Marta Nunes da Costa
Doutorado em Ciência Política - New School for Social Research. Professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Contato: nunesdacosta77@gmail.com
Rafael Zanata Albertini
Mestre em Psicologia pela Universidade Católico Dom Bosco (UCDB). Contato: rzasdb@hotmail.com
Resumo: O tema da identidade sempre foi caro a Paul Ricoeur, que cunhou o conceito de identidade narrativa para abordar e desenvolver os aspectos históricos, poéticos, éticos e ontológicos da subjetividade humana. Esta pesquisa tem o objetivo de elucidar o conceito de identidade narrativa nas principais obras de Ricoeur em que o tema aparece – a saber Tempo e Narrativa, O si-mesmo como outro e Percurso do reconhecimento – com o auxílio de alguns de seus comentadores. Ao longo da elucidação, serão destacadas as possibilidades e os limites do conceito, bem como sua fidelidade ao estilo da “via longa” do autor.
Palavras-chaves: Hermenêutica filosófica; Paul Ricoeur; identidade; identidade narrativa
Abstract: The theme of identity has always been dear to Paul Ricoeur, who coined the concept of narrative identity to address and develop the historical, poetic, ethical and ontological aspects of human subjectivity. This research aims to elucidate the concept of narrative identity in Ricoeur's main works in which the theme appears – namely Time and Narrative, Oneself as Another and The Course of Recognition – with the help of some of his commentators. Throughout the elucidation, the possibilities and limits of the concept will be highlighted, as well as its fidelity to the author's “long way” style.
Keywords: Philosophical hermeneutics; Paul Ricoeur; identity; narrative identity
A identidade pessoal se apresenta como uma questão importante para Ricoeur em vários momentos de sua vasta produção bibliográfica. Na década de 1980, a questão ganha novos contornos com o conceito de “identidade narrativa” – um dos mais famosos do filósofo francês. O intuito, aqui, será recolher os principais momentos da abordagem em torno da identidade narrativa tomando as suas principais obras como bibliografia primária, tendo auxílio de seus comentadores como bibliografia secundária.
Após obras que já causavam um impacto significativo no mundo da Filosofia e das Ciências Humanas – particularmente Da interpretação: Ensaio sobre Freud, publicado em 1965 – Paul Ricoeur veio a se defrontar com o problema da identidade pessoal no final de Tempo e Narrativa (Temps et récit). A obra consiste numa trilogia, cujos volumes são assim intitulados: “I - A intriga e a narrativa histórica”, publicado em 1983, “II - A configuração do tempo na narrativa de ficção”, de 1984, e “III - O tempo narrado”, de 1985 – volume esse que traz o conceito de identidade narrativa.
Para compreender o ineditismo do conceito de identidade narrativa e, ao mesmo tempo, as suas raízes, importa aqui situar o momento em que o autor o elabora. Como Ricoeur mesmo descreve em sua Autobiografia intelectual, de 1995, a fase em que ele escreve Tempo e narrativa, na década de 1980, destoa muito da Fenomenologia pura de seus primeiros escritos e já se situa no que chamou de “enxerto da Hermenêutica na Fenomenologia” (RICOEUR, 1997, p. 60). Seguindo as tendências pós-hegelianas de então, ele busca referências menos totalizantes e mais indiretas para abordar o problema da subjetividade, aberto a contribuições do Estruturalismo, da Psicanálise e da Filosofia da Linguagem, entre outras. Desse modo, Ricoeur procura uma compreensão de si cada vez mais indireta, mediada pelos signos linguísticos, pelos símbolos da cultura e pelos textos, até se deparar com a necessidade de explicitar melhor a experiência humana do tempo. Em Tempo e narrativa, ele se propõe a testar sua hipótese de trabalho:
Existe, entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da existência humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. Ou, para dizê-lo de outra maneira: o tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição de existência temporal. (RICOEUR, 2012a, p. 85, grifo do autor).
Para provar racionalmente esse pressuposto de um vínculo íntimo entre temporalidade e narratividade, Ricoeur revisita as obras de Santo Agostinho e de Aristóteles na intenção de entender como as vivências da alma e o tempo do mundo se articulam nos textos narrativos. Da Poética de Aristóteles, ele toma o conceito de mimesis como imitação da experiência humana do tempo – imitação que não é apenas reprodutiva, mas criativa – para entender o modo como a experiência prática ganha autores e leitores por meio da composição da intriga (enredo).
Sobre a mímesis, Ricoeur sugere pensá-la a partir de um triplo caráter: a mímesis I, que é a prefiguração do tempo, isto é, o conjunto de ações humanas como referentes de qualquer narrativa; a mimesis II, que é a configuração do tempo, ou seja, a colocação das ações humanas na forma narrativa; e a mimesis III, que é a refiguração do tempo, isto é, a apresentação das ações narradas para o leitor ou ouvinte. Na proposta de Ricoeur, os três momentos miméticos formam um círculo hermenêutico que ajuda os sujeitos a recontarem suas histórias de vida, à semelhança de como Freud entendia o processo terapêutico paciente-analista por meio da palavra.
Essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica implica que a história de uma vida procede de histórias não contadas e recalcadas na direção de histórias efetivas que o sujeito poderia assumir para si e ter por constitutivas de sua identidade pessoal. É a busca dessa identidade pessoal que garante a continuidade entre a história potencial ou incoativa e a história expressa pela qual nos responsabilizamos. (RICOEUR, 2012a, p. 128).
Para ele, o ato humano de contar histórias existe porque “[...] as vidas humanas precisam e merecem ser contadas” (RICOEUR, 2012a, p. 129). Devido a essa dedicação em torno do tema, o psicólogo norte-americano Jerome Bruner considera Ricoeur como “talvez o mais profundo e incansável estudioso moderno da narrativa” (BRUNER, 1990, p. 46). Nesse sentido, aliás, o filósofo francês dedica boa parte da trilogia de Tempo e Narrativa para justificar a importância tanto das narrativas históricas como das narrativas ficcionais no processo de autocompreensão humana. Finalmente, a conclusão do volume III não se limita a resumir a trilogia, mas apresenta algo novo, a que Ricoeur denomina de “rebento” da união entre história e ficção: o conceito de identidade narrativa – aplicável tanto à identidade pessoal como coletiva.
O sujeito aparece então constituído simultaneamente como leitor e como scriptor de sua própria vida, conforme o desejo de Proust. Como se comprova pela análise literária da autobiografia, a história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas. (RICOEUR, 2012b, p. 419).
