching, salvation is made available by the kerygma as a proclamation of the Gospel that concludes God's saving act and implies an exhortation to conversion that is based on the person and work of Jesus as Christ and Lord and Son of God and the soteriological facts of his death and resurrection. In this way, Prof. Luiz Carlos Mariano Da Rosa, faced with the issue involving the primacy of either the historical-Christological tradition or the pneumatic-Christological preaching, points out that preaching converges to kerygmatic communication as a public announcement in relation to the promise and claims of the salvific event, converging to a tradition that witnesses salvific processes based on faith, constituting the Gospel as a pneumatic-kerygmatic tradition. Thus, the article focuses on the Christological kerygma as an event that encloses God as loquitur in Barth, which consists of an announcement involving an event yet to be realized (Ankündigung) in a process that presupposes that God speaks through a relationship that attributes to the human the function of announcing (Ankündigen) such a situation. Overriding the meaning that the kerygma of Jesus as the Messiah contains as content that imposes itself on the Old Testament tradition under the meaning of an additional ethical-religious and literary-theological value, the proclamation, according to Bultmann, constitutes the primary and basic that gives its character both in relation to ancient tradition and in relation to the preaching of Jesus in a process that maintains the entire past under another interpretative principle. In this way, overriding historical phenomena and their mere description, Bultmann elaborates a theological-philosophical construction that, through the use of scientific thought and the establishment of an existential interpretation, ends the claim of highlighting the true meaning of the message, converging on the borders that expose the current situation of human beings and the need for faith as decision and obedience.

Keywords: Kerygma. Gospel. Faith. Karl Barth. Rudolf Bultmann.

Aspectos Introdutórios

Constituindo-se o objeto ou conteúdo da pregação neotestamentária, a salvação desenvolvida por Deus através de Cristo é disponibilizada pelo kerygma enquanto proclamação do Evangelho que encerra o caráter de ato salvífico de Deus e implica uma exortação à conversão que tem como fundamento a pessoa e a obra de Jesus como Cristo e Senhor e Filho de Deus e os fatos soteriológicos da sua morte e ressurreição.

Guardando correspondência com a fé enquanto possibilidade implicada na sua audição, a pregação converge para a distinção entre os que creem e os que não creem, consistindo o kerygma, dessa forma, em um acontecimento que encerra a manifestação do poder de Deus, convergindo para uma comunicação kerygmática que envolve o anúncio público em relação a promessa e as reivindicações do evento salvífico.

Dessa forma, consistindo na revelação do Crucificado como representante de Deus e guardando o sentido de que se trata de uma tradição que testemunha processos salvíficos a partir da fé, segundo Paulo, o Evangelho, em virtude de sua natureza, constitui tradição pneumático-kerygmática enquanto “conteúdo” que escapa às fronteiras que encerram formulações doutrinárias, cuja transmissão se circunscreve à pregação.

Nessa perspectiva, o artigo se detém no kerygma cristológico como acontecimento que encerra Deus como loquitur em Barth, que consiste em um anúncio envolvendo um acontecimento por se realizar (Ankündigung) em um processo que pressupõe que Deus fala através de uma relação que atribui ao homem a função de anunciar (Ankündigen) tal situação, convergindo para correlacionar em sua constituição enquanto ato Palavra de Deus e palavra humana, cuja pregação se mantém irredutível ao arcabouço de uma definição teológica, escapando às fronteiras da atividade reflexiva em um movimento que traz Deus como fundamento existencial.

A indicação da verdade divina, eis o que se impõe à pregação, segundo Barth que, nesta perspectiva, impõe ao conceito um significado que escapa ao caráter de um fundamento baseado na experiência, na medida em que se a função do pregador se sobrepõe ao caráter de um movimento cujo fim é a revelação de Deus em um processo que se lhe atribui a condição de mediador, a pregação enquanto evento encerra Deus como loquitur, o que implica uma construção teórico-conceitual cujo fim seja empreender uma demonstração intelecto-especulativa capaz de encerrar a verdade de Deus e transmiti-la como prova para o interlocutor.

Nesta perspectiva, encerrando a fala de Deus, a palavra do pregador se mantém sob a égide profético-apostólica em uma construção teórico-conceitual que atribui à Escritura a capacidade de falar por si, consistindo a pregação no locus de expressão, cuja mensagem não deve consistir senão em uma explicação da Escritura em um movimento que se sobrepõe à produção discursiva sobre o conteúdo escriturístico e envolve o próprio conteúdo escriturístico, na medida em que deve guardar correspondência com a Revelação, haja vista que implica o fato de que tal processo está fundado pelo próprio Deus em sua vontade, escapando ao pregador produzir o acontecimento senão apenas testemunhá-lo.

Tendo em vista a tradição sinótica, à pregação de Jesus impõe-se a proclamação da comunidade primitiva enquanto anúncio que guarda raízes nas fronteiras do conteúdo da mensagem de Jesus, convergindo, dessa forma, para um processo que implica a sua transformação em mestre e profeta através de uma construção discursiva que simultaneamente assinala que Jesus é o Messias.

Nesta perspectiva, sobrepondo à atuação de Jesus na terra a ideia envolvendo a sua vinda como Messias, a comunidade primitiva proclama o anúncio do Messias como Messias vindouro, ou seja, como o “Filho do homem”, segundo Bultmann, na medida em que a expectativa é irredutível a sua volta propriamente como Messias.

Dessa forma, o que se impõe ao kerygma de Paulo ou de João, ou, lato sensu, ao kerygma neotestamentário, de acordo com Bultmann, não é senão que a personalidade de Jesus e a sua imagem escapam à tradição da comunidade primitiva, convergindo para a impossibilidade de sua reconstrução. Além disso, cabe registrar que a fé da comunidade primitiva em Jesus como Messias também não traz como fundamento o entendimento envolvendo a sua aparição histórica sob a égide de personalidades e eventos históricos enquanto efeitos da graça de Deus nas fronteiras das referências veterotestamentárias e do judaísmo.

Sobrepondo-se ao sentido que encerra o kerygma de Jesus como o Messias enquanto conteúdo que se impõe à tradição veterotestamentária sob a acepção de um valor ético-religioso e literário-teológico adicional, a proclamação, de acordo com a interpretação de Bultmann, constitui a mensagem primária e básica que imprime o seu caráter seja em relação à tradição antiga seja no que tange à pregação de Jesus em um processo que mantém todo o passado sob outro princípio interpretativo.

Tendo em vista a teologia de Paulo, o pressuposto histórico que carrega em sua construção é irredutível ao kerygma da comunidade primitiva, guardando raízes nas fronteiras da comunidade helenista em um processo que assinala um cristianismo (cristianismo helenista) que se mantém como um legado que encerra uma influência que envolve desde a sinagoga até a religiosidade pagã e que implica, principalmente, a interpretação gnóstica.

Nesta perspectiva, alcança relevância o fato de que não havia possibilidade de que a pregação missionária cristã no mundo gentílico tivesse como conteúdo o kerygma cristológico, tendo em vista que a interpretação judaica e judaico-cristã encerra o mundo gentílico e a religião gentílica nas fronteiras do politeísmo e da idolatria, o que implica a necessidade de desenvolvimento de um trabalho missionário capaz de alcançar as comunidades que se mantém sob o domínio do politeísmo.

Tendo como fundamento a filosofia existencial, a construção literário-teológica de Bultmann se sobrepõe aos fenômenos históricos e a sua mera descrição, haja vista a incapacidade da análise histórica de possibilitar a compreensão de um anúncio como a pregação de Jesus acerca do Reino de Deus e a sua vinda iminente, que exige o recurso ao pensamento científico e a instauração de uma interpretação existencial, que assinala o verdadeiro sentido da mensagem, concorrendo, em suma, para as fronteiras que expõem a situação atual do ser humano e a necessidade de fé enquanto decisão e obediência.

Da pregação profético-apostólica enquanto tradição pneumático-kerygmática segundo a construção literário-religiosa bíblico-teológica neotestamentária

Constituindo-se o objeto ou conteúdo da pregação neotestamentária, a salvação desenvolvida por Deus através de Cristo é disponibilizada pelo kerygma[1] em um movimento que atribui à proclamação do Evangelho o caráter de ato salvífico de Deus[2], o que implica uma exortação à conversão[3] que tem como fundamento a pessoa e a obra de Jesus[4] como Cristo[5] e Senhor[6] e Filho de Deus[7] através de uma construção teórico-conceitual que encerra os fatos soteriológicos da sua morte e ressurreição[8] e se detém nos efeitos por estes produzidos e que envolvem a remissão dos pecados e a salvação para judeus e gentios[9], além da ressurreição dos mortos[10] e a Parousia[11] de Cristo[12]. Tal pregação profético-apostólica, baseada no cumprimento das predições veterotestamentárias na vida de Jesus e na sua obra[13], guarda correspondência com a particularidade de se tratar de uma mensagem cuja palavra advém de testemunhas oculares da vida e da morte de Jesus, tanto quanto de sua ressurreição e glorificação[14].

Identificada geralmente como instrução, ensinamento, a pregação em sua construção etimológico-literária encerra, no arcabouço neotestamentário, para fins de expressão de sua noção, diversos verbos e substantivos, dentre os quais se destacam na transposição linguística o significado envolvendo clamar e proclamar como arauto[15], levar uma boa-nova[16], anunciar e proclamar[17], convergindo para uma atividade cuja execução era desenvolvida incialmente pelos apóstolos na sinagoga e no templo[18], de modo correspondente à atuação de Jesus[19]. Tal processo teórico-conceitual, que traz como fundamento a temática do Reino de Deus ou a pessoa e na obra salvífica de Jesus, constitui-se um exercício hermenêutico-explicativo que guarda raízes nas Escrituras[20] ou perfazendo uma prédica instrucional ético-religiosa do Reino de Deus[21], havendo possibilidade de consistir também em uma prática expositivo-doutrinária caracterizada pela densidade e profundidade[22] em um movimento que, baseado na comunicação do conteúdo salvífico, se impõe como lato sensu[23] ou como stricto sensu[24].

