José Ademar Kaefer
Doutor em Sagrada Escritura pela Universidade de Münster - Alemanha. Professor titular de AT no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião – UMESP. Contato: jademarkaefer@gmail.com
Resumo: Delfos foi mais que um grande centro religioso que durou por séculos. Foi também um centro de captação de riqueza e de decisões políticas da Grécia antiga. Grandes autoridades dentro e fora da Grécia vinham comumente consultar o oráculo antes de tomar uma importante decisão. E ali, tudo girava em torno da pitonisa, com seus dons sensoriais, e dos sacerdotes que a auxiliavam. O santuário durou até os primeiros séculos da era cristã, quando não mais interessava aos romanos que ali se decidissem os rumos políticos da região. Porém, no meio popular a crença no Deus Apolo e nas suas pitonisas continuava muito forte. Este nos parece ser o contexto que está subjacente em Atos 16,16, onde temos uma pitonisa que participa do anúncio de Paulo e Silas, única vez em todo Novo Testamento. A metodologia a ser usada será o estudo no local (in situ), com o auxílio de bibliografia específica.
Palavras chave: Delfos; Pitonisa; Oráculo; Atos 16,16
Abstract: Delphi was more than a great religious center that lasted for centuries. It was also a center for gathering wealth and take political decisions in ancient Greece. Great authorities inside and outside Greece came to consult the oracle before making an important decision. And there, everything turned around the Pythia, with her sensory gifts, and the priests who assisted her. The sanctuary lasted until the first centuries of the Christian era, when it was no longer in the interest of the Romans, that it decided the political directions of the region. However, in popular circles the belief in God Apollo and his Pythia remained very strong. This seems to us to be the underlying context in Acts 16:16, where we have a Pythia who participates in the announcement of Paul and Silas, the only time in the entire New Testament. The methodology to be used will be the on-site study (in situ), with the help of specific bibliography.
Keywords: Delphi; Pythia; Oracl; Acts 16:16
O livro de Atos dos Apóstolos 16,16-24 narra um fato acontecido com Paulo e Silas quando estes, num certo dia, dirigiam-se ao local de oração. Uma escrava com um espírito pitônico e que era explorada por seus senhores começou a seguir os dois missionários por vários dias anunciando: “Estes homens são servos do Deus Altíssimo, eles anunciam a vós o caminho da salvação” (At 17,17b).[1] Fatigado com aquilo, Paulo se volta ao espírito e lhe ordena que se retire dela. Este ato de Paulo levou os dois missionários à prisão, pois os senhores da escrava haviam perdido sua fonte de lucro.
Em geral, os comentários bíblicos prestam muita atenção ao fato da expulsão do espírito pitônico por parte de Paulo ou, então, à exploração que os seus senhores faziam da pobre escrava, que se supõe ser jovem, ainda que o texto não afirme isso. Contudo, pouco se foca na questão do espírito pitônico que a escrava possuía. Ou seja, qual é o contexto religioso subjacente nesta história? Esta tendência dos comentários bíblicos provavelmente tem a ver com a forma com que as Bíblias em geral traduzem o versículo de Atos 16,16. Vejamos: “Ἐγένετο δὲ πορευομένων ἡμῶν εἰς προσευχήν, παιδίσκην τινὰ ἔχουσαν πνεῦμα Πύθωνος ἀπαντῆσαι ἡμῖν, ἥτις ἐργασίαν πολλὴν παρεῖχεν τοῖς κυρίοις αὐτῆς, μαντευομένη.”[2] “Aconteceu que íamos para o lugar de oração, certa escrava que tinha um espirito pitônico veio ao nosso encontro. Ela trazia muito lucro aos seus senhores dando oráculo”.[3]
As Bíblias costumam traduzir πνεῦμα Πύθωνος por “espirito de adivinhação” ou “espirito mau” ou ainda espírito demoníaco (BALZ; SCHNEIDER, 1992). Porém, a tradução literal é “espirito pitônico” ou melhor ainda “espirito de Píton”. É a única vez que esta palavra, “pitônico’ ou “de Píton”, um substantivo genitivo singular, aparece no Novo Testamento.
