Luiz Carlos Susin
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma (PUG-Roma). Professor e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: lcsusin@pucrs.br
Luísa de Lucas
Mestrado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: marialuisa@notredame.org.br
Resumo: O patrimônio teológico, antropológico e espiritual que a Patrística oferece sobre Maria, mãe de Jesus, é riquíssimo. A antropologia, enquanto ciência que investiga as origens e características dos seres humanos, direciona também a teologia na perspectiva da compreensão do fundamento da dignidade humana que é inerente à vida cristã. A antropologia teológica elaborada por Agostinho de Hipona sobre Maria encontra-se relacionada com a elaboração dos dogmas cristológicos e trinitários e de seu pensamento sobre a Igreja. O presente trabalho tem por objetivo mostrar como Agostinho utiliza o termo pessoa e dignidade humana, a partir da figura de Maria e sua relação tipológica com a Igreja, dando enfoque ao plano de Salvação em Cristo pela Trindade. Ao longo de suas obras, Agostinho elenca algumas atribuições à Igreja associando-as diversas vezes com a Mãe do Senhor, testemunhando, assim, um pensamento profundamente cristocêntrico e tanto uma mariologia eclesiológica como uma eclesiologia mariológica. Agostinho ressalta a excepcional dignidade de Maria, a única a ser ao mesmo tempo virgem e mãe, não somente pelo espírito, mas também em seu corpo.
Palavras-chaves: Mariologia patrística; História da mariologia; Antropologia agostiniana
Abstract: The theological, anthropological and spiritual heritage that Patristics offers about Mary, mother of Jesus, is extremely rich. Anthropology, as a science that investigates the origins and characteristics of human beings, also directs theology from the perspective of understanding the foundation of human dignity that is inherent to Christian life. The theological anthropology elaborated by Augustine of Hippo on Mary is related to the elaboration of Christological and Trinitarian dogmas and his thoughts on the Church. The present article aims to show how Augustine applies the term person and human dignity, from the figure of Mary and her typological relationship with the Church, focusing on the plan of Salvation in Christ through the Trinity. Throughout his works, Augustine lists some attributions to the Church, associating them several times with the Mother of the Lord, thus testifying to a deeply Christocentric thought and to both an ecclesiological Mariology and a mariological ecclesiology. Augustine emphasizes the exceptional dignity of Mary, the only one to be at same time virgin and mother, not only in spirit but also in his body.
Keywords: Patristic Mariology; History of Mariolog; Augustinian Anthropology
O pensamento de Agostinho sobre a definição do ser humano tem influenciado significativamente a antropologia teológica como uma nova forma de aprofundar a teologia na sua essência e complexidade. A antropologia teológica vem revelando que o ser humano é uma definição/identidade que se realiza em múltiplas diferenças, e se encontra envolvido por uma realidade misteriosa que o transcende. A antropologia teológica se encontra num vínculo notável com a doutrina da criação, com a soteriologia e a doutrina da Trindade. Na Cristologia alcança sua mais forte identificação, porque o ser humano encontra em Cristo, Verbo encarnado, o sentido da sua existência e sua vocação última (GS 22). Em Maria, o feminino encontra um caminho do ser humano para Deus e de Deus se revela no feminino. A antropologia atinge também a mariologia, dado que a Mãe de Jesus é o exemplo da pessoa fiel tomada pela graça.
A atenção da Igreja em conciliar a relação de Maria de Nazaré com a antropologia continuou em todos os séculos. Os dois primeiros séculos do cristianismo foram importantes para a história da Mariologia. Com o surgimento de grandes escritores, como Agostinho de Hipona (354-430 d.C), elaboram-se escritos sobre Maria, ao lado dos textos apócrifos, produzidos para responder à necessidade de refletir sobre a vida de Cristo e, em consequência, de Maria. O chamado protoevangelho de Tiago,[1] datado no final do II século, refere-se ao nascimento de Maria. O mesmo influenciou muitas lendas sucessivas sobre a Mãe de Jesus, bem como a arte simbólica.
A partir das afirmações sobre Maria na Sagrada Escritura, no Novo Testamento e nos Apócrifos, os debates teológicos em torno da Cristologia e da Teologia nos primeiros séculos tornaram também a Mariologia um tema da Patrística. No início, não haviam os termos mais adequados para denominar temáticas fundantes como o mistério cristológico, a dignidade da pessoa de Maria e o significado salvífico da Mãe de Deus. Porém, houve junto aos testemunhos da Escritura e da Tradição Apostólica, inúmeras confirmações e interpretações acerca da figura de Maria que colaboraram para edificar uma direção para os progressivos desenvolvimentos da mariologia.
No segundo período da Patrística,[2] merecem atenção os Padres Capadócios: Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Basílio Magno, assim como Epifânio, Bispo de Salamina, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona. Seus tratados enraízam o conceito de “Mãe de Deus” (Theotókos) na consciência cristã (SÖLL, 2002, p. 885-887). O pensamento teológico sobre a Virgem Maria encontra-se sempre relacionado com a elaboração dos dogmas cristológicos. Em diversos momentos as homilias e escritos dos Padres da Igreja se voltaram para combater heresias, principalmente vindas do judaísmo e da gnose, através do serviço seja do ensinamento da fé (Catequese), seja de sua defesa (Apologia). Porém, nem com as doutrinas iniciais da Patrística e nem com o avanço do estudo do Novo Testamento, especialmente nos escritos que o evangelista Lucas havia delineado, revigorou para um avanço de uma mariologia sistemática e uma visão antropológica de Maria.