Guardando correspondência com a fé enquanto possibilidade implicada na sua audição, a pregação converge para a distinção entre os que creem e os que não creem[25] em um processo que atribui aos primeiros a condição de discípulos de Cristo[26] e filhos de Deus[27], aptos à salvação em virtude de uma obediência que não emerge senão como resultante da graça de Deus propriamente. Dessa forma, o kerygma consiste em um acontecimento que encerra a manifestação do poder de Deus, haja vista os milagres[28] que, enquanto sinais que envolvem a messianidade de Jesus e o apostolado[29], constituem, em última instância, as obras de Deus como revelação do seu poder e da virtude do Espírito Santo que, como tais, confirmam a origem e princípio da atividade profético-apostólica e a proclamação da mensagem salvífica: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus.” (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, I Co 2.4-5, 1999, p. 1347). Assim, detendo-se na credibilidade das Escrituras e na sua superioridade em relação a toda a sabedoria humana, Calvino conclui:

Portanto, o Apóstolo argúi [I Co 2.4-5], não sem razão, que a fé dos coríntios estava fundamentada no poder de Deus, não na sabedoria humana, porque por entre eles sua pregação se tornara recomendável não em virtude de palavras persuasivas do saber humano, mas em demonstração do Espírito e de poder, porque a verdade se dirime de toda dúvida quando, não se apoiando em suportes alheios, por si só ela própria é suficiente para suster-se. (CALVINO, 2006a, I, VIII, 1, p. 88-89, grifo do autor)

Guardando correspondência com o conteúdo, evento e ofício da proclamação ou pregação da mensagem cristã, kerygma encerra contraste no que tange ao ensino como didachê[30] cujo significado implica a revelação de Cristo através de uma construção doutrinária conceptual e lógica, na medida em que a ênfase da comunicação kerygmática envolve o anúncio público em relação a promessa e as reivindicações do evento salvífico, convergindo o registro bíblico-teológico neotestamentário para se contrapor a distinção entre a interpretação teológica que, detendo-se nos eventos salvíficos, atribui primazia ao fático, e a leitura kerygmática enquanto princípio que confere caráter preeminente a relação entre o movimento da prática discursiva e a fé como correspondência.

Tendo como paradigma da proclamação o kerygma envolvendo o Jesus crucificado que Deus ressuscitara dos mortos, além da história do seu julgamento e sofrimento, assim como o relato de suas epifanias, à mensagem salvífica da pregação impõe-se a designação de “evangelho” (evangelion)[31], cujo significado, lato sensu, implica “notícia”[32] enquanto conteúdo que contempla o anúncio do começo de uma “nova era”[33], tendo em vista que, segundo a sua construção etimológico-literária grega, converge para a identificação a respeito do fato de tornar conhecida as benemerências do imperador romano. Tal correlação de fatores político-jurídicos e ético-religiosos converge para um processo histórico-cultural que culmina na vinculação da referida expressão às fronteiras da Bíblia Grega, na medida em que na descrição da mensagem da libertação de Israel há o recurso a evangelizesthai (“proclamar”) como verbo correspondente[34].

Sobrepondo-se ao caráter de uma edificação moral ou psicológica dos indivíduos, a proclamação do evangelho implica uma relação envolvendo o pregador e o público e o público e o tema em um processo que escapa às fronteiras que encerram a propaganda religioso-filosófica da época[35] e converge para a impossibilidade de dissociação ou ruptura entre a validade da pregação e a credibilidade do pregador, conforme o exposto na I Epístola de Paulo aos Tessalonicenses, haja vista a necessidade de estabelecer distinção entre a pregação[36] da mensagem salvífica e a pregação cínica itinerante. Dessa forma, não detendo-se em benefícios ou vantagens pessoais, ao pregador que anuncia o evangelho impõe-se o estabelecimento de uma comunidade cuja união esteja fundada no amor fraternal[37], na medida em que “a igreja não é um clube isolado de indivíduos religiosos, mas uma participação na função escatológica do apóstolo e no destino escatológico de outras igrejas, por meio do padecimento de perseguições e da propagação do evangelho” (KOESTER, 2005, p. 128).

Guardando correspondência com o kerygma primitivo[38] em um construção literário-teológica que, desse modo, converge para as fronteiras da historicidade, o esquema adotado por Lucas como historiador na formulação das prédicas de Pedro escapa a condição de criação historiográfica autônoma e implica a elaboração de tradições em função da necessidade de testemunhar o acontecimento fundador da igreja em um processo que, por essa razão, encerra diversos elementos incompatíveis em relação ao seu pensamento teológico e se mantém como possibilidade sob a égide de uma estrutura que constitui o âmago da visão teológica de Lucas. Assim, consistindo na essência da pregação missionária, o testemunho pascal[39] encerra quatro fatos que se inter-relacionam em sua construção, a saber, a morte de Jesus[40] e a responsabilidade dos judeus em sua ocorrência[41], a ressurreição de Jesus por Deus[42], o cumprimento da profecia escriturística,[43] o testemunho dos discípulos[44], cujo conteúdo fundamenta o chamado ao arrependimento dirigido para Israel pelo seu Deus em um movimento que envolve o cumprimento da Sua promessa[45].

Convergindo o chamado ao arrependimento para as fronteiras identitárias que encerram em sua condição originária a influência determinante da referência à consumação iminentemente próxima e que implica a vinda do messias Jesus em um movimento que se sobrepõe ao testemunho pelos Atos dos Apóstolos[46], a correlação abrangendo os acontecimentos envolvendo páscoa e pentecostes instaura a experiência do evento escatológico para os discípulos, cuja ambiência, a despeito da expectativa de um fim do mundo que ameaça concretizar-se, mantém-se sob a égide do testemunho pascal e da esperança da consumação[47] e da vinda do Senhor[48].

Consistindo na revelação do Crucificado como representante de Deus e guardando o sentido de que se trata de uma tradição que testemunha processos salvíficos a partir da fé, segundo Paulo, o Evangelho, em virtude de sua natureza, constitui tradição pneumático-kerygmática enquanto “conteúdo” que escapa às fronteiras que encerram formulações doutrinárias, cuja transmissão se circunscreve à pregação em um movimento que não converge senão para a produção de pregação[49].

Nesta perspectiva, se no registro de Gálatas (Capítulo 1) Paulo enfatiza a revelação em uma construção literário-teológica que se sobrepõe a um judaísmo que tende a se legitimar historicamente, na Primeira Epístola aos Coríntios sublinha a tradição histórica em contraposição ao pneumatismo que não guarda raízes nas fronteiras da História, o que implica uma correlação que encerra a condição de complementaridade através de uma intersecção que se impõe a sua própria existência[50] cuja experiência mostra que o Evangelho consiste, simultaneamente, tanto em tradição histórica como em kerygma pneumático[51].

Contanto que é notícia do caminho, obra e pessoa de Jesus, portanto, de processos que também são históricos, o Evangelho só pode ser transmitido como tradição histórica formulada. Tal tradição, porém, se torna Evangelho, mensagem salvífica de Deus, somente quando encontrada na forma de mensagem querigmática. (GOPPELT, 2002, p. 293)

Encerrando como conteúdo o reino de Deus e a sua vinda, o Evangelho sintetiza o kerygma neotestamentário em uma construção literário-teológica que assinala o caráter da palavra de Deus[52] enquanto objeto da pregação de Jesus, tanto quanto de seus apóstolos, como a palavra do reino[53], segundo Ridderbos, que atribui a proclamação do reino desenvolvida por Jesus como expressão da “totalidade de sua revelação de Deus” (2010, p. 9).

Convergindo para a possibilidade que atribui ao culto e as suas condições a ambiência necessária para o processo de cristalização da exortação e da instrução ético-cristã através da construção homílica ou prédica enquanto sermão, ao kerygma no contexto neotestamentário implica a extração de suas consequências éticas, haja vista a pressuposição do seu conhecimento e admissão pela congregação, constituindo-se o fundamento tanto do louvor quanto da oração em uma construção que assinala a correspondência da homilia[54] em relação à prática exortativa no sentido de que a comunidade possa “tornar-se aquilo que, graças à proclamação do Evangelho, eles eram essencialmente” (MOULE, 1979, p. 43, grifos do autor).

Do kerygma cristológico enquanto anúncio que correlaciona a epifania de Cristo e a Parousia e encerra Deus como loquitur em Barth

Anúncio envolvendo um acontecimento por se realizar (Ankündigung), eis o que se impõe à pregação da Palavra de Deus em um processo que pressupõe que Deus fala através de uma relação que atribui ao homem a função de anunciar (Ankündigen) tal situação, convergindo para as fronteiras que implicam uma construção que se sobrepõe ao sentido de anúncio do que é (Verkündigung).

Se ao anúncio envolvendo um acontecimento por se realizar escapa o sentido que encerra o apelo em face de uma decisão existencial do interlocutor, a pregação guarda a possibilidade de consistir em um apelo, na medida em que, na acepção da palavra, traz em sua constituição tal significado em uma construção que assinala a decisão existencial como um processo que emerge da relação entre o humano e Deus[55], convergindo para um movimento que se impõe através de um conceito teológico cujo fundamento, sobrepondo-se às fronteiras de uma experiência que se esgota em sua tangibilidade, é a fé[56], que implica, em suma, a realização de um discurso que tem como telos a verdade divina.

Sobrepondo-se ao caráter que encerra a operação implicada na leitura ou no exercício exegético, o discurso que converge para a pregação guarda raízes nas fronteiras da liberdade e da pessoalidade através de uma construção epistêmico-existencial que emerge da experiência de cognição instaurada pela relação do ser humano em sua existência singular com o texto da Escritura em um processo que mantém correspondência com a sua individualidade concreta e subjetividade empírica, que pressupõe uma missão cuja atividade equivale ao trabalho apostólico e à função profética que em si carrega[57].

Seu discurso é livre, pessoal. Não é nem uma leitura nem uma exegese. Ele diz a Palavra que ele entendeu no texto da Escritura tal como ele a recebeu para si mesmo. Sua missão, como pregador, é semelhante – de algum modo – à dos apóstolos. Ele também tem – num outro plano – uma função profética (BARTH, 1963, p. 4).

Correlacionando em sua constituição enquanto ato Palavra de Deus e palavra humana, a pregação se mantém irredutível ao arcabouço de uma definição teológica, na medida em que o seu exercício escapa às fronteiras da atividade reflexiva em um movimento que traz Deus como fundamento existencial e que, dessa forma, se sobrepõe aos aspectos ético-lógicos, intelecto-afetivos, volitivo-conscienciais, entre outros que tendem a sujeitar a Divindade ao viés da inteligibilidade racional e ao paradigma de um conceito que, como tal, desde a sua condição originária, guarda a capacidade de desconstruí-lo em sua imediatez autorreveladora e autocomunicadora em face da petrificação religiosa de uma ideia-ídolo.