Outra palavra que geralmente se traduz tendenciosamente neste versículo é o verbo μαντεύομαι, raiz da palavra μαντευομένη. Esta expressão, um particípio presente, é normalmente traduzida por adivinhações, forma que induz o leitor e a leitora à uma interpretação depreciativa da prática. No entanto, o verbo μαντευομαι literalmente significa “dar ou proferir oráculo” ou “profetizar”, assim como o faziam os profetas no Antigo Testamento, como Amós, Oséias, Miqueias etc. (cf. Am 2,11.16; 3,10.13; 4,3.5.6.10.11 etc.) Portanto, a jovem era uma pitonisa, uma espécie de profetisa ou vidente que dava oráculos e, como tal, era explorada por seus senhores para ganhar dinheiro. E pelo visto, muito dinheiro.
E o curioso é que este verbo μαντευομαι “dar oráculo”, em todo Novo Testamento, também só aparece neste versículo. Ou seja, temos um versículo com duas palavras que, em todo Novo Testamento, só aparecem aqui: “pitônico” ou “de Píton” e “dar oráculo”. É o que na exegese chamamos de Hapax Legomenon (ἅπαξ λεγόμενον), que quer dizer que esta palavra só aparece uma única vez em todo Novo ou Antigo Testamento.
De onde vêm estas expressões ou a que elas estão ligadas? O que significa “espírito de Píton”? Ou ainda, que contexto religioso está subjacente nesta expressão? Por que na época tinha pessoas, particularmente mulheres, que se acreditava possuírem o espírito de Píton para proferir oráculos? É muito provável que este contexto todo esteja ligado à pitonisa do oráculo de Delfos, do Deus grego Apolo, que no tempo de Paulo ainda se encontrava em forte atividade.
Vamos, portanto, visitar o santuário de Apolo em Delfos, na Grécia antiga, e procurar entender sua importância, principalmente o papel da pitonisa que ali dava oráculos. Vamos procurar entender a influência do santuário e de sua pitonisa no imaginário religioso, tanto das grandes autoridades políticas, quanto da população em geral da época.
A metodologia a ser usada será basicamente o estudo no local (in situ) do sítio arqueológico de Delfos, juntamente com descrições que constam nos painéis do sítio, informações de guias, bem como de bibliografias específicas. Como faz muito tempo que as escavações em Delfos foram concluídas, a grande maioria dos referenciais teóricos também é antiga. Vamos focar na cultura material, arquitetura, artefatos, ofertas votivas (ex-votos), dons sensoriais da pitonisa, com auxílio externo ou não (inalação de vapores, gases, incenso, folhas, água etc.) e como todo esse conjunto de valores influenciava o cotidiano da população.
Delfos está situada a 570 metros de altitude, aos pés do monte Parnaso, que por sua vez atinge uma altitude 2457 metros, no centro da Grécia. Ali, no monte Parnaso, segundo a mitologia grega, morava o Deus Apolo com suas musas. Ou seja, Parnaso era um monte extremamente simbólico para a religiosidade popular grega, de aí a importância significativa do santuário de Delfos. Entre os vários atributos de Apolo figurava a predição ou inspiração profética (Elisavet, 2018, pp. 38-43). Entende-se, assim, o porquê do santuário de Delfos e sua função. Conta também o mito grego de que Zeus, no intuito de encontrar o centro do mundo, soltou duas águias, uma no estremo leste e a outra no extremo oeste. Voando em direções opostas, as águias se teriam encontradas em Delfos. Por isso o santuário foi demarcado como sendo o umbigo “ônfalo” (’oμφαλός) do mundo. O símbolo do ônfalo era representado por uma pedra oval, como como se pode ver abaixo.
Figura 1. Ônfalos (foto: autor – gentileza do museu de Delfos)
As escavações em Delfos começaram no final do século XIX e se estenderam até os anos de 1970, sempre pela escola francesa de Atenas. O santuário tem uma característica particular. O fato de estar situado no alto, junto à montanha, sofria muito os efeitos dos terremotos da região, que derrubavam pedras da montanha sobre o santuário, que por isso, de vez em vez, tinha que ser reconstruído. Este particular é extremamente importante para o fazer arqueologia, pois numa cidade onde não acontece nada a arqueologia não tem muito o que dizer. Diferentemente de Delfos, que devido as constantes destruições, a arqueologia encontrou muitas Delfos diferentes. A mais impactante é a Delfos da época clássica, quando ela foi praticamente toda soterrada por um terremoto.