Ora, a grande descoberta do autor francês é que o ato de narrar ilumina o problema da identidade pessoal, sem o qual se cairia no dilema de um sujeito que é sempre idêntico a si ou que está em eterna mutação. O entendimento da questão da subjetividade humana é, então, ampliado a partir de uma nova hermenêutica de si, que foge da tentação da autotransparência e se dispõe a uma postura reflexiva:
O si do conhecimento de si é fruto de uma vida examinada, segundo as palavras de Sócrates na Apologia. Ora, uma vida examinada é, em grande medida, uma vida depurada, clarificada pelos efeitos catárticos das narrativas tanto históricas como fictícias veiculadas por nossa cultura. A ipseidade é portanto a de um si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo (RICOEUR, 2012b, p. 419).
O autor toma dois exemplos para explicitar o que quer dizer quando propõe a identidade narrativa. Ele recorre à teoria psicanalítica, mais uma vez, para destacar o processo de perlaboração – no qual o analisando reúne os pedaços de histórias numa única história compreensível e suportável para si. Também evoca o Israel bíblico como um exemplo de construção da identidade coletiva a partir das narrativas contadas e lidas em suas escrituras. Com efeito, a identidade narrativa representa uma solução poética para a identidade que remete a um sujeito (individual ou coletivo) que se converte num leitor de si mesmo, e que precisa de um longo e desafiante círculo hermenêutico, no qual e pelo qual pode interpretar a si mesmo e ao mundo, usando-se da linguagem como mediação.
No entanto, o próprio Ricoeur adverte sobre os limites desse seu conceito, ao qual reconhecer ser um “rebento frágil” (RICOEUR, 2012b, p. 418) de Tempo e narrativa:
[...] Assim como é possível compor várias intrigas a respeito dos mesmos incidentes [...], também é sempre possível tramar sobre a própria vida intrigas diferentes, opostas até. No tocante a isso, poder-se-ia dizer que, na troca de papéis entre a história e a ficção, o componente histórico da narrativa sobre si mesmo atrai esta última para o lado de uma crônica submetida às mesmas verificações documentárias que qualquer outra narração histórica, ao passo que o componente ficcional a atrai para o lado das variações imaginativas que desestabilizam a identidade narrativa (RICOEUR, 2012b, p. 419).
A proposta da identidade narrativa como uma solução poética para responder à pergunta quem sou/somos não tem a pretensão de dissolver as aporias da identidade. Afinal, trata-se, sim, de mesmo sujeito da ação, mas que não permanece sendo o mesmo em todos os aspectos do nascimento até sua morte. Longe de pretender ser estável, a identidade narrativa tende a fugir do impasse entre o Mesmo e o Outro, e chama a atenção para a instabilidade na identidade pessoal ou coletiva por influência da imaginação humana. Isso comporta outras possibilidades de contar e recontar a vida, como é possível verificar numa pesquisa mais crítica de autobiografias e de autorretratos.
Os limites e as possibilidades da identidade narrativa e de seus conceitos correlatos serão desenvolvidos nas obras posteriores de Ricoeur, como se verá a seguir. Por ora, tendo chegado ao final dessa seção sobre o aparecimento do conceito de identidade narrativa em Tempo e narrativa, é importante frisar os elementos mais importantes que a reflexão ricoeuriana oferece ao pensamento sobre a identidade pessoal segundo os comentadores do autor.
Na avaliação do filósofo norte-americano David Wood (1991), o constructo da identidade narrativa representa um avanço significativo em relação a outras maneiras mais clássicas de se abordar o sujeito humano, como o conceito de substância, o argumento da continuidade corpórea ou o tema da memória. Segundo ele, a proposta de Ricoeur não equivale a um ego fechado em si e autossuficiente, senão a um si que se enriquece por meio dos símbolos da cultura. Outra vantagem do modelo ricoeuriano é que ele escapa de uma versão tudo-ou-nada da subjetividade – isto é, de um sujeito que mudaria sempre ou que nunca mudaria. Ao mesmo tempo, a proposta traz oscilação à questão de identidade, já que várias outras histórias poderiam ser contadas a partir das mesmas informações. O comentador lembra que Ricoeur se dá conta desse ponto e não o trata como limite, mas como um ponto de atenção: reconhece que a identidade narrativa não foi proposta para dissolver as aporias do sujeito, e sim para torná-las benéficas.
Henry Venema (2000), David Pellauer (2013) e John Arthos (2019) defendem que a ideia de identidade narrativa só pode ser compreendida no horizonte do tratamento que Ricoeur confere à metáfora – remetendo à obra Metáfora Viva, que é anterior a Tempo e narrativa. Da mesma forma, eles enfatizam a importância de se compreender o papel da tripla mimesis na construção da ação narrada. Segundo esses comentadores, a narrativa atua com um discurso metafórico expandido que, por meio da mimesis, não apenas reproduz algo, como também produz algo novo, que não estava lá. A narrativa se mostra como um discurso poético, já que introduz uma inovação semântica semelhante àquela que Ricoeur diz haver em qualquer metáfora autêntica. É por isso, aliás, que a identidade pessoal não se identifica ingenuamente com a identidade narrativa: é algo distinto que, ao mesmo tempo, a esclarece e complementa. O sujeito sai, assim, enriquecido:
Ao invés de fechar-se a si mesmo no interior do texto, ou imitar o texto a refletir uma descrição fenomenológica de temporalidade, o arco narrativo de Ricoeur é tanto a descoberta quanto a inovação da identidade; é tanto vida como arte quanto arte como vida. (VENEMA, 2000, p. 120, tradução nossa).
O já citado comentador Bruner (1990) lembra que a mimesis – de que a identidade narrativa é devedora – não tem a função de copiar a realidade da vida, mas sim de ser uma leitura dela ou, em outras palavras, de ser uma metáfora da vida. Além disso, é possível entrever uma conexão com o ideal socrático ao se descobrir um si que não é ingênuo, mas depurado pela crítica e pelo autoexame. Desse modo, o sujeito para Ricoeur se revela como “um si que não é ‘o eu narcisista e egoísta do qual a hipocrisia e a ingenuidade’ são denunciadas na hermenêutica da suspeita, mas, ao contrário, o fruto de uma vida examinada.” (PELLAUER, 2013, p. 79). Jervolino (2011) chama a atenção para o papel da redução fenomenológica na análise da própria existência, que “[...] não é senão o gesto de pôr à distância, exigido por toda operação cognoscitiva, gesto necessário mas ‘segundo’ em relação a uma ligação primordial de pertença ao mundo” (p. 53).
As investigações a respeito da identidade recebem mais desdobramentos e aprofundamentos na obra O si mesmo como outro (Soi-même comme un autre), publicado em 1990. Já no prefácio, Ricoeur trata de desenvolver o que tinha sido apenas anunciado em Tempo e narrativa, a saber, uma “hermenêutica do si” (RICOEUR, 2014). É assim que ele reforça a distinção entre dois sentidos de identidade: a identidade no sentido do termo latino idem – referente ao mesmo, ao idêntico a si, supondo uma permanência no tempo – e a identidade no sentido do ipse – que não supõe essa permanência.