Caracterizando-se como Palavra de Deus e palavra humana em uma construção epistêmico-existencial que implica o pensamento em um movimento que envolve ascensão e descensão, a pregação encerra uma missão que se mantém sob a égide de um modus operandi que converge para as fronteiras da fragmentação e da imperfeição através de um processo que traz como base ético-lógica o Nome de Deus e tem como fundamento conteudístico-formal a Escritura Sagrada, consistindo a sua exposição uma situação que guarda correspondência com a noção de anúncio e equivale à missão de anunciar um acontecimento por se realizar (AnKündigung) em uma operação que carrega o pressuposto de que como é Deus que se dispõe a falar e dizer alguma coisa o entendimento estará sob a sua reponsabilidade.

A indicação da verdade divina, eis o que se impõe à pregação que, nesta perspectiva, encerra um conceito que escapa ao caráter de um fundamento baseado na experiência, na medida em que se mantém sob a égide de um conceito teológico em um movimento que se circunscreve às fronteiras da fé e, embora como tal, se sobreponha à condição de um apelo propriamente em um processo que implica decisão, esta guarda possibilidade de emergir enquanto exercício cuja origem não envolve senão a graça divina e o acontecimento correspondente à relação humano-divina ora imbricada.

O evangelho é, apenas, digno de fé. [O evangelho não pode ser assimilado, apropriado, pela análise intelectual, por deduções lógicas ou por elucubrações indutivas ou ainda, por convicção intuitiva; nem por sugestão, por exposição, por ensino ou exemplo, mas unicamente pela fé. O evangelho é totalmente estranho à natureza das coisas deste mundo nosso conhecido, por isso não pode ser apreendido senão pela fé e, portanto, para ser aceito é preciso que se creia nele. A única alternativa à sua aceitação pela fé é a sua rejeição]. (BARTH, 2008, p. 43-44)

Se a função do pregador se sobrepõe ao caráter de um movimento cujo fim é a revelação de Deus em um processo que se lhe atribui a condição de mediador, a pregação enquanto evento encerra Deus como loquitur, tendo em vista que Deus consiste em “sujeito” e “objeto”, além de se impor como “termo médio”, na medida em que a revelação enquanto epifania tem origem no próprio Deus, que constitui também o fundamento da revelação do porvir enquanto Parousia, convergindo para o princípio hermenêutico que, dessa forma, circunscreve ao sujeito divino o acontecimento em questão como sua produção no ínterim relacional que envolve a primeira e a segunda vinda.

Escapando ao caráter de uma construção teórico-conceitual cujo fim seja empreender uma demonstração intelecto-especulativa capaz de encerrar a verdade de Deus e transmiti-la como prova para o interlocutor, a pregação bíblico-teológica se sobrepõe à condição estético-artística implicada em uma imagística mítico-poética ou psico-cognitiva enquanto processo de sensibilização imaginativo-consciencial, convergindo para um dever-ser que, baseado no pressuposto que à verdade de Deus somente Deus pode manifestá-la, se contrapõe ao poder-ser do pregador em seu exercício artístico-retórico e instrumentalidade científico-oratória no sentido de contribuir para a sua expressão conteudístico-formal como tal.

Então, na verdade, ainda mais solidamente nosso coração se solidifica, quando refletimos que somos arrebatados de admiração, mais pela dignidade do conteúdo que pela graça da linguagem. Ora, isso não se deu sem a exímia providência de Deus, ou seja, que os sublimes mistérios do reino celeste fossem, em larga medida, transmitidos em termos de linguagem singela e sem realce, para que, se fossem eles adereçados de eloqüência mais esplendorosa, os ímpios não alegassem cavilosamente que aqui impera apenas força desse gênero.

Ora, quando essa simplicidade não burilada e quase rústica provoca maior reverência de si que qualquer eloqüência de oradores retóricos, como há de julgar-se, senão que a pujança da verdade da Sagrada Escritura se manifesta de forma tão sobranceira, que necessidade nenhuma há do artifício das palavras? (CALVINO, 2006a, I, VIII, 1, p. 88)

Cabendo à pregação a construção do Reino de Deus, a possibilidade de instauração da realidade de Deus não se mantém sob a égide do pregador, nem constitui a sua tarefa, propriamente, na medida em que o que se impõe é a autenticidade da mensagem enquanto tal (kerygma) em um processo que encerra a comunicação de “vida”, o que implica a necessidade de desvelamento da situação humana e da sua condição diante de Deus em um movimento que encerra limites e demanda a consciência de que Deus é o agente enquanto autor da obra em sua realização e de cujo desenvolvimento o pregador participa, em última instância, nesta condição, em virtude de sua obediência.

Se os profetas e apóstolos, em virtude do momento histórico vivenciado, puderam instaurar uma experiência testemunhal baseada na relação presencial propriamente e que envolve os sentidos físicos tais como visão e percepção sensorial, a pregação atual não guarda distinção qualitativa em relação à mensagem profético-apostólica senão pelo fato de que, baseado na Escritura, o pregador contemporâneo cumpre a tarefa de testemunhar da revelação.

O pregador é chamado a viver uma aventura com a Bíblia, há um intercâmbio contínuo entre ele e a Palavra de Deus. Quando falamos em mobilidade, queremos dizer, ser dócil a esse movimento da Palavra, deixar-se levar através das Escrituras. (BARTH, 1963, p.25)

Encerrando a fala de Deus, a palavra do pregador se mantém sob a égide profético-apostólica, independentemente da sua condição humana como pastor, por exemplo, emergindo a mensagem nas fronteiras que assinalam, em última instância, um ato do próprio Deus, tendo em vista a automanifestação de Cristo enquanto tal no referido acontecimento em um movimento que escapa a qualquer tipo de iniciativa autônoma envolvendo um fim teórico-especulativo baseado em um tema, um assunto, tanto quanto em relação a um fim prático-objetivo enquanto processo capaz de produzir uma determinada atitude, na medida em que tais objetivos se contrapõem à própria vontade de Deus para a pregação.

Tendo em vista o princípio hermenêutico que atribui à Escritura a capacidade de falar por si e a pregação o locus de expressão, a mensagem não deve consistir senão em uma explicação da Escritura em um movimento que se sobrepõe à produção discursiva sobre o conteúdo escriturístico e envolve o próprio conteúdo escriturístico, o que implica a possibilidade não de “dizer” senão de “redizer” em um processo que demanda a exploração da particularidade em si da construção textual.

Trata-se de escutar o que está dito no texto. Comecemos pela simples leitura, meditando palavra por palavra. É aí que está a matéria da nossa pregação. Ler o texto, mas no original. Toda tradução é uma fonte secundária e representa já um verdadeiro comentário. (BARTH, 1963, p.32)

Se escolha do texto encerra a possibilidade de risco envolvendo um processo que implica a identificação do pregador com um determinado conteúdo em detrimento de qualquer outro porventura passível de indicação, o que se impõe é a necessidade de que o referido movimento não seja reduzido à transmissão de ideias pessoais sob a acepção de Palavra ou Mensagem de Deus, haja vista o caráter paradoxal de um acontecimento que pressupõe a comunicação de Deus em relação a sua vontade enquanto fala de Deus por si e traz como base conteudístico-formal uma construção textual em sua particularidade diante de uma comunidade em sua especificidade identitária histórico-cultural, econômico-social, político-jurídica e ético-religiosa na concreticidade de sua existência como tal.

A Bíblia é o único documento da Revelação, mas um documento suficiente. É por isso que nós a chamamos Escritura Santa, a Palavra de Deus que vem até nós. Se se compreende que este livro é realmente o testemunho da Palavra de Deus, parece inútil falar do assunto e do tema do sermão, não há um assunto, senão um tema: A Revelação de Deus, Jesus Cristo. (BARTH, 1963, p.35)

Devendo guardar correspondência com a Revelação, a pregação implica o fato de que tal processo está fundado pelo próprio Deus em sua vontade, na medida em que escapa ao pregador produzir o acontecimento senão apenas testemunhá-lo, visto que se trata de autorrevelação de Deus em um movimento que encerra obediência enquanto condição conteudístico-formal de realização em uma relação que, baseada na soberania de Deus, se sobrepõe ao sentido de neutralidade e parceria e converge para a instauração da experiência do kerygma enquanto anúncio que, irredutível ao caráter informacional ou magisterial, emerge como evento que estabelece correspondência entre a epifania de Cristo e o Dia do Senhor.

Convergindo para as fronteiras que encerram o acontecimento da autorrevelação de Deus através da epifania de Cristo e por intermédio do Dia do Senhor, a pregação neotestamentária enquanto kerygma guarda uma origem e um princípio de caráter absoluto que traz como fundamento o fato de que o Logos se fez carne em um processo no qual Deus se torna humano e corporifica a sua “natureza” no movimento de apropriação do humano-existencial em sua individualidade empírica e realidade concreta. Tal relação se sobrepõe à Queda como causa do estado atual da humanidade e à Perdição como destino através da morte de Cristo, na medida em que se trata da última “palavra” ou “mensagem” do evento em questão, a saber, o fazer-se carne do Logos, na medida em que, dessa forma, se impõe a superação da falta e do castigo em função da realização da remissão e da reconciliação, constituindo-se crer a experiência que implica, em última instância, o reconhecimento de tal realidade.

A reconciliação como poder sobre os homens em sua proclamação (e, assim, a Ressurreição ou a mensagem da Ressurreição) é o evento que provê a Igreja, e não apenas provê, mas, também, a sustem, e não apenas a sustem, mas, também, a renova. Como o Ressuscitado, Cristo é Senhor de Sua Igreja; invoca e a conduz; dirige e a regula, de uma vez por todas, ainda assim, também, mais uma vez, diariamente, Os três ofícios de Cristo diferenciados pela mais antiga Dogmática encontram-se mutuamente neste lugar de maneira a não serem quase distinguíveis. O Profeta (Que é a ressurreição senão o ato decisivo da profecia de Jesus Cristo?) anuncia o Sacerdote (Aquele que se apresenta ao homem perante Deus, e a Deus perante o homem) de modo a proclamá-lo como tal, Rei. (BARTH, 2005, p. 150-151, grifos do autor)

Tendo em vista uma origem e um princípio de caráter absoluto que traz como fundamento o fato de que o Logos se fez carne, ao pregador cabe uma atitude receptiva e um saber servil enquanto reconhecimento da anulação do pecado e destruição do erro em um processo que, sobrepondo-se ao pecado e ao erro em si mesmos, implica o anúncio do perdão de Deus como realidade absoluta.