As escavações revelaram a presença humana no sítio a partir da idade do Bronze Médio. Já, então, havia ali um lugar de culto (AURIGNY, 2016). Os artefatos encontrados pelos arqueólogos indicam, com boa probabilidade, de que o culto inicialmente praticado ali era dos povos micenas à Deusa Gaia, a mãe terra. Ou seja, a primeira proprietária de Delfos era Gaia. Conta a mitologia que a ajudante de Gaia era uma serpente Píton. Mais tarde, Apolo teria matado a serpente Píton e se apropriado do oráculo. Já, então, teria havido ali uma pitonisa[4] de nome Sibila, que dava seus oráculos sobre uma pedra.
Os primeiros registros do oráculo de Delfos, porém, são do século VIII a.C., quando o santuário já era dedicado a Apolo, sempre com a presença de uma pitonisa. Seu maior esplendor, no entanto, foi durante a era clássica da Grécia, entre os séculos VI e IV a.C., quando o santuário chegou a ter três pitonisas. De vários e diferentes cidades e reinos vinham pessoas ilustres, reis, comandantes de exércitos, atletas etc. a consultar a pitonisa. Era normal que reis da região, antes de tomar uma decisão importante, como entrar numa guerra, fossem a Delfos para consultar o oráculo da pitonisa. Isso mostra como o santuário de Delfos tinha um papel determinante nas importantes decisões políticas de toda a Grécia (JARA HERRERO, 2020, p. 171-192). videntemente que o rei sempre vinha acompanhado de uma rica oferenda, em muitos casos duas, uma antes de consultar o oráculo e outra depois, caso Apolo lhe concedesse a vitória. Acreditava-se fortemente que uma oferenda valiosa garantia o favor da divindade. De modo que cada rei tinha o seu “tesouro” em Delfos, uma espécie de pequena capela, onde eram depositadas as ricas oferendas, como veremos mais adiante.
Portanto, além de centro religioso, Delfos era um local de captação de ricas doações e uma espécie de centro do controle político da região, pois influenciava as decisões de reis e de grandes autoridades. Ou seja, Delfos era também um centro de grande interesse econômico e político. Conhece-se muitos casos, verdadeiros ou não, de personagens importantes que receberam um oráculo da pitonisa, mas que o interpretaram erroneamente. Como os oráculos eram dados pela pitonisa, mas transcritos em versos hexâmetros[5] pelos sacerdotes em forma ambígua e enigmática, sua interpretação dependia sempre do ou da consultante. Este particular resguardava tanto os sacerdotes, quanto a pitonisa. Caso o oráculo não se confirmasse, a culpa cairia sempre sobre o ou a consultante, que não soube interpretá-lo corretamente.
Há muitas lendas, transcritas por autores importantes, como Heródoto e Pausânias, sobre personagens ilustres que teriam recebido o oráculo e o interpretado erroneamente. O caso mais famoso é o do rei de Esparta, Leônidas, na batalha de Termópilas, da segunda guerra médica. O rei teria consultado a pitonisa se ele deveria, com um número menor de soldados espartanos, enfrentar o grande exército persa. A pitonisa teria dado o oráculo, transcrito pelo sacerdote: “Vais Vencerás Não Morrerás lá”. O rei Leônidas foi e morreu em batalha. Seu filho teria regressado ao santuário a cobrar o oráculo. O sacerdote, então, teria interpretado corretamente o oráculo: “Vais. Vencerás? Não. Morrerás lá”.
Outro caso famoso é o do rei Creso da Lídia, também numa batalha contra os persas. Creso teria consultado a pitonisa se deveria atravessar o rio Hális, na Anatólia, para combater os persas ou não. E a pitonisa lhe teria dito: “Se um exército atravessar o rio Hális, um grande império sucumbirá”. Ele, pensando que seria o império persa a sucumbir, mas, não, era o seu, foi e morreu.