Essa distinção ricoeuriana entre dois modos da identidade não passa despercebida a Abel e Porée (2009). Eles fazem notar que a ideia de identidade é comumente compreendida no aspecto da permanência, que remete a algo substancializado. O prejuízo dessa visão consiste em situar a identidade do sujeito junto à identidade de algo em geral, que permanece idêntica a si ao longo do tempo. O valor da proposta de Ricoeur está em notar que o aspecto narrativo da identidade humana implica “a nossa capacidade de sermos nós mesmos e a de contar uma história na qual possamos nos reconhecer” (ABEL; POREE, 2009, tradução nossa), relacionando dialeticamente a permanência e a mudança.
Ricoeur continua a apresentação O si mesmo como outro com mais elementos: para ele, mesmidade (identidade-idem) e ipseidade (identidade-ipse) são dois sentidos distintos e complementares da problemática da identidade humana, e permitem pensar a um só tempo a identidade e a alteridade.
O si-mesmo como outro sugere logo de saída que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade num grau tão íntimo que uma não pode ser pensada sem a outra, uma passa para dentro da outra, como se diria em linguagem hegeliana. Ao “como” gostaríamos de atribuir o significado forte, não só de comparação – si-mesmo semelhante a outro –, mas sim de implicação: si-mesmo na qualidade de... outro. (RICOEUR, 2014, p. XV).
Ainda no prefácio, a seção intitulada “Rumo a uma hermenêutica do si-mesmo” é bastante significativa nesse sentido, já que esclarece por que Ricoeur prefere usar o conceito de “si” ao invés de, simplesmente, utilizar “eu”. Seu argumento é o seguinte: quando se fala em “si”, tem-se uma perspectiva reflexiva que difere bastante do caráter imediato que a noção de “eu” – do ego cogito (eu penso) cartesiano – levaria a supor. Todo esforço do autor dali em diante será visitar campos e tradições diversas da Filosofia, como a Filosofia da Linguagem, a Teoria da Ação, a Ética e a Ontologia para responder, a partir de cada perspectiva, à pergunta “quem?”, cuja resposta será o si – tanto no aspecto de quem age como de quem sofre. Importa frisar que essa egologia pós-cartesiana que ele se propõe a traçar assume as contribuições de Nietzsche – um dos “mestres da suspeita”, como próprio autor chamara – para tirar o sujeito de uma posição soberana e apresentá-lo como um “cogito quebrado”.
A arquitetura de O si-mesmo como outro se propõe a desenvolver a tríade descrever-narrar-prescrever de modo intencionalmente fragmentado para dar conta das várias abordagens da subjetividade humana em sua posição e ação no mundo. Interessa particularmente aqui o que Ricoeur aborda no quinto estudo da obra: “Identidade pessoal e identidade narrativa”, destinado a retomar e aprofundar o que ele chamou de “rebento” na conclusão de Tempo e narrativa. Sua justificativa é assim apresentada:
Portanto, parecia plausível considerar válida a seguinte cadeia de asserções: a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, mediação privilegiada, esta última se abebera na história tanto quanto na ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, digamos, uma ficção histórica, entrecruzando o estilo historiográfico das biografias ao estilo romanesco das autobiografias imaginárias. (RICOEUR, 2014, p.112, nota de rodapé, grifo nosso)
Para Ricoeur, abordar a subjetividade humana permite e exige uma perspectiva narrativa por razões de inteligibilidade: é preciso considerar a identidade pessoal em sua relação com o tempo para que seja possível compreender o que uma pessoa é (sua identidade) e o que ela faz ou sofre (suas ações e paixões) em meio a outras pessoas e acontecimentos. Essa leitura da história de uma vida é viabilizada pelos modelos narrativos da história e da ficção – justo os dois modos de configuração do tempo humano sobre o qual ele se debruçara anos antes em Tempo e narrativa.
Os dois modos de permanência da identidade no tempo – a mesmidade e a ipseidade – são também desenvolvidos nesse estudo. Ricoeur toma a noção de caráter e o cumprimento da promessa como dois casos emblemáticos desses dois modos. No primeiro caso, o caráter sintetiza todas as suas disposições adquiridas do sujeito – isto é, os hábitos pelos quais alguém pode ser reconhecido com o passar do tempo, compondo traços duráveis de si. No segundo caso, o cumprimento da promessa supõe uma maneira da manutenção de si diferente, que não passa pela constância de traços, mas unicamente de um quem que promete cumprir sua palavra ainda que seus desejos e humores mudem.
Essas explorações sobre a mesmidade e a ipseidade do si são aprofundadas no sexto estudo, sob o rótulo “O si e a identidade narrativa”. Ricoeur trabalha a noção narrativa de construção da identidade do personagem em paralelo à composição da intriga. Sua alegação é de que a intriga não comporta apenas fatos linearmente dispostos, mas também o que ele chama de “concordância discordante” ou “síntese do heterogêneo” (RICOEUR, 2014, p.147): a narrativa absorve a peripécia – segundo a noção aristotélica do que é inesperado, surpreendente e contingente – como uma necessidade, e não mero acidente. Assim, a abordagem narrativa permite transformar visões dicotômicas em dialéticas, como aquelas presentes entre conceitos tão distintos como a mesmidade e a ipseidade, a concordância e a discordância, o si e o outro, o agente e o padecente.
A pessoa, entendida como personagem de narrativa, não é uma entidade distinta de suas “experiências”. Ao contrário: ela compartilha o regime da identidade dinâmica própria à história narrada. A narrativa constrói a identidade da personagem, que pode ser chamada sua identidade narrativa, construindo a identidade da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade da personagem. (RICOEUR, 2014, p. 155).
Ao tratar dessas dialéticas, Ricoeur evoca o conceito de variações imaginativas – tão caro ao método fenomenológico de Husserl – para iluminar o modo como identidade narrativa de uma personagem consegue trabalhar com a polarização entre a mesmidade e a ipseidade, deixando-a produtiva. Nesse sentido, a literatura é farta tanto em exemplos de personagens facilmente identificáveis ao logo da intriga, como de personagens que passam por grandes transformações, como aqueles concebidos por Dostoievski ou por Tolstoi, e até mesmo de casos em que se pode falar de um eclipse da identidade – ocasião essa que permitiria uma “apreensão apofática do si” (RICOEUR, 2014, p . 179).