À pregação o que se impõe é a impossibilidade de ruptura teórico-existencial envolvendo o Evangelho e a Lei[58], tendo em vista que o anúncio do Evangelho implica o entendimento da Lei[59], convergindo para um movimento que, irredutível à convicção, à seriedade e ao entusiasmo do pregador, guarda raízes no fato de que o Logos se fez carne, sob cuja égide o kerygma envolve um acontecimento que se torna o locus da experiência existencial de encontro entre Cristo e o ser humano em sua individualidade concreta que traz a iniciativa de Deus neste sentido, na medida em que se a autorrevelação de Deus na epifania de Cristo enquanto fazer-se carne do Logos consiste na origem e no princípio o fim constitui o cumprimento da revelação e da redenção.

Deus não deu a conhecer aos homens a Palavra com vistas a apresentação momentânea para que logo em seguida a abolisse com a vinda de seu Espírito; pelo contrário, enviou o mesmo Espírito, pelo poder de quem havia ministrado a Palavra, para que realizasse sua obra mediante a confirmação eficaz dessa mesma Palavra. Dessa forma, Cristo abriu o entendimento aos dois discípulos de Emaús [Lc 24.27,45], não para que, postas de parte as Escrituras, se fizessem sábios por si mesmos, mas para que entendessem essas Escrituras. (CALVINO, 2006a, I, IX, 3, p. 101)

“Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre.” (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, Hb 13.8, 1999, p. 1483), eis o registro que encerra a autorrevelação de Deus na epifania de Cristo e no Dia do Senhor, a saber, Parousia, cujos eventos, correlacionados, se impõem à pregação como kerygma em um movimento que instaura correspondência entre cristologia e escatologia através de uma experiência teórico-existencial que converge para a orientação da fé neste sentido em um processo que traz como base conteudístico-formal o fazer-se carne do Logos e guarda a expectativa da Parousia, à medida em que envolve a certeza baseada no primeiro Advento, mas não se circunscreve à estabilidade da sua realidade, visto que implica a pré-ocupação em relação ao porvir e ao segundo Advento.

Tendo em vista que o desenvolvimento humano-existencial baseado na autorrevelação de Deus na epifania de Cristo enquanto processo que envolve o fazer-se carne do Logos, é a fé que funda a vida como experiência existencial que encerra como origem e princípio e fim Cristo em um movimento que se sobrepõe ao visível[60] e converge para a instauração de uma certeza que, longe de se restringir à temporalidade presente, implica a expectativa envolvendo o porvir enquanto realização da salvação em sua plenitude por intermédio de Cristo na autorrevelação da Parousia, o Dia do Senhor.

Se uma construção literário-religiosa usa como princípio hermenêutico bíblico-teológico uma perspectiva que se circunscreve à autorrevelação de Deus na epifania de Cristo, a pregação correspondente tende às fronteiras do dogmatismo e da experiência ético-religiosa[61] em um processo que subtrai à proclamação a expectativa envolvendo “um novo céu” e “uma nova terra” que caracteriza a Parousia e que deve se impor ao kerygma enquanto anúncio que correlaciona a epifania de Cristo e o Dia do Senhor e torna a mensagem a comunicação da Revelação.

Do kerygma cristológico enquanto proclamação escatológico-existencial em Bultmann

Tendo em vista a tradição sinótica, à pregação de Jesus impõe-se a proclamação da comunidade primitiva em um movimento que encerra um anúncio que guarda raízes nas fronteiras do conteúdo da mensagem de Jesus, convergindo, dessa forma, para um processo que implica a sua transformação em mestre e profeta através de uma construção discursiva que simultaneamente assinala que, para além das referidas caracterizações, Jesus é o Messias, consistindo em um fato decisivo que o portador da mensagem torna-se o seu conteúdo essencial, na medida em que, conforme Bultmann argumenta, “o anunciador tornou-se o anunciado” (BULTMANN, 2008b, p. 74, grifos do autor).

Sobrepondo à atuação de Jesus na terra a ideia envolvendo a sua vinda como Messias, a comunidade primitiva proclama o anúncio do Messias como Messias vindouro, ou seja, como o “Filho do homem”, na medida em que a expectativa não implica a sua volta propriamente como Messias, haja vista que a sua atividade no contexto histórico-cultural e segundo o viés geográfico-cronológico escapa a atribuição de um movimento messiânico em um processo que assinala, de acordo com Bultmann, que a referida pregação, que guarda correspondência com Jesus como Messias ou o “filho do homem”, “permanece inteiramente dentro dos moldes da esperança escatológica judaica” (BULTMANN, 2008b, p. 75, grifos do autor).

Nesta perspectiva, o que se impõe não é senão, em relação ao Messias, a transposição do conteúdo figurativo literário-teológico enquanto construção mítico-religiosa indeterminada para o ser humano em sua concreticidade histórico-cultural, haja vista a ressurreição de Jesus de Nazaré em um movimento que encerra a sua crucificação enquanto mestre e profeta pelos romanos e converge para a sua exaltação por Deus como “Filho do homem” cuja responsabilidade implica a vinda e o julgamento, tanto quanto a salvação e o reino de Deus. Tal construção teológico-religiosa não apresenta ainda uma nova compreensão da relação com Deus, na medida em que conserva a mediação em sua exterioridade de forma correspondente ao judaísmo e a sua esperança concernente ao juiz e salvador em um processo que assegura, em suma, a possibilidade de que, brevemente, haverá a realização de antigos sonhos dos judeus.

Tornando-se o anunciador da exigência radical de Deus, Jesus constitui-se, porém, tanto como a possibilidade de concretização de antigos sonhos dos judeus quanto o obstáculo, na medida em que, conforme esclarece Bultmann, “o ‘como’ de sua messianidade não podia ficar indiferente ao fato de o Messias ser aquele que, simultaneamente como mestre e profeta, explicava a vontade de Deus com clareza insofismável” (BULTMANN, 2008b, p. 75, grifo do autor), haja vista que a sua condição de mestre e profeta enquanto concomitantemente Messias encerra em si a relação envolvendo o Evangelho e a lei em um movimento que, mantendo esta última sob a luz do conhecimento que ora emerge, implica a identificação do anúncio da salvação como “evangelho”.

Se a messianidade de Jesus se sobrepõe a sua condição envolvendo profeta e mestre, escapando ao fundamento de tal fato, ao conteúdo da sua pregação enquanto oposição em relação ao legalismo judaico, impõe-se uma fé judaica veterotestamentária baseada em Deus de caráter autêntico em uma construção literário-teológica que encerra a radicalização que concerne aos grandes profetas em um processo que implica a individualização da relação com Deus, haja vista que sobrepõe o indivíduo à coletividade e interpreta a salvação escatológica como reinado de Deus, não a circunscrevendo, em suma, as fronteiras do porvir.

Nesta perspectiva, longe de atribuir ao reino de Deus a condição de uma grandeza passível de evolução histórica enquanto processo cuja instauração guarda correspondência com a necessidade de intervenção humana, Jesus em sua pregação assinala, de acordo com a teologia escatológico-existencial de Bultmann, a absoluta independência do reinado de Deus em face de qualquer tipo de contributo humano acerca do seu progresso, convergindo para um anúncio que encerra o tempo da decisão e implica o chamado à decisão, na medida em que em Sua pessoa Jesus consiste no sinal do tempo e a exigência diante de tal condição de irrupção do reino de Deus envolve um “estar de prontidão” ou um “preparar-se” enquanto obediência escatológica como realização da vontade de Deus. (MARIANO DA ROSA, 2020, p. 163, grifos do autor)

Mantendo sob a égide da construção literário-teológica veterotestamentária e do judaísmo os conceitos envolvendo Deus, mundo e ser humano, além de lei e graça, penitência e perdão, a despeito da radicalidade da sua formulação, se a sua leitura crítica da lei guarda raízes nas fronteiras da discussão dos escribas, a sua pregação escatológica permanece nos limites do apocalipsismo judaico, segundo Bultmann, que assim conclui: “Apenas assim se pode entender que, em Paulo e João, o ensino do Jesus histórico não tem nenhuma ou apenas muito pouca importância - enquanto, por outro lado, o judaísmo moderno pode perfeitamente apreciar a Jesus como mestre" (BULTMANN, 2008b, p. 76).

Sobrepondo-se ao fato envolvendo a sua “personalidade” e a suposta capacidade de exercer influência sobre o público através de uma força impressionante como base para os seus ensinamentos em uma atuação que encerra religiosidade e obediência como pressuposição para a incitação ao “discipulado” diante da receptividade do processo, o valor messiânico de Jesus para a comunidade primitiva é irredutível à compreensão da cruz enquanto feito heróico como sacrifício em função de uma causa, na medida em que escapa ao suposto poder de sua “personalidade”, tanto quanto, conforme assinala Bultmann (2008b, p. 76), “ao mistério de seu ser” enquanto forma do “numinoso”, convergindo para um kerygma que implica, em última instância, o anúncio de Jesus como mestre e profeta e “Filho do homem” vindouro.

Se a condição de milagreiro ou exorcista enquanto atuação que encerra caráter “numinoso”, lato sensu, não guarda relevância para o kerygma da comunidade primitiva, cuja proclamação não se circunscreve ao “homem divino” (θειος ανηρ) do mundo helenista, na medida em que, segundo Bultmann, “o mundo judaico veterotestamentário não conhece heróis nos termos da cultura grega, nem homines religiosi no sentido do helenismo” (2008b, p. 77), o que implica um processo de adaptação concernente a figura de Jesus através do desenvolvimento da referida lenda em solo helenista.