Tem ainda o caso de Alexandre Magno, que teria ordenado a pitonisa a que lhe desse um oráculo, ordem que ela teria negada. Alexandre, então a teria obrigada, ao que ela teria dito: “Contigo ninguém pode”. Alexandre, então, teria dito: “Obrigado, já obtive seu oráculo”.
Atrevo-me também a incluir aqui uma experiência pessoal. Em nossa visita de estudos ao sítio arqueológico, o guia nos entregou um papel, num envelope fechado, para que escrevêssemos uma consulta que gostaríamos fazer à pitonisa. Como na época estávamos a duas semanas da importante eleição presidencial de 30 de outubro de 2022, no Brasil, eu perguntei à pitonisa qual seria o resultado das eleições. Algumas horas depois, o guia entregou a resposta da pitonisa, também num envelope fechado: “Não tenhas pressa, pronto saberás”!
Delfos não era somente um santuário, representado pelo templo de Apolo, mas uma cidade, com vários e grandes monumentos. Vamos destacar os principais. Como em Corinto, também aqui Pausânias irá nos ajudar para identificar as principais construções.[6]
O Tholos. Todos os viajantes, peregrinos, atletas etc. percorriam o mesmo trajeto para chegar a Delfos, que consistia em uma longa subida tortuosa, em meio a uma bela paisagem natural. Assim ainda hoje. Antes de se chegar ao oráculo do templo de Apolo, a 650 metros abaixo, em linha reta, do lado esquerdo da via moderna, há um conjunto de remanescentes arqueológicos, dentre os quais, no centro, encontra-se o Tholos (θόλος). Ele fazia parte do santuário dedicado à Atena Pronaia. Construído durante a primeira metade do século IV a.C., o Tholos era um templo circular, com 20 colunas externas, de estilo dórico, e 10 internas, de estilo coríntio. Atualmente se podem ver três colunas solitárias, que foram reconstruídas, contendo os restos de uma pesada e elegante cobertura circular. Sua função exata ainda é uma incógnita, até o estilo circular é incomum para os templos da Grécia. É possível, inclusive, que seja uma referência ao ônfalos (umbigo do mundo), como visto acima.
Em frente ao Tholos se encontrava um enorme templo dedicado à Atena Pronaia, ainda bem visível entre as remanescências atualmente. O templo de Atena Pronaia era o primeiro que despontava, assim que o visitante alcançava o topo de Delfos. É provável que esta tenha sido exatamente a sua função, uma vez que Pronaia significa “o que vem antes” do templo de Apolo.
Entre o templo de Atena Pronaia e o Tholos se encontravam uma espécie de pequenas capelas (tesouros), para as ofertas votivas (ex-votos) dos visitantes ilustres, como veremos com mais detalhes abaixo. Atualmente ainda podem ser vistos os remanescentes de duas delas. Atrás do Tholos se encontram os restos de outro templo, que não se sabe exatamente a quem era dedicado. É possível que fosse um segundo templo de Atena Pronaia.
Enfim, o conjunto dedicado à Atena Pronaia era uma espécie de santuário prévio ao santuário principal, que era o oráculo de Apolo. Ou seja, primeiro se fazia as devidas oferendas à Atena Pronaia e depois se subia ao templo principal para receber o oráculo de Apolo.
O ginásio. Além da consulta por oráculos de Apolo, outro motivo porque as pessoas acudiam à Delfos eram os jogos pitônicos ou pitonaicos em Delfos. Depois do Tholos, seguindo-se uma centena de metros pela pista moderna, também do lado esquerdo, paralelo à pista, encontram-se os restos do antigo ginásio de Delfos. Construído durante o século IV a.C., ainda está bem visível a divisão em duas partes do ginásio. Uma parte, onde ainda se vê as bases de uma longa fileira de colunas, era a pista coberta para treinamento, para quando chovesse. E, paralela a esta, a segunda parte, descoberta. Ao lado de ambas, uma grande área livre para outras competições. Convém lembrar que desde o século VI já existiam em Delfos os jogos pitônicos (CASTRO, 2023). Eram jogos pan helênicos, iguais aos de Olímpia. Também se celebravam de quatro em quatro anos, sempre de entremeios. Ainda chama atenção no conjunto das obras do ginásio, uma grande circunferência, que era a piscina, usada para os atletas se refrescarem após as competições.