Ainda no sexto estudo, Ricoeur explora mais a ligação entre bios e práxis por meio da mímesis na Poética de Aristóteles. São evocados os conceitos de “unidade narrativa de uma vida”, de MacIntyre, e de “conexão de uma vida”, de Dilthey, para trabalhar o que Ricoeur denomina “planos de vida”. Ele explica que os planos de vida fazem a mediação entre o “projeto global de uma existência” (RICOEUR, 2014, p. 168) e práticas como o trabalho, os jogos e as artes, a fim de constituir o que se costuma designar como vida profissional, vida familiar e vida de lazer, por exemplo. Assim, haveria uma dupla determinação na vida: dos grandes projetos e ideais na parte superior, e das ações específicas na parte inferior, num movimento de vai e vem entre ambos. Ele alega, mais uma vez, que existe uma analogia entre a vida e a hermenêutica: cada existência faz esse movimento de dupla determinação assim como é preciso correlacionar parte e todo para interpretar o sentido de um texto.
Outro argumento que se soma à necessidade de uma apreensão geral sobre a existência diz respeito à intenção de uma vida boa e plena. A justificativa ricoeuriana é que a percepção de autorrealização só se torna possível quando se toma a vida como um todo, e não apenas no caráter fragmentário de ações isoladas do cotidiano. Ao mesmo tempo, a tentativa de reunir os fragmentos de vida leva sempre à descoberta da importância do outro, tanto por meio da colaboração como da competição: “pedaços inteiros de minha vida fazem parte da vida dos outros, de meus pais, meus amigos, meus companheiros de trabalho e lazer” (RICOEUR, 2014, p. 171). Desse modo, acabam se encontrando a vida real, com seus acontecimentos dispersos, e a fabulação, com seu trabalho ficcional de organizar a narrativa.
Ao fazer a narrativa de uma vida cujo autor não sou quanto à existência, faço-me seu coautor quanto ao sentido. Bem mais: não foi por acaso nem por abuso que, em sentido inverso, vários filósofos estoicos interpretaram a vida, a vida vivida, como desempenho de um papel numa peça que não escrevemos e cujo autor, por conseguinte, recua para além do papel. (RICOEUR, 2014, p. 173)
Numa espécie de apologia à narrativa, o filósofo francês quer se defender das várias objeções que se possa apresentar acerca da validade da forma narrativa para abordar as reais vivências humanas. De novo, tal objeção é respondida com a proposta da dialética entre literatura (com seu lado ficcional) e história (com seu lado factual). Segundo o comentador Pucci (1996), “Ricoeur considera a narração irredutível ao autoconhecimento, pois é uma reproposição da experiência de vida na qual nos encontramos expostos a uma passividade original” (p. 126). Ainda assim, ele dá seu voto de confiança à proposta ricoeuriana, entendendo que não se trata de tentar dar a última palavra sobre o problema da identidade, mas de enriquecer e aprofundar seu sentido. Outros comentadores seguem esse sentido, como Brugiatelli, que traça um paralelo interessante entre a identidade narrativa e o plano maior da cultura de cada sujeito:
A identidade narrativa não é dada de uma vez por todas, mas está sujeita a contínuas interpretações e modificações. Na compreensão de nós mesmos, entra em jogo a dialética entre sedimentação e inovação, que está em curso em todas as tradições. Interpretamos continuamente a nossa identidade narrativa através da mediação de obras, das narrativas de diferentes culturas. [...] Podemos contribuir para sermos narradores de nós mesmos sem porém apagar a distância existente entre a vida vivida e a história narrada. (BRUGIATELLI, 2012, p. 52, tradução nossa)
Ricoeur dedica o sétimo, o oitavo e o novo estudos ao tema da ética, visando explicitar a passagem da descrição à prescrição operada pelo ato de narrar. Sua “pequena ética” sintetiza-se no seguinte projeto: “[...] a visada da ‘vida boa’ com e para outrem em instituições justas” (RICOEUR, 2014, p. 187). A tese de Ricoeur é que a narrativa é capaz de fornecer à consciência moral a possibilidade de propor e de testar hipoteticamente o juízo moral. Sob a forma narrativa, cada um pode lidar com um conteúdo significativo: “[...] a ‘vida boa’ é, para cada um, a nebulosa de ideias e sonhos de realização em relação à qual uma vida é considerada mais ou menos realizada ou não realizada” (RICOEUR, 2014, p. 195). Ricoeur elucida como ocorrem esses processos pelos quais a phrónesis (prudência ou sabedoria prática) é exercitada pelo phrónimos (sábio/prudente), processos esses que são, inseparavelmente, hermenêuticos e éticos:
[...] É num trabalho incessante de interpretação da ação e de si mesmo que prossegue a procura de adequação entre o que nos parece o melhor para o conjunto de nossa vida e as escolhas preferenciais que governam nossas práticas. Há vários modos de introduzir o ponto de vista hermenêutico nesse estágio final. Em primeiro lugar, entre nossa visada da “visa boa” e nossas escolhas particulares, desenha-se uma espécie de círculo hermenêutico em virtude do jogo de vaivém entre a ideia de “vida boa” e as decisões mais marcantes de nossa existência (carreira, amores, lazer etc.). Isso ocorre como um texto no qual o todo e a parte são compreendidos um por meio do outro. [...] No plano ético, a autointerpretação torna-se a estima a si mesmo (RICOEUR, 2014, p. 196, grifo em negrito nosso).
Dessa proposição de um círculo hermenêutico entre vida e vida possível, ser e dever-ser, descrição e prescrição, que a atividade narrativa oferece, firma-se o entendimento de que não existe narrativa neutra, porque ela sempre supõe o exercício do juízo. Mais ainda: a autoestima representa, eticamente falando, a autointerpretação de um sujeito que busca compreender a si mesmo (por falas, ações, sentimentos, sonhos etc.) de modo análogo a como se interpretam os textos em geral. O empenho de interpretar o “texto da ação” é, assim, sujeito aos mesmos processos e desafios enfrentados em relação a qualquer texto, com suas dúvidas, enfrentamentos e controvérsias – envolto pelo que o filósofo costumava chamar de “conflito de interpretações”.
Na sequência, aliás, Ricoeur afirma que a tomada de decisão com base nos ideais de vida não supõe um processo de verificação (que se baseia na observação), mas de atestação: uma evidência experiencial, existencial, de caráter subjetivo, manifestada na convicção bem agir e viver. Interpretar implica, pois, o exercício da escolha dos juízos mais plausíveis ao agente a fim de que ele esteja convicto do bem agir alinhado à sua noção de bem viver.