A teologia mariana foi se desenvolvendo nos primeiros séculos pelos Padres, devido à aceitação de Maria como colaboradora no plano de salvação à humanidade, realizado por Deus Pai ao enviar o seu Filho ao mundo. O presente artigo pretende analisar elementos antropológicos presentes nos textos de Agostinho, para decifrar a visão do bispo de Hipona sobre Maria de Nazaré e sua dignidade como pessoa, mulher e mãe de Jesus, através da encarnação do Verbo. Os textos patrísticos marianos possuem um dinamismo de moldar a alma e conduzi-la para a verdadeira meta da Teologia que é a contemplação do mistério de Deus no projeto da Redenção.
Na teologia latina, Agostinho assumiu um conceito que já tinha sido adotado anteriormente por Tertuliano, ao falar de “uma só essência e três pessoas” (una essentia – tres personae), com referência à Trindade (GOMES,1979, p. 283-286.). Na obra De Trinitate, ele enriqueceu para sempre a doutrina sobre a Trindade na base de suas perspectivas hermenêuticas. Ao longo de toda a sua discussão teológico-dogmática, há uma apreensão ponderada acerca da existência humana diante do mistério trinitário. Ele via, na vida do espírito humano, diversas analogias da existência trinitária de Deus: por exemplo, a tríade “memória, inteligência e amor” (memória, intelligentia et amor) (GOMES, 1979, p.293).
O que denomino inteligência é aquela faculdade inseparável do pensamento, quando pela descoberta dos conhecimentos presentes na memória, nosso pensamento é informado pela recordação do que estava à disposição na memória, mas não era ainda pensado. E chamo vontade, dileção ou amor, a faculdade que une o produto da memória à inteligência. (AGOSTINHO, 1994, p.10.)
Segundo Agostinho, a reciprocidade da natureza divina presente na ação trinitária (o Pai gera o Filho) e da espiração (o Pai e o Filho estão na origem do Espírito) necessitam ser compreendidas como relações mútuas, ações entrelaçadas pelo amar e pelo conhecer. Esta comparação entre o divino e o humano se reflete, o que interessa à antropologia, na aplicação da palavra “pessoa” também ao ser humano. Agostinho, influenciado pela filosofia platônica, projeta o ser humano como uma composição de corpo e alma, e onde se encontrará registrada a imagem de Deus, unidade e trindade das pessoas divinas. Há, nesse sentido, uma transição de uma perspectiva cristológica para uma perspectiva trinitária da imagem de Deus na teologia latina.
Com a intenção de encontrar um termo que se possa aplicar distintamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo sem correr, de uma parte, o risco de fazer deles três deuses e, de outra parte, sem dissolver a sua individualidade, ele mostra que os termos “essência” e “substância” não têm essa dupla virtude. Ela, pelo contrário, pertence ao termo grego hypóstasis e ao seu correlativo latino persona (pessoa), o qual “não significa uma espécie, mas algo de singular e de individual” (AGOSTINHO, 1994, p.254).
O bispo de Hipona não define o ser humano baseando-se em apenas uma das partes, corpo ou alma, mas como um composto de corpo e alma. Estas duas realidades são distintas, mas necessárias para a constituição humana. O corpo é uma realidade espaço-temporal que está a serviço da alma racional, parte semelhante a Deus. A alma é a bússola ou o piloto que orienta o corpo. Embora este seja a parte infra-humana, não se percebe, em Agostinho, um olhar depreciativo e negativista para o mesmo, porque foi criado por Deus. O ser humano, particularmente a alma racional, é imagem do Deus uno e trino (AGOSTINHO, 1994, p. 493-494).
O ser humano criado à imagem de Deus, “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn, 1,27), por sua alma racional, é chamado a viver divinamente. O ser imagem é dom de Deus e não uma conquista pessoal, racional, embora o bispo de Hipona admita que a imagem se localiza na parte racional do homem, isto é, na alma. Agostinho afirma: “Não consigo compreender, porém, como a alma, quando não pensa em si mesma, não esteja presente a si, pois nunca pode ela estar separada de si mesma, como se uma coisa fosse ela e outra à vista de sua presença” (AGOSTINHO, 1994, p. 316).
Neste sentido, a condição de imagem não é temporária, perecível, mas indelével, indestrutível, imortal. A imagem possui um caráter ontológico. O pecado de Adão não deletou a imagem, mas a distorceu. É Cristo quem a reconstitui. A imagem impressa na criação do homem é atualizada e renovada pela graça. Agostinho admite que a alma racional, como imagem da Trindade, é “imperfeita, contudo imagem”. A imagem chegará à sua plenitude na visão beatífica. Agostinho ressalta que “embora, a alma humana não seja da mesma natureza que a de Deus, contudo, a imagem dessa natureza - a mais sublime que se possa pensar-, é preciso procurá-la e encontrá-la em nós, lá onde a nossa natureza possui o que há de mais excelente” (AGOSTINHO, 1994, p. 453).