A fonte Castália. Subindo-se pela pista moderna, logo após o ginásio, onde a pista faz um giro de noventa graus à esquerda, ali, do lado direito, junto ao monte Parnaso, encontra-se a fonte Castália. Há muitas lendas sobre ela. Uma delas conta que Apolo se reunia ali com suas musas, uma delas a própria Castália, e Apolo tocava lira para elas. A fonte, rodeada de loureiros, planta símbolo de Apolo, era considerada sagrada e suas águas capazes de dar oráculos. De forma que, todos os peregrinos, antes de adentrar ao templo se purificavam nela. Era parte do ritual. Também os sacerdotes o faziam, antes de apresentar as oferendas a Apolo.
As ofertas votivas (ex-votos). Depois da fonte Castália, descendo-se uns duzentos metros pela pista moderna, chega-se finalmente ao grande templo de Apolo. Em frente ao templo há uma área ampla, uma espécie de praça, onde ainda se pode ver as remanescências dos tesouros dos reinos, em forma de pequenas capelas, onde reis e personagens ilustres depunham suas ricas ofertas votivas. A maquete que se encontra logo na entrada, contém edifícios de diversas épocas, que de fato nunca estiveram juntos ao mesmo tempo. Também aqui, Pausânias nos ajuda a identificar os principais monumentos, ainda que, quando Pausânias escreveu, por volta de 160 d.C., o santuário já estivesse em decadência (ELSNER, 1992, p. 3-29). Curiosamente, Pausânias nunca viu a Delfos clássica, que ficou soterrada pelo terremoto, e que só voltou à vista no século XX da nossa era, quando foi escavada pelos arqueólogos.
O caminho pelo pátio do santuário, em direção ao templo, era feito em forma de Z, onde se passava pelos tesouros das ofertas votivas. São ofertas em homenagem a Apolo de diferentes cidades e reinos, em geral por vitórias concedidas nas guerras. O curioso é que em muitos casos, eram vitórias contra as próprias cidades ali representadas. Atualmente tem uma “capela” (tesouro) que foi restaurada. Nela há uma representação de Fidípides, o herói da histórica vitória de Atenas em 490 a.C. contra os persas, em Maratona (POTTS, 2023, p. 417-520; HERÓDOTO, 2019).
Depois dos tesouros de ofertas votivas tem um muro, que servia de suporte para o templo, nele se fazia as inscrições de pessoas escravas que conquistaram sua libertação. Isto é, o escravo liberto vinha até o santuário e punha seu nome no muro. E logo detrás do muro foi encontrada a esfinge de Naxos, uma impressionante obra de arte que consta ser da primeira metade do século VI a.C., da Ilha de Naxos. A esfinge ficava em frente ao templo, na parte lateral, sobre uma coluna de dez metros de altura. A grande maioria dos peregrinos que visitaram Delfos não chegaram a conhecer a esfinge, que ficou soterrada pelo terremoto de 370 a.C. e também só descoberta pelos arqueólogos.
Figura 2. Esfinge de Naxos (Foto: autor – gentileza do museu de Delfos).
O templo de Apolo. O templo de Apolo em Delfos estava construído em sentido leste-oeste, seguindo a rota do sol. É possível que este propósito tenha sido intencional, para mostrar que a hora em que o sol refletisse na estátua de ouro de Apolo, que se encontrava dentro do templo, era a hora em que Apolo ingressava no santuário. Era, então, o momento propício para o oráculo. Por isso se diz que no inverno, quando o sol não chegava ao templo, a pitonisa não dava oráculos (VLACHOS; LIRITZIS; GEORGOPOULOS, 2018). O acesso do peregrino ao templo também era feito pelo lado leste, através de uma pequena rampa, que foi reconstruída e pode ser conferida pelo visitante atualmente. Para a descrição do interior do templo, contamos com a ajuda do historiador e filósofo grego Plutarco de Queronea (PLUTARCo, 1985; PLUTARCH, 1969). Ele conheceu melhor o templo que Pausânias, pois foi sacerdote de Delfos, ainda que ambos já vissem o santuário em decadência. Pausânias escreve por volta de 160 d.C. e Plutarco nos anos 90 d.C.. Ele foi nomeado sacerdote de Delfos em 95 d.C. e, apesar de que fosse mais um cargo honorífico que de fato, devia conhecer bastante bem o santuário, tanto que escreveu três tratados sobre Delfos (PLUTARCO, 1952).