É nesse ponto que o autor recorre à tragédia de Antígona para trabalhar o que chama de “instrução insólita do ético pelo trágico” (RICOEUR, 2014, p. 277). Com efeito, para Ricoeur, a ação trágica traz à tona a necessidade – bem como a dificuldade – de se emitir um juízo moral em situação, quando se colocam à prova intenções e visões de mundo contrastantes. Com a tragédia de Antígona, Ricoeur testa imaginativamente o conflito entre a perspectiva ético-teleológica (a dimensão da ‘vida boa’) e a perspectiva moral-deontológica (a dimensão normativa, voltada ao dever), mostrando a proximidades e as tensões entre a filosofia moral e a filosofia política. Por um lado, Antígona reflete o ideal ético de ser fiel à sua família, particularmente na busca pelo sepultamento de seu irmão Polinices; por outro lado, seu tio Creonte representa a obrigação moral de seguir as leis, entre elas a sua determinação que proibia sepultar Polinices, por julgá-lo inimigo da cidade. Na tragédia, as duas posturas são irredutíveis do começo ao fim.
Para Ricoeur, nem a unilateralidade ou a arbitrariedade, nem o universalismo ou o contextualismo são soluções satisfatórias quando se trata de resolver os conflitos entre as perspectivas teleológica e normativa nas situações complexas e concretas da vida. É aí, então, que o autor propõe a sabedoria prática (phronésis) como elemento de mediação: “a sabedoria prática consiste em inventar as condutas que satisfarão ao máximo à exceção demandada pela solicitude, traindo o mínimo possível a regra” (RICOEUR, 2014, 312). Assim, o juízo ético aplicado a uma situação singular supõe criatividade na conduta que abraçará ao máximo o ideal da vida boa – que faz de cada caso e de cada pessoa uma exceção à regra – desviando-se minimamente das normas. A phrónesis se mostra como um equilíbrio reflexivo ou como “convicções sopesadas” – noções propostas por Rawls –, que recolhe os argumentos de todas as partes, avalia-os e, por fim, firma sua convicção no melhor argumento – ao estilo da Ética da Discussão de Habermas.
Uma palavra ainda sobre O si-mesmo como outro. Para Rasmussen (1996), a obra confirma a inserção de Ricoeur num movimento maior de reemergência filosófica da subjetividade, como se pode ver no projeto de Husserl. Entretanto, para o comentador, a diferença e o trunfo da reflexão ricoeuriana estão na possibilidade de superar o solipsismo husserliano – para quem o outro só pode ser conhecido por analogia ao si mesmo. Ao situar a dialética entre concordância e discordância no coração da identidade narrativa, Ricoeur também insere a temática da alteridade no coração da identidade. Ele o faz não somente em termos estéticos, mas também éticos, ao desenvolver as implicações morais do que o próprio título sugere: o si-mesmo considerado outro.
Em sua última grande obra, intitulada Percurso do Reconhecimento, de 2004, Ricoeur avança mais alguns passos na temática da identidade pessoal. Sua tese principal é de que “a ideia de reconhecimento possui um vínculo privilegiado com a de identidade” (RICOEUR, 2009, p. 152), e sua argumentação é desenvolvida em três grandes estudos.
Na introdução do livro, o filósofo anuncia que seu trabalho se centra sobre uma semântica filosófica em torno do conceito de reconhecimento, na hipótese de que a polissemia do termo possa abranger muito mais do que meros processos de conhecimento. Em outras palavras: para Ricoeur, reconhecer é mais do que conhecer. Para desenvolver sua argumentação, ele escolhe uma via que segue três etapas, desde a voz ativa do reconhecimento (reconhecer algo) até a voz passiva (ser reconhecido), na crença racional de que “é a nossa identidade mais autêntica, a que nos faz ser o que somos, que solicita ser reconhecida” (RICOEUR, 2006, p. 30). Esta seção se prestará a fazer esse percurso, recolhendo as contribuições de cada um dos três estudos do reconhecimento presentes na obra, a qual se desenvolve segundo um método genealógico, como o próprio autor afirma.
A primeira etapa do longo percurso de reconhecimento é, como dito, formada pela voz ativa do ato de reconhecer. Consiste numa iniciativa do ser humano de identificar algo – que pode ser uma ideia, uma coisa ou uma pessoa –, o que supõe distinguir esse mesmo algo de todos as demais. Nesse primeiro estágio, o pensador revisita as filosofias cartesiana e kantiana nas quais reconhecer praticamente significa conhecer: implica distinguir com clareza e distinção o verdadeiro do falso, como pensava Descartes, ou vincular uma coisa à outra, como alegava Kant.
No entanto, Ricoeur busca recursos na Fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty para dar um passo além da congruência entre reconhecer e conhecer ao inserir a variável do tempo. É então que ele irá perceber que o percurso do reconhecimento não está livre de equívocos: as coisas podem mudar de tal maneira que a distância temporal pode torná-las desconhecíveis. Nesse processo, ver algo e deixar de vê-lo por um intervalo considerável de tempo representa uma dificuldade de dizer que se trata da mesma coisa que aparecera outrora. “[...] A distância temporal, que o desaparecimento alonga e distende, é integrada à identidade pela própria graça da alteridade. Escapar por um tempo à continuidade do olhar para do reaparecimento do mesmo um pequeno milagre”. (RICOEUR, 2006, p. 78). Identidade e alteridade, reconhecimento e desconhecimento, não se mostram tão distantes assim a partir dessa perspectiva.
O segundo estudo se volta aos processos de reconhecer-se a si mesmo. Já no início das considerações, Ricoeur admite tratar-se de uma atividade sempre inconclusa: “Longo é o caminho para o homem que ‘age e sofre’ até o reconhecimento daquilo que ele é em verdade, um homem ‘capaz’ de certas realizações. Esse reconhecimento de si ainda requer, em cada etapa, a ajuda de outrem [...]” (RICOEUR, 2006, p. 85). O autor recupera a contribuição grega para trabalhar a temática da responsabilidade de cada agente por suas ações e lança mão de exemplos extraídos das epopeias (como do reconhecimento de Ulisses pela sua família depois de uma longa ausência) e das tragédias (como Édipo, que assume a responsabilidade pelos seus atos, mesmo os não intencionais).
Ainda no segundo estudo, o filósofo propõe uma “fenomenologia do homem capaz” (RICOEUR, 2006), que novamente traz à tona a reflexão em torno da ipseidade. Ricoeur reconhece na filosofia dos modernos, a emergência de uma hermenêutica do si enquanto preocupação com a subjetividade, e sua continuidade nas perspectivas kantiana e pós-kantiana. Porém, como ele poderia dar continuidade às especulações sobre a ação humana em Aristóteles com as contribuições dessas filosofias mais recentes? Sua escolha vai na linha das capacidades humanas, que enriquecem o reconhecimento do si à medida que esse pode afirmar o “eu posso” por meio do reconhecimento-atestação – isto é, de uma confiança racional nas suas diversas potencialidades. Ao analisar fenomenologicamente as capacidades humanas, o pensador opta por percorrer um desvio por aspectos mais exteriores para, no final, poder retornar ao si mesmo.