Dessa forma, o que se impõe ao kerygma de Paulo ou de João, ou, lato sensu, ao kerygma neotestamentário, não é senão que a personalidade de Jesus e a sua imagem escapam à tradição da comunidade primitiva, convergindo para a impossibilidade de sua reconstrução cuja tentativa se reduz a subjetividade e ao seu jogo de fantasia, o que implica a interpretação de que a comunidade em questão não tem interesse “na singularidade da posição e atuação históricas daquele cuja ‘vinda’ como ‘Filho do homem’ em breve porá um fim a toda história do mundo”, conforme assinala Bultmann (2008b, p. 77, grifos do autor). Além disso, cabe registrar que a fé da comunidade primitiva em Jesus como Messias também não traz como fundamento o entendimento envolvendo a sua aparição histórica sob a égide de personalidades e eventos históricos enquanto efeitos da graça de Deus nas fronteiras das referências veterotestamentárias e do judaísmo, encerrando diferenciação o surgimento e a atuação de Jesus em relação a acontecimentos como a vocação de Moisés, o êxodo do Egito e a legislação no Sinai ou o despertamento de reis e profetas.

Dessa forma, se a dogmática messiânica judaica encerra indícios para a concepção em questão em uma construção teológico-religiosa que implica a correlação envolvendo Jesus como Messias e Moisés como o “primeiro redentor” ou a comunidade cristã e Israel no deserto ou o Messias-Filho do homem enquanto descendência de Davi, o que se impõe é um movimento de reflexão teológica que guarda posteridade concernente à comunidade primitiva. Tal conclusão encerra como endosso e garantia o fato de que somente advém de modo decorrente da sua instauração, convergindo para uma leitura que, segundo Bultmann, assinala que “não se trata, nesses casos, da paralisação de processos históricos” (2008b, p. 77), mantendo-se a história veterotestamentária sob o princípio interpretativo que atribui ao seu desenvolvimento, tendo em vista o evento do tempo escatológico, o caráter de “prefiguração”.

Se o valor de personalidades e acontecimentos sob a égide veterotestamentária corresponde a sua influência em relação a história do povo em um processo cujo sentido envolve a condição de atos da revelação ou da graça de Deus, tendo em vista o indivíduo enquanto indivíduo que pertence historicamente ao povo e em cada qual Deus fez o que fez aos pais, ao povo como um todo, conforme a exposição da liturgia pascal do judaísmo. Dessa forma, a referência a Jesus como um ato de Deus não se impõe à comunidade primitiva, nem ao conteúdo neotestamentário, lato sensu, haja vista que a sua importância como tal implica a expectativa no que tange ao futuro enquanto esperança daquilo que como promessa assegura a possibilidade de realizar, cujo cumprimento, na ambiência do drama escatológico final, consistirá no “último ato de Deus, por meio do qual ele põe termo à história” (BULTMANN, 2008b, p. 78).

Sobrepondo-se ao sentido que encerra o kerygma de Jesus como o Messias enquanto conteúdo que se impõe à tradição veterotestamentária sob a acepção de um valor ético-religioso e literário-teológico adicional, a proclamação constitui a mensagem primária e básica que imprime o seu caráter seja em relação à tradição antiga seja no que tange à pregação de Jesus em um processo que mantém todo o passado sob outro princípio interpretativo, “desde a fé pascal na ressurreição de Jesus e com base nessa fé”, conforme sublinha Bultmann (2008b, p. 85, grifos do autor). Dessa forma, convergindo para a conclusão de que, sobrepondo-se o seu valor a doutrina ou a uma mudança no conceito do Messias, o evento decisivo consiste na própria vinda de Jesus (já ocorrida), através da qual Deus chama a sua comunidade que em si trata-se já do evento escatológico, constituindo o verdadeiro teor da fé pascal Deus ter feito do mestre e profeta Jesus de Nazaré o Messias.

Tendo em vista a teologia de Paulo, o pressuposto histórico que carrega em sua construção é irredutível ao kerygma da comunidade primitiva, na medida em que guarda raízes nas fronteiras da comunidade helenista, cuja intermediação possibilita que Saulo seja alcançado pela mensagem do Evangelho em um processo que assinala um cristianismo (cristianismo helenista[62]) que se mantém como um legado que encerra uma influência que envolve desde a sinagoga até a religiosidade pagã e que implica, principalmente, a interpretação gnóstica.

Nesta perspectiva, alcança relevância o fato de que não havia possibilidade de que a pregação missionária cristã no mundo gentílico tivesse como conteúdo o kerygma cristológico, tendo em vista que a interpretação judaica e judaico-cristã encerra o mundo gentílico e a religião gentílica nas fronteiras do politeísmo e da idolatria, na medida em que o que se impõe ao mundo gentílico é a ignorância em relação ao Deus verdadeiro, o que implica a necessidade de desenvolvimento de um trabalho missionário capaz de alcançar as comunidades que se mantém sob o domínio do politeísmo.

Correlacionando história e teologia no processo de interpretação que implica análise e compreensão da Escritura, a investigação do conteúdo escriturístico encerra como fator fundamental a correspondência envolvendo o recurso ao princípio teórico-metodológico científico da modernidade, a decomposição da construção histórico-cultural em suas partes constituintes e unidades componentes e a apreensão do documento enquanto revelação como conjunto de verdades divinas ou mistérios enquanto conteúdos-objetos da manifestação de Deus diante dos seres humanos. Dessa forma, o pensamento teológico de Bultmann e o seu procedimento investigativo encerram, no esquema em referência, a sobreposição dos dois primeiros elementos ao terceiro, cuja subestimação converge para o comprometimento da objetividade da pesquisa e o seu resultado, o qual, a despeito da pretensão de transpor as fronteiras da mitologia, mantém ainda os seus liames em um processo que conserva em condição subjacente a distorção referente ao “fazer-se” ou “tornar-se” carne do Logos[63], como também concernente ao Logos propriamente dito que, sob a acepção de “palavra”, converge para as fronteiras de um “paradoxo sem conteúdo”[64]:

Nesta perspectiva, encerrando o Lógos enquanto Palavra que guarda possibilidade de proporcionar vida através da escuta da fé, ao kerygma como palavra anunciada por Jesus de Nazaré se impõe a Verdade em sua acepção absoluta em uma construção teológica que caracteriza a vida de Jesus de Nazaré como a encarnação do Lógos, haja vista a interpretação que assinala que se João Batista se identifica como “a voz do que clama no deserto” o conteúdo do anúncio implica o próprio Lógos, que se constitui a Revelação em Si e a Verdade que se autorrevela em um processo que envolve, em última instância, a Verdade em pessoa. (MARIANO DA ROSA, 2021, p. 236, grifos do autor)

Sobrepondo-se aos fenômenos históricos e a sua mera descrição, a construção literário-teológica de Bultmann atribui a condição de mito ao conteúdo da mensagem neotestamentária, haja vista a incapacidade da análise histórica de possibilitar a compreensão de um anúncio como a pregação de Jesus acerca do Reino de Deus e a sua vinda iminente, na medida em que requer o recurso ao pensamento científico e a instauração de uma interpretação de caráter existencial, cujo processo torna-se capaz de assinalar o verdadeiro sentido da mensagem que, subjacente à cosmovisão mítica que a Escritura encerra, converge para a superação da concepção de fim de mundo e restauração cósmica, o que implica, em última instância, a exposição da situação atual do ser humano e a necessidade de fé enquanto decisão e obediência.

Encerrando a atitude do ser humano enquanto movimento que possibilita o recebimento da justiça de Deus e condição sine qua non para a sua experiência como dádiva, à fé (πίστη) se impõe o ato salvífico divino em um processo que traz em sua estrutura a obediência que envolve o reconhecimento do Crucificado como κύριος através de uma construção que demanda uma ruptura com o modus vivendi característico de sua existência e converge para as fronteiras que implicam a confissão, na medida em que guarda correspondência com a ação salvífica de Deus como objeto, se sobrepondo à concepção de um determinado estado da alma que em sua perfeição seja capaz de assegurar por si a salvação. (MARIANO DA ROSA, 2022, p. 146, grifos do autor)

Aspectos Conclusivos

Consistindo em um anúncio envolvendo um acontecimento por se realizar (Ankündigung), a pregação da Palavra de Deus encerra um processo que, segundo Barth, pressupõe que Deus fala através de uma relação que atribui ao humano a função de anunciar (Ankündigen) tal situação em um movimento que implica uma construção que se sobrepõe ao sentido de anúncio do que é (Verkündigung).

Sobrepondo-se ao caráter que encerra a operação implicada na leitura ou no exercício exegético, o discurso que converge para a pregação guarda raízes nas fronteiras da liberdade e da pessoalidade através de uma construção epistêmico-existencial que pressupõe uma missão cuja atividade equivale ao trabalho apostólico e à função profética que em si carrega, de acordo com Barth, que correlaciona na constituição do kerygma enquanto ato Palavra de Deus e palavra humana, guardando-o irredutível ao arcabouço de uma definição teológica, haja vista que o seu exercício escapa ao âmbito de uma atividade reflexiva em um movimento que traz Deus como fundamento existencial.

Nesta perspectiva, consistindo a sua exposição uma situação que guarda correspondência com a noção de anúncio e equivale à missão de anunciar um acontecimento por se realizar (AnKündigung), a pregação envolve uma operação que carrega o pressuposto de que como é Deus que se dispõe a falar e dizer alguma coisa o entendimento estará sob a sua reponsabilidade.

Dessa forma, se a função do pregador se sobrepõe ao caráter de um movimento cujo fim é a revelação de Deus em um processo que se lhe atribui a condição de mediador, a pregação enquanto evento encerra Deus como loquitur, na medida em que a revelação enquanto epifania tem origem no próprio Deus, que constitui também o fundamento da revelação do porvir enquanto Parousia, convergindo o kerygma para a construção do Reino de Deus, cuja possibilidade de instauração da realidade de Deus escapa à égide do pregador e da sua tarefa, haja vista que é a autenticidade da mensagem enquanto tal que se impõe enquanto comunicação de “vida”.

Encerrando a fala de Deus, a palavra do pregador se mantém sob a égide profético-apostólica, na medida em que a sua mensagem emerge como um ato do próprio Deus, tendo em vista a automanifestação de Cristo enquanto tal no referido acontecimento, convergindo para o princípio hermenêutico que atribui à Escritura a capacidade de falar por si, consistindo a pregação no locus de expressão, o que implica que a mensagem não deve consistir senão em uma explicação da Escritura em um movimento que se sobrepõe à produção discursiva sobre o conteúdo escriturístico e envolve o próprio conteúdo escriturístico.