Dessa forma, Agostinho influenciou a teologia escolástica através do pensamento cristão associando o ser humano à salvação por meio da graça divina. A imagem de Deus é contemplada numa ótica metafísica, racional e trinitária. O ser humano, por sua alma, traz em seu interior a imagem da Trindade. Deus é concebido como o Mestre interior, uma pessoa transcendente que dialoga com a pessoa humana na sua intimidade mais íntima. Por ser imagem da divindade, a pessoa carrega dentro de si o dom de buscar, amar e conhecer a Deus. Sendo assim, a colaboração de Agostinho é determinante em dois aspectos: a descoberta da interioridade e a passagem analógica do conceito de pessoa em Deus à ideia de pessoa aplicada ao indivíduo. A descoberta da essência da pessoa conduz o pensamento cristão à definição de que o eu-pessoa é o centro de decisões livres.
A influência de Agostinho, no século V, diante da doutrina do pecado original, contra os pelagianos, foi determinante para a Igreja definir o significado do termo usado por ele: peccatum originale. Ele entende que a salvação da humanidade, diante da universalidade do pecado, é o grande projeto que Cristo veio anunciar. Cristo, como exemplo e sacramento, abre as portas da redenção universal.
Agostinho, baseado em São Paulo, e na dura experiência existencial de luta contra o mal, sustenta que a humanidade está marcada pelo “pecado original” de Adão. Ela necessita ser salva por Cristo, em virtude da graça. Jesus foi poupado dele devido à concepção virginal (MURAD, 2012, p.163).
Diante do pecado, Agostinho admite nas crianças a mesma realidade. Para ele, essas também necessitam da redenção de Cristo, o redentor de toda a humanidade. O sacramento do batismo anula o pecado original (“mancha”) e as crianças que morrem sem ele sofrem uma espécie de castigo/condenação.
Na medida que o permite sua idade, a alma da criança como que se fecha em sua atenção de tal modo que somente aborrece ou deseja o que a ofende ou atrai fisicamente, com vivo impulso. Ela não reflete em seu interior e nem podemos aconselhá-la que o faça, porque ainda não conhece os sinais de quem a adverte (AGOSTINHO, 1994, p.446).
O mariólogo Afonso Murad afirma que, para Agostinho, a situação do ser humano ao nascer assemelha-se ao pecado pessoal de Adão, isto é, a pessoa que comete um pecado individual e segue a própria vontade, perece sua alma e é privado da graça. Para Agostinho, o pecado original seria transmitido de geração em geração, através da relação sexual. Agostinho afirma que, pelo pecado, o ser humano perde sua semelhança com Deus. Logo, perde a imagem de Deus (MURAD, 2012, p. 163).
Em consequência, o ser humano não pode vencer definitivamente o pecado nesta vida, embora lute, ajudado pela graça, com êxito. Examinando o texto de Romanos 5, que é usado para legitimar a visão literal sobre a origem do mal, Cristo mostra a sua superioridade sobre a figura de Adão. Paulo parte de uma ideia defendida pelos judeus na época, que a origem do mal é a partir de Adão, para afirmar a vitória redentora de Cristo, que se estende a toda a humanidade: “Onde, porém, aumentou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Santo Agostinho deduziu que a consequência do pecado original é a condenação (massa damnata), mas Deus, resgata desta multidão de condenação, todos que Ele reservou à salvação, mediante a graça.
Para Agostinho não há uma ruptura entre liberdade e graça. A graça não oprime a liberdade, antes é dinâmica e se adapta às condições reais da pessoa. Sem o elemento da graça não existe uma liberdade completamente livre. A graça é o elemento que suscita, desperta, favorece a fé: é “Initium fidei”. E o próprio bem e a maior riqueza da liberdade humana é corresponder à vontade de Deus. O bispo de Hipona compreendia que “Deus age na vontade humana inclinando-a tanto para o bem, como fruto da sua misericórdia, como para o mal, de acordo com os merecimentos, obedecendo a seus desígnios claros e ocultos, mas sempre justos” (AGOSTINHO, 1999, p. 9).
Enquanto Santo Agostinho fazia todas as coisas dependerem da graça, os hereges pelagianos inferiam que a graça de Deus é outorgada de acordo com os méritos, de modo que, aquele que se gloria, não se glorie no Senhor, mas em si mesmo, isto é, no homem (AGOSTINHO, 1999, p. 12).
Para Agostinho, a pessoa verdadeiramente livre é aquela que age segundo a graça e a vontade de Deus, ou seja, segundo o plano da Salvação. A graça e a liberdade não contrastam em Santo Agostinho, pelo contrário, elas se complementam e se fecundam mutuamente. “Não se deve dar tanta importância à graça de Deus a ponto de subestimar a liberdade do homem, como também não se deve exaltar a liberdade a ponto de menosprezar a graça” (AGOSTINHO, 1999, p. 8). A doutrina da graça de Santo Agostinho não nega que exista o livre-arbítrio, mas o torna indissociável à graça.