Dentre as capacidades, Ricoeur enfoca estas: o poder dizer; o poder fazer; o poder narrar e narrar-se; e a imputabilidade. Particularmente interessante para a pesquisa aqui desenvolvida é o poder narrar(-se), já que tal capacidade retoma a temática da identidade narrativa. Toda a inteligência narrativa consiste em configurar de modo inteligível a série heterogênea de intenções, de ações e de acasos, permitindo que as identidades pessoais exercitem o processo de reconhecimento tanto na escrita quanto na leitura. Isso ocorre porque cada um pode aprender a narrar-se de outros modos a partir da maneira como se identifica com personagens da ficção, reconhecendo-se no que é contado sobre eles.
Nesse ponto, Ricoeur retoma e aprofunda o que já apresentara em Tempo e narrativa e O si-mesmo como outro: as dialéticas da identidade idem com a identidade ipse, e da identidade do mesmo com a identidade do outro. No primeiro caso, a identidade idem é bastante visível no aspecto do caráter de cada um, isto é, em tudo aquilo que tende a permanecer (os aspectos do corpo, como a genética, as digitais, a voz e a fisionomia, até hábitos estabelecidos). Esse modo de ser se confronta com a identidade-ipse, que é mais sutil e frágil, posto que se refere à capacidade da pessoa de se manter responsável pelos seus atos, como quando faz uma promessa.
Da dialética entre identidade e alteridade, Ricoeur destaca que todo sujeito pode narrar-se a partir de uma perspectiva privada e pública ao mesmo tempo. “Uma história de vida se mistura à história de vida dos outros” (RICOEUR, 2006, p. 118), de modo que o ato de narrar sua vida sempre implicará falar de si de modo embaralhado a outros insuperavelmente, tanto nos aspectos bons quanto nos maus.
Sobre a capacidade de imputar e de imputar-se, Ricoeur adentra o território do reconhecimento da responsabilidade. Todo sujeito responsável é capaz de imputar a si mesmo seus atos – tanto bons como maus –, o que implica assumir também as consequências desses mesmos atos. A metáfora da conta amplia essa compreensão: imputar significa que cada um preste conta do bem e do mal que praticou, assumindo seus méritos e seus erros. Nesse sentido, aliás, a responsabilidade implica diretamente a alteridade: mais que uma violação a uma lei, um crime falha em relação a outrem, cujo sofrimento deve ser reconhecido e reparado. Cada um é também encarregado do outro, responsável por ele, sobretudo por quem é mais vulnerável.
O segundo estudo encerra com uma fenomenologia da memória e da promessa. A respeito da memória, Ricoeur se pergunta, afinal, de que e quem se lembra? É então que ele introduz a questão dos traços, em toda a sua diversidade. Reconhecimento e memória se aproximam porque recordar é reconhecer algo de uma impressão do passado que permanece no presente. A identidade de uma pessoa é afirmada aí – como pensa Locke – como uma identidade temporal: não há mesmidade distinta da ipseidade porque self e same se identificam, já que aquele que se recorda é o mesmo que executara a ação tempos atrás. A lembrança se apresenta como a presença da ausência, pois reapresenta algo que já não está mais aí – ensejando o que Ricoeur (2006) chama de “pequeno milagre do reconhecimento” (p. 136). Por fim, a memória é ameaçada pela sua negação, e se arrisca a cair no esquecimento: “Sim, o esquecimento é o inimigo da memória, e a memória é uma tentativa às vezes desesperada para resgatar alguns destroços do grande naufrágio do esquecimento” (RICOEUR, 2006, p. 126).
Do momento retrospectivo da memória ligado à mesmidade, Ricoeur passa ao momento prospectivo da promessa: o si que tem uma história também tem compromissos futuros. É então que o ato de prometer se mostra característico da identidade-ipse. A ipseidade, diferente da mesmidade, supõe a vontade de constância de um si que quer se manter apesar de todas as mudanças internas e externas: “é uma identidade mantida apear de..., a despeito de..., de tudo o que inclinaria a trair a sua palavra” (RICOEUR, 2006, p. 141). Douek (2011) exemplifica o papel da promessa na dimensão projetiva da identidade e sua importância nas ações mais ordinárias da convivência humana: “[...] a promessa diz respeito aos pequenos compromissos cotidianos, do tipo ‘virei dar aula toda terça feira às 14 horas’, ou então dizer ao filho: ‘você estuda e depois vamos passear’, ou ainda ‘te ligo amanhã’ etc. [...]” (p. 55). Outra diferença importante: a promessa transcende o caráter personalíssimo da memória, se volta à alteridade – já que é a outrem que se promete algo – e aciona a temática do reconhecimento pela mão dupla da manutenção de si e da abertura ao reconhecimento mútuo. De sua parte, a promessa também sofre uma ameaça constante de sua negativa: ela pode ser traída, quando a palavra não é cumprida.
A conclusão do segundo estudo amplia a compreensão de capacidades: para além do indivíduo que atesta o seu poder de agir, tal capacidade se refere a coletividades inteiras. Ricoeur se concentra, então, em reunir teóricos que estabelecem o vínculo entre a liberdade individual e a responsabilidade coletiva. Sua intenção é afirmar que a verdadeira justiça social não acontece apenas mediante a liberdade negativa (pautada na ausência de impedimentos sociais), mas mediante a liberdade positiva (pautada na presença de condições e oportunidades reais). Nessa altura da obra, o filósofo francês novamente destaca o que já entrevia na literatura épica e trágica e que se trataria de uma constante que atravessa as culturas: o reconhecimento da responsabilidade por parte do agente sobre o seu poder agir (sua agency). No entender de Ricoeur, esse elemento representa um alicerce antropológico que faz a ponte para o próximo estudo.
O terceiro e último estudo tem por título “o reconhecimento mútuo”. Aí, o Percurso do reconhecimento tem seu último estágio e apresenta, de início, a dificuldade de se trabalhar a dissimetria entre os polos do ego (eu) e do alter (outro) e de conduzi-los à reciprocidade. Na busca de uma motivação moral originária, o primeiro autor acionado por Ricoeur é o contratualista Thomas Hobbes, cujo contato entre o eu e o outro é fonte de medo, de desconfiança, de desconhecimento e de guerra. Dessa experiência moral brota a solução política do Estado, com seu tom absolutista e implacável.