Enfim, após fazer todo o recorrido, que incluía o ritual de purificação, a compra e sacrifício de um cabrito, o consultante entrava no templo. Depois de uma pequena divisória, uma espécie de pórtico de entrada, encontrava-se o átrio, que era a parte maior do templo, com uma série de colunas. Duas inscrições famosas chamavam a atenção: “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em excesso”. Frases usadas por grandes filósofos da Grécia, como Sócrates (Hülsz, 2003). Ao fundo ficava o santo dos santos, onde se encontrava a estátua de ouro de Apolo. O consultante se dirigia até o santo dos santos, ali tinha uma escadaria que acessava o subsolo do templo. Embaixo, numa espécie de caverna, encontrava-se a pitonisa sentada sobre um trípode, com um ramo de loureiro em uma das mãos e noutra um recipiente com água da fonte sagrada (VLACHOS; LIRITZIS; GEORGOPOULOS, 2018, p. 228-229). Mais adiante voltaremos a tratar do papel da pitonisa.
Figura 3. O templo de Apolo visto do alto, com o monte Parnaso ao fundo, à esquerda (foto: autor).
Na parte detrás do templo, entre este e o teatro, havia outra área grande de ofertas votivas (ex-votos) de peregrinos por graças alcançadas. São esculturas de rara beleza e que se encontram atualmente no museu do santuário. Duas esculturas chamam especial atenção: as bailarinas da coluna de Acantos e a auriga de Delfos, esta última dedicada a Apolo por uma vitória no hipódromo de Delfos. O curioso é que, como já comentado acima, são obras não mencionadas por Plutarco e Pausânias em seus registros, pois não chegaram a conhecê-las, porque estavam soterradas desde o terremoto de 375 a.C..
Figura 4. As bailarinas da coluna de Acantos (foto: autor – gentileza do museu de Delfos.
O teatro. Depois da área de ofertas votivas se encontra o teatro, já subindo-se a encosta do Monte Parnaso. Inclusive, a estrutura do teatro faz uso da elevação do monte para a sua base. De forma que boa parte do teatro está construída nas rochas do monte. A remodelação mais antiga do teatro consta ser do século IV a.C., para uma capacidade de cerca de cinco mil pessoas. Sua função principal era para as apresentações artísticas nos jogos pitonaicos. A vista panorâmica do alto do teatro é especial, principalmente do templo, que fica logo abaixo (cf. figura 5).
Figura 5. O teatro, visto do alto, com o templo de Apolo abaixo e o monte Parnaso à esquerda (foto: autor).
O estádio. Subindo-se por detrás do teatro, numa caminhada que quase se assemelha a uma escalada, bem no alto, encontra-se o estádio. Muitos visitantes não vão até lá por causa do acesso difícil. A pista do estádio ocupa uma área aplainada de 180 metros de comprimento por 25 de largura, para uma ocupação de cerca de 6.500 pessoas. Apesar do estádio não chamar muito a atenção do visitante atualmente, ele se encontra bem preservado. Ainda se pode ver, inclusive, as marcas de mármore da largada dos atletas nas competições de corrida.