Agostinho defendia que o livre-arbítrio depende da ajuda da graça de Deus, considerando perigoso e nocivo o ensinamento dos pelagianos que diziam que, com o livre-arbítrio da vontade humana, não precisamos ser ajudados por Deus. Todavia, o arbítrio da vontade livre não contraria o auxílio da graça de Deus, motivo sem o qual Jesus não teria nos ensinado a orar para que Deus nos livrasse da tentação (Mt 6,13)( AGOSTINHO, 2019, p. 164) Segundo os pelagianos, “quando não queremos, não pecamos, por isso, Deus não ordenaria ao homem nada que fosse impossível à vontade humana” (AGOSTINHO, 2019, p. 164-165). Agostinho rebate tal afirmação, servindo-se do salmo: “Nenhum ser vivo justificará a si mesmo diante de Ti” (Sl 142,2).
Também o ato de perseverar no bem é um dom de Deus, porque não pode ser um produto da capacidade humana, nem mesmo do livre-arbítrio, mas se apresenta como uma ação de Deus no ser humano, que responde à mesma graça de forma positiva (AGOSTINHO, 1999, p. 56). Diante disso, na teologia agostiniana, a liberdade se harmoniza perfeitamente com a graça de Deus, na medida em que a graça não coage, mas coopera com o ser humano nas suas fraquezas. A graça liberta das forças do pecado para o ser humano exercer a verdadeira liberdade (Gl 5,1). Dessa forma, pode-se afirmar que Maria de Nazaré aderiu com sua vontade, em total liberdade, à graça divina. A santidade de Maria é fruto da graça de Deus de forma plena, “cheia de graça” – kecharitomene - em vista de sua missão.
A Igreja primitiva acreditou firmemente que Maria, por graça especial de Deus, viveu em plena graça e sem pecado, como nova Eva para conceber na carne o Filho de Deus como o Novo Adão. Nesse sentido, amadurece o título de Imaculada, isto é, sem a mancha do pecado. Maria foi gerada na realidade humana, mas sem o pecado que passa de geração à geração. A doutrina desenvolvida por Agostinho interferiu no pensamento da Igreja após o século IV. Ele afirmou a total ausência de pecados atuais em Maria, mas não do pecado original. Mais tarde, Duns Scotus, na segunda metade do século XIII, iria fazer uma distinção entre “redenção” e “preservação” na ordem da salvação, de tal forma que se compreendeu a partir de então Maria salva através da preservação de todo pecado, inclusive do pecado original. É então que, em teologia, o título de Imaculada ganha foro de verdade até chegarmos ao século XIX com a proclamação do dogma da Imaculada.
Em suas reflexões em torno da mariologia, José Cristo Rey Garcia Paredes comenta que os grandes padres escolásticos, entre eles o próprio Santo Tomás, não afirmavam a isenção de Maria do pecado original por causa do dogma paulino da redenção universal (Rm 3, 23-26) mas já não afirmavam uma hipotética purificação de Maria no ato de sua concepção. O problema suscitado então era o de conciliar a necessidade de redenção universal, que deveria incluir Maria, e a preservação especial de Maria do pecado original. Como vimos acima, as afirmações tradicionais da Igreja sobre Maria é que ela foi redimida do pecado original (GARCIA PAREDES, 2011, p. 253).
O dogma da Imaculada Conceição foi formulado num contexto de Teologia da Graça e do Pecado Original que experimentou revisão e ampliação nos últimos tempos. A ideia de “Pecado Original” a partir de Adão e Eva, personagens “históricos” – uma “historização” problemática da narrativa - foi difundida num contexto de pouca densidade existencial, como “mancha” (MURAD, 2012, p. 165-166).
O dogma começa a se delinear a partir de discussões no começo do século V entre Pelágio e Agostinho sobre o pecado original e a graça divina. Os pais da Igreja falam da santidade de Maria e ao mesmo tempo sinalizam que ela peregrinou na fé. Havia então restrições para uma concepção sem pecado.
A Imaculada, no entanto, é um dos símbolos presentes em todo o cristianismo. Em Maria, a virgem obediente, conhecemos o início da história da graça: ela lembra Eva, a virgem desobediente; por ela entramos no período dos tempos novos: dela nasceu o Cristo, novo Adão; através dela, entrevemos o futuro da glória: ela profetiza a condição de bem-aventurança dos redimidos.
O desenvolvimento teológico sobre o dogma da Imaculada Conceição perpassa os séculos, e vai-se ter uma concreta abertura a esse respeito numa consonância entre as posições teológicas a partir do século XIII, quando o teólogo franciscano João Duns Scotus (1265-1308) apresentou uma solução para as restrições defendidas por parte de Agostinho. Duns Scotus desenvolveu uma teologia da preservação, na qual diferentemente de toda a humanidade que participou da redenção liberativa, Maria recebe um privilégio único de participar de uma redenção preservativa de Cristo. Duns Scotus afirma:
Como perfeitíssimo mediador, Cristo exerceu o grau mais perfeito possível de mediação relativamente a uma pessoa para a qual ele era mediador. Ora, para pessoa alguma ele exerceu um grau mais excelente do que para Maria. Isto, porém, não teria acontecido se ele não houvesse merecido preservá-la do pecado original (PINTO, 2018, p. 311).