No entanto, é Hegel quem aparece aos olhos de Ricoeur como uma alternativa mais interessante de explicação da convivência do ser humano com quem lhe é diferente. A consideração e o respeito para com o outro assumem uma conotação muito mais positiva em Hegel do que em Hobbes por exaltar o desejo de ser reconhecido no lugar do medo da morte violenta como fundamento da convivência social. Nesse sentido, a proposta ontoteológica hegeliana conseguiria estabelecer uma dialética entre autoafirmação e intersubjetividade ao colocar sua ênfase no direito, que nada mais é do que uma manifestação de reconhecimento recíproco. Cada sujeito, em seu caráter espiritual, é colocado como necessariamente reconhecido e reconhecedor – algo que não pertence às coisas, que se limitam a ser, incapazes de reconhecer.
A trilha hegeliana é seguida por Ricoeur sob a guia de Axel Honneth, que propõe três modelos de reconhecimento intersubjetivo. O primeiro modelo se encontra no plano afetivo, com o amor como manifestação devotada aos amantes, aos amigos e aos membros da família – na qual cada um é reconhecido como filho em uma determinada ordem de nascimento. O segundo modelo pertence ao plano jurídico, que assume cada pessoa um sujeito de direitos e de deveres, reconhecida em sua igualdade fundamental. Nessa esfera, a negação do reconhecimento pode ser uma força impulsionadora importante, capaz de provocar indignação e a consequente luta pelo reconhecimento:
A experiência negativa do menosprezo assume então a forma específica de sentimentos de exclusão, de alienação, de opressão, e a indignação que deles provém pôde dar às lutas sociais a forma de guerra, quer se trate de revolução, de guerra de libertação, de guerra de descolonização. Por sua vez, o respeito de si suscitado pelas vitórias conseguidas nessa luta pela extensão geopolítica dos direitos subjetivos merece o nome de orgulho (RICOEUR, 2006, p. 215).
O terceiro modelo de Honneth é o da estima social. No plano social, novamente a via negativa do menosprezo é tomada como motivação importante para a luta pelo reconhecimento. Nesse sentido, a luta que alguém ou um grupo trava para ser reconhecido é comparada ao processo de lidar com uma língua diferente, que necessita de tradução para ser convenientemente compreendida. O reconhecimento mútuo de um agente por outro é o elemento que permite lidar com as disputas num ambiente social marcado pela pluralidade por meio de compromissos partilhados que visam o bem comum.
Nessa esfera social, Ricoeur aborda a questão do multiculturalismo. Ele admite se tratar de um tema “altamente polêmico” (RICOEUR, 2006, p. 227), responsável pela popularização da temática do reconhecimento – sobretudo em relação às minorias mais vulneráveis e discriminadas – mas que sofre risco de levá-lo à banalização. Para o incurso na questão, o francês aciona o canadense Charles Taylor. Interessa a Ricoeur o fato de que, para a corrente multicultural, os discursos e políticas de igualdade universal hegemonicamente liberais seriam incapazes de enxergar as diferenças e necessidades próprias de determinados grupos – como mulheres e negros, por exemplo. Como a identidade pessoal de quem compõe as minorias sociais é marcada pela maneira como um grupo é ou deixa de ser reconhecido socialmente, haveria um impacto importante sobre a autoestima dos sujeitos envolvidos.
Feita essa passagem pelo multiculturalismo, Ricoeur se indaga sobre quando, afinal, um sujeito pode se dizer reconhecido de verdade? Ato contínuo, ele se pergunta se a abordagem do reconhecimento se reduziria à sua conotação negativa, segundo a qual o menosprezo serviria de motivação para a luta pelo reconhecimento. Assim sendo, os sujeitos seriam eternas vítimas, sem jamais serem reconhecidos de fato? É então que, numa perspectiva mais positiva e construtiva, Ricoeur visita os chamados estados de paz, buscando dois casos emblemáticos na experiência do amor-ágape e na troca de dons da etnia maori (nativa da Nova Zelândia). No caso do conceito grego de ágape, o autor francês destaca que se trata de uma forma de amor diferente do éros e da philia, já que se propõe como puro dom, sem expectativa alguma de retribuição. No amor-ágape, o outro é reconhecido sem sequer ser conhecido. No segundo caso, a simbologia mística do hau entre os Maori supõe cada dom como algo que exige ser retribuído, gerando um círculo virtuoso de generosidade que não pode ser rompido entre quem doa e quem recebe. Assim, o reconhecimento mútuo aconteceria na medida em que se admite simbolicamente que todo dom necessita de um contra-dom entre os parceiros sociais – numa troca que implica uma ética da gratidão que é irredutível à lógica mercadológica.
Dessa forma, embora jamais venha a cabo, o reconhecimento não ficaria restrito ao território negativo da luta, mas também das conquistas positivas, como a experiência do amor-ágape e da troca de dons o revelaria. Para Ricoeur, embora os exemplos de luta sejam bem mais numerosos e chamativos do que os casos modelares de reconhecimento efetivo, os casos positivos funcionariam como exemplo de que o reconhecimento é difícil, mas não impossível.
A luta pelo reconhecimento talvez seja interminável: ao menos as experiências de reconhecimento efetivo na troca dos dons, principalmente em sua fase festiva, conferem à luta pelo reconhecimento a garantia de que a motivação que a distingue do apetite pelo poder, e que a coloca ao abrigo da fascinação pela violência, não era nem ilusória nem vã. (RICOEUR, 2006, p. 258).
À guisa de conclusão do seu Percurso, o filósofo francês retoma os elementos dos seus três estudos e torna mais explícitos seus elos. Aqui, cumpre destacar alguns aspectos dessa conclusão que interessam particularmente à presente pesquisa. Em primeiro lugar, é interessante como o autor destaca que o tema do reconhecimento tem sido restrito a sujeitos e grupos que passem pelas situações discriminatórias devido à sua participação em minorias – como ele destacou na abordagem do multiculturalismo. O filósofo não rejeita esse uso, mas critica seu reducionismo, justificando nesse ponto o porquê de ter explorado as três formas do reconhecimento – reconhecer algo (reconhecimento-identificação), reconhecer-se (reconhecimento de si) e ser reconhecido por outrem (reconhecimento mútuo).
Aliás, essas etapas perfazem todo um percurso da identidade de cada sujeito, que pode finalmente reconhecer a si mesmo a partir do momento em que reconhece/atesta suas próprias capacidades – afirmando para si que pode isso ou aquilo. O reconhecimento-atestação de si mesmo, por sua vez, se completa no reconhecimento mútuo.
Direi em primeiro lugar que se trata ainda e sempre de identificação; ser reconhecido, se isso alguma vez ocorre, seria para cada pessoa receber a garantia plena na sua identidade graças ao reconhecimento por outrem de seu império de capacidades (RICOEUR, 2006, p. 262).