Há informações divergentes sobre como e sob o efeito de que a pitonisa dava seus oráculos. Mesmo Plutarco não é claro sobre elas (LACY, 2014). Aliás, um dos maiores interesses da arqueologia ao escavar o interior do templo era saber como funcionava o oráculo da pitonisa. Há um certo consenso em considerar que o local chamou a atenção em uma época muito antiga, por causa de eflúvios de gás que saíam do chão ali (FONTENROSE, 1978, pp. 196-204). Existe a lenda, que todos em Delfo conhecem, do pastor e seus cabritos que ali entraram em êxtase porque inalaram os gases que saíam do solo. Juntando-se a isso o fato de ali estar a montanha sagrada de Apolo, a tradição do oráculo foi se formando. Muito se há investigado para saber o que seriam esses eflúvios e de onde viriam, por isso se tem escavado muito sob o templo, porém, nada foi descoberto. O que os guias costumam explicar aos visitantes é que há duas falhas geológicas que passam por debaixo do templo, a falha de Kerna e a falha de Delfos. E se acredita que em épocas antigas havia ali uma fenda que deixava passar gases vulcânicos, e que depois se fechou. A arqueologia, porém, não encontrou nenhum vestígio disso.
Um quadro que retrata com bastante precisão esse imaginário da pitonisa dando oráculo é a conhecida pintura de John Collier, de 1891.[7] Ali se encontra retratada a pitonisa sentada sobre uma trípode com um ramo de loureiro na mão esquerda e na mão direita um recipiente com água da fonte sagrada. A trípode fica sobre uma rachadura no subsolo do templo, de onde saem vapores e gases que a pitonisa inala e entra em transe. Olhando na água do recipiente, ela recebia o oráculo de Apolo, que era transcrito pelos sacerdotes e que o entregavam ao consultante. Outra versão diz que a pitonisa se purificava na fonte Castália, depois entrava no templo, bebia a água sagrada, mastigava folhas de loureiro e entrava em transe.
No quadro, a pitonisa é uma jovem, como se afirma ter sido nos primórdios. Porém, por causa de uma tentativa de violação por parte de um consultante, a pitonisa passou a ser sempre uma anciã.
A impressão que fica é que as pesquisas históricas focam sempre na busca por algum elemento externo, vapor, gás, água, folhas de loureiro etc., que induzisse a pitonisa ao transe. Parece se evitar pensar que a pitonisa pudesse ser uma pessoa especial, com dons sensoriais para proferir oráculos. Ou seja, pouco ou nada se fala sobre a pitonisa: quem era, seu nome, seu histórico, de onde vinha, como era escolhida etc. Isso deixa a impressão de que a pitonisa pudesse ser qualquer pessoa. Bastasse que sentasse sobre a trípode, inalasse os gases ou vapores e começaria a dar os oráculos. Ademais, é importante considerar que toda essa estrutura do santuário de Delfos, no fim das contas, girava todo em torno da pitonisa e de seus dons sensoriais.
Com a chegada do império romano, o santuário de Delfos foi perdendo importância. Para os romanos não interessava que houvesse um santuário que pudesse interferir nas decisões políticas da região. Os saques feitos pelos imperadores, que levaram para Roma artefatos de grande valor, são o maior testemunho disso. Também é verdade que, com o domínio romano, as guerras internas praticamente desapareceram na região. Os consultantes que iam a Delfos não perguntavam mais se deviam ir ou não para determinada guerra, como dantes, mas sim, se podiam fazer ou não determinada viagem. Os assuntos das consultas passaram a ser irrelevantes.
Conta-se que, por volta de 361 d.C., o imperador romano Juliano enviou seu embaixador a Delfos para se informar acerca do santuário. Ele recebeu a seguinte mensagem, que se convencionou chamar de “o último oráculo da pitonisa” (PETRIDIS, 2023, p. 101-105): Diga ao imperador que a cidade adornada está destruída. Apolo não tem mais morada, nem laurel profético. Emudeceu-se a fonte sussurrante, calou-se a água murmurante (GIEBEL, 2013).
As informações que temos é de que o oráculo foi encerrado definitivamente em 394 d.C. (DROSOU-PANAGHIÓTOU, 2013, p. 70).
No princípio de nossa pesquisa nos questionávamos sobre o possível contexto subjacente ao fato narrado em Atos 16,16-24, que trata da pitonisa que seguia Paulo e Silas. Depois da abordagem feita sobre o santuário de Delfos e sua pitonisa, entendemos que a resposta a esta pergunta seja mais fácil.