Através de uma comparação, Duns Scotus explica melhor sua declaração, que José García Paredes resume:
Um rei (Deus), depois de ter sido gravemente ofendido, privou da herança os filhos do ofensor; mas depois foi aplacado na melhor das maneiras por um mediador inocente, Jesus Cristo, que não só satisfez pela ofensa feita, mas impediu que outro, Maria, se fizesse culpado diante do rei ( GARCIA PAREDES, 2011, p. 253)
Por isso, a concepção imaculada, sem pecado, não é apenas um privilégio de Maria de Nazaré, mas também o ícone da humanidade salva: ela é a imagem daquilo que Deus queria fazer do ser humano antes que este pecasse em Adão; ela é a perspectiva daquilo que Deus fará do ser humano depois que este entrar no plano de redenção de Cristo. Não existe, portanto, nenhum perigo de negar a redenção universal e a necessidade de redenção em relação a Maria (GARCIA PAREDES, 2011, p. 254).
Maria é percebida como santa porque cumpriu inteiramente a vontade do Pai, de modo que conta mais a sua situação de ser discípula de Cristo que ser sua mãe, como afirmou Agostinho. Maria viveu o discipulado no Senhor, manifestando sua vida de santidade. Ela é bem-aventurada porque antes de gerar o Mestre na carne, o gerou na fé. Agostinho tem presente que “Maria representa o que de mais digno, puro e inocente poderia oferecer esta nossa terra a Deus, a fim de que o Filho de Deus se dignasse baixar até a terra. É nesse sentido que Maria é denominada a “dignitas terrae” (AGOSTINHO, 1996, p. 13-14). Por isso, para Agostinho, Maria é o ser humano que mais transparece a imagem perfeita de Deus, o Verbo encarnado. Nela contempla-se a imagem divina.
No pensamento dos Padres Orientais, as temáticas abordadas sobre a figura da Virgem Maria tratam: o paralelismo Eva-Maria: Maria é a Nova Eva; a virgindade perpétua de Maria; a maternidade divina de Maria; a santidade de Maria e a morte – ou dormição - e assunção de Maria. Os escritos dos Padres Apostólicos e Apologistas,[3] assim como os escritos apócrifos, colocam as bases do pensamento mariológico desde a teologia grega, que começa antes da teologia latina.
Em seus sermões e obras, influenciado pelos escritos de São Ambrósio e São Jerônimo, Agostinho revela que Maria ocupa uma posição especial em sua meditação teológica e em sua exortação pastoral. Todavia, ele não discorreu especificamente sobre mariologia. Suas considerações sobre Maria desenvolvem-se de modo ocasional, dentro das suas especulações cristológicas ou no correr de suas exortações pastorais, de caráter moral, ascético e espiritual. Sendo assim, mariologia e cristologia são para o bispo de Hipona inseparáveis.
Agostinho ressalta a virgindade e a fecundidade de Maria em relação a Cristo e à Igreja. Jesus Cristo e a Virgem Maria são modelos de virgindade fecunda. Cristo é o esposo da Igreja, Virgem e Mãe. Aí está a finalidade do seu tratado. A igreja é denomina “virgem” por Agostinho com tal insistência que supõe uma doutrina firme e sólida. Porém, é necessário compreender o contexto, pois refere-se ao conceito de Igreja como “Corpo Místico”, isto é, à humanidade santificada por Cristo, vivendo de sua graça, tornando-se uma só realidade com ele.
A Igreja é a verdadeira Cidade de Deus, toda animada pelo Espírito de Deus. Mas a Igreja é também a Esposa de Cristo (cf. Ef 5,25). É justamente por esse último título que a Igreja é chamada Virgem. Com frequência ele compara a Igreja com Maria, Igreja que também é Mãe, como Maria, pelo espírito. Essa virgindade da Igreja consiste na perfeita integridade da fé, da esperança e da caridade.
Maria deu à luz corporalmente à Cabeça deste corpo. A Igreja dá à luz espiritualmente os membros dessa cabeça. Nem em Maria nem na Igreja, a virgindade impede a fecundidade. E nem em uma nem em outra a fecundidade destrói a virgindade. Portanto, se toda a Igreja é santa de corpo e espírito, sem, contudo, ser virgem totalmente pelo corpo, mas só pelo espírito - quanto mais excelente deve ser a santidade naqueles seus membros em que ela é virgem pelo corpo e pelo espírito (AGOSTINHO, 1990, p. 2).
O bispo de Hipona afirma que Maria recebeu um grau de graça mais elevado que todas as outras mulheres. Em sua doutrina, a virgindade de Maria, longe de rebaixar o matrimônio, contribui para elevar-lhe a santidade, que é exigida por sua dignidade de Mãe do Salvador (AGOSTINHO, 1996, p. 14). Sua fé, alimentada pela caridade é, por excelência, a cooperação dada por Maria na encarnação do Verbo. Entre as outras virtudes que Agostinho destaca em suas obras a humildade, a obediência, a castidade e sua dignidade como modelo de todos os fiéis.