Por fim, Ricoeur correlaciona esse percurso com as temáticas da alteridade e do desconhecimento. Sobre a alteridade, o autor afirma haver um paralelo entre o percurso da identidade e o da alteridade: atestar a si mesmo como sujeito capaz envolve, necessária e indissociavelmente. Dessa forma, todas as capacidades humanas envolvem, de algum modo, a intersubjetividade entre o mesmo e o outro. A capacidade de narrar é bem emblemática nesse sentido: “[...] Não há narrativa que não misture histórias de vida, a ponto de chegar ao embaralhamento, bem documentado na literatura sobre o assunto” (RICOEUR, 2006, p. 265).
Como a alteridade, o desconhecimento também se mostra implicado no reconhecimento, já que a possibilidade de cometer um equívoco é sempre presente, ainda que se tome toda sorte de precaução. A frase Pascal – “a essência do equívoco consiste em não conhecê-lo” (apud RICOEUR, 2006, p. 267) – revela a dificuldade do ato de se equivocar, que é opaco para si próprio. Quanto ao primeiro estudo, o equívoco se apresenta no jogo do parecer, do desaparecer e do reaparecer de algo. Quanto ao segundo estudo, o ato de equivocar-se está presente na possibilidade do autoengano, que afeta todas as capacidades humanas: o cada um pode se achar incapaz enquanto, na verdade, é capaz, ou vice-versa. Sobre o terceiro estudo, o equívoco se esconde na possibilidade do desconhecimento por parte do outro, que abre brecha ao desprezo.
A importância da alteridade para compreender a identidade pessoal é destacada por comentadores como Romano (2016) e Di Martino (2016). Ambos reconhecem que Ricoeur é, depois de Heidegger, o que mais contribuiu para pensar a questão da ipseidade, numa proposta de hermenêutica filosófica que busca desvendar a existência humana. Porém, apontam diferenças marcantes. A perspectiva heideggeriana vê a consciência de si como algo que emerge quando se encara silenciosa e solitariamente o ser-para-a-morte. A novidade de Ricoeur, tanto em O si-mesmo como outro como no Percurso do reconhecimento está na afirmação de que a ipseidade só pode ser provocada pelo outro, que chama o sujeito à responsabilidade. Desse modo, o ser-capaz de cada sujeito só pode emergir num horizonte intersubjetivo – que não está fundado nem no polo do ego, como sustentam Descartes, Husserl e Heidegger, nem no polo do outro, como defende Lévinas.
A paixão confessada de Ricoeur pelo détour (desvio) no seu itinerário filosófico não significa tomar atalhos para abreviar a chegada ao destino. Pelo contrário, cada desvio prolonga o caminho e se justifica pelo potencial de oferecer algumas respostas e muitas dúvidas. É isso, aliás, que torna compreensível o porquê de Ricoeur visitar campos tão diferentes como a Psicanálise e a Fenomenologia, e autores tão distintos como Hegel e Nietzsche, por exemplo, para abordar seus temas de maneira abrangente e profunda.
O caminho percorrido até aqui propôs retomar, sinteticamente, a problemática da identidade pessoal e a consequente construção do conceito de identidade narrativa no pensamento de Paul Ricoeur. Viu-se, assim, seu desenvolvimento nas principais obras, desde sua irrupção no final de Tempo e Narrativa como uma proposta de solução poética à problemática da identidade pessoal. Em seguida, O si-mesmo como outro explorou as dialéticas da mesmidade-ipseidade e da subjetividade-alteridade. Por fim, Percurso do reconhecimento mostrou como a identidade narrativa permite que pessoas e grupos se reconheçam e sejam reconhecidos por ela.
Tanto Ricoeur como seus comentadores esclarecem que a identidade narrativa não pretende eliminar as aporias da identidade pessoal. A um olhar desacostumado com o estilo do autor, pode parecer que Ricoeur demonstre medo de tomar posição em prol de uma teoria do sujeito dentro e fora dos círculos filosóficos. Contudo, ao situar essa postura no conjunto da obra ricoeuriana, é possível vislumbrar uma combinação entre respeito à complexidade do objeto de análise e coerência com seu projeto intelectual. É nessa perspectiva que a identidade narrativa não dissolve o problema da identidade, mas, fiel aos pressupostos hermenêuticos de Ricoeur, respeita a identidade como um problema que sempre está aberto a exames e interpretações.
ABEL, Olivier; PORÉE, Jérôme. Le vocabulaire de Paul Ricoeur. Paris: Ellipses, 2009.
ARTHOS, John. Hermeneutics after Ricoeur. London: Bloomsbury, 2019.
BRUGIATELLI, Vereno. Potere e riconoscimento in Paul Ricoeur. Per un’etica del riconoscimento. Trento: Trangram, 2012.
BRUNER, Jerome. Acts of meaning. Cambridge: Harvard, 1990.
DI MARTINO, Carmine. For a Genealogy of Selfhood: Starting from Paul Ricoeur. In: DAVIDSON, Scott; VALLÉE, Marc-Antoine (Ed.). Hermeneutics and Phenomenology in Paul Ricoeur. [S.l.]: Springer, 2016, p. 60-74.
DOUEK, Sybil Safdie. Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas. Um elegante desacordo. São Paulo: Loyola, 2011.
JERVOLINO, Domenico. Introdução a Ricoeur. São Paulo: Paulus, 2011.
PELLAUER, David. Ações narradas como fundamento da identidade narrativa. In: NASCIMENTO, Fernando; SALLES, Walter (Org.). Paul Ricoeur. Ética, identidade e reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2013.
PUCCI, Edi. History and the question of identity. Kant, Arendt, Ricoeur. In: KEARNEY, Richard (ed.). Paul Ricoeur. The Hermeneutics of Action. London: SAGE, 1996, p. 125-136.
RASMUSSEN, David. Rethinking subjectivity: narrative identity and the self. In: KEARNEY, Richard (ed.). Paul Ricoeur. The Hermeneutics of Action. London: SAGE, 1996, 158-172.
RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. vol. 1 [A intriga e a narrativa histórica]. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. vol. 3 [O tempo narrado]. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012b.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
ROMANO, Claude. Identity and Selfhood: Paul Ricoeur’s Contribution and Its Continuations. In: DAVIDSON, Scott; VALLÉE, Marc-Antoine (Ed.). Hermeneutics and Phenomenology in Paul Ricoeur. [S.l.]: Springer, 2016, p. 43-59.
VENEMA, Henry Isaac. Identifying selfhood. Imagination, narrative and hermeneutics in the thought of Paul Ricoeur. Albany: State University of New York Press, 2000.