Se ao pregador escapa produzir o acontecimento senão apenas testemunhá-lo, haja vista que, implicando o fato de que tal processo está fundado pelo próprio Deus em sua vontade, deve guardar correspondência com a Revelação enquanto movimento que encerra a autorrevelação de Deus, a obediência emerge enquanto condição conteudístico-formal de realização, convergindo para uma relação que traz como fundamento a soberania de Deus e implica a experiência do kerygma enquanto anúncio que se sobrepõe ao caráter informacional ou magisterial, consistindo em um evento que institui correspondência entre a epifania de Cristo e o Dia do Senhor.

Guardando correspondência com a existência e com a missão da Igreja, a pregação envolve um evento de caráter particular que, em sua completude, implica um tempo determinado na história, encerrando um horizonte geográfico-cronológico, sobrepondo-se ao sentido de um fato que sob a acepção lato sensu seja passível de reprodução independentemente do fator em questão enquanto possibilidade que perpassa os tempos e lugares em sua totalidade, consistindo em um acontecimento que se impõe como dom de Deus no desenvolvimento do processo histórico-cultural. Tal movimento escapa às fronteiras de qualquer tipo de construção teórico-conceitual filosófica ou cosmovisão antropológico-filosófica ou antropológico-sociológica, tornando inconciliável o seu sentido como proclamação da autorrevelação de Deus na epifania de Cristo e na Parousia com qualquer conteúdo experiencial da existência humana em seu estado histórico-natural.

Sobrepondo-se ao caráter de um movimento instaurado pelo ser humano no sentido de conquistar o destino que Deus apresenta pela mensagem profético-apostólica, a pregação enquanto kerygma dispensa qualquer esforço humano para a produção de conteúdo literário-teológico como contributo para o cumprimento da Revelação, tendo em vista que a tarefa que cabe ao pregador como tal envolve o evento único como dom da graça de Deus. Tal construção é irredutível aos arcabouços paradigmáticos filosóficos, políticos ou estéticos e as suas ideias e valores, na medida em que se a Igreja se impõe como locus da pregação, em seu âmbito emerge relações interindividuais e intersubjetivas que, constituindo ordens familiares, organizações sociais, estruturas étnico-raciais, se mantém sob a condição que se caracteriza como passível de juízo em virtude da Revelação da Palavra, carrega simultaneamente, em face desta Revelação como tal, a reconciliação, ora criada pela pregação cujo viés eclesiástico advém da sua conformidade à Revelação.

Onde a vida da Igreja está exaurida no auto-serviço, tem-se o gosto de morte; o elemento decisivo foi esquecido, de que a vida inteira é vivida apenas no exercício do que chamamos ministério de embaixador da Igreja, proclamação, kerygma. Uma Igreja que reconhece sua comissão não desejará, nem estará apta a petrificar em quaisquer de suas funções, para ser uma Igreja em interesse próprio. Há o "grupo dos crentes em Cristo"; mas este grupo foi enviado: "Ide e pregai o Evangelho!". Ele não diz, "Ide e celebrai o ministério!"; "Ide e edificai a vós mesmos com o sermão!"; "Ide e celebrai os Sacramentos!"; "Ide e apresentai-vos na liturgia, que porventura repita a liturgia celestial!"; "Ide e deixai o legado de uma teologia que possa gloriosamente se desdobrar como a

Summa de Thomas de Aquino!" Claro, não há nada que proíba tudo isto; pode haver uma boa causa para fazer tudo isto; mas nada, nada afinal para seu interesse próprio! Nela, todas aquelas coisas devem prevalecer: "Pregai o Evangelho a toda criatura!" A Igreja corre como o arauto para entregar a mensagem. (BARTH, 2006, p. 211, grifos do autor)

Guardando correspondência com a pregação através de uma relação teológico-eclesiástica que se impõe à construção identitária da Igreja como instituição sociocultural e corpo místico-transcendental, o sacramento sustém a pregação enquanto kerygma, à medida em que atribui sentido ao acontecimento em questão em um movimento que converge para o seu esclarecimento, tendo em vista que, irredutível à palavra, consiste em um ato que encerra materialidade e que, dessa forma, mantém visibilidade em sua realização, tornando-se passível de testemunhalidade in loco, constituindo-se, em última instância, o sinal visível que remete ao evento da Revelação[65].

À relação teológico-eclesiástica que encerra pregação e sacramento o que se impõe é um sentido que não se circunscreve senão às fronteiras da igreja, na medida em que, tal como Barth afirma, “não se pode saber o que é a pregação, sem se saber o que é sacramento”, tendo em vista que não há pregação “senão onde o sacramento a acompanha e a esclarece”, constituindo-se o batismo enquanto tal a confirmação do pertencimento do ente humano em sua singularidade à igreja. Tal processo encerra o começo da vida que, sobrepondo-se ao nascimento (biológico), implica a instauração da correspondência envolvendo ambos, Revelação e humano, através de uma situação determinada, convergindo para a conclusão de que a pregação extrai a sua substância do sacramento, que consiste em uma referência, em ato, no tocante ao evento da Revelação, guardando em palavras o mesmo significado do sacramento, pois constitui o seu comentário e interpretação.

Contrapondo-se à abordagem de caráter histórico-filosófico, Karl Barth instaura um princípio hermenêutico que encerra a possibilidade de compreensão através de um processo que guarda capacidade de tornar claro e evidente o significado do conteúdo do texto, convergindo para as fronteiras de uma interpretação que se sobreponha ao abismo histórico existente e possa atribuir à mensagem um caráter contemporâneo em um movimento que exclui a condição de observador do agente exegético-hermenêutico e demanda um diálogo entre este e o documento fundado no objeto, o que implica uma relação que escapa à neutralidade, haja vista o status de Deus como Deus!

Convergindo para as fronteiras que encerram o logos e a possibilidade de transmissão da palavra de Deus como kerygma cristológico enquanto anúncio que correlaciona a epifania de Cristo e a Parousia, a hermenêutica de Barth implica a contemporaneidade como princípio, sobrepondo-se ao conteúdo histórico neotestamentário, na medida em que a sua construção exegético-hermenêutica tende a conferir preeminência ao logos, subestimando a sua forma histórica. Tal movimento implica o sacrifício do aspecto histórico da Escritura em relação a sua condição de logos, a cujo processo de interpretação contrapõe-se Bultmann que, diante da necessidade de estabelecer a correspondência envolvendo ambos, instaura um procedimento exegético-hermenêutico que, trazendo como fundamento a investigação histórico-crítica da Escritura, impõe ao logos o caráter de kerygma.

Tendo em vista a tradição sinótica, à pregação de Jesus impõe-se a proclamação da comunidade primitiva enquanto anúncio que não encerra senão o conteúdo da mensagem de Jesus, convergindo para um processo que implica a sua transformação em mestre e profeta, na medida em que a sua construção discursiva simultaneamente assinala que, para além das referidas caracterizações, Jesus é o Messias.

Sobrepondo à atuação de Jesus na terra a ideia envolvendo a sua vinda como Messias, a comunidade primitiva proclama o anúncio do Messias como Messias vindouro, ou seja, como o “Filho do homem”, guardando correspondência com a esperança escatológica judaica, na medida em que o que se impõe não é senão, em relação ao Messias, a transposição do conteúdo figurativo literário-teológico enquanto construção mítico-religiosa indeterminada para o ser humano em sua concreticidade histórico-cultural, haja vista a ressurreição de Jesus de Nazaré. Tal processo que encerra a sua crucificação enquanto mestre e profeta pelos romanos e converge para a sua exaltação por Deus como “Filho do homem” cuja responsabilidade implica a vinda e o julgamento, tanto quanto a salvação e o reino de Deus,

Constituindo a mensagem primária e básica que imprime o seu caráter seja em relação à tradição antiga seja no que tange à pregação de Jesus em um processo que mantém todo o passado sob outro princípio interpretativo, a proclamação encerra como fundamento a fé pascal na ressurreição de Jesus, sobrepondo-se ao sentido que encerra o kerygma de Jesus como o Messias enquanto conteúdo que se impõe à tradição veterotestamentária sob a acepção de um valor ético-religioso e literário-teológico adicional. Tal concepção assinala que, sobrepondo-se o seu valor a doutrina ou a uma mudança no conceito do Messias, o evento decisivo consiste na própria vinda de Jesus (já ocorrida) em um processo no qual Deus chama a sua comunidade que em si trata-se já do evento escatológico, constituindo o verdadeiro teor da fé pascal Deus ter feito do mestre e profeta Jesus de Nazaré o Messias.

Referências 

BARTH, Karl. A proclamação do evangelho. Tradução de Eduardo Galasso de Faria e Moysés Campos Aguiar Netto. São Paulo: Editora Novo Século, 1963.

BARTH, KarlCarta aos romanos (I Parte - capítulos de I à VII). Tradução de Lindolfo Anders. 5 ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2008.

BARTH, Karl. Credocomentários ao credo apostólico. Prefácio de Robert Mcafee Brown (Revisão de Cláudio J. A. Rodrigues). São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2005.

BARTH, Karl. Esboço de uma dogmática. Tradução de Paulo Zacarias. São Paulo: Fonte Editorial, 2006.

BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada. São Paulo / Barueri: Cultura Cristã / Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

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Notas

[1] Convém registrar a observação de Moule envolvendo o kerygma: “O kérygma inicial ou proclamação era oral: quando se expandiu na forma de um Evangelho escrito, parece ter-se tornado explicativo antes que (primariamente) evangelístico. Se há exceções, estas são talvez os Evangelhos de Lucas e João, que possivelmente foram planejados para leitores não-cristãos.” (MOULE, 1979, p. 15, grifo do autor)

[2] Mc 1,15; Mt 11,5; Lc 4,16-21; 10,9; 17,21.

[3] At 2,38; 3,19 etc.; II Co 5,20; Hb 6,1.

[4] At 8,12; 28,31.

[5] At 2,36; 5,42; 8,5 etc.; Jo 20,31.

[6] At 2,36; 10,36; II,20; II Co 4,5.

[7] At 9,20; II Co 1,19; Jo 20,31.