A Igreja teve normalmente cautela em sua doutrina para que o reconhecimento que se devota à Mãe do Senhor não tenha ressaibos de adoração e idolatria (CEC, 971; 1090.). Maria não é Deus. É uma mulher humilde, mas que esteve sempre aberta a Deus com sua fé e com sua humanidade, e foi, então, profundamente tocada pela graça, com uma cooperação especial no plano divino da salvação: ser a Mãe do Redentor, do único que nos salva.
Olhando Maria, no rosto de uma mulher cheia de fé e de graça, contempla-se o Cristo, a Imagem do Deus invisível (Cl 1,15) e reconhece-se a semelhança divina à qual se reportam todos, efetivamente, à imago Dei que constitui a dignidade ontológica do ser humano. Deus realiza em Maria o que deseja realizar em todo ser humano e, por consequência, em toda a Igreja (LG 68): a humanidade plenamente salva e em harmonia com a sua natureza original, numa palavra, a humanidade bem-aventurada, feliz em plenitude.
Murad comenta que em Maria pode-se encontrar de modo intrínseco, todas as disciplinas teológicas: a cristologia, a eclesiologia, a antropologia, a pneumatologia e a escatologia. Ela é uma referência singular para a contemplação humana do mistério de Deus. A mariologia estuda a pessoa de Maria com tríplice olhar: da Bíblia, do culto e do dogma. Com a ajuda das ciências da religião realizam-se análises das diferentes visões de Maria nos cenários socioculturais e religiosos, respondendo às questões que surgem na sociedade e na igreja. Essas verdades precisam ser coerentes e ter sentido para existência dos cristãos (MURAD, 2012 p. 28-29).
Elevar Maria à dignidade de ser respeitada e louvada no seu devido lugar depois de Deus, justamente por causa de seu sim ao Senhor e de sua humildade, não foi uma criação da Igreja pós-era apostólica, mas partiu do próprio Novo Testamento, tempo em que Deus fez conhecer a sua manifestação a Isabel e Zacarias. A mãe do Batista perguntou a Deus de onde viria a honra que a “Mãe do seu Senhor” a fosse visitar (Lc 1, 43). Aqui se impõe uma diferença e um justo lugar ao culto mariano: não é culto de latria, adoração que se deve somente a Deus – no caso, incluído Cristo, o Filho de Deus, o Jesus filho de Maria – mas é culto de dulia, veneração e homenagem a quem foi serva fiel e por isso se tornou mãe do próprio Filho de Deus. Negar que a Virgem Maria seja honrada com o culto da dulia, é negar a própria divindade de Jesus que foi reconhecido por Isabel como o Kyrios humanado.
Agostinho ressalta a excepcional dignidade da Virgem Maria, a única a ser ao mesmo tempo virgem e mãe, não somente pelo espírito, mas também pelo corpo. Jesus não nasceu de relações matrimoniais normais, mas de uma concepção operada pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria (Mt 1,18-25; Lc 1,16-38). Fica assim evidenciada a relação profunda entre virgindade e maternidade simultaneamente também na Igreja que continua a conceber Cristo para o mundo, segundo a insistência de Agostinho. Em sua dignidade de pessoa, Deus reservou à Maria uma missão e, em sua humildade, ela correspondeu ao projeto de Salvação como mulher e mãe.
A contribuição da mariologia agostiniana à antropologia não permanece, em conclusão, apenas em sua relação com a Igreja, mas, como na mariologia oriental, atinge Eva e a humanidade inteira enquanto modelo escatológico de todo ser humano. Mais do que um Novo Adão – título reservado a Cristo, o Filho de Deus glorificado em sua humanidade - a glorificação humana que emerge da humanidade como tal, ou seja, de uma criatura elevada e assunta à glória, Maria é a Nova Eva, Virgem e Mãe. Ela é modelo e sacramento de toda a humanidade em sua figura escatológica, assim como é especificamente da Igreja. Esta configuração sacramental de forma universal em Maria, desde a intuição da Lumen Gentium VIII, a torna singular enquanto se trata de um modo “pessoal” de exercer a sacramentalidade da salvação (SUSIN, 1988. p. 274-276.).
Levando a termo a formação do conceito de pessoa, percebe-se que a necessidade de entender o mistério da Encarnação do Verbo e também de explicar o Mistério da Trindade, influenciaram essa composição. Os cristãos precisavam afirmar diante da sociedade se Jesus de Nazaré pertencia a uma realidade humana ou divina, tendo em vista sua natureza e individualidade diante das três pessoas da Trindade.
Para isso, aos poucos, chegou-se, com os padres capadócios, no século IV, à distinção entre “essência”, ou natureza (ousia), e pessoa, hypóstasis. Antes a palavra hypó-stasis, por sua etimologia mesma, era compreendida como sub-stancia, ou seja, natureza, enquanto a palavra prósopon – de pros-opsis, a face ou o “olhar”, era entendida como um modo de ser, um personagem, uma persona própria do teatro, o revestimento de um papel a ser exercido, portanto, as diferentes personas que é possível conferir a um indivíduo, em diversos contextos. Para os padres capadócios, a expressão hipóstasis revelava a identidade e unicidade de um sujeito. Para se referir à sua natureza ou substância, se utilizou a partir de então a palavra ousía. Foi uma decisiva mutação semântica.