Ainda que no tempo de Paulo, o oráculo de Delfos não estivesse mais no auge de sua atividade, a crença em Apolo continuava muito forte em todo mundo grego. Assim também a procura por pessoas que tivessem o dom da clarividência, ou melhor dito, o dom pitônico, especialmente mulheres, jovens ou anciãs, similares às pitonisas de Delfos. É importante lembrar que, além do santuário de Delfos, havia ainda outros dois santuários de Apolo com oráculos. O de Claros, na Ásia Menor, com um homem que dava os oráculos, e o de Dídima, perto de Mileto, onde também uma mulher dava oráculos.
Além disso, uma prova de que o santuário de Delfos continuava ativo no tempo de Paulo é a inscrição encontrada em Delfos de um edito do imperador Cláudio e que faz referência ao procônsul da Acaia, Junios Gallio. Este personagem é citado em Atos 18,12-17 (cf. 1Cor 6,1-11), como aquele que julgou Paulo na Bema (tribunal) de Corinto, por volta do ano 52 d.C..
Figura 6. O pontilhado em negrito sob as seis letras “Gallio” é nosso. As quatro letras prévias ainda visíveis “nios” são de “Junios” (foto: autor – gentileza do museu de Delfos).
Portanto, devemos imaginar que é este o contexto subjacente ao acontecido em Atos 16,16-24: uma forte crença no Deus Apolo e uma atenção muito grande à pessoas com o dom de proferir seus oráculos, principalmente nas regiões de Filipos, Tessalônica, Corinto e Atenas, berço das comunidades cristãs (Kaefer, 2023a; 2023b). É compreensível, também, que neste ambiente não faltassem aproveitadores que se apropriavam de pessoas com este dom para fins lucrativos.
A ação de expulsão do espírito pitônico narrada em Atos é muito resumida: “Ordeno a ti, em nome de Jesus Cristo, saia dela”! (16,18c). Não temos mais informações sobre a “jovem”, o que teria acontecido com ela depois da “expulsão do espírito pitônico”. O texto não fala mais dela. O interessante é que a escrava, que os seguia, não dizia nada mais que a verdade: “Estes homens são servos do Deus Altíssimo, eles anunciam a vós o caminho da salvação” (At 17,17b). Dito de outra forma, ela estava ajudando as pessoas a se convencerem do anúncio que os dois missionários faziam. Ou ainda, de que ela, como vidente, como profetisa de Apolo, confirmava a mensagem sobre Jesus de Nazaré. De aí que perguntamos:
Será que o texto não deveria ser lido como um processo de conversão da “jovem” escrava? Aliás, a acusação contra Paulo e os seus, é de que “eles perturbam a cidade e, sendo judeus, anunciam costumes os quais não são lícitos aos romanos receber e praticar” (At 16,20b-21). Ou seja, a acusação é contra o anúncio e a tentativa de conversão. Portanto, seria o caso de uma escrava com dons de dar oráculos que se converteu ao cristianismo, deixando de gerar lucro para os seus senhores, sem, no entanto, ela perder o seu dom. Sabe-se que a pluralidade de crenças presente nas primeiras comunidades cristãs era grande, como se pode ver, por exemplo, em At 17,4: “E alguns deles foram persuadidos e se juntaram a Paulo e a Silas, bem como uma grande multidão de adoradores gregos, além de não poucas proeminentes mulheres”. É o caso também de perguntar, por que um dos grandes líderes da comunidade de Corinto se chamava Apolo (At 18,24-18; 19,1; 1Cor 1,12; 3,4-6.22; 4,6; 16,12; Tt 3,13)? Não seria por influência do contexto acima abordado?
Enfim, esta aproximação com o santuário de Delfos e sua pitonisa abre horizontes que nos ajudam a entender melhor o ambiente de pluralidade religiosa em que nasceu o cristianismo.
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[1] Tradução própria:
[2] Os sublinhados são nossos.
[3] Tradução própria.
[4] Com o “espírito de Píton” (Atos 16,16).
[5] Versos de seis pés métricos.
[6] Cf. artigo em publicação “O sítio arqueológico de Corinto: nos caminhos de Paulo”.