[8] At 2,22-36; 3,12-18; 13,23-37 etc.; I Co 1,18.23; 15,1-8.11; I Tm 3,16; I Pd 1,12.

[9] Lc 24,47; At 2,38; 3,19.26; 13,38s etc.; II Co 5,19s; Rm 1,16.

[10] At 4,2; 23,6; I Co 15,12-19.

[11] Tendo em vista o termo Parousia ou Parusia, cabe esclarecer que a literatura neotestamentária estabelece uma correlação envolvendo o sentido técnico político-religioso que encerra a sua construção terminológica no mundo helenístico e as ideias tradicionais da literatura veterotestamentária a respeito do Dia de Javé através de um princípio interpretativo que encerra como fundamento a pessoa de Cristo. Dessa forma, Parousia ou Parusia, corresponde, “no grupo profano. Parousia (παρουσια de παρειναι: estar presente), sem outra determinação, significa geralmente presença ou vinda, chegada (não: volta); desde os Ptolomeus a palavra foi, no mundo helenístico, o têrmo protocolar para a visita oficial de um rei a uma província ou cidade. Tal Parousia era preparada pela construção ou pelo melhoramento de estradas, era celebrada com uma entrada triunfal, com o oferecimento de diademas de ouro, o pagamento de um tributo especial e com grandes festividades. No tempo dos imperadores a Parousia significava muitas vêzes o princípio de uma nova era, faziam-se moedas comemorativas, erguiam-se monumentos, instituía-se uma festa para perpetuar a lembrança. Embora a Parousia significasse, economicamente, um pêso muito grande para a população (que tinha de pagar tudo isso), ela tinha assim mesmo para muitos um efeito positivo, porque dava oportunidade de entregar petições ao soberano ou de lhe apresentar certas queixas. — O têrmo parousia era usado também, mas com menos freqüência, para indicar a aparição benéfica de uma divindade salvadora (epifania).” (NELIS In: DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 2014, p. 1122-1123)

[12] At 3,20s; 10,42; II Tm 4,1; II Pd 1,16.

[13] At 2,16-35; 3,21-26; 8,32-35; 10,43; 13,16-41 etc.; I Co 15,3s; Rm 1,1-4; 16,26; I Pd 1,10-12.

[14] Lc 1,2; 24,46-48; Jo 1,14; 15,27; 19,35; At l,8-21s; 2,32 etc.; I Pd 5,1; II Pd 1,16-18; l Jo 1,1-3; 4,14; I Co 15,1-8; quanto a Paulo, vide especialmente At 23,11; 26,16; I Co 9,1; 15,8s; também Hb 2,4.

[15] Κραυγάζω, προκηρύσσω.

[16] φέρει καλά νέα.

[17] ανακοινώνω, διακηρύσσω.

[18] Mc 6,30; Mt 28,20; At 4,2; 5,42; 18,11.25; 2 Tes 2,15; Col 1,28; Hb 5,12,

[19] Mt 4,23; 5,2; Mc l,21s; 4,ls; Lc 4,31; Jo 6,59; 7,14.

[20] Mc 6,2; cf. Lc 4,16-21; At 18,24s.

[21] Mt 5,2; E f 4,21-24; ver também I Tm 4,11; 6,2.

[22] At 17,2s; 18,4.10; 19,8s; 20,7.9; At 18,5; 20,21; 28,23.

[23] Lc 1,4; At 18,25.

[24] Gl 6,6; I Co 14,19.

[25] M c 16,16; At 13,46; 14,2.4; 17,4; 28,24; I Co 1,18.

[26] Mt 28.19

[27] Tg 1.18; I Pe 1.23.

[28] “A pregação é uma manifestação do poder de Deus, sobretudo pelos milagres que a acompanham. João Batista não fêz milagres (Jo 10,41), mas a atividade de Jesus é caracterizada desde o princípio por milagres (Mc 1,27.32-34.39; Mt 4,23; II,5; Jo 5,36; 10,37s; At 2,22; 10,38). Também a p. dos apóstolos e discípulos é confirmada por milagres, ainda durante a vida terrestre de Jesus (Mc 3,15; 6,13; Mt 10,8; Lc 9,1.6; 10,17-20), mas sobretudo depois de sua ascensão (M c 16,20; Jo 14,12; At 2,43; 5,12-16; 6,8 etc.; Rm 15,18s; Hb 2,4).” (KAHMAN In: DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA, 2014, p. 1212)

[29] Dessa forma, eis a advertência de Calvino: “Ora, os sinais que acompanharam a pregação dos apóstolos, no-lo ensina Marcos [16.20], foram operados para sua confirmação. De igual modo, também Lucas narra que o Senhor deu testemunho da palavra de sua graça, quando foram operados sinais e portentos pelas mãos dos apóstolos [At 14.13]. Ao que se torna muito semelhante esta palavra do Apóstolo: Anunciado o evangelho, a salvação foi confirmada, testemunhando juntamente com eles o Senhor, mediante sinais, portentos e muitos atos de poder [Hb 2.4; Rm 15.18, 19].” (CALVINO, 2006a, CARTA AO REI, I, 7, p. 29-30, grifos do autor)

[30] Dessa forma, tendo em vista a relação envolvendo kerygma e didaché, cabe recorrer em contraposição a interpretação de Moule, que afirma que “se mantivermos a distinção tradicional entre kérygma e didachê tão rigidamente, não faremos justiça à real natureza de toda a edificação cristã, a qual, ora mais, ora menos, mas continuamente, ergue pelo menos algum do material do fundamento, para usar uma metáfora, em paredes e pavimentos” (MOULE, 1979, p. 151, grifos do autor).

[31] A ocorrência da identificação da mensagem como “evangelho”, segundo Koester (2005, p. 107), guarda correspondência geográfico-cronológica com o fato referente à autodesignação da comunidade como “igreja”, sob a acepção de “ekklesia”, ambos os quais não encerram Jerusalém nem tampouco outras comunidades de língua aramaica, haja vista pertencerem ao arcabouço etimológico-literário do universo histórico-cultural grego, mas não implica senão Antioquia (At 11.19-26).

[32] Palavra que guarda raízes etimológicas no termo latino “notitia, ae” que, significando “facto de ser conhecido”, “notoriedade”, traz em sua construção “nôtus, a um”, que tem o sentido de “conhecido”, como na expressão de Cícero “aliquid notum alicui facere”, “ensinar alguma coisa a alguém”. “Nôtus”, no caso, consiste no particípio de “nosco” (originário do arcaico “gnosco”), que assinala a ideia de “começar a conhecer”, aprender a conhecer”, tomar conhecimento”, segundo as formas do presente e imperfeito, e ”conhecer”, “saber”, de acordo com as formas do perfeito. Cabe sublinhar que tal raiz, “nosco”, encerra participação na construção etimológica de conhecer, a saber, “nôscibilis, e”, cujo adjetivo implica o “que pode ser conhecido”, “cognoscível”, na medida em que “cognôsco, is, êre, gn^vî, gnîtum” traz em sua estrutura a relação envolvendo “cum” e “gnosco” no processo de formação de “nosco” que, encerrando frequentemente as formas sincopadas “cognosti, cognostis, cognorim, cognoram, cognossem, cognoro, cognosse”, tem o significado de “conhecer (pelos sentidos)”, ver, ser informado, saber, tomar conhecimento” (DICIONÁRIO EDITORA DE LATIM-PORTUGUÊS, 2001). 

[33] Convergindo para as fronteiras identitárias que encerram “um novo e único modo de ser”, eis o significado da fé sob a égide da “nova era”: “Dessa forma, à fé que se sobrepõe ao ser e à realidade como categorias ônticas fundamentais da estrutura dos objetos reais, impõe-se o Lógos que transcende a temporalidade e a causalidade (ôntica e ontológica) em um processo que não se circunscreve às fronteiras que envolvem a possibilidade do conhecimento mas que transpõe a capacidade cognitiva e a sua finitude, convergindo para uma relação que supera a imanência e o sistema de apreensão de conceitos que caracteriza a sua inteligibilidade.

Nesta perspectiva, além do seu valor soteriológico, a fé possibilita a fruição de uma liberdade absoluta na medida em que guarda capacidade de não somente se opor às restrições psicogenéticas, às prescrições étnico-culturais, às determinações histórico-sociais e às limitações econômico-políticas mas também a superá-las em um processo que se sobrepõe à noção de tempo como um movimento cíclico e se lhe atribui a condição de continuidade que, sob a égide de um Universo regido por leis, inaugura um novo e único modo de ser, que prescinde do horizonte de arquétipos e dos gestos baseados na repetição dos mitos primordiais e pressupõe a existência de Deus como um Ser Pessoal e a possibilidade da instauração de uma relação com a Divindade que tende a proporcionar a conquista da autonomia pessoal em uma construção que confere às tragédias históricas um significado trans-histórico capaz de se contrapor ao desespero produzido pelo terror incessante do Universo histórico.” (MARIANO DA ROSA, 2019a, p. 472-473, grifos do autor)

[34] Tendo em vista a relação entre Is 52.7 e Rm 10.15, segundo Koester (2005, p. 107): “E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, Rm 10.15, 1999, p. 1335)

[35] Conforme assinala I Ts 2.1-12, segundo Koester (2005, p. 128).

[36] Dest forma, cabe distinguir o sentido de pregação que, em sua construção etimológica, sob a acepção de verbo transitivo, converge para “praedîco, âs, âre, âvî, atum (prae dico)”, cujo significado envolve “dizer publicamente”, “proclamar”, “publicar”, “dizer diante de todos”. Assim, “praedicâtor, ôris (praedico)”, corresponde a “pregoeiro público”, “arauto”, “elogiador”, além de “o que evangeliza”. Correlacionado ao significado ora exposto, a construção etimológica do termo encerra também, sob a acepção de verbo transitivo, a ideia de “dizer antecipadamente”, “começar por dizer”, “dizer previamente”, assim como “predizer”, além de “ordenar”, “mandar”, “recomendar”, “exortar”, “determinar” e “notificar”, conforme designação do vocábulo latino “praedîcô, is, êre, dîxî, dictum” (prae dico)” (DICIONÁRIO EDITORA DE LATIM-PORTUGUÊS, 2001).