A reflexão de Agostinho e sua contribuição se tornaram decisivas, seja em referência à análise profunda da interioridade da pessoa, como da passagem analógica da concepção de pessoa em Deus à ideia de pessoa aplicada ao ser humano. No primeiro caso, encontra-se diante da certeza da pessoa como “eu”, centro de decisões livres. Quanto ao segundo, abre-se toda uma sucessiva reflexão, que continua em nossos dias, sobre o homem como pessoa, particularmente fortalecida pela sucessiva definição de Boécio: “Substância individual de natureza racional” (naturae rationalis individua substantia) (CAFFARRA, 1996).
Muitas reflexões desenvolvidas ao longo da Patrística feitas por Agostinho foram essenciais para o desenvolvimento da ligação entre antropologia e mariologia. Suas análises e ponderações contribuíram de forma clara e determinada para a difusão do conhecimento, do aprofundamento e da piedade popular manifestada à Maria em toda a Igreja. Nas obras feitas por Agostinho se manifestam em diversos momentos a afetuosa e convicta veneração do seu pensamento, que também influenciou universalmente o culto mariano.
Segundo Elisabeth Johnson, Agostinho estava consciente do débito que cada geração tem para com as pessoas que as precederam no cristianismo, como Maria de Nazaré, pois elas foram pioneiras em um modo de vida totalmente novo, e, na ousada coragem da fé, abriram caminhos para os seguidores de Cristo, mesmo com todos os sofrimentos, mas também vitórias. Em Maria temos uma testemunha que acalenta, em circunstâncias muito diferentes, aquilo pelo qual muitos viveram e morreram: o projeto de salvação (JONHSON, 2006, p. 178-179).
De acordo com a mariologia agostiniana, Maria é feliz, bem-aventurada, porque não só ouviu a Palavra de Deus, mas a guardou no seu interior. Ela viveu a verdade de Deus no coração e na sua essência soube responder com generosidade a um chamado divino. Ela é, assim, o testemunho mais alto da subjetividade cristã, do eu em face de Deus, que, sendo filha de Deus, gesta em si o próprio Filho de Deus e se torna Mãe de Deus, vocação que se estende a todo ser humano segunda a fé cristã:
Entre todas as mulheres, Maria é a única a ser ao mesmo tempo Virgem e Mãe, não somente segundo o espírito, mas também pelo corpo. Ela é mãe conforme o espírito, não d’Aquele que é nossa Cabeça, isto é, do Salvador do qual ela nasceu espiritualmente. Pois todos os que nele creram – e nesse número ela mesma se encontra – são chamados, com razão, filhos do Esposo (filii sponsi) (Mt 9,15). (AGOSTINHO, 1996, p. 55)
O relacionamento de Maria com a Igreja constitui um capítulo particularmente rico na teologia mariológica agostiniana. Em resumo, “a ideia fundamental da relação mútua entre Maria e a Igreja consiste em que ela é a pessoa na qual se recapitula toda a Igreja” (AGOSTINHO, 1996. p. 12). Conforme lembra o Concílio Vaticano II, a Mãe de Deus é a figura da Igreja na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo (LG 63). Ora, se ela é a “pessoa na qual se recapitula toda a Igreja”, é preciso identificar os principais aspectos dessa recapitulação. Na compreensão agostiniana são três os aspectos que se destacam: o discipulado, a virgindade, e a maternidade.
Em especial, a graça que foi conferida a Maria é oferecida à humanidade inteira: “O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus” (EV 2). Cristo é, por excelência, o modelo da humanidade, o protótipo do ser humano. Uma vez criados à imagem de Deus, somente em Cristo pode-se, de fato, se tornar efetivamente semelhantes a Ele. A existência humana tem Nele seu fato inicial, a grandeza de sermos criados por Deus à Sua imagem e semelhança, e também seu fato final, pois Deus continua nos chamando à comunhão plena com Ele. Somos o que somos pela graça de Deus, como Maria. “O mistério do homem só no mistério do Verbo se esclarece” (GS 22).
Neste sentido, é preciso compreender o significado da pessoa de Maria numa perspectiva antropológico-teológica. Em Maria podemos contemplar o mistério da pessoa; Maria é exemplo concreto do que o ser humano é, do que pode ser e do que está prometido a ser segundo o coração de Deus: imagem divina, chamado a uma comunhão profundamente íntima com a Trindade Una por meio de “Jesus Cristo, mediador e plenitude de toda a revelação" (DV 2).
Maria possui um valor universal permanente, pois foi uma mulher que se realizou completamente como pessoa. A Virgem Mãe - de carne e fé - é o grande símbolo da pessoa que alcança as aspirações mais íntimas da sua inteligência, da sua vontade e do seu coração, abrindo-se por Cristo e no Espírito à transcendência de Deus.