[37] Segundo o registro de I Ts 3.11-13, conforme defende Koester que, detendo-se na missão do pregador – no caso, o Apóstolo Paulo -, esclarece: “Paulo emprega assim imagens das relações familiares (ama de leite, pai, filhos: [I Ts 2,9-12]) — observe que em [I Ts] 2,17 Paulo aplica a imagem do órfão a si mesmo, pois está ausente da igreja!” (KOESTER, 2005, p. 128).

[38] “Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze. Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria sobrevive até agora; porém alguns já dormem.  Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo. Porque eu sou no menor dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser chamado apóstolo, pois persegui a igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo. Portanto, seja eu ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes.” (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, I Co 13.3-11, 1999, p. 1365-1366)

[39] De acordo com Goppelt, “o testemunho pascal fundamenta definitivamente a fé em Deus como Deus, i. é, como aquele que, segundo a sua promessa, chama à vida aquilo que não é” (2002, p. 252), conforme o registro escriturístico em Rm 4,17.24.

[40] Cabe registrar a interpretação de Calvino: “Propõem-se os judeus eliminar a Cristo; Pilatos e seus soldados condescendem a seu perverso anseio. Entretanto, os discípulos confessam em solene oração que todos esses ímpios nada fizeram senão o que a mão e o plano de Deus haviam decretado [At 2.28]. Como já antes Pedro pregara que ‘Cristo fora entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus’, para que fosse morto [At 2.23], como se dissesse que Deus, a quem desde o começo nada foi oculto, cônscia e deliberadamente determinara que os judeus vieram a executar, como, aliás, o reafirma em outra passagem [At 3.18]: ‘Deus, que predisse através de todos os seus profetas que Cristo haveria de sofrer, assim o cumpriu’.” (CALVINO, 2006a, I, XVIII, 1, p. 230, grifos do autor)

[41] “Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; [...]” (At 2.22-23, p. 1273-1274)

[42] “[...] ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela.” (At 2.24, p. 1274)

[43] “Porque a respeito dele diz Davi: Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado. Por isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou; além disto, também a minha própria carne repousará em esperança, porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de alegria na tua presença. Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente a respeito do patriarca Davi que ele morreu e foi sepultado, e o seu túmulo permanece entre nós até hoje. Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono, prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção.” (At 2.25-31, p. 1274)

[44] “A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis.” (At 2.32-34, p. 1274)

[45] Conforme registro de Lucas em Atos, 2,38s; 3,19; 4,12; 5,31b.

[46] “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos para serem cancelados os vossos pecados, a fim de que, da presença do Senhor, venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade.” (At 3.19-21, p. 1276)

[47] Termo que em sua construção etimológica guarda relação com o vocábulo latino “cônsummâtîô, ônis (consumo)”, que significa “acção de somar, de adicionar”, “acumulação, reunião”, “realização, execução, consumação, acabamento”, e cuja base estrutural implica “cônsummô, âs, âre, âvî, âtum”, que correlaciona “cum” e “summo” em sua formação, correspondendo a “somar”, “adicionar”, “fazer um total de”, “acabar”, “completar”, “levar ao fim”, “consumar”, além de “tornar perfeito” e “aperfeiçoar” (DICIONÁRIO EDITORA DE LATIM-PORTUGUÊS, 2001).

[48] Nesta perspectiva, Goppelt sublinha que “o alvo do testemunho missionário desenvolvido nesse contexto escatológico, foi, porém, desde o início, o batismo. Nele se deveria concretizar a conversão exigida e oferecida e, com isso, a admissão à comunidade da graça” (GOPPELT, 2002, p. 261), conforme o registro de Lucas em At 2,38: “Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.” (BÍBLIA, At 2.38, 1999, p. 1275)

[49] Dessa forma, cabe sublinhar a observação de Goppelt, que esclarece: “Em face dessa teologia querigmática, o católico Heinrich Shlier e o patrístico J. N. D. Kelly enfatizaram I Co 15, acentuando que o Evangelho é aplicação de uma tradição fixa às respectivas situações.” (GOPPELT, 2002, p. 293, grifos do autor)

[50] “À entrada de Damasco, se lhe abrira a compreensão da elevação do Crucificado para junto de Deus e com ela o sentido da aparição histórica de Jesus. Isso, porém, foi possível somente porque já conhecia a aparição histórica através da tradição cristã. E não conhecia apenas a simples afirmação que um crucificado seria o Messias, mas também o querigma da Páscoa e, de certo, algo da tradição de Jesus, por exemplo, os elementos básicos da prédica missionária.” (GOPPELT, 2002, p. 293)

[51] “Nesse sentido, Paulo não apenas recitou a tradição, em I Co 15, mas interpretou-a querigmaticamente no decorrer do capítulo. Da mesma forma é interpretada no sentido soteriológico a tradicional descrição do Evangelho de Rm 1,2-4 nas frases temáticas da Epístola aos Romanos (l,16s) e desdobrada, nesse sentido, querigmaticamente até o fim da epístola.” (GOPPELT, 2002, p. 293)

[52] Lc 8.11

[53] Mt 13.19

[54] “O fato de que as cartas apostólicas foram, certamente, planejadas para serem lidas numa congregação reunida conduz, naturalmente, à suposição de que elas exerceriam, em tais ocasiões, a função de uma homilia.” (MOULE, 1979, p. 43)

[55] “Dessa forma, Deus emerge como uma impossibilidade categorial na medida em que escapa aos pressupostos da cognoscibilidade e se sobrepõe às fronteiras da irracionalidade, guardando correspondência com o caráter inexprimível da relação que implica a subjetividade e a Realidade-em-Si, a saber, o Absoluto que, encerrando a essência transcendente do homem, não consiste em um objeto de conhecimento senão de fé.” (MARIANO DA ROSA, 2018, p. 173)

[56] “Consistindo na busca de uma realidade que escapa à condição de objetivação em um processo que encerra a afirmação da sua existência através da mediação do mito  e da revelação (teofania), a fé implica a possibilidade de transposição do ser humano da imanência à transcendência em um movimento para além de si que envolve simultaneamente a autonegação na dimensão do finito e a autorrealização que destina a relação com o “Ser-em-Si”, Deus, cuja Realidade somente é passível de manifestação através de um movimento que longe de um processo de reificação guarde, através da relação que implica o exercício da fé em face do Absoluto, a possibilidade de abertura transcendental envolvendo a existência.” (MARIANO DA ROSA, 2018, p. 179, grifos do autor)

[57] Cabe sublinhar que, segundo a sua construção etimológica, o termo grego prophetes significa “aquele que fala aquilo que está porvir (ou adiante)”, o que implica a condição envolvendo um proclamador ou intérprete da revelação divina, guardando referência, lato sensu, “àquele que age como porta-voz”. Carregando em sua construção a possibilidade de identificar também o “vidente” ou “pessoa inspirada”, profeta implica a conotação de um prenunciador ou revelador de eventos futuros, cuja utilização prático-objetiva, afinal, determina a inteligibilidade do sentido do seu emprego e aplicação. (YOUNG In: PFEIFFER; VOS; REA, 2007, p. 1607)

[58] Dessa forma, cabe recorrer à reflexão de Calvino, que se detém na relação envolvendo o Evangelho e a Lei e assinala a improcedência de uma oposição teórico-existencial entre ambos que seja capaz de excluir a Lei, tornando-a irrelevante para a compreensão do Evangelho: “Mas, o evangelho não sucedeu a toda a lei, a tal ponto que apresentasse um meio diferente de salvação, senão que, antes, confirmasse e mostrasse ser relevante tudo quanto ela havia prometido, e desse corpo a seus delineamentos. Pois, quando diz que a lei e os profetas haviam vigorado até João [Lc 16.16], Cristo não está declarando ser os pais dignos de maldição, da qual não podem fugir os servos da lei; ao contrário, significa que foram instruídos só em rudimentos, de sorte que permanecessem muito abaixo da sublimidade do ensino do evangelho.” (CALVINO, 2006b, II, IX, 4, p. 184)

[59] Conforme pressuposto no registro do episódio envolvendo os dois discípulos no caminho de Emaús: “Então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.” (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, Lc 24.25-27, 1999, p. 1223)

[60] II Co 5.7.

[61] Tendência que, segundo Barth, caracteriza o luteranismo.

[62] Cabe registrar a observação de Bultmann a respeito da relação envolvendo o cristianismo helenista pré-paulino e o pensamento teológico de Paulo: “Por isso, ele [o cristianismo helenista pré-paulino] naturalmente não entra em cogitação em todas as suas formas como pressuposto da teologia paulina e também por isso sua importância não se esgota em ser pré-estágio para Paulo. Ele continuou vivo ao lado de Paulo e se desenvolveu, em parte por caminhos próprios, em parte também sob influência paulina. Seus diversos tipos se desdobram e encontram em parte importante representação na teologia joanina sem influência paulina - ou em Inácio de Antioquia - sob influência de Paulo” (BULTMANN, 2008b, p. 107-108).

[63] Dessa forma, convém sublinhar que “escapando à condição de um mito de transmutação e à noção que envolve uma transformação que converge para a emergência de uma terceira realidade na relação que encerra Deus e o ser humano, o processo que implica a ‘encarnação’, baseado no acontecimento que guarda raízes na identificação expressa no ‘fazer-se’ carne do Lógos, converge para a participação de Deus na condição humana em um movimento que mantém correspondência com a existência histórica e uma vida pessoal.” (Mariano Da Rosa, 2019b, p. 225)

[64] Dessa forma, cabe registrar que “na discussão hermenêutica, da década de 50, se evidenciou que aquilo que Bultmann deduzia do NT, o querigma, a palavra de Deus, para filósofos como Jaspers, ainda era mitologia. Para muitos teólogos, no entanto, o conteúdo era muito reduzido: Para Bultmann ‘o logos não se toma verdadeiramente carne, mas apenas palavra’, uma palavra cujo conteúdo no fundo apenas é um ‘paradoxo sem conteúdo’; o chamado para a decisão de fé está ameaçado de se tornar lei (§ 21,1).” (GOPPELT, 2002, p. 29)

[65] “O sacramento remete ao fato da Revelação, o qual Deus realizou. As Escrituras Sagradas remetem à qualidade da Revelação. É ocioso opor Sacramento à pregação. Eles não podem ser separados, pois são dois aspectos de uma mesma coisa.” (BARTH, 1963, p.14).