Por fim, a relação entre a Trindade Santa e a pessoa humana formulados por Agostinho influenciou a concepção atual da pessoa humana e sua inalienável dignidade. As eventuais implicações recíprocas entre o Deus que se revelou como comunhão entre Pai e Filho e Espírito Santo e a pessoa humana, na figura de Maria, contribuíram para que o culto mariano tivesse fundamentos cristocêntricos baseado nos textos das Escrituras Sagradas, atestado pela mais genuína tradição e confessada nos Símbolos de fé.
A reflexão sobre Maria na teologia patrística, através do pensamento agostiniano, introduz o cristão na dimensão do mistério cristão. Em sua obra De Trinitate, Agostinho define a dinâmica da vida imanente da Trindade numa estreita analogia com o processo imanente do espírito humano. Ele foi um autêntico precursor da reflexão acerca da pessoa humana como subjetividade vivente. Maria foi uma mulher que integrou na sua essência a memória, a inteligência e a vontade, dado sua adesão do projeto divino para com a humanidade.
O pensamento mariológico medieval presente nos tratados teológicos se tornaram um patrimônio espiritual inspirador para a vivência da fé cristã e para a dignidade humana. Para Agostinho, Maria é a Mãe de Cristo, e também ele relaciona a Igreja como a Mãe dos membros de Cristo. O bispo de Hipona define Maria como o membro santo, a bem-aventurada, feliz por ser primeiro discípula e depois mãe. Maria se consagrou a Deus antes mesmo da Anunciação do anjo e, por isso, é ao mesmo tempo Virgem e Mãe e, pois, ao conceber o Filho de Deus, acolheu-o antes de tudo no seu coração.
Agostinho ressalta a virgindade e a fecundidade de Maria em relação a Cristo e à Igreja. Somente Maria é mãe e virgem no espírito e no corpo. É Mãe de Cristo e também Virgem de Cristo. Maria viveu em plena comunhão e confiança com Cristo. Sua vida de caridade manifesta que entre os seres humanos ela foi a mais digna e seguiu como discípula plena os passos de seu Filho. Sua dignidade teológica, expressa em seu amor, fidelidade e liberdade, foi graça concedida por Cristo.
Dessa forma, quando a mariologia percorre sua formação histórica na teologia patrística, pode oferecer uma importante contribuição para o aprofundamento do mistério cristão na vida da Igreja. Aprender a observar o mistério de Deus na pessoa de Maria ilumina a contemplação do plano salvífico.
Os padres da Igreja são testemunhas de uma experiência de fé originária do começo do cristianismo e sua doutrina tem muito a dizer a quem estuda ou ensina teologia. O povo tem sempre espaço para albergar o mistério. Talvez na teologia deva-se superar a preocupação com a exposição do mistério reduzido a uma explicação racional e, a exemplo do povo simples e crente, seja necessário aprender a deixar o mistério entrar pelo coração. Isto atinge o método da ciência teológica.
Por fim, o interesse pelo pensamento patrístico sobre a Virgem Maria visa compreender uma pessoa que remete, de modo singular, ao núcleo do mistério de Cristo e da Igreja, e que deve ser vista como figura pertencente essencialmente ao povo de Deus e não à essência da Trindade Santíssima, mas no coração da Trindade, representada na bem famosa coroação trinitária de Maria. Em linguagem teológica, costuma-se dizer que a reflexão sobre a Mãe de Jesus é melhor conduzida a partir de uma mariologia marcadamente teológico-antropológica e eclesiológica, compreendendo-a como um exemplo especial de crente que precede na dinâmica do discipulado fiel e da plenitude humana e criatural para a qual todos são chamados, suprema elevação da Criação em Deus, antecipação já coroada da Nova Criação.
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[1] O Proto-Evangelho de São Tiago é conhecido como a Natividade de Maria e se tornou o mais célebre dos livros Apócrifos, o primeiro a ter Maria como tema. De forma popular, com escassa documentação histórica quer defender a virgindade de Maria antes, durante e depois do Parto, e delinear uma imagem de Maria que compreendia o Primeiro Testamento e prefigurava o Segundo Testamento. Maria aparece como dom da graça e Templo, isto é, Arca do Senhor. Esse livro influenciou profundamente toda a Tradição cristã.
[2] Este período da Patrística é considerado época de ouro. Nos Concílios Ecumênicos de Nicéia (325), Constantinopla I (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451) os debates teológicos tiveram como centro de suas discussões a pessoa divina e humana de Jesus Cristo, a divindade do Espírito Santo e a pessoa da Virgem Maria, como Mãe de Jesus Cristo e Mãe de Deus. O Concílio Ecumênico de Éfeso (431) afirmou em sua primeira sessão, a tese tradicional da unidade de pessoa em Cristo e o consequente título, que compete a Maria, de Theotókos (θεοτοκος), Mãe de Deus. (PINTO, 2018, p. 190.)
[3] Os chamados Padres Apologistas foram aqueles cristãos que, a partir do século II d.C escreveram, em diálogo com a filosofia, defesas da sua fé a fim de obter o reconhecimento legal para ela diante do Império. O período pós-apostólico até o Concílio de Nicéia (325) é marcado pela evolução do pensamento mariológico: Maria concebeu a Deus! Esta é a verdade que os Padres Apologistas defenderão em contraposição ao paganismo, ao judaísmo e ao surgimento das inúmeras heresias.